SERMÃO DA QUINTA DOMINGA DA
QUARESMA
Na Igreja Maior da Cidade de São
Luís no Maranhão. Ano de 1654.
Si dixero quia non scio eum, ero similis vobis, mendax.
CAPÍTULO I
A verdade e a mentira: a verdade
do pregador e a mentira dos ouvintes. As
três espécies de mentiras com que
os escribas e fariseus hoje contradisseram, caluniaram e quiseram afrontar e desonrar o Filho de Deus.
Temos juntamente hoje no
Evangelho duas coisas que nunca podem andar
juntas: a verdade e a mentira.
E por que não podem andar juntas,
por isso as temos divididas; a verdade no
pregador, a mentira nos ouvintes; o pregador muito verdadeiro, o
auditório muito mentiroso. Uma e outra
coisa disse Cristo aos escribas e fariseus, com quem falava. O pregador muito verdadeiro: Si veritatem dico vobis; o auditório
muito mentiroso: Ero similis vobis, mendax.
De três modos - que há muitos
modos de mentir - mentiram hoje estes maus
ouvintes. Mentiram, porque não creram a verdade; mentiram, porque
impugnaram a verdade; mentiram, porque
afirmaram a mentira.
Não crer a verdade é mentir com o
pensamento; impugnar a verdade é mentir
com a obra; afirmar a mentira é mentir com a palavra. Tudo isto lhe
tinha profetizado a Cristo seu pai Davi,
quando disse: In multitudine virtutis
tuae mentientur tibi inimici tui. De
muitos modos mostrareis eficazmente a verdade de vosso ser, mas vossos inimigos vos mentirão também por
muitos modos; mentir-vos-ão não crendo;
mentir-vos-ão impugnando; mentir-vos-ão mentindo, como hoje fizeram.
Disse-lhes Cristo que era Filho de Deus
verdadeiro, a quem eles chamavam Pai sem o
conhecerem: disse-lhes que os que recebessem e observassem sua
doutrina viveriam eternamente, e aqui
mentiram não crendo a verdade: Si
veritatem dico vobis, quare non creditis
mihi? Disse-lhes mais, que Abraão desejara ver o seu dia, isto é, o dia em que havia de descer do
céu à terra, e nascer homem entre os
homens, e que, finalmente, o vira com grande júbilo e alegria da sua
alma, e aqui mentiram impugnando a
verdade: Quinquaginta annos nondum habes,
et Abraham vidisti (Jo 8, 57)? Tu
não tens ainda cinqüenta anos, e viste Abraão?
— E o bezerro que vós dissestes que vos
livrara do Egito, quantos anos tinha?
Não era nascido e gerado naquele mesmo dia? O ditame com que o tivestes por Deus era falso, mas a suposição com que
entendestes que em Deus podia haver duas
gerações, uma antes e outra depois, era verdadeira. Respondeu Cristo: Antequam Abraham fieret, ego sum (Jo 8, 58): Antes que Abraão fosse, eu já era.
— Mas este era, declarou-o pela
palavra Ego sum: eu sou para que entendessem que era aquele mesmo
Deus, que quando se definiu a
Moisés disse: Ego sum qui sum (Êx 3,
14): Eu sou o que sou porque no eterno
não há passado, nem futuro: tudo é presente.
Enfim, mentiram afirmando a mentira, porque disseram que Cristo era
samaritano e endemoninhado: Samaritanus es, et daemonium habes. E
para mentirem duas vezes em uma mentira,
repetiram a mesma blasfêmia ratificando o que tinham dito e alegando-se a si mesmos: Nonne bene dicimus nos? Mal é dizer mal, mas depois de o haverdes dito, dizerdes ainda que
dizeis bem, é um mal maior sobre outro
mal, porque é estar obstinado nele.
Estas são as mentiras com que os
escribas e fariseus hoje contradisseram,
caluniaram e quiseram afrontar e desonrar ao Filho de Deus, como o
Senhor lhes disse: Ego honorifico Patrem meum, et vos inhonorastis me.
Mas, posto que a Sabedoria eterna fosse
caluniada e injuriada por semelhante gente, nem por isto ficou afrontado nem desonrado Cristo, porque
tudo o que disseram dele e lhe fizeram
foi por inveja, por ódio, por raiva, por vingança, e quando as causas são estas, as injúrias não injuriam, as afrontas
desafrontam, as desonras honram. Não
está muito honrado Cristo? Dizei-o vós. Ora eu, que pregarei neste dia,
em que tanto se espera o assunto dos
pregadores? Hei também de dizer-vos uma grande injúria, uma grande afronta e uma grande desonra da
vossa terra. Contudo, ainda que as
verdades causam ódio, espero que não haveis de ficar mal comigo, porque
hei de afrontar todos para desafrontar a cada um. O discurso dirá como. Ave
Maria.
CAPÍTULO II
O Domingo das verdades. No
Maranhão a corte da mentira. O galante
apólogo do diabo. O M de Maranhão. No Maranhão até o sol e os céus
mentem.
Si dixero quia non scio eum, ero similis vobis, mendax.
A este Evangelho do Domingo
Quinto da Quaresma chamais comumente o
domingo das verdades. Para mim todos os domingos têm este sobrenome,
porque em todos prego verdades, e muito claras,
como tendes visto. Por me não sair,
contudo, do que hoje todos esperam, estive considerando comigo que
verdades vos diria, e, segundo as
notícias que vou tendo desta nossa terra, resolvi-me a vos dizer uma só verdade. Mas que verdade será esta?
Não gastemos tempo. A verdade que vos
digo é que no Maranhão não há verdade.
Cuidavam e diziam os sábios
antigos, que em diferentes ilhas do mundo
reinavam diferentes deidades: que em Creta reinava Júpiter, que em Delos
reinava Apolo, que em Samos reinava
Juno, que em Chipre reinava Vênus, e assim de
outras. Se o império da mentira não fora tão universal no mundo,
pudera-se suspeitar que nesta nossa ilha
tinha a sua corte a mentira. Todas as terras, assim como tem particulares estrelas, que
naturalmente predominam sobre elas, assim
padecem também diferentes vícios, a que geralmente são sujeitas.
