quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Padre Antônio Vieira: "Sermão da Quinta Dominga da Quaresma"

SERMÃO DA QUINTA DOMINGA DA QUARESMA
  
Na Igreja Maior da Cidade de São Luís no Maranhão. Ano de 1654.
Si dixero quia non scio eum, ero similis vobis, mendax.

CAPÍTULO I

A verdade e a mentira: a verdade do pregador e a mentira dos ouvintes. As  três espécies de mentiras  com que os escribas e fariseus hoje contradisseram, caluniaram e quiseram afrontar  e desonrar o Filho de Deus.

Temos juntamente hoje no Evangelho duas coisas que nunca podem andar  juntas: a verdade e a mentira.

E por que não podem andar juntas, por isso as temos divididas; a verdade no  pregador, a mentira nos ouvintes; o pregador muito verdadeiro, o auditório muito  mentiroso. Uma e outra coisa disse Cristo aos escribas e fariseus, com quem falava.  O pregador muito verdadeiro: Si veritatem dico vobis; o auditório muito mentiroso:  Ero similis vobis, mendax.

De três modos - que há muitos modos de mentir - mentiram hoje estes maus  ouvintes. Mentiram, porque não creram a verdade; mentiram, porque impugnaram a  verdade; mentiram, porque afirmaram a mentira.

Não crer a verdade é mentir com o pensamento; impugnar a verdade é mentir  com a obra; afirmar a mentira é mentir com a palavra. Tudo isto lhe tinha profetizado  a Cristo seu pai Davi, quando disse: In multitudine virtutis tuae mentientur tibi inimici  tui. De muitos modos mostrareis eficazmente a verdade de vosso ser, mas  vossos inimigos vos mentirão também por muitos modos; mentir-vos-ão não crendo;  mentir-vos-ão impugnando; mentir-vos-ão mentindo, como hoje fizeram. Disse-lhes  Cristo que era Filho de Deus verdadeiro, a quem eles chamavam Pai sem o  conhecerem: disse-lhes que os que recebessem e observassem sua doutrina  viveriam eternamente, e aqui mentiram não crendo a verdade: Si veritatem dico  vobis, quare non creditis mihi? Disse-lhes mais, que Abraão desejara ver o seu  dia, isto é, o dia em que havia de descer do céu à terra, e nascer homem entre os  homens, e que, finalmente, o vira com grande júbilo e alegria da sua alma, e aqui  mentiram impugnando a verdade: Quinquaginta annos nondum habes, et Abraham  vidisti (Jo 8, 57)? Tu não tens ainda cinqüenta anos, e viste Abraão?

 — E o bezerro que vós dissestes que vos livrara do Egito, quantos anos  tinha? Não era nascido e gerado naquele mesmo dia? O ditame com que o tivestes  por Deus era falso, mas a suposição com que entendestes que em Deus podia haver  duas gerações, uma antes e outra depois, era verdadeira.  Respondeu Cristo: Antequam Abraham fieret, ego sum (Jo 8, 58): Antes que  Abraão fosse, eu já era.

— Mas este era, declarou-o pela palavra Ego sum: eu sou para que  entendessem que era aquele mesmo

Deus, que quando se definiu a Moisés disse: Ego sum qui sum (Êx 3, 14): Eu  sou o que sou porque no eterno não há passado, nem futuro: tudo é presente.  Enfim, mentiram afirmando a mentira, porque disseram que Cristo era samaritano e  endemoninhado: Samaritanus es, et daemonium habes. E para mentirem duas  vezes em uma mentira, repetiram a mesma blasfêmia ratificando o que tinham dito e  alegando-se a si mesmos: Nonne bene dicimus nos? Mal é dizer mal, mas  depois de o haverdes dito, dizerdes ainda que dizeis bem, é um mal maior sobre  outro mal, porque é estar obstinado nele.

Estas são as mentiras com que os escribas e fariseus hoje contradisseram,  caluniaram e quiseram afrontar e desonrar ao Filho de Deus, como o Senhor lhes  disse: Ego honorifico Patrem meum, et vos inhonorastis me. Mas, posto que a  Sabedoria eterna fosse caluniada e injuriada por semelhante gente, nem por isto  ficou afrontado nem desonrado Cristo, porque tudo o que disseram dele e lhe  fizeram foi por inveja, por ódio, por raiva, por vingança, e quando as causas são  estas, as injúrias não injuriam, as afrontas desafrontam, as desonras honram. Não  está muito honrado Cristo? Dizei-o vós. Ora eu, que pregarei neste dia, em que tanto  se espera o assunto dos pregadores? Hei também de dizer-vos uma grande injúria,  uma grande afronta e uma grande desonra da vossa terra. Contudo, ainda que as  verdades causam ódio, espero que não haveis de ficar mal comigo, porque hei de afrontar todos para desafrontar a cada um. O discurso dirá como. Ave Maria.


CAPÍTULO II

O Domingo das verdades. No Maranhão a corte da mentira. O galante  apólogo do diabo. O M de Maranhão. No Maranhão até o sol e os céus mentem.

Si dixero quia non scio eum, ero similis vobis, mendax.

A este Evangelho do Domingo Quinto da Quaresma chamais comumente o  domingo das verdades. Para mim todos os domingos têm este sobrenome, porque  em todos prego verdades, e muito claras, como tendes visto. Por me não sair,  contudo, do que hoje todos esperam, estive considerando comigo que verdades vos  diria, e, segundo as notícias que vou tendo desta nossa terra, resolvi-me a vos dizer  uma só verdade. Mas que verdade será esta? Não gastemos tempo. A verdade que  vos digo é que no Maranhão não há verdade.

