SERMÃO DE NOSSA SENHORA DO Ó
(1640)
Ecce concipies in
utero, et panes Filium.
CAPÍTULO I
A figura mais perfeita e mais
capaz de quantas inventou a natureza e conhece a geometria é o círculo. Circular é o globo da terra,
circulares as esferas celestes, circular toda esta máquina do universo, que por isso se chama orbe, e até o
mesmo Deus, se sendo espírito pudera ter figura, não havia de ter outra, senão a circular. O certo
é que as obras sempre se parecem com seu autor; e fechando Deus todas as suas dentro em um
círculo, não seria esta idéia natural, se não fora parecida à sua natureza. — Daqui é que o mais alumiado
de todos os teólogos, S. Dionísio Areopagita, não podendo definir exatamente a suma perfeição
de Deus, a declarou com a figura do círculo: Velut circulus quidam
sempiternus propter bonum, ex bono, in bono et ad bonum certa, et nusquam oberrante glomeratione circummiens. Estes
são os dois maiores círculos que até o dia da Encarnação do Verbo se conheceram; mas hoje nos descreve
o Evangelho outro círculo, em seu modo maior. O
primeiro círculo, que é o mundo, contém dentro em si todas as coisas
criadas; o segundo, incriado e infinito,
que é Deus, contém dentro em si o mundo; e este terceiro, que hoje nos revela a
fé, contém dentro em si ao mesmo Deus. Ecce concipies in utero, et paries Filium: hic erit magnus, et
Filius Altissimi vocabitur. Nove meses teve dentro em
si este círculo a Deus, e quem poderá imaginar
que, estando cheio de todo Deus, ainda ali achasse o desejo, capacidade
e lugar para formar outro círculo? Assim
foi, e este novo círculo, formado pelo desejo, debaixo da figura e nome de O, é
o que hoje particularmente celebramos na
expectação do parto já concebido: Ecce
concipies et paries. De um e outro
círculo travados entre si, se comporá o nosso discurso, concordando — que é a
maior dificuldade deste dia — o Evangelho
com o título da festa, e o título com o Evangelho. O mistério do Evangelho é a conceição do Verbo no ventre
virginal de Maria Santíssima; o título da festa é a expectação do parto e desejos da mesma
Senhora, debaixo do nome do O. E porque o O é um círculo, e o ventre virginal outro circulo, o que
pretendo mostrar em um e outro é que, assim como o círculo do ventre virginal na conceição do Verbo foi
um O que compreendeu o imenso, assim o O dos desejos da Senhora na expectação do parto foi outro
circulo que compreendeu o eterno. Tudo nos dirão, com a graça do céu, as palavras que tomei por tema.
Ave Maria.
CAPÍTULO II
Ecce concipies in utero, et paries.
Uma das maiores excelências das
Escrituras divinas é não haver nelas nem palavras, nem sílaba, nem ainda uma só letra que seja supérflua ou
careça de mistério. Tal é o misterioso O que hoje começa a celebrar, e todos estes dias repete
a Igreja, breve na voz, grande na significação, e nos mistérios profundíssimo. Mas, contra este
mesmo princípio, parece que no nosso texto, com ser tão breve, não só temos uma letra, senão uma
sílaba e uma palavra supérflua. E que sílaba, e que palavra?
In utero. Dizendo o anjo à Senhora: Ecce concipies et paries, que conceberia e pariria o Filho de Deus, bem claramente se entendia não só a
substância do mistério, senão o modo e o lugar, e que este havia de ser o sacrário virginal do ventre
santíssimo. Supérfluo parece logo sobre a palavra concipies, acrescentar in utero. Mas esta embaixada deu-a o
anjo, mandou-a Deus, e refere-a o evangelista, e nem Deus, nem o anjo, nem o evangelista
haviam de dizer palavras supérfluas. A que fim, pois, quando se anuncia este oráculo — que foi o maior
que veio, nem virá jamais do céu à terra — se diz e se repete por três bocas, uma divina, outra
angélica, e outra mais que humana, que o mistério da conceição do Verbo se há de obrar
sinaladamente no útero ou ventre da Mãe: Ecce
concipies in utero? Sem dúvida
porque era tão grande a novidade, e tão estupenda a maravilha, que necessitava
a fé de toda esta expressão. Haver-se
Deus de fazer homem, novidade foi que assombrou aos profetas quando a ouviram. Porém, que esse mesmo Deus, sendo
imenso, se houvesse ou pudesse encerrar em um
círculo tão breve, como o ventre de uma Virgem: In utero? Esta foi a maravilha que excede as medidas de toda a capacidade criada.
Considerai a imensidade de Deus,
e vereis até onde chega e se estende o significado desta pequena, ou desta grande palavra: In utero. Imensidade é uma extensão sem limite, cujo centro está em
toda a parte, e a circunferência em
nenhuma parte: Cujus centrum est ubique,
circumferentia nusquam. Ponde o
centro da imensidade na terra, ponde-o no sol, ponde-o no céu empíreo, está bem
posto. Buscai agora a circunferência
deste centro, e em nenhuma parte a achareis. Por quê? A razão é porque sendo a terra tão grande, e o sol cento e
sessenta vezes maior que a terra, e sendo o céu muitos milhões de vezes maior que o sol e o empíreo,
com excesso incomparável maior que os outros céus, todas essas grandezas têm medida e limite: a
imensidade não. Deus, por sua imensidade, como bem declarou S. Gregório Nazianzeno, está dentro
no mundo e fora do mundo: Deus in
universo est, et extra universum.