Fingiram a este propósito os alemães uma
galante fábula. Dizem que quando o diabo caiu do céu, que no ar se fez em pedaços, e que estes
pedaços se espalharam em diversas
províncias da Europa, onde ficaram os vícios que nelas reinam. Dizem que
a cabeça do diabo caiu em Espanha, e que
por isso somos furiosos, altivos, e com arrogância graves. Dizem que o peito caiu em Itália, e
que daqui lhes veio serem fabricadores
de máquinas, não se darem a entender, e trazerem o coração sempre
coberto. Dizem que o ventre caiu em
Alemanha, e que esta é a causa de serem inclinados à gula, e gastarem mais que os outros com a
mesa e com a taça. Dizem que os pés
caíram em França, e que daqui nasce serem pouco sossegados, apressados
no andar, e amigos de bailes. Dizem que
os braços com as mãos e unhas crescidas,
um caiu na Holanda, outro em Argel, e que daí lhes veio - ou nos veio -
o serem corsários. Esta é a substância
do apólogo, nem mal formado, nem mal repartido,
porque, ainda que a aplicação dos vícios totalmente não seja verdadeira,
tem contudo a semelhança de verdade, que
basta para dar sal à sátira. E, suposto que à
Espanha lhe coube a cabeça, cuido eu que a parte dela que nos toca ao
nosso Portugal é a língua, ao menos
assim o entendem as nações estrangeiras que de
mais perto nos tratam. Os vícios da língua são tantos, que fez Drexélio
um abecedário inteiro e muito copioso
deles. E se as letras deste abecedário se repartissem pelos estados de
Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida, que o M. M - Maranhão, M -
murmurar, M - motejar, M - maldizer, M malsinar, M - mexericar, e, sobretudo, M - mentir:
mentir com as palavras, mentir com as
obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente. Novelas e novelos, são as duas
moedas correntes desta terra, mas têm
uma diferença, que as novelas armam-se sobre nada, e os novelos armam-se sobre muito, para tudo ser moeda falsa.
Na Bahia, que é a cabeça desta
nossa província do Brasil; acontece algumas
vezes o que no Maranhão quase todos os dias. Amanhece o sol muito
claro, prometendo um formoso dia, e
dentro em uma hora tolda o céu de nuvens, e
começa a chover como no mais entranhado inverno. Sucedeu-lhe um caso
como este a D. Fradique de Toledo,
quando veio a restaurar a Bahia no ano de mil
seiscentos e vinte e cinco. E tendo toda a gente da armada em campo para
lhe passar mostra, admirado da
inconstância do clima, disse: En el Brasil
hasta los cielos mientem. Não sei se
é isto descrédito, se desculpa. Que mais pode fazer um homem, que ser tão bom como o céu da terra em
que vive? Outra terra há em Europa, na
qual eu estive há poucos anos, em que se experimentaram cada dia as mesmas mudanças, pelas quais Galeno não
quis curar nela; porém, ali há outra
razão, porque como a terra tem jurisdição sobre o céu, segue o céu as
influências da terra. Mas o que se disse
do Brasil por galanteria, se pode afirmar do Maranhão com toda a verdade. É experiência inaudita a que
agora direi, e não sei que fé lhe darão
os matemáticos que estão mais longe da linha. Quer pesar o sol um piloto
nesta cidade onde estamos, e não no
porto, onde está surto o seu navio, senão com os pés em terra: toma o astrolábio na mão com
toda a quietação e segurança. E que lhe
acontece? Coisa prodigiosa! Um dia acha que está o Maranhão em um grau, outro dia em meio, outro dia em dois, outro
dia em nenhum. E esta é a causa por que
os pilotos que não são práticos nesta costa, areiam, e se têm perdido
tantos nelas. De maneira que o sol, que
em toda a parte é a regra certa e infalível por onde se medem os tempos, os lugares, as alturas,
em chegando à terra do Maranhão, até ele
mente. E terra onde até o sol mente, vede que verdade falarão aqueles
sobre cujas cabeças e corações ele
influi. Acontece-lhes aqui aos moradores o mesmo que aos pilotos, que nenhum sabe em que altura
está. Cuida o homem nobre hoje que está
em altura de honrado, e amanhã acha-se infamado e envilecido. Cuida a donzela recolhida que está em altura de
virtuosa, e amanhã acha-se murmurada
pelas praças. Cuida o eclesiástico que está em altura de bom sacerdote,
e amanhã acha-se com reputação de mau
homem. Enfim, um dia estais aqui em uma altura, e ao outro dia noutra, porque os lábios são
como o astrolábio. É isto assim? A vós
mesmos o ouço, que eu não o adivinhei. vede se é certa a minha verdade:
que não há verdade no Maranhão.
CAPÍTULO III
A influência do clima no
nascimento de vícios e virtudes. Os dois vícios dos cretenses: mentira e preguiça. As mais
desfechadas mentiras que nunca se ouviram
nem imaginaram. A mentira, filha primogênita do ócio. A proposição de
Davi. O juízo temerário. A língua, a
fera mais dificultosa de enfrear.
Ora, eu me pus a especular a
causa por que o clima e o céu desta terra influi tanta mentira, e parece-me que achei a causa
verdadeira e natural. Assim como o céu
com uma virtude influi outra virtude, assim o clima, que também se chama
céu, com um vício influi outro vício.
Ponhamos o exemplo na verdade, que é a virtude
contrária da mentira: Veritas de
terra orta est (Sl 8, 12), diz Davi: A verdade nasceu da terra.
— E logo advertiu que a terra de
que falava não era toda a terra, senão a sua:
Et terra nostra dabit fructum suum.
Mas donde lhe veio aquela terra —que era a
de Promissão - donde veio uma virtude tão singular no mundo, que
nascesse dela a verdade? O mesmo profeta
o disse: Veritas de terra orta est, e
justitia de coelo prospexit. Toda
esta virtude da terra veio-lhe do céu. Influiu o céu na terra a justiça, e nasceu nela a verdade. A verdade é
filha legítima da justiça, porque a
justiça dá a cada um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a
verdade, ao contrário da mentira. A
mentira, ou vos tira o que tendes, ou vos dá o que não tendes; ou vos rouba, ou vos condena. A
verdade não: a cada um dá o seu, como a
justiça. E porque o céu influiu naquela terra a justiça, por isso
influiu e nasceu nela a verdade. Influiu uma virtude, e nasceu outra.
O mesmo passa nos vícios. Se o
clima influi soberba, nasce a inveja; se influi
gula, nasce a luxúria; se influi cobiça, nasce a avareza; se influi ira,
nasce a vingança. E para nascer a
mentira, que é o que influi?
Ociosidade. Onde o clima influi
ócio, dá-se a mentira a perder. Nasce, cresce,
espiga, e de um não-sei-quê, tamanho como um grão de trigo, podeis
colher mentiras aos alqueires. Estes são
os dois vícios do Maranhão, e estas as duas
influências deste clima - ócio e mentira. - O ócio é a primeira
influência, a mentira a segunda; o ócio
a causa, a mentira o efeito. Não há terra no mundo que mais incline ao ócio ou à preguiça, como vós dizeis, e
esta é a semente de que nasce tão má
erva. Ouvi a S. Paulo. Fala o apóstolo da Ilha de Creta, que é a Cândia,
que hoje vai conquistando o turco, e diz
assim :
Cretenses semper mendaces, ventres pigri: os cretenses têm dois
vícios, que sempre se acham neles:
mentirosos e preguiçosos. Pudera dizer mais, se falara da nossa ilha, e de toda esta terra? Digam-no
os naturais. Nem a sua diligência nem a
sua verdade o pode negar. Não há gente mais mentirosa nem mais preguiçosa
no mundo. Deitados na sua rede: Ventres pigri; ouvidos nas suas
palavras: semper mendaces.
