SERMÃO DA SEGUNDA DOMINGA DA
QUARESMA (1651)
Resplenduit facies ejus sicut sol: vestimenta autem ejus facta sunt
alba sicut nix.
CAPÍTULO I
O quinto Domingo da Quaresma
chama-se vulgarmente, na nossa terra, o Domingo das Verdades; e este segundo Domingo em que estamos, se é
lícito falar assim, chamara-lhe eu o Domingo das Mentiras. Mas que fundamento posso eu ter —
me dirão todos, e com razão — que fundamento ou
motivo posso eu ter para dar um nome tão novo, e ainda tão mal soante e
indecente a um dia tão sagrado, como são
entre todos os do ano os domingos, e a um domingo tão singular, como é
entre todos os desta santa quarentena
aquele a que a Igreja dedicou o mistério altíssimo da Transfiguração do Senhor. As causas por que Cristo, Senhor
nosso, se transfigurou com tantas circunstâncias de resplendor, grandeza e majestade, descendo do
céu o Padre, subindo do seio de Abraão Moisés, e vindo do Paraíso Terreal Elias, e assistindo
a tudo os três maiores apóstolos — como notam com Santo Agostinho os Padres, e com Santo Tomás
os teólogos — foram duas: a primeira, para nos dar algumas mostras na terra da glória que
havemos de gozar no céu; a segunda, para que a verdade da mesma glória ficasse provada e estabelecida
com o testemunho universal de todas as três leis: a da natureza em Moisés, a da escrita em Elias, e
a da graça nos apóstolos, e, sobretudo, com a voz infalível do mesmo Deus, que de todos foi
ouvida. Pois, se no mistério e testemunho da
Transfiguração de Cristo não só se contém a glória da bem-aventurança em
si mesma, senão também a verdade da
mesma glória para conosco, e esta glória e esta verdade é o que hoje celebra e
manda pregar a todos os fiéis a Igreja
Católica, como me atrevo eu a dizer que um dia tão solene e glorioso, e mais do céu que da terra, se pode ou podia
chamar o Domingo das Mentiras? Respondo que por isso mesmo, e que em sentido bem entendido e
decente se pode chamar assim. E por quê? Porque o que hoje se prega são as excelências da glória do
céu, e tudo o que se apregoa e encarece da glória do céu, posto que no que se quer dizer seja verdade,
no que se diz é mentira.
Agora vereis se é arrojamento o
que digo. Entre os extraordinários favores que Deus fez a Davi, como homem tanto do seu coração, um deles
foi, e porventura o maior, arrebatá-lo um dia, e levá-lo em espírito ao céu, onde, correndo as
cortinas ao trono da majestade divina e a todo o teatro da glória, lhe mostrou
a que ele havia de gozar depois, quando o Filho de Deus, e Filho do mesmo Davi,
a comprasse com seu sangue. Vendo, pois,
Davi a glória dos bem-aventurados, que havia de ser também sua, que conceito vos parece que faria
da glória? Ele mesmo o disse, e foi admirável: Ego dixi in excessu meo: Omnis
homo mendax. Naquele êxtase em que fui arrebatado e levado ao céu, que fiz depois de ver o que vi, foi dizer e
exclamar que todo o homem mente. — Notável
conseqüência! Pedro vendo a glória do Tabor, diz: Bonum est nos hic esse,
e Davi, vendo a glória do céu, diz: Omnis homo mendax? Sim, e com admirável
discurso. Como se dissera: é possível que
esta é a bem-aventurança do céu, é possível que isto é o que lá no mundo
chamamos glória? Ora, o certo é que nenhum
homem há que falando da glória não diga uma coisa por outra; nenhum homem há que falando da glória diga o que ela é,
senão o que não é; enfim que, falando da glória, todo o homem mente: Omnis homo mendax. Este foi o conceito que fez Davi quando foi
arrebatado ao céu, e nem eu tinha
habilidade para dar em tão alto pensamento, nem tivera confiança para sair com
ele a público, se o não dissera
primeiro, comentando as mesmas palavras, Teodoro Heracleota, insigne entre os Padres gregos, que floresceu a mil e
trezentos anos, bispo, de Heracléia, na Trácia, e doutíssimo intérprete das Escrituras
Sagradas, como dele escreve S. Jerônimo no catálogo dos escritores eclesiásticos. As suas palavras
são estas: Exclamavit David in excessu
suo: Omnis homo mendax: qui enim voce
ineffabilia hortatur; mendax est, non quod oderit veritatem, sed quia deficit
in rei intellectae expositione:
Exclamou Davi no seu êxtase — diz o grande Heracleota — e não duvidou dizer que todo o homem mente, porque todo o
homem que quis explicar com palavras as coisas que são inefáveis, e não tem termos com que se
declarar, necessariamente há de mentir, não porque seja inimigo da verdade, mas porque a não pode
dizer como ela é. — E esta é a razão e o sentido verdadeiro com que eu digo que o dia em que
os pregadores falamos das excelências da glória é o dia das mentiras.
CAPÍTULO II
Mas, antes que passemos adiante,
deixai-me provar que o sentido que acabo de referir é o próprio e genuíno do texto de Davi. A regra certa de
conhecer o verdadeiro sentido de qualquer texto, como ensinam, com Santo Agostinho, todos os
teólogos e intérpretes das Escrituras, é a coerência que tem o texto com os antecedentes e conseqüentes
dele. Se o que fica atrás e o que se segue adiante correm naturalmente e concordam com o que diz o
texto, é sinal certo e evidente de que aquele é o seu próprio, literal e verdadeiro sentido.
Vejamos agora que diz Davi antes e depois de referir o seu êxtase e a exclamação que nele fez.
As palavras antecedentes são
estas, e nenhuma outra mais, porque assim começa o Salmo: Credidi propter quod locutus
sum: ego autem humiliatus sum nimis (Sl. 115,10): Eu — diz Davi —
falei conforme o que cri, e fiquei muito
humilhado. — Pois, de falar conforme o que cria podia ficar humilhado um tão grande profeta? Só no caso
presente, sim. O que cria Davi era o que lhe ensinava a fé, e nenhuma coisa pode humilhar a fé, senão
a vista. Foi arrebatado ao céu, viu lá o que é a glória, e como as evidências claras da glória excedem
infinitamente todas as apreensões escuras da fé, ficou humilhado, e como envergonhado Davi do pouco
que tinha dito da mesma glória, quando falou dela guiado somente pelo que cria: Credidi propter quod locutus sum, ego autem
humiliatus sum nimis. Aquele cego de
seu nascimento, a quem Cristo deu vista, muitas vezes tinha ouvido falar no
sol; mas quando, com os olhos abertos,
viu verdadeiramente o que é o sol, então conheceu quão diferente e quão baixo conceito era o que tinha feito da
sua luz e da sua formosura, que só conhecia de ouvidas. O mesmo lhe sucedeu a Davi. Tinha falado da
glória só pelo que tinha ouvido à fé, e por isso, quando a viu com seus olhos, ficou tão humilhado,
tão confuso e tão corrido do pouco que tinha dito, que não duvidou de se desdizer e se desmentir a si
mesmo e a todos os homens que dela falaram: Ego
dixi in excessu meo: Omnis homo mendax.