Mas se fora do mundo não há lugar, porque não há nada, onde está Deus fora
do mundo? Está onde estava antes de
criar este mundo. Se Deus não estivera neste espaço, onde hoje está o mundo, não o pudera criar; e como Deus,
fora do mundo, pode criar infinitos mundos, também está em todos esses espaços infinitos, a que
chamamos imaginários. E porque outrossim os espaços imaginários, que nós podemos imaginar mas não
podemos compreender, não têm limite, por isso o
centro da imensidade, que se pode pôr dentro ou fora do mundo, nem
dentro nem fora do mundo pode ter
circunferência. Comparai-me o mar com o dilúvio. O mar tem praias, porque tem
limite; o dilúvio, porque era mar sem
limite, não tinha praias: Omnia pontus
erat, deerant quoque litora ponto. Assim a
imensidade de Deus — quanto a comparação o sofre. — Está a imensidade de
Deus no mundo e fora do mundo; está em
todo lugar e onde não há lugar; está dentro, sem se encerrar, e está fora, sem
sair, porque sempre está em si mesmo. O
sensível, o imaginário, o existente e o possível, o finito e o infinito, tudo enche, tudo inunda, por tudo
se estende, e até onde? Até onde não há onde, sem termo, sem limite, sem horizonte, sem fim, e, por
isso, incapaz de circunferência: Circumferentia
nusquam.
CAPÍTULO III
Mas, ó grandeza sobre todas as
grandezas, ó milagre sobre todos os milagres, o do ventre virginal de Maria! Não se diga já que a imensidade de
Deus não tem circunferência, pois o ventre de Maria, assim como Deus é imenso, o concebe todo
dentro em si, assim como é imenso, o compreende, assim como é imenso, o cerca. Aquela mesma
imensidade de Deus, a que não podem fazer circunferência os orbes celestes, nem o globo inteiro do
universo, nem os espaços imaginários, sempre mais e mais infinitos, essa mesma imensidade, e não
outra, é a que abraça, encerra e contém dentro em si o círculo daquele ventre puríssimo. E se aquele sagrado
círculo verdadeiramente cerca ao mesmo Deus, quão grande ele é em toda sua imensidade, diga-se
sim que o centro da imensidade divina está em toda a parte: Cujus
centrum ubique, mas não se diga já que em nenhuma parte tem a
circunferência: Circumferentia nusquam, porque o círculo do ventre virginal é a
parte onde tem uma circunferência tão
capaz e tão cabal, que a todo Deus imenso como é, abraça e cerca. Não é
pensamento meu, senão do profeta
Jeremias, ou do mesmo Deus por sua boca.
Creavit Dominus novum super terram (Jer. 31,22), diz o profeta
Jeremias: Criou Deus uma coisa nova
sobre a terra — e tão nova que nem na terra se viu, nem no céu se imaginou
semelhante. E que coisa nova e tão nova
é esta: Femina circumdabit virum: Uma
mulher a qual há de cercar o varão. — O
varão por antonomásia neste caso é o Verbo Eterno encarnado. Todos os outros
homens, quando se geram e concebem no
ventre da mãe, não são homens, nem ainda meninos, porque só têm a vida vegetativa ou sensitiva, e ainda não estão
informados com a alma racional; porém, o Verbo
Encarnado, Cristo, desde o primeiro instante de sua conceição, foi varão
perfeito e perfeitíssimo, não só com
todas as potências da alma e do corpo, senão também com o uso delas. Assim como
o primeiro Adão nunca foi menino, senão
homem e varão perfeito, desde o instante de sua criação, assim também o segundo Adão, e com maior
maravilha, porque foi varão perfeito, não em corpo e estatura varonil, como o primeiro, mas
naquela quantidade mínima em que são concebidos os outros homens. Essa é a razão por que o mesmo
Cristo, à diferença de todos os que nasceram de mulher, se
chama em frase da Escritura, aquele que foi gerado varão: Vir oriens nomen ejus. Deste varão, pois, nunca menino e sempre homem, porque
sempre homem e Deus, deste é que fala Jeremias,
quando diz que uma mulher o havia de cercar: Femina circumdabit virum.
Mas por que se declara este
profeta pela palavra cercar, termo também novo e inaudito? Isaías, profetizando o mesmo mistério, disse: Ecce virgo concipiet, et pariet Filium, et
vocabitur nomem ejus Emmanuel: que
uma virgem conceberia e pariria a Deus. Pois, se Jeremias se tinha empenhado em dizer uma coisa nova e nunca ouvida: Creavit Dominus novum super terram, por
que a não pondera também pela maravilha
da conceição e parto virginal, e em lugar de dizer que a mulher de que
fala conceberá e parirá a Deus feito
homem, não diz que o conceberá e parirá, senão que o cercará: Femina
circumdabit virum? Sem dúvida porque a maior maravilha do mistério da
Encarnação é chegar nele Deus a estar
cercado. Estar Deus cercado dentro do ventre virginal, sendo imenso, foi fazer que a imensidade tivesse
circunferência; e ajuntar a circunferência com a imensidade foi mais que ajuntar a virgindade com o parto. Ajuntar
a virgindade com o parto foi inventar Deus um
nascimento digno da sua divindade, porque, como diz S. Bernardo, havendo
Deus de ter mãe, não podia ser senão
virgem, e havendo uma virgem de ter filho, não podia ser senão Deus. Mas,
cercando a mesma Virgem, dentro do
claustro materno, a todo Deus, e ajuntando a circunferência com a imensidade, foi maior maravilha e maior obra.