Cuidavam e diziam os sábios antigos, que em diferentes ilhas do mundo  reinavam diferentes deidades: que em Creta reinava Júpiter, que em Delos reinava  Apolo, que em Samos reinava Juno, que em Chipre reinava Vênus, e assim de  outras. Se o império da mentira não fora tão universal no mundo, pudera-se  suspeitar que nesta nossa ilha tinha a sua corte a mentira. Todas as terras, assim  como tem particulares estrelas, que naturalmente predominam sobre elas, assim  padecem também diferentes vícios, a que geralmente são sujeitas. Fingiram a este  propósito os alemães uma galante fábula. Dizem que quando o diabo caiu do céu,  que no ar se fez em pedaços, e que estes pedaços se espalharam em diversas  províncias da Europa, onde ficaram os vícios que nelas reinam. Dizem que a cabeça  do diabo caiu em Espanha, e que por isso somos furiosos, altivos, e com arrogância  graves. Dizem que o peito caiu em Itália, e que daqui lhes veio serem fabricadores  de máquinas, não se darem a entender, e trazerem o coração sempre coberto.  Dizem que o ventre caiu em Alemanha, e que esta é a causa de serem inclinados à  gula, e gastarem mais que os outros com a mesa e com a taça. Dizem que os pés  caíram em França, e que daqui nasce serem pouco sossegados, apressados no   andar, e amigos de bailes. Dizem que os braços com as mãos e unhas crescidas,  um caiu na Holanda, outro em Argel, e que daí lhes veio - ou nos veio - o serem  corsários. Esta é a substância do apólogo, nem mal formado, nem mal repartido,  porque, ainda que a aplicação dos vícios totalmente não seja verdadeira, tem  contudo a semelhança de verdade, que basta para dar sal à sátira. E, suposto que à  Espanha lhe coube a cabeça, cuido eu que a parte dela que nos toca ao nosso  Portugal é a língua, ao menos assim o entendem as nações estrangeiras que de  mais perto nos tratam. Os vícios da língua são tantos, que fez Drexélio um  abecedário inteiro e muito copioso deles. E se as letras deste abecedário se repartissem pelos estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não  há dúvida, que o M. M - Maranhão, M - murmurar, M - motejar, M - maldizer, M malsinar,  M - mexericar, e, sobretudo, M - mentir: mentir com as palavras, mentir  com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui  se mente. Novelas e novelos, são as duas moedas correntes desta terra, mas  têm uma diferença, que as novelas armam-se sobre nada, e os novelos armam-se  sobre muito, para tudo ser moeda falsa.

Na Bahia, que é a cabeça desta nossa província do Brasil; acontece algumas  vezes o que no Maranhão quase todos os dias. Amanhece o sol muito claro,  prometendo um formoso dia, e dentro em uma hora tolda o céu de nuvens, e  começa a chover como no mais entranhado inverno. Sucedeu-lhe um caso como  este a D. Fradique de Toledo, quando veio a restaurar a Bahia no ano de mil  seiscentos e vinte e cinco. E tendo toda a gente da armada em campo para lhe  passar mostra, admirado da inconstância do clima, disse: En el Brasil hasta los  cielos mientem. Não sei se é isto descrédito, se desculpa. Que mais pode fazer um  homem, que ser tão bom como o céu da terra em que vive? Outra terra há em  Europa, na qual eu estive há poucos anos, em que se experimentaram cada dia  as mesmas mudanças, pelas quais Galeno não quis curar nela; porém, ali há outra  razão, porque como a terra tem jurisdição sobre o céu, segue o céu as influências da  terra. Mas o que se disse do Brasil por galanteria, se pode afirmar do Maranhão com  toda a verdade. É experiência inaudita a que agora direi, e não sei que fé lhe darão  os matemáticos que estão mais longe da linha. Quer pesar o sol um piloto nesta  cidade onde estamos, e não no porto, onde está surto o seu navio, senão com os  pés em terra: toma o astrolábio na mão com toda a quietação e segurança. E que  lhe acontece? Coisa prodigiosa! Um dia acha que está o Maranhão em um grau,  outro dia em meio, outro dia em dois, outro dia em nenhum. E esta é a causa por  que os pilotos que não são práticos nesta costa, areiam, e se têm perdido tantos  nelas. De maneira que o sol, que em toda a parte é a regra certa e infalível por onde  se medem os tempos, os lugares, as alturas, em chegando à terra do Maranhão, até  ele mente. E terra onde até o sol mente, vede que verdade falarão aqueles sobre  cujas cabeças e corações ele influi. Acontece-lhes aqui aos moradores o mesmo que  aos pilotos, que nenhum sabe em que altura está. Cuida o homem nobre hoje que  está em altura de honrado, e amanhã acha-se infamado e envilecido. Cuida a  donzela recolhida que está em altura de virtuosa, e amanhã acha-se murmurada  pelas praças. Cuida o eclesiástico que está em altura de bom sacerdote, e amanhã  acha-se com reputação de mau homem. Enfim, um dia estais aqui em uma altura, e  ao outro dia noutra, porque os lábios são como o astrolábio. É isto assim? A vós  mesmos o ouço, que eu não o adivinhei. vede se é certa a minha verdade: que não  há verdade no Maranhão.


CAPÍTULO III

A influência do clima no nascimento de vícios e virtudes. Os dois vícios dos  cretenses: mentira e preguiça. As mais desfechadas mentiras que nunca se ouviram  nem imaginaram. A mentira, filha primogênita do ócio. A proposição de Davi. O juízo  temerário. A língua, a fera mais dificultosa de enfrear.

Ora, eu me pus a especular a causa por que o clima e o céu desta terra influi  tanta mentira, e parece-me que achei a causa verdadeira e natural. Assim como o  céu com uma virtude influi outra virtude, assim o clima, que também se chama céu,  com um vício influi outro vício. Ponhamos o exemplo na verdade, que é a virtude  contrária da mentira: Veritas de terra orta est (Sl 8, 12), diz Davi: A verdade nasceu  da terra.

— E logo advertiu que a terra de que falava não era toda a terra, senão a sua:  Et terra nostra dabit fructum suum. Mas donde lhe veio aquela terra —que era a  de Promissão - donde veio uma virtude tão singular no mundo, que nascesse dela a  verdade? O mesmo profeta o disse: Veritas de terra orta est, e justitia de coelo  prospexit. Toda esta virtude da terra veio-lhe do céu. Influiu o céu na terra a  justiça, e nasceu nela a verdade. A verdade é filha legítima da justiça, porque a  justiça dá a cada um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a verdade, ao  contrário da mentira. A mentira, ou vos tira o que tendes, ou vos dá o que não  tendes; ou vos rouba, ou vos condena. A verdade não: a cada um dá o seu, como a   justiça. E porque o céu influiu naquela terra a justiça, por isso influiu e nasceu nela a  verdade.  Influiu uma virtude, e nasceu outra.

O mesmo passa nos vícios. Se o clima influi soberba, nasce a inveja; se influi  gula, nasce a luxúria; se influi cobiça, nasce a avareza; se influi ira, nasce a  vingança. E para nascer a mentira, que é o que influi?