As palavras que logo acrescenta e
se seguem imediatamente ao mesmo texto são estas: Quid retribuam Domino pro
omnibus quae retribuir mihi? Não pode haver maior coerência nem maior propriedade. Com que pagarei — diz — a Deus o
muito com que Deus me pagou? — Pois, Davi, já
Deus vos pagou, estando vós ainda nesta vida? Sim, porque já me mostrou
no meu êxtase a glória que me tem
aparelhado, e com que me há de pagar no céu. Por isso lhe chama propriamente,
não dádiva nem mercê, senão retribuição:
Pro omnibus quae retribuit mihi. A
glória é a retribuição, o prêmio e a
paga com que Deus paga no céu os serviços que lhe fazemos na terra; e
como Deus naquele êxtase mostrou a Davi
a glória com que lhe havia de pagar seus serviços, por isso ele, com afeto
de agradecimento e com desejo de fazer
algum novo serviço a Deus, que fosse digna correspondência de tamanho prêmio, querendo pagar uma
retribuição com outra retribuição, rompeu naquelas palavras: Quid
retribuam Domino pro omnibus quae retribuit mihi? Mas, como desejava Davi
pagar a Deus esta mesma paga, se os
bem-aventurados, quando a recebem, nem a pagam nem a podem pagar? A razão
e diferença é porque os bem-aventurados
do céu já não estão em estado de merecer nem servir. Porém Davi, depois de arrebatado e levado ao céu,
tornou a este mundo, e por isso era capaz de pagar a Deus a mesma paga que lhe tinha mostrado, e uma
retribuição com outra.
Duvidoso pois Davi, e excogitando
o modo que podia ter nesta vida para pagar a Deus com paga equivalente à mesma glória que lhe tinha
aparelhado no céu, alumiado pelo mesmo Deus, deu em um pensamento altíssimo, com que milagrosamente
se confirma tudo o que dizemos: Calicem
salutaris accipiam, et nomem Dommi
invocabo (Sl. 115,13): Oferecerei a Deus em sacrifício o cálix do Salvador, invocando seu santo nome. E deste
modo lhe agradecerei e pagarei a mesma glória que me tem aparelhado no céu. Pois, o cálix do
Salvador é o agradecimento e a paga com que Davi há de pagar a Deus a glória
com que o mesmo Deus há de pagar e remunerar a Davi os seus serviços? Sim. Nem pode haver outra igual. E por quê? Porque
o preço com que o Salvador nos comprou a glória foi o cálix do sangue da sua Paixão, que é o
mesmo cálix e o mesmo sangue que se consagra no
Sacramento; e só oferecendo-se a Deus em sacrifício este cálix e este
sangue, se pode pagar a Deus a glória
que nos dá na bem-aventurança, porque é pagar a glória, não só com preço igual,
senão com o mesmo preço com que foi
comprada. Comprou-se a glória com o cálix do sangue do Salvador? Pois com o cálix do mesmo sangue a pagarei eu a
Deus, porque só por este modo pode ser a retribuição do agradecimento igual à retribuição do prêmio: Quid retribuam Domino pro omnibus quae
retribuit mihi? Calicem salutaris
accipiam, et nomem Domini invocabo.
De maneira — tornando ao nosso
texto — que, sendo Davi arrebatado em espírito e levado ao céu, viu lá a glória dos bem-aventurados, e, comparando
o conhecimento claro e verdadeiro da glória que
viu com o conceito que fazem da mesma glória e que dizem dela os que a
não viram, o que inferiu desta vista, e
a conseqüência que tirou, foi dizer que todo o homem mente: Ego dixi in excessu meo: Omnis homo mendax — não absolutamente, e
em qualquer outra matéria, senão particularmente nesta, e quando falam da glória. Digo quando
falam da glória, porque só neste sentido se verifica com propriedade o texto de Davi, o qual
absolutamente tomado, e como vulgarmente se entende, tem grande contrariedade na mesma Escritura. No
capítulo catorze do Apocalipse diz S. João que viu muitos milhares de homens, em cuja boca nunca
se achou mentira: In ore eorum non est
inventum mendacium (Apc. 14,5). Tal
foi Natanael, de quem disse Cristo: Ecce
vere Israelita in quo dolus non est.
Tal foi o Batista, de quem canta a Igreja: Ne
levi posses maculare vitam crimine linguae.
E, verdadeiramente, para não mentir, não é necessário ser santo, basta
ser honrado, porque não há coisa mais
afrontosa, nem que maior horror faça a quem tem honra, que o mentir. Pois, se é
de fé que há tantos que nunca mentiram,
como diz Davi que todo o homem mente: Omnis
homo mendax? Os que querem defender
a proposição de Davi no sentido vulgar, dizem que não fala do ato nem do hábito da mentira, senão da corrupção da
natureza. Mas, se basta a corrupção da natureza para dizer que todo o homem é mentiroso, também bastará
para dizer que todo o homem é homicida, ladrão e adúltero, o que ninguém jamais disse, nem
pode dizer. Aqui vereis quão próprio e verdadeiro é o sentido em que temos declarado, com Teodoro,
o texto de Davi. Quando diz que todo o homem
mente, não fala em geral de toda a matéria, senão daquela que atualmente
estava vendo no seu êxtase, que era a
glória; e desta só, e em particular, é que diz que ninguém houve que falasse
dela que não mentisse.
Mas, suposto que Davi inferiu e
tirou esta conseqüência da glória que viu, eu também quero inferir e tirar conseqüências da sua proposição. —
Dizeis, Davi, que todo o homem, quando fala da glória, mente porque diz menos do que é? Logo, também
vós, que sois homem, quando falastes da glória,
mentistes? — Concedo, diz Davi, que esse mentir não é culpa. — E se vós,
que fostes o mais alumiado de todos os
profetas, nesse sentido mentistes, diremos também que os outros profetas, quando nela falaram, mentiram? — Também, diz
Davi — no sentido em que eu o disse, que tanto o disse por mim, como por eles. — E se os
profetas, quando falaram da glória, mentiram, que diremos dos evangelistas? — No mesmo sentido em que
falou Davi, ele diz que sim, e eu também com ele. E não temais que seja descrédito da verdade dos
evangelistas, senão crédito da excelência da glória. Estai comigo, e assentemos o admirável desta
proposição sobre as bases mais sólidas da Teologia.
Santo Tomás, dividindo a mentira
em suas espécies, na questão cento e dez, artículo segundo, diz assim com Aristóteles, a quem cita no quarto
das Éticas. Vede se são os dois corifeus da Filosofia e da Teologia. Mendacium
in duo dividitur, scilicet, in mendacium quod transcendit verita tem in majus,
et mendacium quod deficit a veritate
in minus: A mentira, diz Santo Tomás,
divide-se em duas espécies: uma por
excesso e outra por defeito; a mentira por excesso é a que excede a verdade,
porque diz mais; a mentira por defeito é
a que falta à verdade, porque diz menos. — Funda-se esta divisão — a qual
é adequada — na oposição que a mentira
tem com a verdade, porque a inteireza da verdade consiste em dizer o que é, assim como é; e assim como
dizer mais do que é, é mentira por excesso, assim dizer menos do que é, é mentira por defeito. E
desta segunda espécie de mentira — que é natural, e não moral — nem os profetas, nem os evangelistas se
podem livrar quando falam da glória, não porque
não queiram dizer a verdade, e a digam do modo que podem, mas porque as
verdades da glória são tão altas, tão
sublimes e tão superiores a toda a capacidade e linguagem humana, que, por mais
que digam o que é, sempre dizem muito
menos.