Por quê? Porque foi fazer outro imenso maior que o imenso. Valha-me São Boaventura: Immensum vas non potest esse plenum, nisi
immensum sit illud quo est plenum: Maria
autem vas immensissimum fuit, ex quo illum, qui caelo major est, continere potuit. Supõe e prova juntamente o Doutor
Seráfico, que o ventre virginal foi imenso, porque a capacidade que recebe e contém dentro em si o
imenso, não pode ser senão imensa. Deus é imenso: logo o ventre virginal, que concebeu e teve
dentro em si a Deus, também é imenso. E basta isto? Não. Maria
autem vas immensissimum fuit, ex quo illum, qui caelo major est, continere
potuit. Não só diz que o ventre de
Maria foi imenso, senão imensíssimo. E por que, teólogo divino? Porque cercou
a Deus. Quando um imenso cerca outro
imenso, ambos são imensos, mas o que cerca maior imenso que o cercado; e por isso, se Deus, que foi o
cercado, é imenso, o ventre que o cercou, não só há de ser imenso, senão imensíssimo. A boa filosofia
admite que pode haver um infinito maior que outro infinito, porque se houver infinitos homens,
também os cabelos hão de ser infinitos; porém o infinito dos cabelos, maior que o infinito dos homens.
Pois, assim como pode haver um infinito maior que outro infinito, assim pode haver um imenso
maior que outro imenso. E tal foi o claustro virginal de Maria: Ecce
concipies in utero. Deus, que foi o concebido, imenso; e o útero, que o
concebeu, porque o cercou, imensíssimo: Maria autem vas immensissimum fuit.
Ainda temos melhor autor que São
Boaventura, com ser tão grande doutor, que a Igreja o fez supernumerário aos quatro doutores da grega e
aos quatro da latina. E que autor é este? A mesma Virgem, Senhora nossa. Falando a Senhora de si
no capítulo vinte e quatro do Eclesiástico, diz estas palavras: Gyrum
caeli circuivi sola (Eclo. 24,8): O círculo que cerca o céu, eu só o
cerquei. — Admiravelmente dito. O
círculo criado, que cerca o mundo, é o céu; o circulo incriado e imenso,
que cerca o céu, é Deus; e o círculo
imensíssimo, que cercou a esse Deus imenso, é Maria: Gyrum caeli circuivi sola.
Demos o seu a seu dono. O comento e o pensamento é de Ricardo de Sancto
Laurentio: Gyrum caeli, id est, illum, qui claudit omnia, Christum scilicet, qui
est gyrus ingyrabilis, circuivi gremio
uteri mei. O círculo que cerca o céu é aquele que cerca e encerra em si
todas as coisas, que é Deus. Este
círculo, porém, por sua essência e grandeza, é tal que se não pode cercar: Gyrus ingyrabilis. Não se podia declarar
uma coisa tão nova, sem se fazer também uma palavra nova: gyrus, porque Deus, por sua
imensidade, cerca tudo; e juntamente ingyrabilis,
porque essa mesma imensidade, como
dizíamos, o faz incapaz de circunferência e de poder ser cercado. Mas esse impossível, que a essência e definição da
imensidade não permitia, venceu a capacidade, não só imensa, mas imensíssima, do útero e grêmio
virginal de Maria: illum, qui claudit
omnia, qui est gyrus ingyrabilis,
circuivi gremio uteri mei. Isto é o que disse o Eclesiástico, quando
pronunciou em nome da Senhora: Gyrum caeli circuivi sola; isto o que
tinha profetizado Jeremias, quando disse: Femina circumdabit virum; e isto o que lhe anunciou
o anjo, quando disse: Ecce concipies in utero.
CAPÍTULO IV
Já o dito até aqui bastava para
que eu desse por desempenhada a promessa de que o círculo do útero virginal foi um O que compreendeu dentro em
si o imenso. Mas será bem que o mesmo imenso o
diga, resumindo também a um O a sua imensidade. Apareceu Cristo, Senhor
nosso, ao evangelista S. João na
primeira visão do seu Apocalipse, e disse-lhe: Ego sum alpha et omega, principium et finis(Apc. 1,8): Eu sou o
Alfa e o Ômega, porque sou o princípio e o fim de tudo: o princípio, enquanto Criador
do mundo, e o fim, enquanto reparador dele. Alfa e Ômega são a primeira e
última letra do alfabeto grego, o qual
começa em A e acaba em O. E esta foi a razão e o mistério porque, sendo Cristo hebreu e S. João também hebreu, não
lhe falou o Senhor em hebraico, senão em grego, porque o alfabeto grego acaba em O, e o hebraico
não. O alfabeto hebraico também começa em A, que é o seu aleph;
e para significar, na primeira letra, as obras da criação, enquanto Cristo é
princípio, tanto servia o alfabeto
hebraico como o grego. Porém o Senhor usou do grego, sendo estranho, e deixou o hebraico, sendo natural e da própria língua,
porque, para significar na última letra o mistério da reparação, enquanto o mesmo Cristo é fim, só
o O tinha propriedade e semelhança. E esta
semelhança, em que consiste? Consiste em que a figura do O é circular, e
assim como o O é um círculo, assim o
mistério da Encarnação foi outro círculo: Deus
humanatus dicitur esse circulus, ut
circumferentia dicatur humanitas, centrum autem divinitas. O
mistério da Encarnação do Verbo — diz S.