Ociosidade. Onde o clima influi ócio, dá-se a mentira a perder. Nasce, cresce,  espiga, e de um não-sei-quê, tamanho como um grão de trigo, podeis colher  mentiras aos alqueires. Estes são os dois vícios do Maranhão, e estas as duas  influências deste clima - ócio e mentira. - O ócio é a primeira influência, a mentira a  segunda; o ócio a causa, a mentira o efeito. Não há terra no mundo que mais incline  ao ócio ou à preguiça, como vós dizeis, e esta é a semente de que nasce tão má  erva. Ouvi a S. Paulo. Fala o apóstolo da Ilha de Creta, que é a Cândia, que hoje vai  conquistando o turco, e diz assim :

Cretenses semper mendaces, ventres pigri: os cretenses têm dois vícios,  que sempre se acham neles: mentirosos e preguiçosos. Pudera dizer mais, se falara  da nossa ilha, e de toda esta terra? Digam-no os naturais. Nem a sua diligência nem  a sua verdade o pode negar. Não há gente mais mentirosa nem mais preguiçosa no  mundo. Deitados na sua rede: Ventres pigri; ouvidos nas suas palavras: semper  mendaces.

Mas como estas virtudes vêem do céu, como são influências do clima,  pegaram-se também aos portugueses. Falta a verdade, porque sobeja a ociosidade.  Dai-me vós homens ociosos, que eu vo-los darei mentirosos. E se não, vamos ao  Evangelho.

As mais desfechadas mentiras, que nunca se ouviram nem imaginaram, foram  as que hoje lhe disseram a Cristo na cara os escribas e fariseus, pelas quais o  mesmo Senhor lhes chamou mentirosos: Ero similis vobis, mendax (Jo 8, 55).

Disseram que era samaritano e endemoninhado. E não só o disseram esta vez,  como advertiu Orígenes, mas assim o diziam publicamente; Nonne bene dicimus  nos, quia samaritanus es tu, et daemonium habes? E notai o que disseram  mais abaixo: Nunc cognovimus, quia samaritanus est tu, et daemonium habes (Jo 8,  52): Agora conhecemos que és samaritano e endemonhinhado. - Pois, se  agora o conhecestes, como o dizíeis dantes? Porque os mentirosos dizem as coisas  antes de as saberem. Mas, tornemos à substância da mentira. Cristo lançava os  demônios de todos os corpos, e eles chamam-lhe endemoninhado; Cristo era galileu  natural de Nazaré, e chamam-lhe samaritano. E se o diziam pela religião e pelos  costumes, os samaritanos eram idólatras e apóstatas da lei, e Cristo era o legislador  e reformador dela. Estas eram as mentiras que diziam os escribas e fariseus. E o povo, que dizia? Dizia a verdade: que Cristo era um grande profeta, que era o Rei  prometido de Israel, que era o Messias. Pois, se o povo simples e sem letras  conhecia e dizia a verdade, os escribas e fariseus, que se prezavam de sábios,  como cuidavam e diziam tão desatinadas mentiras? Porque os escribas e fariseus  era gente abastada e ociosa, e o povo não. Ide-lhe ver as mãos, achar-lhas-eis  cheias de calos.

Quem trabalha, trata da sua vida; quem está ocioso, trata das alheias. Quem  trabalha, como cuida no que faz, fala verdade, porque diz as coisas como são. O  ocioso, como não tem que fazer, mente, porque diz o que imagina. 

Esta é a razão por que a mentira é filha primogênita do ócio. Vede como se forma dentro em vós mesmos este monstruoso parto. Quem está ocioso não tem  mais que fazer que pôr-se a imaginar; da ociosidade nasce a imaginação, da  imaginação a suspeita, da suspeita a mentira. É a imaginação no ocioso como a  serpente de Eva. Estava ociosa Eva no paraíso, entrou a serpente coleando-se  mansamente sem pés, mas com cabeça; começou pela especulação, e acabou pela  mentira. Começou pela especulação: Cur praecepit vobis Deus; e acabou pela  mentira, e duas mentiras: Nequaquam moriemini: eritis sicut dii. Consentiu Eva  na mentira peçonhenta: de Eva passou a Adão, de Adão ao gênero humano. Não  sucede assim às mentiras imaginadas, que vós, como bicho da seda, gerastes  dentro em vós mesmos, fabricando de vossas entranhas a mortalha para vós e o  vestido para os outros? Meterá a língua a tesoura; e sem tomar as medidas à  verdade, vós lhes cortareis de vestir. Por que cuidais que se dizem tantas coisas mal  feitas? Por que se fizeram? Não, que a mim me consta do contrário. É porque se  imaginaram; e tanto que vieram à imaginação, já estão na prancha da língua.

Que bem o disse Davi: Tota die iniquitatem cogitavit lingua tua (Sl 51, 4):  Todo o dia a vossa língua estava cuidando e imaginando maldades. Tota die:  todo o dia. Vede se era ocioso aquele de quem falava Davi: todo o dia não tinha  outra coisa que fazer. E que fazia? Estava a sua língua cuidando e imaginando  maldades. Não sei se reparais na impropriedade das palavras. O cuidar, o imaginar,  é obra do entendimento, não é da língua: a língua fala, o entendimento imagina.  Pois, se a imaginação está no entendimento, como diz Davi que estes fabricadores  de maldades imaginavam com a língua: Tota die iniquitatem cogitavit lingua tua?  Falou Davi com esta que parece impropriedade, para declarar com toda a  propriedade o que queria dizer. Não diz que imagina com a língua, porque a língua  imagine, que isso não pode ser; mas diz que imaginam com a língua, por duas razões: primeira, porque a sua língua não diz o que é senão o que imagina;  segunda, porque quanto lhes vem à imaginação, logo o põe na língua. O mesmo  Davi: Cogitaverunt et locuti sunt iniquitatem: Em imaginando a maldade, logo a  dizem, sem outra causa para a dizerem mais que a sua maldade, sem outro  fundamento mais que a sua imaginação. Por isso lhes chama o profeta verba  praecipitationis, tão precipitados em afirmar quanto imaginam sem  consideração, sem advertência, sem reparo, sem escrúpulo, sem temor de Deus,  sem meter espaço nem fazer diferença entre o imaginar e o dizer, como se tiveram a  imaginação na língua, ou a língua na imaginação, como se a língua fora a que  imagina, ou a imaginação a que fala:

Cogitavit injustitiam lingua tua. Quantas vezes se diz do honrado e da  honrada, do inocente e da inocente o que nunca lhes passou pela imaginação? Mas  basta que o maldizente o imagine ou o queira imaginar, para o pôr na conversação e  na praça, e o afirmar com tanta certeza, como se o lera em um Evangelho. Deus nos  livre de tais línguas, e muito mais de tais imaginações, porque se a vossa honra lhes  entrou na imaginação, nenhum remédio tendes: não há de parar aí, há de passar à  língua: Cogitaverunt, et locuti sunt.