CAPÍTULO III
Comecemos pelos evangelistas, e
seja São Mateus o primeiro no mesmo Evangelho de hoje. Conta São Mateus a famosíssima história da
Transfiguração de Cristo, Senhor nosso, no Monte Tabor, aonde levou consigo os três mais avantajados
e mais familiares discípulos, e se lhes manifestou glorioso. E que é o que refere desta glória o
evangelista? Diz que o rosto do Senhor ficara
resplandecente como o sol, e as suas vestiduras alvas como a neve: Resplenduit facies ejus sicut sol: vestimenta autem ejus facta sunt alba sicut
nix (Mt. 17,2). Por certo que se a glória que Cristo mostrou aos discípulos não foi mais que esta,
nem é necessária para a ver ir ao céu, nem ainda subir ao monte: resplendor como o do sol e brancura
como a da neve, em qualquer vale se acha e de
qualquer vale se vê. S. João Crisóstomo, descrevendo o resplendor que
terão no céu os corpos gloriosos dos
bem-aventurados, diz que farão tanta vantagem à luz do sol, quanta faz a luz do
sol a uma candeia: Erit lux non quae nunc est, sed plane alia, quae hanc tantum superabit
fulgore, quantum ista lumen lychni.
E se a luz de qualquer corpo glorioso não só é tão superior à do sol,
senão totalmente diversa e doutra
espécie: Non quae nunc est, sed plane
alia, sendo o resplendor do corpo de
Cristo glorioso quase infinitamente maior que o de todos os
bem-aventurados, como diz o evangelista
que era como o sol? Santa Teresa, a quem Cristo repetidamente mostrou as
mesmas galas do Tabor, diz que aquele resplendor
e brancura são tão diferentes de tudo o que cá se vê e a que se sabe o
nome, que a neve lhe parecia preta, e o
sol escuro e indigno de se porem nele os olhos. Os mesmos três apóstolos experimentaram bem no mesmo caso
esta grande diferença, porque com a vista do Senhor transfigurado ficaram tão assombrados e
atônitos que estavam fora de si, como notou São Marcos: Non
enim sciebat quid diceret: erant enim timore exteriti. Logo, se em homens
costumados a ver o sol e a neve causou
aquela vista tão estupendos efeitos, muito diferentes eram do sol e da neve
o resplendor e brancura que viam.
Finalmente, S. João Damasceno, Santo Epifânio, S. Gregório Nazianzeno, Santo Agostinho e outros Padres
dizem que aquele resplendor e aquela brancura não só emanou do corpo glorioso, nem só da alma
sempre bem-aventurada de Cristo, senão da mesma
divindade do Verbo unida hipostaticamente a uma e outra parte da
humanidade sagrada, da qual divindade,
como de fonte e princípio principal, se difundiam no rosto e nas vestiduras do
Senhor aqueles admiráveis efeitos, em
prova manifesta e quase sensível de que o homem que viam era juntamente Deus, como logo apregoou a voz do
Padre: Hic est Filius meus dilectus.
O Verbo Divino chama-se nas Escrituras
resplendor da glória e figura da substância do Padre: Splendor gloriae et figura
substantiae ejus (Hebr. 1,3); e também se chama candor e brancura da luz
eterna: Candor est enim lucis aeternae (Sab. 7,26). E deste
resplendor divino é que manou o resplendor do rosto, e deste candor, também divino, a brancura das
vestiduras na Transfiguração de Cristo.
Pois, se a comparação do sol e da
neve, aplicada a qualquer corpo bem-aventurado e glorioso, mais é injúria que semelhança; se o resplendor e
brancura do rosto e vestiduras de Cristo excediam com infinitas vantagens a formosura e galas de
toda a corte do Empíreo, e se estes dois reflexos da majestade, ou estas duas amostras da glória
no Senhor dela mais tinham de divinas que de
sobrenaturais, e no candor e na luz eram raios expressos da divindade,
como diz o evangelista que o resplendor
do rosto era como o sol: Resplenduit
facies ejus sicut sol — e a brancura das roupas como a da neve: Vestimenta autem ejus facta sunt alba sicut nix? Aqui vereis com
quanta verdade disse Davi que nas
matérias da glória omnis homo mendax,
não excetuando nenhum homem, ainda que seja
evangelista. A verdade dos evangelistas em todas as outras matérias é
tão adequada como infalível; mas quando
chegam a falar da glória, não por defeito do historiador, mas por excesso da
mesma glória, são tão imperfeitas as
cores com que a pintam, e tão desiguais as semelhanças com que a descrevem, que não dizem o que é como é, senão
como não é. Declaram o muito pelo pouco,
encarecem o mais pelo menos, explicam o que chamam semelhante pelo que
não tem semelhança, enfim, de tal
maneira narram as verdades da glória, que sempre ficam dentro dos termos e
divisão da mentira. Não diz Santo Tomás
que a mentira por defeito é dizer menos do que é: Mendacium, quod deficit a
veritate in minus? Pois isto é o que sucede até aos evangelistas quando
falam da glória.
CAPÍTULO IV
No carro de Ezequiel, chamado o
carro da glória de Deus, o rosto de homem significava a S. Mateus, e o de águia a São João. Ora, vejamos
se o evangelista S. João, como águia de mais aguda vista, alcança a dizer mais que S. Mateus. No
capítulo vinte um e vinte dois do seu Apocalipse diz São João que viu descer do céu a cidade
triunfante da glória, ornada como a esposa no dia das bodas: Vidi
civitatem Jerusalem novam descendentem de caelo a Deo, paratam, sicut sponsam
ornatam viro suo. E, começando a
descrição da cidade, assim como Deus a fábrica do mundo, pela luz, diz que a alumiava a claridade de Deus, e que esta
claridade era semelhante a uma pedra preciosa, e esta pedra preciosa semelhante a jaspe, e este
jaspe semelhante a cristal: Habentem
claritatem Dei, et lumen ejus simile
lapidi pretioso, tanquam lapidi jaspidis, sicut crystallum. O jaspe, de que
aqui fala São João, não é aquela pedra vulgar e grosseira a que nós damos o
mesmo nome, mas outra, só parecida com
ela no arremedado ou remendado das cores, a que os gregos chamaram esfingites.
Desta pedra refere Suetônio que lavrou
para si uma galeria o mesmo imperador Domiciano, que desterrou para a Ilha de Patmos a São João. E
acrescenta Plínio que pouco antes tinha sido descoberta em Capadócia, no tempo de Nero, o qual com
lâminas da mesma pedra vestira o interior do Templo da Fortuna, e era tal o seu natural resplendor
que, com as portas e janelas fechadas ao sol, conservavam a luz do dia.