Boa-ventura — foi um círculo porque, vestindo-se Deus de nossa carne, a
humanidade de Cristo cercou e encerrou
em si a divindade. E por este modo inefável ficou sendo a mesma divindade o centro, e a humanidade a circunferência.
Sendo, pois, o mistério da Encarnação, que foi o fim e última perfeição de todas as obras de Deus,
este perfeitíssimo círculo, por isso Cristo disse a S. João que, assim como ele, enquanto primeiro
princípio, é a primeira letra, A, assim, enquanto último fim, é a última letra, O: Ego sum Alpha et Omega.
Mas todos os que tiverem qualquer
notícia dos elementos da língua grega, porão aqui uma dúvida, que está muito à flor da terra, fundada no
mesmo O e no mesmo alfabeto. No alfabeto grego não há um só O, senão dois; um
que se chama Ômega, que quer dizer O grande, e outro que se chama ômicron, que quer dizer O pequeno. Logo,
falando Cristo, como falava, do mistério de sua
Encarnação, parece que se havia de comparar ao O pequeno, e não ao O
grande. O nome de grande, não só em
comparação do homem, mas absolutamente, e fora de toda a comparação, compete
à divindade. Pelo contrário, a
humanidade, ainda comparada com outras criaturas, é pequena, e menor que elas: Minuisti
eum paulo minus ab angelis. Pois, se Cristo falava de si enquanto homem,
por que se não compara ao O pequeno,
senão ao O grande, e por que não diz: Ego
sum omicron, senão Omega. A razão é
porque, falando Cristo da sua humanidade na metáfora de O e de circulo, não
devia considerar nela o que era, senão o
que cercava. Cercava a divindade do Verbo, cercava toda a imensidade divina, e um círculo de tão
infinita capacidade, que fazia circunferência à mesma imensidade, não podia formar um O que não
fosse o maior de todos: Ego sum alpha et
omega, principium et finis. Enquanto
Deus, que é o princípio, era Alfa; enquanto homem, que é o fim, era Ômega. Mas,
sendo tão grande o Ômega, que encerrou dentro em si o Alfa, sendo tão grande e
tão imenso o O, que encerrou dentro em
si o A, como podia ser O pequeno?
Para bem vos seja, Virgem
puríssima, esta grandeza da humanidade de vosso Filho, e para bem outra vez, porque não seria tão grande a
capacidade daquele O, se do círculo, onde foi concebido, a não participara. Manílio, no livro quarto da
sua Astronomia, diz uma coisa admirável, e é que os que nascem debaixo do signo de Virgem recebem
desta influência tal graça no escrever, que uma letra sua contém uma palavra: Hic et scriptor erit, felix cui littera verbum est. Eu não direi o
fundamento que teve Manílio para sair
com este axioma, nem os outros astrônomos o comentam facilmente. Mas o certo é que Cristo nasceu debaixo do signo
da Virgem, o certo é que Cristo nesse mesmo mistério diz de si que é um O, e o certo é que esta
letra e este O contém a primeira e maior palavra, que é o Verbo Eterno: Cui littera Verbum est. Grande, singular, imensa capacidade do
Filho, mas participada do útero virginal
da Mãe, em que foi concebido enquanto homem: Ecce concipies in utero. Enquanto
Deus, também Cristo foi concebido no útero do Pai: Ex utero, ante luciferum, genui te. Notai, porém, a diferença, mais com pasmo que com
admiração. O Pai-Deus de tal maneira concebeu o
Filho, Deus, que encerrou nele toda a sua essência em uma palavra; e a
Mãe-Virgem de tal maneira concebeu ao
Filho-Homem, que encerrou nele a mesma essência em uma letra: a palavra é o
Verbo, a letra é o O: Cui littera Verbum est.
CAPÍTULO V
Assentado, como temos visto, que
o círculo do ventre virginal, na conceição do Verbo, foi um O que compreendeu o imenso, segue-se agora
mostrar como o O dos desejos da mesma Senhora, na expectação do parto, foi um círculo que
compreendeu o eterno. A eternidade e o desejo são duas coisas tão parecidas, que ambas se retratam
com a mesma figura. Os egípcios, nos seus hieroglíficos, e antes deles os caldeus, para representar a
eternidade pintaram um O, porque a figura circular não tem princípio nem fim, e isto é ser eterno. O
desejo ainda teve melhor pintor, que é a natureza. Todos os que desejam, se o afeto rompeu o silêncio,
e do coração passou à boca, o que pronunciam
naturalmente é O. Desejou Davi água da cisterna de Belém, e antes de
declarar aos soldados qual era o seu
desejo, adiantou-se um O a dizer o que desejava: Desideravit ergo David, et ait: O, si quis mihi daret potum aquae de cisterna, quae est in
Bethlehem! O O foi a voz do desejo: as demais a declaração. E como a natureza em um O deu ao
desejo a figura da eternidade, e a arte em outro O deu à eternidade a figura do desejo, não há
desejo, se é grande, que na tardança e duração não tenha muito de eterno.