Mas como estas virtudes vêem do
céu, como são influências do clima,
pegaram-se também aos portugueses. Falta a verdade, porque sobeja a
ociosidade. Dai-me vós homens ociosos,
que eu vo-los darei mentirosos. E se não, vamos ao Evangelho.
As mais desfechadas mentiras, que
nunca se ouviram nem imaginaram, foram
as que hoje lhe disseram a Cristo na cara os escribas e fariseus, pelas
quais o mesmo Senhor lhes chamou
mentirosos: Ero similis vobis, mendax
(Jo 8, 55).
Disseram que era samaritano e
endemoninhado. E não só o disseram esta vez,
como advertiu Orígenes, mas assim o diziam publicamente; Nonne bene dicimus nos, quia samaritanus es tu, et daemonium
habes? E notai o que disseram mais
abaixo: Nunc cognovimus, quia samaritanus
est tu, et daemonium habes (Jo 8,
52): Agora conhecemos que és samaritano e endemonhinhado. - Pois,
se agora o conhecestes, como o dizíeis
dantes? Porque os mentirosos dizem as coisas
antes de as saberem. Mas, tornemos à substância da mentira. Cristo
lançava os demônios de todos os corpos,
e eles chamam-lhe endemoninhado; Cristo era galileu natural de Nazaré, e chamam-lhe samaritano. E
se o diziam pela religião e pelos
costumes, os samaritanos eram idólatras e apóstatas da lei, e Cristo era
o legislador e reformador dela. Estas
eram as mentiras que diziam os escribas e fariseus. E o povo, que dizia? Dizia
a verdade: que Cristo era um grande profeta, que era o Rei prometido de Israel, que era o Messias. Pois,
se o povo simples e sem letras conhecia
e dizia a verdade, os escribas e fariseus, que se prezavam de sábios, como cuidavam e diziam tão desatinadas
mentiras? Porque os escribas e fariseus
era gente abastada e ociosa, e o povo não. Ide-lhe ver as mãos, achar-lhas-eis cheias de calos.
Quem trabalha, trata da sua vida;
quem está ocioso, trata das alheias. Quem
trabalha, como cuida no que faz, fala verdade, porque diz as coisas como
são. O ocioso, como não tem que fazer,
mente, porque diz o que imagina.
Esta é a razão por que a mentira
é filha primogênita do ócio. Vede como se forma dentro em vós mesmos este
monstruoso parto. Quem está ocioso não tem
mais que fazer que pôr-se a imaginar; da ociosidade nasce a imaginação,
da imaginação a suspeita, da suspeita a
mentira. É a imaginação no ocioso como a
serpente de Eva. Estava ociosa Eva no paraíso, entrou a serpente
coleando-se mansamente sem pés, mas com
cabeça; começou pela especulação, e acabou pela
mentira. Começou pela especulação: Cur
praecepit vobis Deus; e acabou pela
mentira, e duas mentiras: Nequaquam
moriemini: eritis sicut dii. Consentiu Eva
na mentira peçonhenta: de Eva passou a Adão, de Adão ao gênero humano.
Não sucede assim às mentiras imaginadas,
que vós, como bicho da seda, gerastes
dentro em vós mesmos, fabricando de vossas entranhas a mortalha para vós
e o vestido para os outros? Meterá a
língua a tesoura; e sem tomar as medidas à
verdade, vós lhes cortareis de vestir. Por que cuidais que se dizem
tantas coisas mal feitas? Por que se
fizeram? Não, que a mim me consta do contrário. É porque se imaginaram; e tanto que vieram à imaginação,
já estão na prancha da língua.
Que bem o disse Davi: Tota die iniquitatem cogitavit lingua tua
(Sl 51, 4): Todo o dia a vossa língua
estava cuidando e imaginando maldades. Tota die: todo o dia. Vede se era ocioso aquele de quem
falava Davi: todo o dia não tinha outra
coisa que fazer. E que fazia? Estava a sua língua cuidando e imaginando maldades. Não sei se reparais na
impropriedade das palavras. O cuidar, o imaginar, é obra do entendimento, não é da língua: a
língua fala, o entendimento imagina.
Pois, se a imaginação está no entendimento, como diz Davi que estes
fabricadores de maldades imaginavam com
a língua: Tota die iniquitatem cogitavit
lingua tua? Falou Davi com esta que
parece impropriedade, para declarar com toda a
propriedade o que queria dizer. Não diz que imagina com a língua, porque
a língua imagine, que isso não pode ser;
mas diz que imaginam com a língua, por duas razões: primeira, porque a sua
língua não diz o que é senão o que imagina;
segunda, porque quanto lhes vem à imaginação, logo o põe na língua. O
mesmo Davi: Cogitaverunt et locuti sunt iniquitatem: Em imaginando a maldade,
logo a dizem, sem outra causa para a
dizerem mais que a sua maldade, sem outro
fundamento mais que a sua imaginação. Por isso lhes chama o profeta
verba praecipitationis, tão precipitados
em afirmar quanto imaginam sem
consideração, sem advertência, sem reparo, sem escrúpulo, sem temor de Deus, sem meter espaço nem fazer diferença entre o
imaginar e o dizer, como se tiveram a
imaginação na língua, ou a língua na imaginação, como se a língua fora a
que imagina, ou a imaginação a que fala:
Cogitavit injustitiam lingua tua. Quantas vezes se diz do honrado e
da honrada, do inocente e da inocente o
que nunca lhes passou pela imaginação? Mas
basta que o maldizente o imagine ou o queira imaginar, para o pôr na
conversação e na praça, e o afirmar com
tanta certeza, como se o lera em um Evangelho. Deus nos livre de tais línguas, e muito mais de tais
imaginações, porque se a vossa honra lhes
entrou na imaginação, nenhum remédio tendes: não há de parar aí, há de
passar à língua: Cogitaverunt, et locuti sunt.
Daqui entendereis a razão de um
notável preceito de Deus, que por uma
parte parece rigoroso, e, por outra, menos necessário. Proíbe Deus, sob
pena de pecado mortal e de inferno, que
ninguém tenha juízo temerário do seu próximo.