Daqui entendereis a razão de um notável preceito de Deus, que por uma  parte parece rigoroso, e, por outra, menos necessário. Proíbe Deus, sob pena de  pecado mortal e de inferno, que ninguém tenha juízo temerário do seu próximo.  Juízo temerário é cuidar eu e julgar mal de meu próximo dentro do meu pensamento.  Pois, se o meu juízo fica dentro do meu pensamento, e não sai fora, nem pode fazer  bem nem mal ao próximo, por que o proíbe Deus com tanta severidade?  Primeiramente notai e adverti quão estimada é, e quão delicada para com Deus a  honra e a reputação de cada um de nós. Nem cá dentro no meu entendimento, nem  cá dentro na minha imaginação quer Deus que estejais mal reputado. Zela Deus e  cia a vossa honra e a vossa reputação, até de mim para comigo. Vede quanto ciará  e sentirá que passe aos ouvidos, e ande pelas bocas de uns e outros. Daqui nasce a  razão por que Deus proíbe tão rigorosamente os juízos temerários. Não quer que   haja juízos temerários, para que não haja falsos testemunhos. Os falsos  testemunhos formam-se na língua: os juízos temerários formam-se na imaginação; e  como da imaginação à língua há tão pouca distância, para que não haja falsos  testemunhos na língua, proíbe que não haja juízos temerários na imaginação. Não   se contentou Deus com meter o inferno entre a imaginação e a língua, com um  preceito de pecado mortal, mas meteu outra vez o inferno entre o entendimento e a  imaginação, para que com estes dois muros de fogo tivesse defendida a nossa  honra das nossas línguas. E, contudo, isto não basta. Por que? Porque em se  passando a primeira muralha, está vencida a segunda; em chegando à imaginação,  já está na língua: Cogitaverunt, et locuti sunt.

Senhores meus, vivemos em uma terra muito ociosa, e por isso muito sujeita  a imaginações. Aqui se há de pôr o remédio. Diz o apóstolo S. Tiago que não há fera  mais dificultosa de enfrear que a língua. Para se pôr o freio na língua, hão-se de  meter as cabeçadas na imaginação. Nos vossos engenhos, para que não corra a  levada, pondes o resisto no açude. O primeiro a quem mentis é a vós. Não mentiram  as línguas a todos se as imaginações não mentiram a cada um. Aqui é que se há de  pôr o resisto. Jó, que conhecia muito bem a simpatia das potências com os sentidos,  dizia: Pepigi faedus cum oculis meis, ut ne cogitarem de virgine: Fiz concerto  com os meus olhos, para estar seguro dos meus pensamentos.

— Concertai-vos com os vossos pensamentos, se quereis estar seguro das  vossas línguas. Mas porque dais entrada a quanto quereis no pensamento, por isso  dizeis tantas coisas que nunca passaram pelo pensamento.


CAPÍTULO IV

Quantas voltas dão as palavras desde a boca até os ouvidos. O exemplo dos  apóstolos. Os que ouvem pelos ouvidos e os que ouvem pelos corações. O que  ouviram Moisés e Josué ao descer do Sinai. As mentiras e as formas do fundidor. O  notável artifício com que a natureza formou os nossos ouvidos.

Como saíram torcidas da boca dos fariseus as palavras de Cristo. A quimera  e a mentira. A primeira mentira que no mundo se disse foi feita de duas verdades. As  falsas testemunhas diante de Pilatos.

Vejo que estão agora alguns no auditório mui contentes, dizendo consigo que  isto não fala com eles, porque é verdade que não são mudos, e que quando se  acham em conversação também falam nas vidas alheias; mas que não são homens  que digam o que imaginam: dizem o que ouvem, e quem diz o que ouve não mente.  Ora, estai comigo. Se vós soubéreis quantas voltas dão as palavras desde a boca  até os ouvidos, não houvéreis de dizer isso, ainda que fôreis mui verdadeiros.  Quero-vos pôr o exemplo na melhor boca e nos melhores ouvidos do mundo.  Perguntou S. Pedro a Cristo que havia de ser de S. João.

Respondeu o Senhor: Sic eum volo manere (Jo 21, 22): Quero que fique  assim. — Isto é o que Cristo disse. E os apóstolos que disseram? Exiit sermo inter  fratres, quod discipulus ille non moritur:

Começaram a dizer uns com os outros que S. João não havia de morrer. — E  acrescenta o Evangelista: Et non dixit Jesus non moritur, sed sic eum volo manere  (Jo 21, 23): E Cristo não disse que ele não havia de morrer, senão que queria que  ficasse assim. - Pois, se Cristo o não disse, como o disseram os apóstolos? Eles é  certo que não quiseram dizer uma coisa por outra, mas desde a boca aos ouvidos  são tantas as voltas que dão as palavras, ou no que soam, ou no que significam,  que o que na boca de Cristo é ficar, nos ouvidos dos apóstolos é não morrer. Não  podia haver nem melhor boca que a de Cristo, nem melhores ouvidos que os dos  apóstolos; e se entre o dizer de tal boca e o perceber de tais ouvidos sucedem estas  contradições, que será quando a boca não é de Cristo, e quando os ouvidos não são  de S. Pedro nem de S. João? Quantas vezes vos disseram uma coisa e percebestes  outra? Quantas vezes ouvis o que não ouvis? Quantas vezes entre a boca do outro  e os nossos ouvidos ficou a honra alheia pendurada por um fio? E queira Deus que  não ficasse enforcada. Isto acontece quando os homens ouvem com os ouvidos;  mas quando ouvem com os corações, ainda é muito pior. E os corações também  ouvem? Nunca vistes corações? Os corações também têm orelhas, e estai certos  que cada um ouve, não conforme tem os ouvidos, senão conforme tem o coração e  a inclinação.

Enquanto Moisés estava no Monte Sinai recebendo a lei de Deus, pediram os  judeus a Arão que lhes fundisse um bezerro de ouro. E como era o primeiro dia da  dedicação daquela imagem, celebraram-no eles com grandes festas. Desce do  monte Moisés com Josué, ouviram as vozes ao longe: disse Moisés: — Eu ouço  cantar a coros; - disse Josué: - Não é senão tumulto de guerra (Êx 32, 18). Aqui  temos choros castrorum. Se as vozes eram as mesmas, como a um parecem  música e a outro parecem trombetas? A razão é clara. Moisés era religioso, Josué  era soldado: ao religioso, parecem-lhe as vozes do côro; ao soldado, de guerra.  Cada um ouve conforme o seu coração e a sua inclinação. Deus nos livre de um  coração mal inclinado. Se ouvir um Te Deum laudamus há de dizer que ouviu uma  carta de excomunhão.

Os que ouvem são os ouvidos, mas os que ouvem bem ou mal são os  corações. Tudo o que entra pelo ouvido faz eco no coração, e conforme está disposto o coração, assim se formam os ecos. Ainda vos hei de declarar isto com  outra comparação mais própria. Na fundição de Arão a temos.