Os desejos da Virgem Santíssima,
que todos eram: Oh! quando chegará aquele dia! Oh! quando chegará aquela ditosa hora, em que veja com
meus olhos e em meus braços ao Filho de Deus e meu! Oh! quando? Oh! quando? Oh! quando? Estes
desejos da Senhora começaram na conceição e
acabaram no parto. Mas, desejos que começaram e acabaram? Desejos que
tiveram princípio e fim? Como podiam ser
eternos? Como podia igualar a duração de uma eternidade o espaço que foi
somente de nove meses? Entre a conceição
e o parto não meteu o anjo mais que um et
ecce concipies et paries. Mas não é
coisa nova nesta mesma embaixada trocar a Senhora alguma palavra do anjo em
outra. Assim como trocou o Eva em Ave,
assim trocou o et em o. E reduzidos os nove meses ao círculo perfeito deste O, não é muito que fossem
eternos. O mesmo et, sem mudança, se não diz toda a eternidade, diz parte dela, e na eternidade
não há parte que não seja eterna. No et
do anjo começaram a ser eternos os
desejos, que também então começaram a ser; e no O tão continuado e repetido
da Senhora, acabaram de cerrar o círculo
da sua eternidade. Nem é contra a extensão natural da eternidade a limitação do tempo de nove
meses, porque não devemos conceder menos à capacidade do coração da Senhora do que à do ventre
santíssimo. A maior capacidade que criou a natureza é a do coração humano; e se o ventre de Maria foi
capaz de encerrar o imenso, por que não seria capaz seu coração de estreitar o eterno? O eterno e o
temporal são tão opostos como a eternidade e o tempo. A eternidade não conta dias nem meses; o tempo
sim, que por isso contou nove desde a conceição até o parto da Virgem, a quem S. João Damasceno
chamou: Officina miraculorum. E se
nesta oficina miraculosa o eterno se
pode fazer temporal, o tempo por que se não poderia fazer eterno?
Naquela famosa carroça, que
descreve o profeta Ezequiel, na qual ia ou era levado Deus, o artifício das rodas era admirável, porque dentro de uma
roda estava ou se revolvia outra roda: Rota
in medio rotae. E que duas rodas
eram estas? Uma era a roda do tempo, e a outra a roda da eternidade, diz Santo Ambrósio: Rota in medio rotae, veluti vita intra vitam, quod in hac vita
corporis, vitae volvatur usus aeternae.
A roda do tempo é pequena e breve; a roda da eternidade é grandíssima e
amplíssima, e, contudo, a roda do tempo
encerra e revolve dentro em si a roda da eternidade, porque, qual for a vida temporal de cada um, tal será a eterna,
diz o santo. De maneira que a maravilha destas duas rodas era que, sendo a eternidade tão grande e tão
imensa, a roda da eternidade se encerrava dentro da roda do tempo. Agora pergunto eu: e qual era a
carroça de Deus, que sobre estas rodas se movia? Não só era a Virgem Santíssima, como alegorizam os
Santos Padres, mas era a mesma Virgem,
sinaladamente no espaço dos nove meses que teve a Deus em suas
entranhas. Assim como o que vai ou é
levado em uma carroça não dá passo nem tem outro movimento senão o da carroça,
assim o filho, enquanto está nas
entranhas da mãe, não se move ou muda de lugar senão quando se move a mesma mãe, e deste modo se houve ou andou
Cristo em todos os nove meses que se contaram desde a sua conceição até o seu nascimento. Depois de
concebido partiu logo às montanhas de Judéia a
santificar o seu precursor, das montanhas tornou para Nazaré, de Nazaré
foi a Belém, e não só nestas jornadas
mais largas, mas em todos seus movimentos, nenhum passo deu a Majestade
humanada, que não fosse na mesma carroça
real, que por isso se chamava sua, como própria da pessoa do Verbo. E como esta carroça de Deus representava a Mãe
do mesmo Deus, em todo aquele tempo que o trouxe dentro em si, por isso as rodas sobre que se
movia eram fabricadas e travadas com tal artifício, que dentro da roda do tempo se revolvia a roda da
eternidade, para significar que os dias e meses que passaram desde a conceição até o parto, posto
que parecessem breves na duração, eram, no desejo, eternos.