Juízo temerário é cuidar eu e julgar mal de meu próximo dentro do meu
pensamento. Pois, se o meu juízo fica
dentro do meu pensamento, e não sai fora, nem pode fazer bem nem mal ao próximo, por que o proíbe Deus
com tanta severidade? Primeiramente
notai e adverti quão estimada é, e quão delicada para com Deus a honra e a reputação de cada um de nós. Nem cá
dentro no meu entendimento, nem cá
dentro na minha imaginação quer Deus que estejais mal reputado. Zela Deus
e cia a vossa honra e a vossa reputação,
até de mim para comigo. Vede quanto ciará
e sentirá que passe aos ouvidos, e ande pelas bocas de uns e outros.
Daqui nasce a razão por que Deus proíbe
tão rigorosamente os juízos temerários. Não quer que haja juízos temerários, para que não haja
falsos testemunhos. Os falsos
testemunhos formam-se na língua: os juízos temerários formam-se na
imaginação; e como da imaginação à
língua há tão pouca distância, para que não haja falsos testemunhos na língua, proíbe que não haja
juízos temerários na imaginação. Não se
contentou Deus com meter o inferno entre a imaginação e a língua, com um preceito de pecado mortal, mas meteu outra
vez o inferno entre o entendimento e a
imaginação, para que com estes dois muros de fogo tivesse defendida a
nossa honra das nossas línguas. E,
contudo, isto não basta. Por que? Porque em se
passando a primeira muralha, está vencida a segunda; em chegando à
imaginação, já está na língua: Cogitaverunt, et locuti sunt.
Senhores meus, vivemos em uma
terra muito ociosa, e por isso muito sujeita
a imaginações. Aqui se há de pôr o remédio. Diz o apóstolo S. Tiago que
não há fera mais dificultosa de enfrear
que a língua. Para se pôr o freio na língua, hão-se de meter as cabeçadas na imaginação. Nos vossos
engenhos, para que não corra a levada,
pondes o resisto no açude. O primeiro a quem mentis é a vós. Não mentiram as línguas a todos se as imaginações não mentiram
a cada um. Aqui é que se há de pôr o
resisto. Jó, que conhecia muito bem a simpatia das potências com os
sentidos, dizia: Pepigi faedus cum oculis meis, ut ne cogitarem de virgine: Fiz
concerto com os meus olhos, para estar
seguro dos meus pensamentos.
— Concertai-vos com os vossos
pensamentos, se quereis estar seguro das
vossas línguas. Mas porque dais entrada a quanto quereis no pensamento,
por isso dizeis tantas coisas que nunca
passaram pelo pensamento.
CAPÍTULO IV
Quantas voltas dão as palavras
desde a boca até os ouvidos. O exemplo dos
apóstolos. Os que ouvem pelos ouvidos e os que ouvem pelos corações. O
que ouviram Moisés e Josué ao descer do
Sinai. As mentiras e as formas do fundidor. O
notável artifício com que a natureza formou os nossos ouvidos.
Como saíram torcidas da boca dos
fariseus as palavras de Cristo. A quimera
e a mentira. A primeira mentira que no mundo se disse foi feita de duas
verdades. As falsas testemunhas diante
de Pilatos.
Vejo que estão agora alguns no
auditório mui contentes, dizendo consigo que
isto não fala com eles, porque é verdade que não são mudos, e que quando
se acham em conversação também falam nas
vidas alheias; mas que não são homens
que digam o que imaginam: dizem o que ouvem, e quem diz o que ouve não
mente. Ora, estai comigo. Se vós
soubéreis quantas voltas dão as palavras desde a boca até os ouvidos, não houvéreis de dizer isso,
ainda que fôreis mui verdadeiros.
Quero-vos pôr o exemplo na melhor boca e nos melhores ouvidos do mundo. Perguntou S. Pedro a Cristo que havia de ser
de S. João.
Respondeu o Senhor: Sic eum volo manere (Jo 21, 22): Quero
que fique assim. — Isto é o que Cristo
disse. E os apóstolos que disseram? Exiit
sermo inter fratres, quod discipulus
ille non moritur:
Começaram a dizer uns com os
outros que S. João não havia de morrer. — E
acrescenta o Evangelista: Et non
dixit Jesus non moritur, sed sic eum volo manere (Jo 21, 23): E Cristo não disse que ele não
havia de morrer, senão que queria que
ficasse assim. - Pois, se Cristo o não disse, como o disseram os
apóstolos? Eles é certo que não quiseram
dizer uma coisa por outra, mas desde a boca aos ouvidos são tantas as voltas que dão as palavras, ou
no que soam, ou no que significam, que o
que na boca de Cristo é ficar, nos ouvidos dos apóstolos é não morrer. Não podia haver nem melhor boca que a de Cristo,
nem melhores ouvidos que os dos
apóstolos; e se entre o dizer de tal boca e o perceber de tais ouvidos
sucedem estas contradições, que será
quando a boca não é de Cristo, e quando os ouvidos não são de S. Pedro nem de S. João? Quantas vezes vos
disseram uma coisa e percebestes outra?
Quantas vezes ouvis o que não ouvis? Quantas vezes entre a boca do outro e os nossos ouvidos ficou a honra alheia pendurada
por um fio? E queira Deus que não
ficasse enforcada. Isto acontece quando os homens ouvem com os ouvidos; mas quando ouvem com os corações, ainda é
muito pior. E os corações também ouvem?
Nunca vistes corações? Os corações também têm orelhas, e estai certos que cada um ouve, não conforme tem os
ouvidos, senão conforme tem o coração e
a inclinação.
Enquanto Moisés estava no Monte
Sinai recebendo a lei de Deus, pediram os
judeus a Arão que lhes fundisse um bezerro de ouro. E como era o
primeiro dia da dedicação daquela
imagem, celebraram-no eles com grandes festas. Desce do monte Moisés com Josué, ouviram as vozes ao
longe: disse Moisés: — Eu ouço cantar a
coros; - disse Josué: - Não é senão tumulto de guerra (Êx 32, 18). Aqui temos choros
castrorum. Se as vozes eram as mesmas, como a um parecem música e a outro parecem trombetas? A razão é
clara. Moisés era religioso, Josué era
soldado: ao religioso, parecem-lhe as vozes do côro; ao soldado, de
guerra. Cada um ouve conforme o seu
coração e a sua inclinação. Deus nos livre de um coração mal inclinado. Se ouvir um Te Deum laudamus há de dizer que ouviu
uma carta de excomunhão.
Os que ouvem são os ouvidos, mas
os que ouvem bem ou mal são os corações.
Tudo o que entra pelo ouvido faz eco no coração, e conforme está disposto o
coração, assim se formam os ecos. Ainda vos hei de declarar isto com outra comparação mais própria. Na fundição de
Arão a temos.