Quer um fundidor formar uma imagem. Suponhamos que é de S. Bartolomeu  com o seu diabo aos pés.

Que faz para isto? Faz duas formas de barro, uma do santo e outra do diabo,  e deixa aberto um ouvido em cada uma. Depois disto derrete o seu metal em um  forno, e, tanto que está derretido e preparado, abre a boca ao forno, corre o metal,  entra por seus canais no ouvido de cada forma, e em uma sai uma imagem de S.  Bartolomeu muito formosa, noutra uma figura do diabo, tão feia como ele. Pois,  valha-me Deus, que diferença é esta? O metal era o mesmo, a boca por onde saiu a  mesma, e, entrando por um ouvido faz um santo, entrando por outro ouvido faz um  diabo? Sim, que não está a coisa nos ouvidos, senão nas formas que estão lá  dentro. Onde estava a forma do diabo, saiu um diabo; onde estava a forma do santo,  saiu um santo. Senhores meus, todos os nossos ouvidos vão a dar lá dentro em uma  forma, que é o coração. Se o coração é forma do santo, tudo o que entra pelo ouvido  é santo; se é forma do diabo, tudo o que entra pelo ouvido é diabólico.

Querei-lo ver? Olhai para o nosso Evangelho. Disse Cristo aos escribas e  fariseus: Ego honorifico Patrem meum (Jo 8, 49): Eu honro a meu Pai: Ego non  quaero gloriam meam (ibid. 50): Eu não busco a minha glória: Si quis sermonem  meum servaverit, mortem non videbit in aeternum (ibid. 51 ): Se alguém guardar os  meus preceitos, viverá eternamente. - Ouvidas estas palavras, quem não diria,  quando menos, que era um santo quem as dizia, principalmente tendo provado a  sua doutrina com tantos milagres? E os escribas e fariseus que disseram? Nunc  cognovimus quia daemonium habes (ibid. 52): Agora conhecemos que trazes dentro  em ti o demônio. - Pois, também de umas palavras tão santas e tão divinas formam  estes homens um conceito tão diabólico? Sim, também, porque tais eram as formas  em que receberam o que lhes entrou pelos ouvidos. Aqueles malditos homens eram  filhos do diabo, como Cristo lhes disse nesta mesma ocasião: Vos ex patre diabolo  estis  - e de uns corações diabólicos, de umas formas endemoninhadas, ainda  que o metal fosse tão divino, que havia de sair senão um demônio: daemonium  habes? Isto sucedeu às palavras de Cristo, para que vejamos o que pode suceder  às demais.

É verdade que as formas não são todas umas. Assim como sai um diabo e  outro diabo, pode sair também um S. Bartolomeu; mas, ainda assim, o melhor é não   entrar por ouvidos de homens, posto que as formas não sejam do diabo, senão do  santo, porque se a forma é do diabo, ficais diabo, e se é de S. Bartolomeu, ficais  esfolado. Ninguém passou pelos dois estreitos da boca e ouvidos humanos que não  deixasse neles, quando menos, a pele.

Notável é o artifício, com que a natureza formou os nossos ouvidos. Cada  ouvido é um caracol, e de matéria que tem sua dureza. E como as palavras entram  passadas pelo oco deste parafuso, não é muito que quando saem pela boca, saiam  torcidas. Tornemos às de Cristo hoje. Disse o Senhor aos seus ouvintes: Abraham  exsultavit ut videret diem meum vidit, et gavisus est (Jo 8, 56): Abraão desejou ver  minha vinda ao mundo, viu-a, e alegrou-se. - Isto é o que entrou pelos ouvidos dos  escribas e fariseus. E que é o que saiu pelas bocas? Quinquaginta annos nondum  habes, et Abraham vidisti (Jo 8, 57)? Ainda não tens cinqüenta anos, e viste  Abraão? - Vede como saíram torcidas as palavras dos ouvidos à boca.

Cristo disse que Abraão vira a ele, e os fariseus dizem que dissera que ele  vira a Abraão: Et Abraham vidisti. Assim torceram o nome, e mais o verbo. Ao nome  mudaram-lhe o caso, e ao verbo a pessoa.

Cristo disse o nome em nominativo, e eles puseram-no em acusativo; Cristo  disse o verbo na terceira pessoa, e eles puseram-no na segunda. De Abraham vidit,  formaram Abraham vidisti. Eis aqui como saem as palavras dos ouvidos à boca,  torcidas e retorcidas: torcidos os nomes, torcidos os verbos, torcidas as pessoas;  torcidos os casos. Então dizeis que dissestes o que ouvistes.

Mais sucede nesta passagem dos ouvidos à boca. Como os ouvidos são dois,  e a boca uma, sucede que, entrando pelos ouvidos duas verdades, sai pela boca  uma mentira. Parece coisa de trejeito, mas é tão certa, que a primeira mentira que se disse no mundo foi desta casta: uma mentira feita de duas verdades.

Antes que vo-la diga, quero-vos mostrar como isto pode ser. Quando quereis  dizer que fulano é grande mentiroso, dizeis que é uma quimera. Mas que coisa é  quimera? Mui poucos de vós deveis de o saber.

Quimera é um animal fingido, composto de dois animais verdadeiros: um  monstro, meio homem, meio cavalo, é quimera; um monstro, meio águia, meio  serpente, é quimera; um monstro, meio leão, meio peixe, é quimera; mas não há tais  monstros nem tais quimeras no mundo. De maneira que as metades são  verdadeiras; os todos, ou monstros que delas se compõem, são fingidos. As  metades são verdadeiras, porque há homem e cavalo, há águia e serpente, há leão  e peixe; os monstros que se compõem destas metades são fingidos, porque não há  tal coisa no mundo. Isto mesmo fazem os mentirosos: partem duas verdades pelo  meio, e, sem mudar nem acrescentar nada ao que dissestes, de duas verdades  partidas fazem uma mentira inteira. Tal foi a mentira que disse o diabo a nossos  primeiros pais, e foi a primeira mentira que no mundo se disse: Cur praecepit vobis  Deus, ut non comederetis de omni ligno paradisi (Gên 3, 1)? Por que vos mandou  Deus - diz o diabo a Eva - que de todas as árvores, quantas há no paraíso, não  comêsseis? - Há tal mentira como esta? E foi feita de duas verdades.