Vai por diante o evangelista na
sua descrição da Cidade da Glória, cujos muros altíssimos e fortíssimos diz que eram edificados em
quadro, e todos deste mesmo jaspe. Mediu-os um anjo com uma cana de ouro, e achou que tinham por cada
lado doze mil estádios de comprimento, que fazem das nossas léguas quatrocentas e quarenta e
quatro, para que até o número seja quadrado, em tudo significador de firmeza. Nos quatro lanços do
muro havia doze portas, as quais nunca se fechavam, porque naquela região não há noite. E destas
doze portas, três olhavam para o Oriente, três para o Ocidente, três para o Setentrião, três para o
Meio-Dia, em sinal de que para todas as partes do mundo, e para todas as nações e estados dele, sem
excluir a ninguém, está o céu patente. As portas todas eram da mesma arquitetura, e todas da mesma
grandeza, proporcionada à altura e à magnificência dos muros, e cada uma delas aberta em uma pérola:
Et singulae portae erant ex singulis
margaritis (Apc. 21,21). Se no
antigo Panteão, que era o templo de todos os deuses, e, por isso, figura do
céu, se mostra ainda hoje, por
maravilha, a porta dele aberta em uma só peça de mármore, quão admiráveis seriam aquelas portas, muito maiores que o
mesmo templo, abertas em uma só pérola? A estas doze portas respondiam outros tantos fundamentos,
sobre os quais assentava toda a cidade, e cada um era lavrado não da mesma, senão de várias pedras,
e tão preciosas como várias. O primeiro fundamento, diz São João, era de diamante, o segundo de
safira, o terceiro de carbúnculo, o quarto de esmeralda, o quinto de rubi, o sexto de sárdio, o sétimo
de crisolito, o oitavo de berilo, o nono de topázio, o décimo de crisópraso, o undécimo de jacinto, o
duodécimo de ametista. E, segundo o número e ordem destes doze fundamentos, estavam esculpidos e
gravados neles os mesmos doze apóstolos, porque só fundada na fé e doutrina dos apóstolos pode
estar segura a esperança de entrar na glória.
Mas, se tão suntuoso e magnífico
era o exterior da Cidade, qual vos parece que seria ou será o interior. Toda a cidade, em toda a sua
grandeza, todos seus edifícios e palácios — que todos são palácios reais — todas suas ruas e praças,
diz o evangelista que eram de ouro puro e sólido, mas não ouro espesso, como o nosso, senão diáfano e
transparente como vidro: Ipsa vero
civitas aurum mundum simile vitro mundo,
et platea civitatis aurum mundum tanquam vitrum perlucidum. De sorte que a Cidade da Glória no pavimento,
nas paredes e no interior dos aposentos, toda é um espelho de ouro, porque todos perpetuamente
se vêem a si mesmos, todos vêem a todos, e todos vêem tudo. Nada se esconde ali, porque lá não há
vício; nada se encobre, porque tudo é para ver; nada se recata ou dissimula, porque tudo agrada; e
por que tudo é amor, tudo se comunica. Ainda tem outra excelência aquela bem-aventurada cidade, a
qual, se lhe faltara, não fora da glória. Vindo a Roma, nos tempos de sua maior opulência e grandeza, um
embaixador de Pirro, rei dos epirotas, não fazia fim de admirar o que o poder e a arte tinha junta
naquele empório de riquezas e delícias. — E perguntado pelos romanos se achava algum defeito na sua
cidade. — Sim, acho — respondeu o embaixador. — E qual é? — Que também em Roma se morre. — Não
assim, diz São João, nesta riquíssima cidade que vos tenho descrito: Mors ultra non erit, ne que luctus, neque clamor; neque dolor erit
ultra (Apc. 21, 4): Não há lá morte,
nem lutos, nem dor, nem queixa — porque do trono do supremo Rei sai um rio de cristal que rega toda a cidade, cujas
margens estão cobertas de árvores, e as árvores carregadas de frutos, e os
frutos melhores que os da Árvore da Vida, que não só fazem os homens imortais,
senão eternos: Fluvium aquae vivae, splendidum tanquam crystallum, procedentem de sede
Dei et Agni. In medio plateae ejus, et
ex utraque parte fluminis lignum vitae.
CAPÍTULO V
Esta é, senhores, a Cidade da
Glória, descrita pelo evangelista São João; e basta que fosse assim como se descreve para ser merecedora das
nossas saudades, e que fizéssemos mais do que fazemos por ir viver nela. Mas é necessário entender
com distinção isto mesmo que está dito. Em dizer o evangelista que naquela bem-aventurada pátria
não há morte, nem dor, nem tristeza, nem queixa, nem algum dos outros acidentes que tão molesta
fazem a vida deste vale de lágrimas, é verdade entendida assim como soa, em que não pode haver dúvida.
Porém isto não é dizer o que há no céu, senão o que não há. Não há mortes, não há dores, não há
trabalhos. O demais, que pertence à magnificência e riqueza da mesma cidade, o ouro, as pérolas,
os diamantes, e todo o outro aparato e preço da pedraria de que são edificados os muros, e quanto eles
abraçam e cercam é o de que só se duvida. E com razão. Alguns doutores têm por provável que tudo
isto haja no céu; os demais o negam absolutamente, e, para mim, com evidência. Os vossos mesmos
olhos e os vossos mesmos pensamentos me hão de fazer a prova. Pergunto: Vistes já ouro, vistes já
pérola, vestes já diamantes, e todas as outras pedras de preço, de que São João fabrica a Cidade da
Glória? Sim. Logo é certo e evidente que a Cidade da Glória não é edificada desse ouro nem dessas
pedras. Por quê? Porque São Paulo, que foi ao céu e viu o que lá há — diz que o que Deus tem
aparelhado na bem-aventurança para os seus escolhidos são tudo coisas que nunca os olhos viram. Oculus non vidit quae praeparavit Deus iis
qui diligunt illum. Logo, pelo mesmo caso que nós vemos esse ouro e essas
pedras, segue-se com evidência que não
são esses os materiais de que é fabricada a Cidade ou Corte da Glória. Dirá
alguém que, ainda que vemos ouro e
pedras preciosas, não vimos nunca cidade alguma, nem ainda uma só casa
fabricada desse ouro e dessas pedras, e
a cidade que descreve São João não só é cidade de qualquer modo, senão uma cidade de mais de quatrocentas
léguas em quadra. Boa solução ou instância. Mas eu torno a perguntar: e imaginando vós com o
pensamento, podeis conceber e fabricar nele uma cidade tão grande como esta, edificada toda de ouro, de
diamantes e pérolas? Não há dúvida que, sem sermos tão grandes arquitetos, como Vitrúvio, a podemos
imaginar e idear assim, e ainda mais a gosto de cada um. Logo a Cidade da Glória não é como a descreve
S. João, porque o mesmo São Paulo diz que o
que Deus lá nos tem aparelhado não só não o viram jamais olhos, mas que
nem o pode conceber o pensamento, nem
entrar na imaginação humana: Oculus non
vidit; nec in cor hominis ascendit.
Pois, se isto é assim com verdade infalível e irrefragável, como nos
pinta o evangelista São João e nos
descreve a Cidade de Deus feita toda de ouro e pedras preciosas?
Explicarei este desenho do
discípulo amado de Cristo com o que aconteceu a um discípulo de Zêuxis, famosíssimo pintor da antigüidade.