Quer um fundidor formar uma
imagem. Suponhamos que é de S. Bartolomeu
com o seu diabo aos pés.
Que faz para isto? Faz duas
formas de barro, uma do santo e outra do diabo,
e deixa aberto um ouvido em cada uma. Depois disto derrete o seu metal
em um forno, e, tanto que está derretido
e preparado, abre a boca ao forno, corre o metal, entra por seus canais no ouvido de cada
forma, e em uma sai uma imagem de S.
Bartolomeu muito formosa, noutra uma figura do diabo, tão feia como ele.
Pois, valha-me Deus, que diferença é
esta? O metal era o mesmo, a boca por onde saiu a mesma, e, entrando por um ouvido faz um
santo, entrando por outro ouvido faz um
diabo? Sim, que não está a coisa nos ouvidos, senão nas formas que estão
lá dentro. Onde estava a forma do diabo,
saiu um diabo; onde estava a forma do santo,
saiu um santo. Senhores meus, todos os nossos ouvidos vão a dar lá
dentro em uma forma, que é o coração. Se
o coração é forma do santo, tudo o que entra pelo ouvido é santo; se é forma do diabo, tudo o que entra
pelo ouvido é diabólico.
Querei-lo ver? Olhai para o nosso
Evangelho. Disse Cristo aos escribas e
fariseus: Ego honorifico Patrem
meum (Jo 8, 49): Eu honro a meu Pai: Ego non quaero gloriam meam (ibid. 50): Eu não busco
a minha glória: Si quis sermonem meum servaverit, mortem non videbit in
aeternum (ibid. 51 ): Se alguém guardar os
meus preceitos, viverá eternamente. - Ouvidas estas palavras, quem não
diria, quando menos, que era um santo
quem as dizia, principalmente tendo provado a
sua doutrina com tantos milagres? E os escribas e fariseus que disseram?
Nunc
cognovimus quia daemonium habes (ibid. 52): Agora conhecemos que
trazes dentro em ti o demônio. - Pois,
também de umas palavras tão santas e tão divinas formam estes homens um conceito tão diabólico? Sim,
também, porque tais eram as formas em
que receberam o que lhes entrou pelos ouvidos. Aqueles malditos homens
eram filhos do diabo, como Cristo lhes
disse nesta mesma ocasião: Vos ex patre
diabolo estis - e de uns corações diabólicos, de umas
formas endemoninhadas, ainda que o metal
fosse tão divino, que havia de sair senão um demônio: daemonium habes? Isto
sucedeu às palavras de Cristo, para que vejamos o que pode suceder às demais.
É verdade que as formas não são
todas umas. Assim como sai um diabo e
outro diabo, pode sair também um S. Bartolomeu; mas, ainda assim, o
melhor é não entrar por ouvidos de
homens, posto que as formas não sejam do diabo, senão do santo, porque se a forma é do diabo, ficais
diabo, e se é de S. Bartolomeu, ficais
esfolado. Ninguém passou pelos dois estreitos da boca e ouvidos humanos
que não deixasse neles, quando menos, a
pele.
Notável é o artifício, com que a
natureza formou os nossos ouvidos. Cada
ouvido é um caracol, e de matéria que tem sua dureza. E como as palavras
entram passadas pelo oco deste parafuso,
não é muito que quando saem pela boca, saiam
torcidas. Tornemos às de Cristo hoje. Disse o Senhor aos seus ouvintes: Abraham
exsultavit ut videret diem meum vidit, et gavisus est (Jo 8, 56):
Abraão desejou ver minha vinda ao mundo,
viu-a, e alegrou-se. - Isto é o que entrou pelos ouvidos dos escribas e fariseus. E que é o que saiu pelas
bocas? Quinquaginta annos nondum habes, et Abraham vidisti (Jo 8, 57)?
Ainda não tens cinqüenta anos, e viste
Abraão? - Vede como saíram torcidas as palavras dos ouvidos à boca.
Cristo disse que Abraão vira a
ele, e os fariseus dizem que dissera que ele
vira a Abraão: Et Abraham vidisti.
Assim torceram o nome, e mais o verbo. Ao nome
mudaram-lhe o caso, e ao verbo a pessoa.
Cristo disse o nome em
nominativo, e eles puseram-no em acusativo; Cristo disse o verbo na terceira pessoa, e eles
puseram-no na segunda. De Abraham vidit, formaram Abraham
vidisti. Eis aqui como saem as palavras dos ouvidos à boca, torcidas e retorcidas: torcidos os nomes,
torcidos os verbos, torcidas as pessoas;
torcidos os casos. Então dizeis que dissestes o que ouvistes.
Mais sucede nesta passagem dos
ouvidos à boca. Como os ouvidos são dois,
e a boca uma, sucede que, entrando pelos ouvidos duas verdades, sai pela
boca uma mentira. Parece coisa de
trejeito, mas é tão certa, que a primeira mentira que se disse no mundo foi
desta casta: uma mentira feita de duas verdades.
Antes que vo-la diga, quero-vos
mostrar como isto pode ser. Quando quereis
dizer que fulano é grande mentiroso, dizeis que é uma quimera. Mas que
coisa é quimera? Mui poucos de vós
deveis de o saber.
Quimera é um animal fingido,
composto de dois animais verdadeiros: um
monstro, meio homem, meio cavalo, é quimera; um monstro, meio águia,
meio serpente, é quimera; um monstro,
meio leão, meio peixe, é quimera; mas não há tais monstros nem tais quimeras no mundo. De
maneira que as metades são verdadeiras;
os todos, ou monstros que delas se compõem, são fingidos. As metades são verdadeiras, porque há homem e
cavalo, há águia e serpente, há leão e
peixe; os monstros que se compõem destas metades são fingidos, porque não
há tal coisa no mundo. Isto mesmo fazem
os mentirosos: partem duas verdades pelo
meio, e, sem mudar nem acrescentar nada ao que dissestes, de duas
verdades partidas fazem uma mentira
inteira. Tal foi a mentira que disse o diabo a nossos primeiros pais, e foi a primeira mentira que
no mundo se disse: Cur praecepit
vobis Deus, ut non comederetis de omni
ligno paradisi (Gên 3, 1)? Por que vos mandou Deus - diz o diabo a Eva - que de todas as
árvores, quantas há no paraíso, não
comêsseis? - Há tal mentira como esta? E foi feita de duas verdades.
Deus deu a nossos primeiros pais
uma permissão e um preceito: a permissão
foi: comei de todas as árvores; o preceito foi: não comais desta árvore.
E que fez o diabo? Do comei de todas as
árvores, tomou o de todas as árvores, e do não comais desta árvore, tomou o não comais, e,
ajuntando o não comais com o de todas as
árvores, disse que mandara Deus que de todas as árvores não comessem.