Deus deu a nossos primeiros pais uma permissão e um preceito: a permissão  foi: comei de todas as árvores; o preceito foi: não comais desta árvore. E que fez o  diabo? Do comei de todas as árvores, tomou o de todas as árvores, e do não comais  desta árvore, tomou o não comais, e, ajuntando o não comais com o de todas as  árvores, disse que mandara Deus que de todas as árvores não comessem. Pode  haver maior mentira? Pois foi grudada de duas verdades. Defendei-vos lá agora das  vossas mentiras, com dizer que dissestes as mesmas palavras que ouvistes e que  não acrescentastes nada. Que importa que não acrescenteis, se diminuístes? Pior é  uma verdade diminuída, que uma mentira mui declarada, porque a verdade  diminuída na essência é mentira, e tem aparências de verdade; e mentiras que  parecem verdades são as piores mentiras de todas.

Mas por que acabemos de uma vez com as mentiras de ouvidas, para que  seja mentira o que dizeis, não é necessário que oiçais mal nem que diminuais ou  acrescenteis o que ouvistes: pode um homem dizer pontualmente o que ouviu, e  ouvir pontualmente o que disseram, e com tudo isso mentir. Quando os judeus  acusaram a Cristo diante de Pilatos, buscavam diversos falsos testemunhos, e  nenhum concluía.

Ultimamente, diz o Evangelista que vieram duas testemunhas falsas, as quais  disseram que ouviram dizer a Cristo que, se o Templo de Jerusalém se desfizesse,  ele o reedificaria em três dias. Para inteligência deste testemunho havemos de saber  que, entrando Cristo no Templo de Jerusalém, e achando que nele estavam  comprando e vendendo, fez um azorrague das cordas que ali estavam, e a açoites  lançou fora os que compravam e vendiam. Espantados eles da resolução de Cristo,  disseram que lhes desse algum sinal do poder com que fazia aquilo. Respondeu o  Senhor: Solvite templum hoc, et in tribus diebus excitab oillud. Pois, se Cristo  disse, derribai o Templo, e em três dias o levantarei, e eles testemunharam o que lhe  ouviram, como eram testemunhas falsas: Venerunt duo falsi testes? O  Evangelista o declarou: Ille autem dicebat de templo corporis sui (Jo 2, 21 ): Falava  do templo do seu corpo - o qual templo o Senhor excitou três dias depois de  derrubado, que foi no dia da ressurreição. E como Cristo disse aquelas palavras em  um sentido, e eles as referiram em outro, ainda que as palavras eram as mesmas  que tinham ouvido, sem mudar, nem acrescentar, nem diminuir, as testemunhas  eram falsas.

Cuidais que para mentir e para dizer testemunhos falsos é necessário mudar,  diminuir ou acrescentar as palavras que ouvistes? Não é necessário nada disso:  basta mudar-lhes o sentido, ou a intenção, ainda que as não entendais, porque  haveis supor que as podem ter, e mais quando as pessoas são tais - como era a de  Cristo - que podem falar com mistério. Quantas vezes se dizem as palavras  sinceramente com uma tenção muito sã, e vós as interpretais e corrompeis de  maneira que de um louvor fazeis um agravo, de uma confiança uma injúria, de uma  galantaria uma blasfêmia, e de uma graça levantais uma tal labareda, que se  originaram dela muitas desgraças. E se isto sucede quando os homens dizem o que  ouviram, e só o que ouviram, que será quando dizem o que imaginaram, e o que  sonharam, ou que ninguém imaginou
nem sonhou?


CAPÍTULO V

A mentira dos olhos. Quais toram as coisas de que se formou o engano dos  moabitas na campanha contra os reis de Israel. O cego do Evangelho. O que  aconteceu aos cegos vigiadores, que vão estudar de noite o que hão de rezar de  dia. O negrume das nuvens e da água.

Também contra este segundo discurso há quem cuide que está adargado.  Dizem alguns, ou diz algum: não sou eu daqueles, porque a mim nunca me saiu pela  boca coisa que me entrasse pelos ouvidos: para afirmar, hei de ver com os olhos  primeiro; e se para isso for necessário que os olhos não durmam quarenta noites,  estando vigiando a uma esquina, hei-o de fazer sem descansar, até ver averiguada  a minha suspeita. Ah! ronda do inferno! Ah! sentinela de Satanás! Este mesmo, se  lhe mandar o confessor que faça exame de consciência meio quarto de hora antes  de se deitar, não o há de poder fazer com o sono. Mas, para destruir honras, para  abrasar casas, estará feito um Argos quarenta noites inteiras. Não cuidem, porém,  estes malignos vigiadores, que por aí se livrarão de mentirosos. Fostes, vigiastes,  observastes, vistes, dissestes, e tendes para vós que falastes verdade? Pois mentistes muito grande mentira. Os olhos mentem de dia, quanto mais de noite.  Grande caso! No Livro quarto dos Reis, capítulo terceiro ( 4 Rs 3, 22) : Saíram em  campanha contra os moabitas el-rei de Israel, el-rei de Judá e el-rei de Edon.  Estavam ainda os exércitos para dar batalha na manhã seguinte: eis que, ao romper  do sol, olharam os moabitas para os arraiais dos inimigos, e viram que pelo meio  deles corria um rio de sangue.

Começaram a aclamar com grande alegria: - Sangue, sangue, sem dúvida  que os três reis pelejaram esta noite entre si, e mataram-se uns aos outros: vamos a  recolher os despojos. - Saíram os moabitas correndo tumultuariamente; mas eles  foram os despojados e os vencidos, porque o sangue que viram, ou se lhes afigurou  que viram, não era sangue. Foi o caso que passava um rio por meio dos arraiais dos  três reis, e como ao sair do sol feriram os raios na água que ia correndo, fez tais  reflexos a luz, que parecia sangue. E esta aparência de sangue, tão enganosamente  visto, e tão falsa, e tão facilmente crido, foi o que precipitou aos moabitas, e os levou  a meterem-se nas mãos de seus inimigos. Se reparais no caso, as duas coisas mais  claras que há no mundo é o sol e a água. Os nossos provérbios o dizem: Claro  como a água, claro como a luz do sol. E quais foram as coisas de que se formou  aquele engano nos olhos dos moabitas, com que cuidaram que o rio era sangue?  Uma coisa foi o sol, e outra coisa foi a água: o sol, porque feriu com seus raios as  águas, e as águas porque, feridas, deram com os reflexos aparências de sangue. De  sorte que se enganaram os olhos nas duas coisas mais claras que há no mundo.  Pois, se os olhos se enganam nas coisas mais claras, como se não enganarão nas  mais escuras, e às escuras? De dia, engana-vos o sol, e, de noite, quereis-vos  desenganar com as trevas?