Disse-lhe o mestre que, por obra de examinação lhe pintasse uma imagem da deusa Vênus com todos
os primores da formosura a que pudesse chegar a
sua arte. Fê-lo assim o discípulo, e, com estudo e aplicação de muitos
dias e desvelo de muitas noites,
presentou o quadro ao mestre. Via-se nele a deusa, toda ornada e
enriquecida de jóias, que mais pareciam
roubadas à natureza que imitadas da arte: nos dedos anéis de diamantes, nos
braços braceletes de rubis, na garganta
afogador de grandes pérolas, no toucado grinalda de esmeraldas, nas orelhas chuveiros de aljôfar, no peito um
camafeu em figura de cupido, cercado de uma rosa de jacintos, com os ais da mesma flor por raios;
as alpargatas semeadas de todo o gênero de pedraria, as roupas recamadas de ouro e tomadas
airosamente em um cintilho de safiras. Esta era a forma do quadro, e nele todo o engenho e arte do
discípulo. Estava esperando a aprovação do mestre. Mas que vos parece que lhe diria Zêuxis? Fecisti divitem, quia non potuisti facere
pulchram: Fizeste-a rica, porque a
não pudeste fazer formosa. — O mesmo digo eu ao ouro, às pérolas e às pedras
preciosas com que São João nos descreve
a Cidade da Glória. — Evangelista sagrado, riquíssima está a cidade que nos pintastes; mas fizeste-la tão rica
porque a não pudeste fazer formosa. A formosura que espera ver a nossa fé no céu não é como esta, em que
só se pode enlevar a cobiça da terra. Bem o advertistes vós, águia divina, quando tomastes por salva
que a cidade que descrevíeis era descida do céu à terra: Civitatem
Jerusalem descendentem de caelo. O ouro, os diamantes, as pérolas, tudo é
terra e da terra. E como pode o lustroso e precioso da terra informar-nos com
verdade da beleza sobrenatural eformosura inestimável da glória? É verdade que
São João, na idéia que formou, imaginou quanto se podia imaginar, e na descrição que fez, disse
quanto se podia dizer; mas como as coisas da glória são tão diversas de tudo o que se vê, e tão
levantadas sobre tudo o que se imagina, por mais e mais que se diga delas, sempre se diz menos. E como o
dizer menos na Filosofia de Aristóteles e na Teologia de Santo Tomás é uma das espécies da mentira,
ninguém se deve admirar que, no sentido em que falo, pareça que o maior dos evangelistas
incorresse na sua visão aquela gloriosa censura que Davi, também arrebatado no seu êxtase, deu a todos
os que falam na glória: Ego dixi in
excessu meo: Omnis homo mendax.
CAPÍTULO VI
Dos evangelistas passemos aos
profetas. Isaías, que é o maior de todos, e neste ponto é singular entre os demais, porque viu a Deus no trono
da glória, diz assim: A saeculo non
audierunt, neque auribus perceperunt,
quae praeparasti expectantibus te. Quer dizer que as coisas que nos
esperam, e Deus nos tem preparado na
glória são tão altas, tão sublimes e tão superiores a tudo o de que neste mundo se tem notícia, que nunca jamais
chegaram aos ouvidos dos homens. Que sejam as coisas da glória maiores que tudo o que viram os olhos
e tudo o que pode inventar a imaginação, já o
mostramos; mas que sejam também maiores que tudo o que ouviram os
ouvidos, é coisa para mim muito
dificultosa. Que há, ou que pode haver que não tenham ouvido os ouvidos?
Ouviram tudo o que escreveram os
historiadores; ouviram tudo o que fingiram os poetas; ouviram tudo o que
especularam os filósofos; ouviram tudo o
que publicou, acrescentou e exagerou a fama; ouviram tudo o que, debaixo do mais sagrado secreto, descobriu e
não calou o silêncio. Mas não está aqui a dificuldade. Pois, em que está? Está em que os ouvidos têm
ouvido tudo o que disseram os profetas, e tudo o que está escrito e dito nas
Escrituras Sagradas. Argumento agora assim. É certo que os profetas e os
outros escritores sagrados falam muitas
vezes na glória, e no que Deus tem prometido e aparelhado no céu para bem-aventurança e prêmio dos que o
servem nesta vida. Também é certo que tudo o que nos profetas e nos outros livros sagrados se diz
e neles está escrito, nós o lemos e ouvimos. Logo, se as Escrituras Sagradas dizem o que Deus nos tem
aparelhado na glória, e nós ouvimos tudo o que dizem essas mesmas escrituras, como diz Isaías que
ninguém ouviu o que Deus nos tem aparelhado na
glória: A saeculo non audierunt
quae praeparasti expectantibus te?
A solução deste fortíssimo
argumento é a mais evidente prova de tudo o que imos dizendo. Os profetas e as outras Escrituras falam da
glória, nós ouvimos tudo o que dizem os profetas e as Escrituras, e, contudo, não ouvimos nada da
glória, porque, por mais que os profetas e as Escrituras digam da glória, nunca chegam a dizer o que
ela é. E porque eles, dizendo, não dizem, por isso nós, ouvindo, não ouvimos: A saeculo non audierunt. Mais ainda. Se ninguém ouviu o que é a
glória, segue-se que nem os profetas,
que falaram dela, o ouviram. Maravilhosa conseqüência, mas verdadeira! E assim é. Ouviram uns profetas
aos outros profetas, e ouvia-se cada um a si mesmo; mas nem ouvindo todos a todos, nem ouvindo-se
cada um a si, ouviam o que é a glória, porque, por mais levantado que seja o espírito dos profetas,
por mais sublime que seja o seu estilo, e por mais que sobre-humana a sua eloqüência, em chegando a
falar da glória, ou não dizem o que é, ou dizem o que não é. Dizem figuras, dizem comparações,
dizem semelhanças, mas todas essas comparações são tão desiguais, todas essas semelhanças tão
diferentes, e todas essas figuras tão pouco parecidas, que nas comparações fica a glória totalmente abatida,
nas semelhanças desluzida, e nas figuras desfigurada. E se não, vejamos ou ouçamos o que os mesmos
profetas têm dito.
Quer Isaías que comecemos desde o
princípio do mundo: A saeculo non
audierunt. Seja assim. E quais foram
desde o princípio do mundo as figuras com que Moisés e os outros profetas
nos representaram a glória? A primeira
foi o Paraíso Terreal, depois o Tabernáculo e a Arca do Testamento, o Maná, a Terra de Promissão, a
cidade de Jerusalém, o Templo de Salomão. Mas que semelhança têm estas coisas, por mais que
fossem os milagres da natureza e da arte, com a glória do céu? No Paraíso Terreal entrou a serpente e o
pecado; e a primeira prerrogativa da glória é a
segurança da graça, em que todos os que lá vivem são confirmados. No Tabernáculo
de Moisés andou a Arca do Testamento com
os filhos de Israel peregrinando pelo deserto: no céu está Deus e os bem-
aventurados de assento, como na própria pátria. O Maná, posto que tinha todos
os sabores, não durava de um dia para o
outro, porque se corrompia; e a glória não só é perpétua e incorruptível em si,
mas aos mesmos nossos corpos de carne
faz incorruptíveis e imortais. Da Terra de Promissão se dizia, por encarecimento, que manava leite e mel: mas
que comparação tem o leite com os deleites do céu, e o mel com as doçuras da glória? A cidade de
Jerusalém quer dizer Visão de Paz: e quantas vezes se viu a mesma Jerusalém combatida, sitiada e
destruída com guerras? Só no céu é a paz segura e sem temor, porque dentro não pode haver desunião,
e de fora não chegam lá inimigos. No Templo de
Salomão estava coberto com um véu o Sancta
Sanctorum, donde Deus, oculto e invisível, falava por oráculos, e onde só podia entrar o Sumo
Sacerdote uma vez no ano: mas na glória, sem véu nem cortina, se deixa Deus ver e gozar manifesto
a todos, e não em um só dia ou ano — que fora assaz — senão por toda aquela eternidade, inteira sem
divisão e continuada sem limite, em que não há anos nem dias.