Pode haver maior mentira? Pois foi
grudada de duas verdades. Defendei-vos lá agora das vossas mentiras, com dizer que dissestes as
mesmas palavras que ouvistes e que não
acrescentastes nada. Que importa que não acrescenteis, se diminuístes? Pior
é uma verdade diminuída, que uma mentira
mui declarada, porque a verdade
diminuída na essência é mentira, e tem aparências de verdade; e mentiras
que parecem verdades são as piores
mentiras de todas.
Mas por que acabemos de uma vez com
as mentiras de ouvidas, para que seja
mentira o que dizeis, não é necessário que oiçais mal nem que diminuais ou acrescenteis o que ouvistes: pode um homem
dizer pontualmente o que ouviu, e ouvir
pontualmente o que disseram, e com tudo isso mentir. Quando os judeus acusaram a Cristo diante de Pilatos, buscavam
diversos falsos testemunhos, e nenhum
concluía.
Ultimamente, diz o Evangelista
que vieram duas testemunhas falsas, as quais
disseram que ouviram dizer a Cristo que, se o Templo de Jerusalém se
desfizesse, ele o reedificaria em três
dias. Para inteligência deste testemunho havemos de saber que, entrando Cristo no Templo de Jerusalém,
e achando que nele estavam comprando e
vendendo, fez um azorrague das cordas que ali estavam, e a açoites lançou fora os que compravam e vendiam.
Espantados eles da resolução de Cristo,
disseram que lhes desse algum sinal do poder com que fazia aquilo.
Respondeu o Senhor: Solvite templum hoc, et in tribus diebus excitab oillud. Pois, se
Cristo disse, derribai o Templo, e em
três dias o levantarei, e eles testemunharam o que lhe ouviram, como eram testemunhas falsas: Venerunt duo falsi testes? O Evangelista o declarou: Ille autem dicebat de templo corporis sui (Jo 2, 21 ): Falava do templo do seu corpo - o qual templo o
Senhor excitou três dias depois de
derrubado, que foi no dia da ressurreição. E como Cristo disse aquelas
palavras em um sentido, e eles as
referiram em outro, ainda que as palavras eram as mesmas que tinham ouvido, sem mudar, nem acrescentar,
nem diminuir, as testemunhas eram
falsas.
Cuidais que para mentir e para
dizer testemunhos falsos é necessário mudar,
diminuir ou acrescentar as palavras que ouvistes? Não é necessário nada
disso: basta mudar-lhes o sentido, ou a
intenção, ainda que as não entendais, porque
haveis supor que as podem ter, e mais quando as pessoas são tais - como
era a de Cristo - que podem falar com
mistério. Quantas vezes se dizem as palavras
sinceramente com uma tenção muito sã, e vós as interpretais e corrompeis
de maneira que de um louvor fazeis um
agravo, de uma confiança uma injúria, de uma
galantaria uma blasfêmia, e de uma graça levantais uma tal labareda, que
se originaram dela muitas desgraças. E
se isto sucede quando os homens dizem o que
ouviram, e só o que ouviram, que será quando dizem o que imaginaram, e o
que sonharam, ou que ninguém imaginou
nem sonhou?
CAPÍTULO V
A mentira dos olhos. Quais toram
as coisas de que se formou o engano dos
moabitas na campanha contra os reis de Israel. O cego do Evangelho. O
que aconteceu aos cegos vigiadores, que
vão estudar de noite o que hão de rezar de
dia. O negrume das nuvens e da água.
Também contra este segundo
discurso há quem cuide que está adargado.
Dizem alguns, ou diz algum: não sou eu daqueles, porque a mim nunca me
saiu pela boca coisa que me entrasse
pelos ouvidos: para afirmar, hei de ver com os olhos primeiro; e se para isso for necessário que
os olhos não durmam quarenta noites,
estando vigiando a uma esquina, hei-o de fazer sem descansar, até ver
averiguada a minha suspeita. Ah! ronda
do inferno! Ah! sentinela de Satanás! Este mesmo, se lhe mandar o confessor que faça exame de
consciência meio quarto de hora antes de
se deitar, não o há de poder fazer com o sono. Mas, para destruir honras,
para abrasar casas, estará feito um
Argos quarenta noites inteiras. Não cuidem, porém, estes malignos vigiadores, que por aí se
livrarão de mentirosos. Fostes, vigiastes,
observastes, vistes, dissestes, e tendes para vós que falastes verdade?
Pois mentistes muito grande mentira. Os olhos mentem de dia, quanto mais de
noite. Grande caso! No Livro quarto dos
Reis, capítulo terceiro ( 4 Rs 3, 22) : Saíram em campanha contra os moabitas el-rei de Israel,
el-rei de Judá e el-rei de Edon. Estavam
ainda os exércitos para dar batalha na manhã seguinte: eis que, ao romper do sol, olharam os moabitas para os arraiais
dos inimigos, e viram que pelo meio
deles corria um rio de sangue.
Começaram a aclamar com grande
alegria: - Sangue, sangue, sem dúvida
que os três reis pelejaram esta noite entre si, e mataram-se uns aos
outros: vamos a recolher os despojos. -
Saíram os moabitas correndo tumultuariamente; mas eles foram os despojados e os vencidos, porque o
sangue que viram, ou se lhes afigurou que
viram, não era sangue. Foi o caso que passava um rio por meio dos arraiais
dos três reis, e como ao sair do sol
feriram os raios na água que ia correndo, fez tais reflexos a luz, que parecia sangue. E esta
aparência de sangue, tão enganosamente
visto, e tão falsa, e tão facilmente crido, foi o que precipitou aos
moabitas, e os levou a meterem-se nas
mãos de seus inimigos. Se reparais no caso, as duas coisas mais claras que há no mundo é o sol e a água. Os
nossos provérbios o dizem: Claro como a
água, claro como a luz do sol. E quais foram as coisas de que se formou aquele engano nos olhos dos moabitas, com que
cuidaram que o rio era sangue? Uma coisa
foi o sol, e outra coisa foi a água: o sol, porque feriu com seus raios as águas, e as águas porque, feridas, deram com
os reflexos aparências de sangue. De
sorte que se enganaram os olhos nas duas coisas mais claras que há no
mundo. Pois, se os olhos se enganam nas
coisas mais claras, como se não enganarão nas
mais escuras, e às escuras? De dia, engana-vos o sol, e, de noite,
quereis-vos desenganar com as trevas?
Dir-me-eis que havia lua e
estrelas quando vistes. Essa pequena luz é a que cega mais, porque faz que umas coisas pareçam
outras. Trouxeram um cego a Cristo, pôs-lhe
o Senhor as mãos nos olhos, e perguntou-lhe se via? Respondeu o cego: Video
homines velut arbores ambulantes (Mar 8, 24): Senhor, vejo os homens como árvores que andam. - Mais cego estava
agora este cego que dantes, porque
dantes não via nada, agora via umas coisas por outras. Os homens que são
de tão diferente figura e estatura,
via-os como árvores, e as árvores que estão presas com raízes na terra, via que andavam como homens.