CAPÍTULO VI
E se me perguntarem os filósofos,
como podia o desejo fazer eternos aqueles dias, sendo de tão poucos meses, respondo que o modo foi, e a
razão é porque os desejos da Senhora e os OO dos mesmos desejos — que também são rodas —
unidos e acrescentados à roda do tempo, posto que o tempo fosse finito, eles o multiplicavam
infinitamente. Assim o disse Davi, falando da mesma carroça de Deus: Currus
Dei decem millibus multiplex. O caldeu lê: centum millibus; Santo Agostinho:
millies millibus; S. Jerônimo:
innumerabilis; Novatiano: infinitus, imensus. Quer dizer que o número na carroça de Deus se multiplica a milhares,
a dezenas de milhares, a centenas de milhares, a contos e milhões de milhares; em suma, que chega a ser
inumerável, infinito, imenso. Não se poderá declarar o que digo nem com melhor comparação nem com mais
apropriado exemplo que este da multiplicação
da aritmética: Decem, centum,
millies millibus multiplex. Sabeis como eram os OO dos desejos da Senhora nos dias, nas horas, nos momentos de
todos aqueles meses da expectação do sagrado parto, em que, depois de concebido o Filho de Deus
em suas entranhas, suspirava pelo ver nascido? Eram os OO dos desejos da Senhora na multiplicação do
tempo como as cifras da aritmética, que também são OO. Ajunta-se a cifra ao número, e que faz? A
primeira cifra multiplica dez, a segunda cento, a terceira mil, e se chegar a vinte e quatro
cifras quantas são as horas do dia, multiplicam tantos milhares sobre milhares, e milhões sobre
milhões que excedem a capacidade de toda a compreensão humana. Perguntam curiosamente os
matemáticos, se desde o centro da terra até o céu estivesse todo este mundo cheio de areia miudíssima, quanto
seria o número daqueles grãos de areia? Esta questão excitou já antigamente Arquimedes, ainda mais
estendida, e não é dificultosa de resolver, porque medida primeiro geométrica, mente a
capacidade ou côncavo do céu da lua, logo, por demonstração aritmética, se colhe com certeza quanto seria
o número das areias que o podem encher. Mas, reduzido este mesmo número inumerável a figuras
aritméticas, parece coisa digna de admiração que todo ele somado se venha a
resumir em uma unidade e trinta e duas cifras somente. Passemos agora dos
OO destas cifras aos OO dos desejos da
Senhora.
Os OO dos desejos da Virgem
Santíssima, no espaço daqueles nove meses, não se hão de contar por dias, nem por horas, nem por minutos,
senão por instantes, porque não houve instante em todo este tempo, nem de dia nem de noite, em que
no coração da Senhora se não estivessem multiplicando os mesmos OO, suspirando e anelando sempre
por aquela hora, que tanto mais tardava e se alongava, quanto era mais desejada. E digo nem de dia
nem de noite, porque ainda que o brevíssimo sono dava suas tréguas aos sentidos, o coração, que não
se podia apartar donde tinha o seu tesouro, como vela que sempre ardia, sempre vigiava: Ego dormio, et cor meum vigilat. Pois,
se os OO de trinta e três cifras
multiplicavam ou multiplicariam aquele número sem conta, os de tantos e tão
continuados instantes, que em cada parte
de tempo são infinitos, vede se o fariam eterno? A multiplicação
artificial das cifras — sem mudarem a
figura, que sempre é o mesmo O — consiste em que a segunda cifra excede proporcionalmente a primeira, a
terceira a segunda, a quarta a terceira, e assim as demais. E a este mesmo medo se excederam e iam excedendo
também os OO dos desejos da Senhora, sendo
sempre os seguintes maiores e mais intensos que os que tinham precedido.
A razão teológica e conatural deste argumento era porque a cada desejo da Mãe
de Deus correspondia novo aumento de
graça, a cada aumento de graça, maior amor do mesmo Filho, e ao maior
amor, maior e mais intenso desejo. Assim
que, sendo os círculos dos primeiros OO grandes, os que lhes iam sucedendo mais
e mais sempre eram maiores. Dê-nos aqui
o exemplo a natureza, assim como até agora no-lo deu a arte.
Se acaso ou de indústria
lançastes uma pedra ao mar sereno e quieto, ao primeiro toque da água vistes alguma perturbação nela; mas tanto que
esta perturbação se sossegou, e a pedra ficou dentro no mar, no mesmo ponto se formou nele um círculo
perfeito, e logo outro círculo maior, e, após este, outro e outros, todos com a mesma proporção
sucessiva, e todos mais estendidos sempre, e de mais dilatada esfera. Este efeito maravilhoso
celebra muito Sêneca, no primeiro livro das suas questões naturais, e dele aprenderam os filósofos o
modo com que a voz e a luz se multiplicam e dilatam por todo o ar. Mas, se a natureza, na
multiplicação e extensão destes círculos teve outro intento mais alto, sem dúvida foi para nos declarar, com a
propriedade desta comparação, o modo com que os OO dos desejos da Senhora, ao passo com que se
multiplicavam, juntamente se estendiam. A Virgem Maria era o mar, que isto quer dizer Maria: a pedra
era o Verbo encarnado; Cristo: Petra
autem erat Christus; o primeiro
toque da pedra no mar foi quando o anjo, na embaixada à Virgem, lhe tocou em que havia de ser Mãe, com bênção sobre
todas as mulheres: Benedicta tu inter
mulieres (Lc. 1,19). E que sucedeu
então? Duas coisas notáveis. A primeira, que a serenidade daquele mar puríssimo
se turbou um pouco: Turbata est in sermone ejus; a segunda que, sossegada esta
perturbação: Ne timeas Maria, no mesmo ponto em que a
Senhora disse: Fiat mihi secundum verbum
tuum, e a pedra desceu a seu centro,
logo os círculos, que eram os OO dos desejos da Senhora, se começaram a formar e crescer no seu coração de tal
sorte, que sempre os que se iam sucedendo e multiplicando, à medida do amor, que também crescia, eram mais
crescidos também, e de maior e mais estendida
esfera.