Que mais dizem os profetas? Dizem
que o céu é um rio de delícias que sempre corre: Torrente voluptatis tuae potabis
eos. Mas, se todo o mar oceano, comparado com a imensidade das
delícias celestiais, é estreito, que
será um rio? E se as mesmas delícias são permanentes e eternas, e não diversas, senão sempre as mesmas, como podem
ser correntes? Dizem que o céu é um perpétuo
convite de esquisitos e soberanos manjares: Faciet Dominus in monte hoc convivium pinguium, pinguium medulatorum. Mas os convites
começam com fome, continuam com gosto, e acabam
com fastio. A glória, pelo contrário, é uma perpétua satisfação do
desejo e um perpétuo desejo da mesma
satisfação, em que não há fome, porque a fome molesta, nem fastio, porque o
fastio cansa, nem o gosto acaba jamais,
porque não tem fim. Dizem que é um reino em que todos os que nele entram recebem a coroa da mão de Deus: Accipient regnum decoris, et diadema speciei
de manu Domini. Mas o reino
compõe-se de rei e vassalos, e na glória, não há súditos: só são sujeitos
a Deus, por vontade, os que reinam com
ele, e essa mesma sujeição amorosa é o cetro da liberdade e a coroa do alvedrio. Dizem que é um dia de
bodas com vínculo indissolúvel: Sponsabo
te mihi in sempiternum. Mas que amor
ou que gosto há nas bodas que em poucos dias não enfraqueça ou se mude? Cresce com a esperança, satisfaz-se com
a novidade e diminui com a posse. Na glória não é assim, porque o bem infinito sempre é novo, e
onde a novidade não envelhece, o amor e o gosto não diminui. Dizem, finalmente, que a alegria da
glória será como a dos lavradores no dia da messe, quando colhem o fruto dos seus trabalhos, e
como a dos soldados vitoriosos, quando repartem os despojos dos inimigos vencidos: Laetabuntur coram te, sicut qui laetantur in
messe, sicut exultant victores capta
praeda, quando dividunt spolia. Mas, que semelhança tem a baixeza
destas comparações e a desproporção de
todas as outras, para medirmos ou estimarmos por elas as felicidades do céu? Mais parecem inventados
para abater a grandeza da glória, para escurecer seu resplendor e para afear sua formosura que
para nos representar nem as sombras do que ela é.
Quase lhes aconteceu aos profetas
com o céu lá de cima, que não vemos, o mesmo que aos matemáticos e astrólogos com este céu cá de
baixo, onde chega a nossa vista. Viram os matemáticos esse labirinto de luzes, de que está semeada
sem ordem toda a esfera celeste, tão diversas na grandeza, como várias no movimento e infinitas no
número; e para assentar alguma coisa certa em uma confusão tão imensa, que fizeram? Repartiram
o mesmo céu, e fingiram em todo ele grande multidão de figuras, umas naturais, outras fabulosas.
Aqui puseram um touro, ali um leão, acolá uma serpente; aqui um cervo, ali um cisne, acolá uma águia;
em uma parte a Hércules, em outra a Orion, em outras a Medusa, a Berenice, a Andrômeda; o cavalo
Pégaso voando com asas, o rio Erídano volteando a corrente, a nau Argos navegando; um golfinho,
um caranguejo, uma balança, um carro, o escorpião, o centauro, a hidra, o capricórnio, e outras
quimeras como estas, tão feias nos aspectos como nos nomes. Pois, no céu há estes animais, estas
fábulas, estes monstros? Não, que tudo são estrelas resplandecentes e formosas. Mas foi
necessário aos matemáticos fingir no céu estas mentiras e pôr lá estas fábulas, para, por meio delas, se
entenderem entre si e ensinarem de algum modo ao mundo a verdade do que passa no céu.
Perdoai-me a comparação, profetas
sagrados, e agradecei à reverência dos vossos oráculos não usar eu do nome e da licença que já me deu um de
vós, e o mais alumiado de todos. No céu não há
segadores, messes, nem soldados, nem despojos; no céu não há convites,
nem bodas, nem inundação de torrentes;
no céu não há Jerusaléns, nem Tabernáculos, nem Paraísos Terreais, nem Terras
de Promissão, que tudo isso é terra e
coisas da terra. Mas vós, como matemáticos do céu empíreo, pusestes lá todas essas figuras, com tão
pouca semelhança e proporção, como com necessária impropriedade, para por meio delas ensinar a
nossa rudeza, e, pela consideração dos gostos grosseiros que percebemos, nos levantar a fé e o
pensamento à conjectura dos que não alcançamos. Nem podia haver outro argumento ou experiência que
melhor nos demonstrasse o eminentíssimo conceito que devemos fazer das coisas da glória, pois os
vossos mesmos entendimentos, ainda sobrenaturalmente elevados, não têm conceitos nem palavras
bastantes com que nos declarar suas grandezas.
CAPÍTULO VII
E se os mesmos profetas, quando
chegam a falar da glória, dizem tanto menos do que ela é, ou verdadeiramente o que não é, que podemos nós,
os pregadores, dizer em matéria que tanto excede toda a capacidade mortal? Por isso, ainda
quando mais encarecemos, sempre mentimos. Só São Paulo pudera pregar da glória, porque era pregador
que a viu com seus olhos; mas, ouçamos o que ele disse depois de a ver: Raptus est in Paradisum, et audivit arcana verba, quae non licet homini
loqui (2 Cor. 12, 4): Eu — diz São
Paulo, falando de si em terceira pessoa — fui arrebatado ao céu, e lá vi o
que Deus tem aparelhado para os seus
escolhidos; mas são coisas tais que me não é lícito dizê-las. — Neste não me é lícito reparo. Que coisa mais
lícita, que coisa mais justa, que coisa mais santa, mais útil e mais necessária que falar da glória do
céu, e mais quem a tinha visto? O rico avarento teve para si que faria maior impressão de temor em seus
irmãos a pregação de Lázaro, porque tinha visto as penas do inferno; e não há
dúvida que também em nós excitaria muito mais o desejo a pregação de São Paulo,
porque tinha visto a glória do céu. Pois, se esta pregação era tão eficaz e tão
útil para a salvação de muitas almas que
tão esquecidas vivem do céu, por que se escusa São Paulo de pregar e apregoar os bens da glória, e se escusa com
lhe não ser lícito: Non licet?
Há casos em que muitas coisas
vedadas se dispensam e se podem fazer licitamente, mas a mentira, ainda em matéria leve, é de sua natureza tão
intrinsecamente má, que em nenhum caso é lícito mentir. E porque o mentir nem por salvar almas é
lícito, e as coisas da glória se não podem dizer sem mentir, por isso São Paulo, em todo o rigor da
palavra, se escusou com lhe não ser lícito: Non
licet homini loqui. De sorte que,
reduzido nas matérias da glória a termos ou de mentir ou de calar, tomou
por expediente o calar, porque lhe não
era lícito o mentir. Mas, se a São Paulo não era lícito falar na glória com este defeito, logo também aos profetas e
aos evangelistas não foi lícito? Sim, foi, porque eles não tinham visto a glória; S. Paulo sim. S.
Paulo, como testemunha de vista, tinha obrigação de dizer tudo o que vira, sob pena de desacreditar e infamar
a glória; os demais, que a não tinham visto, não eram obrigados a dizer de suas grandezas senão o
que podiam, e do modo que podiam, como fizeram. E, posto que disseram da glória muito menos do
que ela é e merece, nem por isso incorreram em culpa, porque quando Davi disse que todos mentiam,
falou da mentira material, a qual não é ilícita nem culpável, antes, neste caso, louvável e de
grande glória da mesma glória. A razão da diferença é porque, como define Santo Agostinho: Mentiri est contra mentem ire. O mentir,
com mentira formal e ilícita, é dizer um
homem o contrário do que entende. Os outros escritores sagrados no que
disseram da glória disseram o que
entendiam e o que podiam; porém, São Paulo, ainda que dissesse o que podia, sempre havia de dizer contra o que
entendia, como homem que tinha visto a glória, e por isso não lhe era lícito: Non licet homini loqui.