Eis aqui o que tem ver com pouca
luz. O mesmo acontece a estes cegos
vigiadores, que vão estudar de noite o que hão de rezar de dia: Video homines velut arbores ambulantes. O cego de Cristo,
figurava-se-lhe que os homens eram árvores,
e estes cegos do diabo, figura-se-lhes que as árvores são homens.
Põem-se a espreitar, veem uma árvore em um
quintal: eis lá vai um homem. A árvore está tão
pregada pelas raízes que dois cavadores a não arrancarão em um dia, e
ele há de jurar aos Santos Evangelhos,
que viu entrar e sair aquele vulto; arbores
ambulantes. Oh! maldito ofício! oh!
Infernal curiosidade! Já se os olhos levarem alguma nuvenzinha, como sempre levam, ou de
desconfiança, ou de ódio, ou de inveja, ou
de suspeita, ou de vingança, ou de outra qualquer paixão, aí vos gabo
eu: Tenebrosa
aqua in nubibus aeris. Notou Davi admiravelmente que a água nas nuvens é negra.
Vedes lá vir um aguaceiro escuro
mais que a mesma noite: que negrume é
aquele? Não é mais que água e nuvem: a nuvem é um volante, a água é um
cristal; e destes dois ingredientes tão
puros e tão diáfanos se faz uma escuridade tão negra e tão espessa. Se quem vai vigiar e espreitar
a vossa vida e a vossa honra levar
alguma nuvem diante dos olhos, ainda que seja tão delgada como um
volante, por mais que a vossa vida e a
vossa honra seja tão clara e tão pura como um cristal, há- lhe de parecer
escura e tenebrosa: Tenebrosa aqua in
nubibus aeris. Finalmente, reduzindo
todo o discurso, ou discursos: mentem as línguas, porque mentem as imaginações; mentem as línguas, porque mentem
os ouvidos; mentem as línguas, porque
mentem os olhos; e mentem as línguas, porque tudo mente, e todos mentem.
CAPÍTULO VI
A consolação e a desafronta da
mentira. Bem-aventurados vós, quando os
homens disserem todo o mal de vós, mentindo. A razão por que Cristo,
quando o diabo o nomeou por Filho de
Deus, lhe mandou que calasse. O engano e a falsa suposição em que estão os que não tem prática
interior da terra. A confissão dos
falsos testemunhos.
Tenho acabado de provar a matéria
que propus. Mas parece-me que estais
dizendo - como disse no princípio - que tenho dito muitas afrontas à
vossa terra. Porém eu digo - como também
prometi – que antes a tenho desafrontado. E senão, pergunto: Qual vos está melhor: que seja
verdade o que se diz, ou que sejam
mentiras? Não há dúvida que vos está melhor que sejam mentiras. Pois
isto é o que eu tenho dito. Se fora
verdade o que se diz, era grande afronta vossa; mas, como tenho mostrado que tudo são mentiras, ficais
todos muito honrados.Hoje vos restituí
vossa honra, porque provei que mentem todos os que dizem mal de vós. Vós
bem sabeis melhor que eu que tudo são
mentiras; mas eu tomei por minha conta este
manifesto por amor dos forasteiros que me ouvem, que não são práticos
nos costumes da terra. Dos apóstolos de
Cristo se diziam e se haviam de dizer muitos
males, porque é uso do mundo dizer mal dos bons. E o Senhor, para os
desafrontar e animar disse-lhes esta
divina sentença: Beati eritis cum
maledixerint vobis homines, et dixerint omne malum adversum vos mentientes
(Mt 5, 11): Bem-aventurados vós, quando os homens disserem todo o mal de vós
mentientes: mentindo. Nesta palavra está
a consolação e a desafronta. Se os homens dizem
mal, falando verdade, é grande desgraça; mas se eles dizem mal
mentientes: mentindo, não importa nada.
Por isso disse, e quero que saibam todos, que o que nesta terra se diz são mentiras. O mentiroso
conhecido há de se entender às avessas;
e entendido às avessas, nem afronta, nem mente, porque diz verdade. E assim haveis de entender tudo o que ouvis.
Guarde-vos Deus de que o mentiroso diga
bem de vós, porque é sinal que sois o contrário do que ele diz. Essa foi a
razão porque Cristo, quando o diabo o
nomeou por Filho de Deus, lhe mandou que
calasse, porque, como o diabo é pai da mentira, em dizer que era Filho
de Deus dizia que o não era. E esse foi
também o modo geral com que o mesmo Senhor hoje
se desafrontou de todas as injúrias que os escribas e fariseus lhe
tinham dito, qualificando-os por
mentirosos: Ero similis vobis, mendax.
É verdade que os forasteiros a
quem eu prego esta doutrina fazem um terrível
argumento contra a nossa terra. Chegam a este porto, põem os pés em
terra, e, ouvindo dizer mal de todos e
de tudo, fazem este discurso: Ou estes homens
mentem, ou falam a verdade; se falam verdade, esta é a mais má terra de
todo o mundo, pois, nela se cometem
tantas maldades; e se mentem também a terra é
muito má, pois os homens tem tão pouca consciência, que levantam tantos falsos testemunhos. - Este é o argumento que parece
não tem fácil solução. Mas eu respondo a
uma e outra parte dele. Quanto à primeira, digo que as maldades que se dizem são falsas, e que, como falsas, não se
devem crer. São falsas? - insta a outra
parte - logo onde os homens levantam tantos falsos testemunhos, não pode
ser senão a pior terra do mundo.
Eis aí o engano e a falsa
suposição em que estão os que não têm prática
interior da terra. No Maranhão é verdade que há muitas mentiras, mas
mentirosos, isso não; muito falso testemunho,
sim, mas quem levante falso testemunho, por
nenhum caso. Pois, como pode isto ser? Como pode ser que haja
falsos testemunhos, sem haver quem os
levante? Eu vo-lo direi. Nas outras terras os
homens levantam os falsos testemunhos; nesta terra os falsos
testemunhos levantam-se a si mesmos. Se vos
parece dificultosa a proposição, vamos à prova.