CAPÍTULO VII
Agora vejamos estes círculos ou
estes OO do desejo, unidos ao círculo ou à roda do tempo, que efeitos causaram nele? Os efeitos foram que,
sendo o período da expectação do parto tão breve como de nove meses, o fizeram eterno. E por que ou
como? Porque cresceu o desejo à proporção do amor, e o tempo à proporção do desejo. Não me creiais
a mim, senão aos dois maiores doutores da Igreja, Nazianzeno, entre os gregos, e Agostinho,
entre os latinos. S. Gregório Nazianzeno, com prefação de que afirma uma grande verdade, diz que um só
dia de ardente e ansioso desejo é igual a todo o tempo a que se pode estender a vida humana: Profecto vel unicus dies totius vitae
humanae instar est desiderio
laborantibus. A duração que as Escrituras dão comumente à vida humana são
cem anos; e se cada dia de desejos
intensos se mede por cem anos de duração, e a cada dez dias respondem dez séculos, que são mil anos, vede quantos
milhares sobre milhares se podiam encerrar no círculo de nove meses? E se isto afirma com tanta
asseveração Nazianzeno, por antonomásia o Teólogo, sem determinar objeto nem sujeito, que seria se
supusesse que o objeto desejado era Deus, e o sujeito que desejava, o coração da Mãe de Deus? Por isso
Santo Agostinho remeteu toda a questão a Deus, como Senhor dos tempos e autor dos desejos. E diz
que travou Deus o tempo com o desejo reciprocamente de tal sorte que, dilatando o tempo, estende
o desejo, e estendendo o desejo, dilata o tempo: Deus, dilatando, extendit desiderium. Sendo, pois, os OO dos desejos da Senhora uns
círculos tão estendidos, como vimos, bem
se infere quão dilatados seriam neles os círculos do tempo. Tão dilatados que a roda do tempo pôde
compreender em si a roda da eternidade: Et
rota in medio rotae. Mas para que é
recorrer a argumentos de doutores, se temos no próprio caso o testemunho
expresso da mesma Senhora do O. E quando
deu a Senhora este seu testemunho, e com que palavras? Com as mais adequadas ao seu pensamento, e as mais
bem medidas com os seus desejos. Disse que os seus desejos eram como o seu desejado: Dilectus meus totus desiderabilis; dilectus
meus totus desideria (Cânt. 5, 16):
O meu amado é todo para desejar, e os meus desejos são como todo ele. — Assim o
traslada e interpreta a versão caldaica.
E se os desejos da Senhora se mediam totalmente com o seu desejado, e o desejado era imenso, infinito,
eterno, vede se seriam também eternos os seus desejos?
Finalmente, para que não pareça
encarecimento o que digo, deixai-me abater o discurso, para melhor o provar, e ouvi como os desejos de
quem desejava muito menos, só por serem do mesmo desejado, foram também eternos. Quando Jacó, despedindo-se
de seus filhos na hora da morte, lhes
lançou a bênção — a qual juntamente era bênção e profecia — o último
termo que sinalou a todas as felicidades
que lhes prometia foi a vinda do Messias, a quem chama o desejo dos montes
eternos: Donec veniret desiderium collium aeternorum. Grandes e misteriosas
palavras! Chama Jacó ao Messias não o
desejado, senão o desejo, porque havia de ser desejado tão singular e
unicamente, que os desejos de todas as
outras coisas, em comparação deste desejo, nem eram, nem mereciam nome de desejos. Mas por que lhe não chama desejo dos
homens, senão desejo dos montes e dos outeiros:
Desiderium collium? Porventura
porque até as criaturas insensíveis, sem uso de razão, nem conhecimento de tanto bem, o haviam de
desejar a seu modo e suspirar por ele. Assim explicam alguns este lugar, com a energia daquela
mesma figura com que disse o poeta: Ipsae
te, Tytire, pinus, ipsi te fontes, ipsa
haec arbusta vocabant. Porém Jacó, no verdadeiro sentido em que falava,
entendeu por montes e outeiros os
patriarcas e profetas, assim passados como futuros, nos quais só se conservava a fé explícita de que o Messias
havia de ser Filho de Deus. E por isso a esposa, falando da mesma vinda do Messias, dizia: Ecce iste veniet saliens in montibus,
transiliens colles. E chamam-se os
patriarcas e profetas montes e outeiros, porque, assim como os montes e
outeiros se levantam sobre os vales, e,
extremando-se da outra terra, se avizinham mais ao céu, assim os patriarcas e profetas, pela eminência da
dignidade, da santidade e do conhecimento de Deus, em respeito do outro povo, mal disciplinado e
rude, e incapaz de tão altos mistérios, eram os montes e outeiros do mundo. Mas agora entra a dúvida,
em que todos, creio, tendes já reparado, e é por que lhes chama eternos: Desiderium collium aeternorum? Os patriarcas e profetas, ainda que
lhes demos a antigüidade, desde o
primeiro de todos, que foi Adão, de Adão até a morte de Jacó se passaram
dois mil anos; e se a continuarmos
depois de Jacó, desde a morte de Jacó até a vinda do Messias, passaram outros dois mil. Quanto mais que nesta
segunda idade as vidas dos homens, por mais patriarcas e profetas que fossem, eram tão breves como as
nossas. Pois, se estes montes e outeiros caíam, e se sepultavam, e se desfaziam em cinzas em tão
breve tempo, como lhes chama Jacó eternos:
Desiderium collium aeternorum?