Assim calou o maior pregador do
mundo, e assim pudera também a Igreja mandar os pregadores que calássemos neste dia, pois o calar sempre
é lícito. Mas quis antes que disséssemos — ou
mentíssemos esse pouco que podemos dizer, do que passarmos totalmente em
silêncio as grandezas da glória, porque
a maior grandeza das suas grandezas é não se poder falar nelas sem mentir.
E se algum crítico acaso tiver
estranhado a palavra e o assunto, saiba que usar talvez da mentira para persuadir a verdade, não só não encontra
as leis da boa e verdadeira retórica, mas é um dos maiores primores da sua energia. Fala Sêneca
da hipérbole, tão usada de todos os que falaram em coisas grandes, e diz assim: In hoc omnis hyperbole extenditur, ut ad
verum mendacio venia: O fim por que
a hipérbole se estende tanto fora dos mesmos limites do que pretende persuadir,
é porque quer chegar à verdade por meio
da mentira: mente e diz mais do que a coisa é, para que se lhe venha a crer o que é: Nunquam tantum sperat hyperbole, quantum audet: Não é tão
mal-entendida a hipérbole, que espere
tanto do ouvinte quanto ela se atreve a afirmar. Sed incredibilia affirmat, ut ad credibilia pervenit: Mas afirma o que é incrível,
para que se lhe creia tudo o que se pode crer. — Por este exemplo ficará entendido o fim e fundamento
do meu discurso. O estilo que segui foi uma hipérbole às avessas. Há hipérbole por excesso e hipérbole
por diminuição, e ambas mentem para chegar à
verdade: Ut ad verum mendacio
veniat. A hipérbole por excesso diz o muito que se não pode crer, para que se creia o que é; e a hipérbole por
diminuição diz o pouco que se pode dizer, para que se creia o que será. O que será a glória do céu
é o que se colhe eficazmente do meu discurso.
É certo que bastava só a
consideração ou a suspensão deste que será, para todos os que temos fé nos levantarmos sobre todas as coisas da
terra e as tratarmos com o desprezo que pede o altíssimo fim para que fomos criados. Se tudo o que temos
dito, se tudo o que todos disseram, se tudo o que todos escreveram, se tudo o que todos imaginaram,
em comparação da glória merece nome de mentira, a verdade que será? Há mentiras que se vêem,
como diz o Espírito Santo: Visa mendacia, e tais são as aparências deste céu inferior que vemos ou
cuidamos que vemos. Cuida o vulgo que vê o céu, e engana-se, porque não chega lá a nossa vista.
Isto que chamamos céu é uma mentira azul, e o que chamamos íris ou arco celeste é outra mentira
de três cores; e, se as mentiras do céu da terra são tão formosas, quais serão as verdades do céu do
céu: Caelum caeli Domino (Sl.113,
16)? S. Bernardo, sem subir tanto acima,
tomou por empresa uma harpa com a letra que dizia: Quid erit in patria? Se no
desterro há tal harmonia e tal suavidade, na pátria, que será? Mas muito
melhor o nosso Davi, depois que viu na
mesma pátria, não o que será por conjectura, senão o que é por realidade,
trocou a empresa e desencordoou a sua
harpa. E que disse? Que tudo quanto tinha cantado a ela, e quanto cantam e contam todos os que falam na glória, tudo é
mentira: Ego dixi in excessu meo: Omnis
homo mendax.
CAPÍTULO VIII
Suposto, pois — dai-me agora uma
breve atenção — suposto pois que tudo o que se tem dito, tudo o que se diz e tudo o que se pode dizer da
glória que nos espera no céu é tanto menos, e tão pouco, e tão nada que sem encarecimento se pode chamar
mentira, que havemos, ou que podemos fazer para
saber verdadeiramente o que é e como é a glória? Não há nem pode haver
mais que um só meio, mas esse muito
certo e adequado. E qual é? Ir ao céu, e vê-la. Perguntaram uma vez a Cristo
dois que queriam ser seus discípulos
onde morava: Rabbi, ubi habitas? E o
Senhor, que não tinha casa na terra,
senão no céu — donde nunca saiu ainda quando veio ao mundo — que respondeu? Venite, et
videte (Jo. 1,39): Vinde, e vê-lo-eis. — E sem irem e verem não o
podiam saber? Não. Excelentemente
Alcuíno e Beda: Ideo non dixit ubi
habitaret, sed illos ut venirent et viderent invitavit, quia habitatio, idest gloria Christi, videri
quidem potest, verbis explicare non potest: Não disse o Senhor onde morava aos que o queriam saber, e
somente lhes respondeu que viessem e vissem: Venit et videte, porque a
morada de Cristo é a glória, e o que é, e como é a glória, só se pode ver, mas
não se pode dizer: Videri potest, explicari non potest. Isto é o que respondeu Cristo,
e isto é o que eu digo e o que só podem
dizer os pregadores sobre este assunto. Façamos muito por ir ao céu, e lá
veremos o que é a glória: Venite, et videte: Vinde, e vê-lo-eis. —
E quando, por mercê de Deus, formos ao céu, e
virmos verdadeiramente o que é a glória, então veremos e conheceremos
também quão pouca semelhança tem de
verdade quanto cá se diz e se ouve.
Quando a Rainha Sabá viu a corte
e Casa Real de Salomão, não só admirada do que se via, mas, como diz o texto sagrado, quase desmaiada de
pasmo, rompeu nestas palavras: Non
credebam narrantibus mihi, donec ipsa
veni et vidi oculis meis, et probavi quod media pars mihi nuntiata non fuerit: major est sapientia tua et opera tua,
quam rumor quem audivi. Beati viri tui, et beati servi tui, qui stant coram te semper (3Rs. 10,7):
Eu, sapientíssimo rei Salomão, quando estava nas minhas terras — diz a rainha — muitas coisas tinha
ouvido da vossa sabedoria, da vossa grandeza, da vossa corte e da magnificência da vossa casa, às
quais porém não dava crédito, por me parecerem incríveis; mas, depois que vim e as vejo com meus olhos,
já tenho conhecido e provado que nem metade se me tinha dito do que verdadeiramente é.
Bem-aventurados os vossos servos, e bem-aventurados os vossos cortesãos, pois têm e gozam a felicidade de
estar sempre em vossa presença. -Parece que não pudera dizer mais se falara com Deus na glória. E se
as grandezas da corte e casa de Salomão as não pode crer nem perceber uma rainha tão sábia, senão
depois de vir e ver: donec ipsa veni et
vidi — e se tudo o que tinha ouvido
na sua terra não chegava a ser metade do que agora via com seus olhos, que proporção e que semelhança pode ter o pouco
ou nada que cá dizemos e ouvimos, com o muito, com o infinito, com o imenso da glória que lá
vêem os que a gozam? Por isso o Senhor e Autor dela nos diz: Venite
et videte: Vinde e vede.