Dir-me-eis que havia lua e estrelas quando vistes. Essa pequena luz é a que  cega mais, porque faz que umas coisas pareçam outras. Trouxeram um cego a  Cristo, pôs-lhe o Senhor as mãos nos olhos, e perguntou-lhe se via? Respondeu o  cego: Video homines velut arbores ambulantes (Mar 8, 24): Senhor, vejo os homens  como árvores que andam. - Mais cego estava agora este cego que dantes, porque  dantes não via nada, agora via umas coisas por outras. Os homens que são de tão  diferente figura e estatura, via-os como árvores, e as árvores que estão presas com  raízes na terra, via que andavam como homens.

Eis aqui o que tem ver com pouca luz. O mesmo acontece a estes cegos  vigiadores, que vão estudar de noite o que hão de rezar de dia: Video homines velut  arbores ambulantes. O cego de Cristo, figurava-se-lhe que os homens eram árvores,  e estes cegos do diabo, figura-se-lhes que as árvores são homens. Põem-se a  espreitar, veem uma árvore em um quintal: eis lá vai um homem. A árvore está tão  pregada pelas raízes que dois cavadores a não arrancarão em um dia, e ele há de  jurar aos Santos Evangelhos, que viu entrar e sair aquele vulto; arbores ambulantes.  Oh! maldito ofício! oh! Infernal curiosidade! Já se os olhos levarem alguma  nuvenzinha, como sempre levam, ou de desconfiança, ou de ódio, ou de inveja, ou  de suspeita, ou de vingança, ou de outra qualquer paixão, aí vos gabo eu:  Tenebrosa aqua in nubibus aeris. Notou Davi admiravelmente que a água nas  nuvens é negra.

Vedes lá vir um aguaceiro escuro mais que a mesma noite: que negrume é  aquele? Não é mais que água e nuvem: a nuvem é um volante, a água é um cristal;  e destes dois ingredientes tão puros e tão diáfanos se faz uma escuridade tão negra  e tão espessa. Se quem vai vigiar e espreitar a vossa vida e a vossa honra levar  alguma nuvem diante dos olhos, ainda que seja tão delgada como um volante, por  mais que a vossa vida e a vossa honra seja tão clara e tão pura como um cristal, há- lhe de parecer escura e tenebrosa: Tenebrosa aqua in nubibus aeris. Finalmente,  reduzindo todo o discurso, ou discursos: mentem as línguas, porque mentem as  imaginações; mentem as línguas, porque mentem os ouvidos; mentem as línguas,  porque mentem os olhos; e mentem as línguas, porque tudo mente, e todos mentem.


CAPÍTULO VI

A consolação e a desafronta da mentira. Bem-aventurados vós, quando os  homens disserem todo o mal de vós, mentindo. A razão por que Cristo, quando o  diabo o nomeou por Filho de Deus, lhe mandou que calasse. O engano e a falsa  suposição em que estão os que não tem prática interior da terra. A confissão dos  falsos testemunhos.

Tenho acabado de provar a matéria que propus. Mas parece-me que estais  dizendo - como disse no princípio - que tenho dito muitas afrontas à vossa terra.  Porém eu digo - como também prometi – que antes a tenho desafrontado. E senão,  pergunto: Qual vos está melhor: que seja verdade o que se diz, ou que sejam  mentiras? Não há dúvida que vos está melhor que sejam mentiras. Pois isto é o que  eu tenho dito. Se fora verdade o que se diz, era grande afronta vossa; mas, como  tenho mostrado que tudo são mentiras, ficais todos muito honrados.Hoje vos restituí  vossa honra, porque provei que mentem todos os que dizem mal de vós. Vós bem  sabeis melhor que eu que tudo são mentiras; mas eu tomei por minha conta este  manifesto por amor dos forasteiros que me ouvem, que não são práticos nos  costumes da terra. Dos apóstolos de Cristo se diziam e se haviam de dizer muitos  males, porque é uso do mundo dizer mal dos bons. E o Senhor, para os desafrontar  e animar disse-lhes esta divina sentença: Beati eritis cum maledixerint vobis homines, et dixerint omne malum adversum vos mentientes (Mt 5, 11): Bem-aventurados vós, quando os homens disserem todo o mal de vós mentientes:  mentindo. Nesta palavra está a consolação e a desafronta. Se os homens dizem  mal, falando verdade, é grande desgraça; mas se eles dizem mal mentientes:  mentindo, não importa nada. Por isso disse, e quero que saibam todos, que o que  nesta terra se diz são mentiras. O mentiroso conhecido há de se entender às  avessas; e entendido às avessas, nem afronta, nem mente, porque diz verdade. E  assim haveis de entender tudo o que ouvis. Guarde-vos Deus de que o mentiroso  diga bem de vós, porque é sinal que sois o contrário do que ele diz. Essa foi a razão  porque Cristo, quando o diabo o nomeou por Filho de Deus, lhe mandou que  calasse, porque, como o diabo é pai da mentira, em dizer que era Filho de Deus  dizia que o não era. E esse foi também o modo geral com que o mesmo Senhor hoje  se desafrontou de todas as injúrias que os escribas e fariseus lhe tinham dito,  qualificando-os por mentirosos: Ero similis vobis, mendax.

É verdade que os forasteiros a quem eu prego esta doutrina fazem um terrível  argumento contra a nossa terra. Chegam a este porto, põem os pés em terra, e,  ouvindo dizer mal de todos e de tudo, fazem este discurso: Ou estes homens  mentem, ou falam a verdade; se falam verdade, esta é a mais má terra de todo o  mundo, pois, nela se cometem tantas maldades; e se mentem também a terra é  muito má, pois os homens tem tão pouca consciência, que levantam tantos falsos  testemunhos. - Este é o argumento que parece não tem fácil solução. Mas eu  respondo a uma e outra parte dele. Quanto à primeira, digo que as maldades que se  dizem são falsas, e que, como falsas, não se devem crer. São falsas? - insta a outra  parte - logo onde os homens levantam tantos falsos testemunhos, não pode ser  senão a pior terra do mundo.