Confessa-se um homem, e, chegando ao quinto mandamento, diz: Padre,
acuso-me que eu desejei a morte a um
homem, e o busquei para o matar, e propus de lhe fazer todo o mal que pudesse. — E por quê? —
Porque me tirou a minha honra com um
falso testemunho de que eu estava tão inocente como S. Francisco. — Irmão, perdoai-lhe, para que Deus vos perdoe. –
Passamos adiante, chegamos ao oitavo
mandamento: — Levantastes algum falso testemunho? — Não, Padre, pecado é
de que nunca me acusei, seja Deus
louvado. — Vem uma mulher, chega ao quinto:
Digo a Deus minha culpa, que eu há tantos meses que tenho ódio a uma
mulher, e roguei-lhe muitas pragas, que
a fala e a confissão lhe faltasse na hora da morte, e que nem nesta vida nem na outra lhe perdoava;
que seus filhos visse ela mortos diante
de si a estocadas frias. - Por quê? - Porque me levantou um aleive a mim e
a uma filha minha, com que nos infamou
em toda esta terra, e não me atrevo a lhe
perdoar. — Ora, senhora, estamos em Quaresma; alguma coisa havemos de
fazer por amor de um Deus que padeceu
tantas afrontas e se pôs em uma cruz por amor
de nós. — Enfim, compungiu-se, prometeu de perdoar. Chega o confessor ao
oitavo mandamento. — E vossa mercê levantou
algum falso testemunho? — Senhor padre,
melhor estréia me dê Deus: muito grande pecadora sou, mas nunca Deus
permita que eu diga das pessoas o que
nelas não há; se ouço alguma coisa, ajudo também, mas levantar falso testemunho, nunca em minha
vida o fiz. — Isto que aqui vos pus em
dois, acontece infinitas vezes. De maneira que no quinto todos se queixam
que lhes levantam falsos testemunhos; no
oitavo ninguém se acusa de levantar falso
testemunho. Logo, bem dizia eu que nesta terra os falsos testemunhos se
levantam a si mesmos. Em suma, que temos
aqui os pecados, mas não temos os pecadores:
temos os falsos testemunhos, mas não temos as falsas testemunhas. Isto é
o que posso cuidar. Mas, se acaso é o
contrário, miseráveis daqueles que assim vivem!
Grande miséria é que os falsos
testemunhos se levantem; mas maior miséria é, que, depois de levantados, se faça deles tão pouco
caso e tão pouco escrúpulo. Ou deixais
de confessar o falso testemunho, conhecendo que o levantastes ou não o conhecendo: se o deixastes de confessar
conhecendo-o, mentis a Deus; se o
deixais de confessar pelo não conhecer, mentis-vos a vós. E uma e outra
cegueira, é bem merecido castigo: que minta
a Deus e que se minta a si mesmo, quem mentiu
tão gravemente contra seu próximo, e que de um ou de outro modo se vá ao
inferno!
CAPÍTULO VII
Aborrecer a mentira não só por
consciência mas por conveniência. Quantas
mentiras se dirão cada dia no Maranhão? Quantas cabem a cada casa? O
pecado que mais facilmente se comete e com
mais dificuldade se restitui. Exortação.
Senhores meus, se algum sermão
não tinha necessidade de exortação era
este. Só vos digo, como a homens e como a cristãos, que não só por
consciência, mas por conveniência se deve
aborrecer a mentira e amar a verdade. Por
conveniência, porque viveis em uma terra muito pequena. Em toda a parte
fazem muito mal as mentiras, mas nas
terras grandes têm saca e têm muito por onde se
espalhar; nas terras pequenas, todas ali ficam. Em Lisboa muita mentira
se diz, mas repartem-se as mentiras por
todo o reino e por todo o mundo. Chegou navio de Levante, fala-se nas guerras do turco, nas do
veneziano, nas do tártaro, nas do
polaco; fala-se no Papa, nos cardeais, nos outros príncipes e potentados
de Itália: dizem-se muitas mentiras, mas repartem-se; umas caem em
Constantinopla, outras em Veneza, outras
em Roma, outras na Toscana, Sabóia, etc. Vem navio do Norte, fala-se em el-rei de França, no imperador, no
sueco, no parlamento de Inglaterra, nos
Estados de Holanda e Flandres: dizem-se muitas mentiras, mas repartem-se, por
Paris, por Londres, por Viena de Áustria, por Amsterdam, por Estocolmo,
etc. Partem também os nossos correios
todos os sábados, e levam grande cópia das
mentiras por todo o reino e o mesmo é das frotas do Brasil e da Índia;
porém as mentiras do Maranhão não têm
nem outra parte donde vir nem outra parte para onde ir: aqui nascem e aqui ficam; e quando as
mentiras todas ficam na terra, e todas vos
caem em casa, ainda por conveniência e razão de estado as haveis de
lançar fora. E se não, fazei-me por
curiosidade duas contas, as quais eu agora não posso fazer. Uma é: quantas mentiras se dirão cada dia no
Maranhão? A outra: quantas casas há
nesta cidade, e logo reparti as mentiras, e vereis quantas cabem a cada
casa! E que será em uma semana, que será
em um mês, que será em um ano?
Pois, se tudo isto vos fica em
casa, e é força que assim seja, não é muito
pouca razão de estado, e muito grande sem-razão, que vos andeis
levantando falsos testemunhos, que vos
andeis infamando e afrontando uns aos outros? Não fora muito melhor serdes todos muito amigos, muito
conformes, amardes-vos todos,
honrardes-vos todos, autorizardes-vos todos, e poupardes todos
desgostos? Há outros pecados que parece
que os pode desculpar o gosto ou o interesse; mas o mentir e o levantar falso testemunho? Que dão
a um homem por mentir? Que gosto se pode
ter em levantar um falso testemunho? Se é por me vingar de meu inimigo, muito maior mal me faço a mim que a ele,
porque a ele, quando muito, tiro-lhe a
honra: a mim condeno-me a alma. Ora, cristãos, por reverência daquele
Senhor — que sendo Deus se preza de se
chamar Verdade - que façamos hoje uma muito
firme e muito verdadeira resolução de não haver paixão nenhuma, nem respeito, nem interesse que vos faça torcer nem faltar
um ponto à verdade; quanto ao passado,
que examinemos muito devagar e muito escrupulosamente se temos faltado à verdade em alguma coisa,
principalmente em matéria da honra de nossos
próximos. Olhai, senhores, que este, este é o pecado que mais facilmente
se comete, e com mais dificuldade se
restitui. Olhai, cristãos, que as
balanças em que se pesam as consciências na outra vida são muito
delicadas, e que será grande desgraça ir
ao inferno para sempre por um falso testemunho. O remédio está em uma consciência muito bem
examinada, em uma confissão muito bem
feita, e em uma satisfação muito verdadeira, advertindo-vos e protestando-vos da parte de Deus, que sem estas três
condições, nem nesta vida podeis alcançar a
graça, nem na outra merecer a glória.
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão da Quinta Dominga da Quaresma" (1654)
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão da Quinta Dominga da Quaresma" (1654)
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