Mas o mal e a desgraça é que
todos querem ver, e há muito poucos que queiram vir. Todos querem ver e gozar a glória, mas há poucos que
queiram vir e seguir a Cristo pelo caminho que ele nos veio ensinar para chegarmos a ela. Se o divino
Mestre trocara os termos, e assim como disse: Venite et videte, dissera:
Videte et venite, se fora possível e conveniente que primeiro se nos desse
vista da glória, e depois se nos
prometessem os meios de a conseguir, como é certo que não seria necessário que Deus nos chamasse ou rogasse, senão que
nós mesmos, arrebatados daquela imensa formosura e felicidade incompreensível,
não só com vontade e desejo, mas com ímpeto e violência romperíamos por todas as dificuldades da vida, e pela
mesma vida e mil vidas por alcançar tanto bem. Porém, que merecimento seria então o da fé, que prêmio o
da esperança, e que valor o da caridade, sendo
necessária, e não livre? Para maior bem do mesmo bem, e para maior
aumento da mesma glória nos pede Deus
primeiro os passos e depois nos promete a vista: Venite, et videte.
E verdadeiramente, que, ainda que
o caminho do céu e a passagem deste Cabo de Boa Esperança tivera maiores dificuldades, bem se puderam
empreender todas, sem o testemunho da vista, debaixo da palavra de Cristo. Quando o mesmo Senhor,
antes de se fazer homem por nós, disse a Abraão que deixasse a sua pátria, não lhe prometeu o
céu, senão outra terra, e não lha mostrou então, mas somente lhe disse que Iha mostraria depois: Veni in terram quam mostravero tibi. E
que fez Abraão debaixo desta palavra?
Apenas se pode dizer sem injúria e afronta da nossa fé. Deixou a pátria,
deixou a casa nobre e rica que tinha
herdado de seus pais, deixou a companhia dos parentes, o amor dos amigos, a familiaridade dos conhecidos, para
ir peregrinar entre gentes estranhas. Enfim, rompeu todas aquelas cadeias com que a criação e a
natureza costuma prender o coração humano, que tudo nota e pondera a história sagrada. E que tudo
isto executasse com tanta prontidão de ânimo um
homem que pouco antes fora gentio e adorava os deuses falsos? Sim — diz
Santo Estêvão — e ninguém se espante,
porque o Deus, que mandou a Abraão que fizesse este divórcio e renúncia
geral de quanto tinha e amava no mundo, era
o Deus da glória: Deus gloriae apparuit
Patri nostro Abraham, et dixit ad illum:
Exi de terra tua et de cognatione tua, et veni in terram quam mostravero tibi. Em toda a Sagrada Escritura se não lê ou dá a
Deus semelhante título ou epíteto de Deus da glória, senão neste lugar unicamente. E por que usou
de tal paráfrase aquele famoso pregador apedrejado a quem, entre as mesmas pedras, se lhe abriu o
céu? Não foi só para encarecer a fineza do que Abraão obrara, mas para distinguir os motivos que
ele podia ter na mesma obra, e nós podemos ter nas nossas. Se não fazemos grandes coisas por amor de
Deus porque é Deus, ao menos por que as não faremos porque é Deus da glória: Deus gloriae? Fazê-las por Deus porque é Deus, é fineza: fazê-las
por Deus porque é Deus da glória, é
conveniência; fazê-las por Deus porque é Deus, é amor de Deus; fazê-las por Deus porque é Deus da glória, é
amor-próprio. E que nem por este amor-próprio, nem porque Deus nos há de premiar com a glória lhe
façamos tais serviços que sejam merecedores dela? Grande miséria!
E se é miséria grande o pouco que
fazemos por alcançar e ver a glória, muito maior miséria e o muito que fazemos pela perder e não ver. Cada
pecado que cometemos é um pecado e duas ofensas: uma ofensa contra Deus, e outra ofensa contra
a glória. Assim o entendeu aquele moço pródigo, a quem a experiência das pagas que o mundo dá
restituiu o entendimento que o mesmo mundo lhe tinha tirado. Pater,
peccavi in coelum et coram te (Lc. 15,18): Pai meu — dizia ele falando com
Deus — pequei contra o céu e pequei
contra vós: contra o céu, que é a glória para que fui criado, e contra
vós, que sois o Deus que me criastes
para ele. — Em primeiro lugar pôs a ofensa do céu, e no segundo a de Deus, porque como era homem que se tinha
posto à soldada, mais sentia a perda do galardão que o desagrado do amo. Eu já me contentara que nas
nossas fidalguias se usaram com o céu e com Deus estes desprimores. Se não deixamos os pecados
por contrição, e por serem ofensas de Deus, deixemo-los ao menos por atrição e
porque nos privam da glória. Não ofender a Deus porque é Deus é obrigação; não o ofender por não perder a
glória é interesse. E sendo nós tão interesseiros ou tão servos e tão escravos dos interesses da terra
que, ao menos pelos interesses do céu e da glória, não deixemos de ofender a quem no-la há de dar ou
tirar para sempre? Não foi o Pródigo o pródigo; nós o somos, e mais feiamente. Ele disse: Peccavi in caelum, e não foi pródigo do
céu, senão da fazenda; nós somos avarentos
da fazenda e pródigos do céu e da glória.
Oh! como podem temer que não são
criados para ela os que tão pouco fazem pela ver, ou tanto fazem pela não ver! De quantos deixaram o
coração no Egito, nenhum chegou a ver a Terra de Promissão, porque sem vir não há ver, e quem
não vem de todo o coração, não se move. Desde essas moradas eternas nos está Cristo glorioso
chamando e convidando a todos, e dizendo como aos que lhe perguntaram onde morava: Venite,et videte: Vinde, e vede. Venite, nos diz agora aquele mesmo
Senhor, que no dia do juízo, unidas outra vez nossas almas a estes
mesmos corpos, há de dizer aos que
ouvirem sua voz: Venite benedicti.
Vinde, nos diz. E donde, e para onde? Da terra para o céu, do desterro para a Pátria, do cativeiro para
a liberdade, da guerra para a paz, da tempestade para o porto, do trabalho para o descanso, do tempo
para a eternidade, do vale de lágrimas para o Monte da Glória. E que haja ainda quem duvide vir? Venite: Vinde. E não vos digo — diz o
Senhor, que venhais como eu vim pelo
Monte Calvário: basta-me que venhais pelo Tabor, o mais ameno do mundo, contanto que venhais em meu
seguimento. E se ainda pelo Tabor não vos atreverdes a vir, como Pedro, João e Diogo, pelo caminho
estreito dos conselhos, vinde como Moisés e Elias, pelo mais largo dos Mandamentos, que para isso fiz
dois caminhos, desejando que venham todos: Venite. Vinde, enfim, e vereis o que antes de vir se
não pode ver: Venite, et videte.
Vereis o que nunca vistes, vereis o que
nunca ouvistes, vereis o que nunca imaginastes, e vereis quão diferentes, quão
outras e quão infinitamente
incomparáveis são as coisas da glória a todas as que lá vos disseram os
meus profetas e evangelistas, não por
eles quererem mentir — que não é possível — mas porque tudo o que há na terra, ou desde a terra se vê no céu,
nenhuma comparação tem nem semelhança com o que vê e goza na glória. Em particular vos convido,
como homens, a ver gloriosa em seu trono a minha Humanidade. — E então julgareis se os raios
de que se coroa são de sol, e a cor de que veste, de neve: Resplenduit
facies ejus sicut sol, vestimenta autem ejus facta sunt albo sicut ni.
---
Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão da Segunda Dominga da Quaresma" (1651)
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão da Segunda Dominga da Quaresma" (1651)
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