Eis aí o engano e a falsa suposição em que estão os que não têm prática  interior da terra. No Maranhão é verdade que há muitas mentiras, mas mentirosos,  isso não; muito falso testemunho, sim, mas quem levante falso testemunho, por  nenhum caso. Pois, como pode isto ser? Como pode ser que haja falsos  testemunhos, sem haver quem os levante? Eu vo-lo direi. Nas outras terras os  homens levantam os falsos testemunhos; nesta terra os falsos testemunhos  levantam-se a si mesmos. Se vos parece dificultosa a proposição, vamos à prova.  Confessa-se um homem, e, chegando ao quinto mandamento, diz: Padre, acuso-me   que eu desejei a morte a um homem, e o busquei para o matar, e propus de lhe  fazer todo o mal que pudesse. — E por quê? — Porque me tirou a minha honra com  um falso testemunho de que eu estava tão inocente como S. Francisco. — Irmão,  perdoai-lhe, para que Deus vos perdoe. – Passamos adiante, chegamos ao oitavo  mandamento: — Levantastes algum falso testemunho? — Não, Padre, pecado é de  que nunca me acusei, seja Deus louvado. — Vem uma mulher, chega ao quinto:  Digo a Deus minha culpa, que eu há tantos meses que tenho ódio a uma mulher, e  roguei-lhe muitas pragas, que a fala e a confissão lhe faltasse na hora da morte, e  que nem nesta vida nem na outra lhe perdoava; que seus filhos visse ela mortos  diante de si a estocadas frias. - Por quê? - Porque me levantou um aleive a mim e a  uma filha minha, com que nos infamou em toda esta terra, e não me atrevo a lhe  perdoar. — Ora, senhora, estamos em Quaresma; alguma coisa havemos de fazer  por amor de um Deus que padeceu tantas afrontas e se pôs em uma cruz por amor  de nós. — Enfim, compungiu-se, prometeu de perdoar. Chega o confessor ao oitavo  mandamento. — E vossa mercê levantou algum falso testemunho? — Senhor padre,  melhor estréia me dê Deus: muito grande pecadora sou, mas nunca Deus permita  que eu diga das pessoas o que nelas não há; se ouço alguma coisa, ajudo também,  mas levantar falso testemunho, nunca em minha vida o fiz. — Isto que aqui vos pus  em dois, acontece infinitas vezes. De maneira que no quinto todos se queixam que  lhes levantam falsos testemunhos; no oitavo ninguém se acusa de levantar falso  testemunho. Logo, bem dizia eu que nesta terra os falsos testemunhos se levantam  a si mesmos. Em suma, que temos aqui os pecados, mas não temos os pecadores:  temos os falsos testemunhos, mas não temos as falsas testemunhas. Isto é o que  posso cuidar. Mas, se acaso é o contrário, miseráveis daqueles que assim vivem! 

Grande miséria é que os falsos testemunhos se levantem; mas maior miséria é, que,  depois de levantados, se faça deles tão pouco caso e tão pouco escrúpulo. Ou  deixais de confessar o falso testemunho, conhecendo que o levantastes ou não o  conhecendo: se o deixastes de confessar conhecendo-o, mentis a Deus; se o  deixais de confessar pelo não conhecer, mentis-vos a vós. E uma e outra cegueira, é  bem merecido castigo: que minta a Deus e que se minta a si mesmo, quem mentiu  tão gravemente contra seu próximo, e que de um ou de outro modo se vá ao inferno!


CAPÍTULO VII

Aborrecer a mentira não só por consciência mas por conveniência. Quantas  mentiras se dirão cada dia no Maranhão? Quantas cabem a cada casa? O pecado  que mais facilmente se comete e com mais dificuldade se restitui. Exortação.

Senhores meus, se algum sermão não tinha necessidade de exortação era  este. Só vos digo, como a homens e como a cristãos, que não só por consciência,  mas por conveniência se deve aborrecer a mentira e amar a verdade. Por  conveniência, porque viveis em uma terra muito pequena. Em toda a parte fazem  muito mal as mentiras, mas nas terras grandes têm saca e têm muito por onde se  espalhar; nas terras pequenas, todas ali ficam. Em Lisboa muita mentira se diz, mas  repartem-se as mentiras por todo o reino e por todo o mundo. Chegou navio de  Levante, fala-se nas guerras do turco, nas do veneziano, nas do tártaro, nas do  polaco; fala-se no Papa, nos cardeais, nos outros príncipes e potentados de Itália: dizem-se muitas mentiras, mas repartem-se; umas caem em Constantinopla, outras  em Veneza, outras em Roma, outras na Toscana, Sabóia, etc. Vem navio do Norte,  fala-se em el-rei de França, no imperador, no sueco, no parlamento de Inglaterra,  nos Estados de Holanda e Flandres: dizem-se muitas mentiras, mas repartem-se, por Paris, por Londres, por Viena de Áustria, por Amsterdam, por Estocolmo, etc.  Partem também os nossos correios todos os sábados, e levam grande cópia das  mentiras por todo o reino e o mesmo é das frotas do Brasil e da Índia; porém as  mentiras do Maranhão não têm nem outra parte donde vir nem outra parte para onde  ir: aqui nascem e aqui ficam; e quando as mentiras todas ficam na terra, e todas vos  caem em casa, ainda por conveniência e razão de estado as haveis de lançar fora. E  se não, fazei-me por curiosidade duas contas, as quais eu agora não posso fazer.  Uma é: quantas mentiras se dirão cada dia no Maranhão? A outra: quantas casas há  nesta cidade, e logo reparti as mentiras, e vereis quantas cabem a cada casa! E que  será em uma semana, que será em um mês, que será em um ano?

Pois, se tudo isto vos fica em casa, e é força que assim seja, não é muito  pouca razão de estado, e muito grande sem-razão, que vos andeis levantando falsos  testemunhos, que vos andeis infamando e afrontando uns aos outros? Não fora  muito melhor serdes todos muito amigos, muito conformes, amardes-vos todos,  honrardes-vos todos, autorizardes-vos todos, e poupardes todos desgostos? Há  outros pecados que parece que os pode desculpar o gosto ou o interesse; mas o  mentir e o levantar falso testemunho? Que dão a um homem por mentir? Que gosto  se pode ter em levantar um falso testemunho? Se é por me vingar de meu inimigo,  muito maior mal me faço a mim que a ele, porque a ele, quando muito, tiro-lhe a  honra: a mim condeno-me a alma. Ora, cristãos, por reverência daquele Senhor —  que sendo Deus se preza de se chamar Verdade - que façamos hoje uma muito  firme e muito verdadeira resolução de não haver paixão nenhuma, nem respeito,  nem interesse que vos faça torcer nem faltar um ponto à verdade; quanto ao  passado, que examinemos muito devagar e muito escrupulosamente se temos  faltado à verdade em alguma coisa, principalmente em matéria da honra de nossos  próximos. Olhai, senhores, que este, este é o pecado que mais facilmente se  comete, e com mais dificuldade se restitui. Olhai, cristãos, que as  balanças em que se pesam as consciências na outra vida são muito delicadas, e  que será grande desgraça ir ao inferno para sempre por um falso testemunho. O  remédio está em uma consciência muito bem examinada, em uma confissão muito  bem feita, e em uma satisfação muito verdadeira, advertindo-vos e protestando-vos  da parte de Deus, que sem estas três condições, nem nesta vida podeis alcançar a  graça, nem na outra merecer a glória.


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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão da Quinta Dominga da Quaresma"  (1654)

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