Na palavra desiderium disse Jacó o
porquê. Não vedes que o desejo desses
patriarcas e profetas, em que viveram, todo era suspirar pela vinda do Messias,
todo era clamar ao céu e a Deus, que
acabasse já de vir: Donec veniret? O
mesmo Jacó dizia: Salutare tuum expectabo;
Moisés: Mitte quem missurus est;
Davi: Ostende nobis, Domine,
misericordiam tuam, et salutare tuum da
nobis; Isaías: Rorate caeli desuper,
et nubes pluant justum; aperiatur terra, et
germinet salvatorem. E como os desejos dos patriarcas eram tão
intensos, e a tardança do bem desejado
tão dilatada, ainda que o tempo das vidas fosse tão breve, a dilação dos
desejos o fazia eterno. Eram grandes,
eram santos, eram eminentíssimos nas pessoas, mas muito mais se estendia neles o tempo do que os levantava a
dignidade: a dignidade os fazia montes, e o desejo, eternos: Desiderium
collium aeternorum.
Nem mais nem menos tomou estas
medidas Davi, a quem os desejos e o desejado tocavam de mais perto: Cogitavi
dies antiquos, et annos aeternos in mente habui. Quando considero a
antigüidade dos patriarcas e profetas —
assim entendem este lugar os mais graves expositores — quando considero os tempos antigos, a tradição dos
patriarcas e a fé dos profetas, aqueles homens tão alumiados de Deus, que desde então esperavam
e desejavam o que eu hoje só desejo e espero, os dias, no meu entendimento, são anos, e os anos,
eternidades: Cogitavi dies antiquos, et
annos aeternos in mente habui. Ainda
tem maior mistério a distinção e repartição destes tempos. A Adão
revelou-lhe Deus que se havia de fazer
homem, mas não disse como, nem de quem; a Abraão revelou-lhe que havia de ser da sua descendência e da sua
nação; a Davi, que havia de ser da sua casa e da sua família. E quanto mais de perto tocava este bem aos
homens, tanto mais se excitava neles o desejo, e tanto mais crescia, com o desejo, a dilação. Na
antigüidade remotíssima de Adão os momentos eram dias; na menos remota de Abraão, os dias eram anos;
mas na mais próxima, e já vizinha, de Davi, os anos eram eternidades: Et annos aeternos in mente habui. Tudo isto sucedia segundo aquela
regra natural, que quanto o bem desejado
está mais vizinho, tanto é maior o desejo. Bem assim como a pedra no ar, que quanto mais se chega ao centro, tanto com
maior velocidade se move: Desiderium
acuit absentis vicinitas, disse com
verdadeira sentença o Cômico. E se esta vizinhança já em Davi fazia do tempo eternidades, só porque sabia Davi que
havia de nascer em sua casa, que seria no coração da Virgem Santíssima, que já o tinha concebido
em suas entranhas? Os dois que avaliaram estes desejos por eternos foram nomeadamente Davi e Jacó,
os mesmos dois de que o anjo anunciou havia Cristo de ser herdeiro: Dabit illi Dominus Deus sedem David patris ejus, et regnabit in domo
Jacob in aeternum. E se Jacó e Davi
de tão longe reconheciam esta eternidade, como a não compreenderia o coração da Senhora dentro nos OO dos seus
desejos, tanto mais intensos quantos mais vizinhos, e tanto mais dilatados quanto mais intensos? Um
patriarca dizia: O Sapientia! Outro
suspirava: O Adonay! Outro clamava: O Radix Jesse! Os demais: O Clavis David! O Oriens! O Rex Gentium! O Emmanuel! Mas nenhum disse, nem podia
dizer: Ó Filho! E se os OO daqueles desejos faziam uns círculos tão dilatados, que eram eternos: — Desiderium collium aeternorum, et annos
aeternos in mente habui — que seriam os OO daquele coração e daquela
Mãe, que o tinha concebido em suas
entranhas e o havia de ver nascido em seus braços: Ecce concipies in utero, et panes Filium.
CAPÍTULO VIII
Certo estou já que não haverá
quem duvide que os desejos da Senhora foram eternos. O que só receio, pelo contrário, é que não falte quem
ponha dúvida a serem desejos. O bem — replicará algum filósofo — o bem, que é o objeto da vontade,
assim como tem diferentes tempos, assim causa na mesma vontade diferentes afetos. Porque o
bem, ou é presente, ou passado, ou futuro: se é presente, causa gosto; se é passado, causa saudade; se
é futuro, causa desejo. E como o bem, e sumo bem, objeto dos afetos da Senhora, que era o Filho
único de Deus e seu, não só o tinha presente, senão mais que presente, porque o tinha dentro em si
mesma, parece que antes havia de causar em seu coração júbilos de gosto, e não ânsias nem desejos.
Quem discorre desta sorte ainda não tem entendido que a presença, para ser presença, há de ter alguma
coisa de ausência. O objeto da vista, para se poder ver, há de ser presente; se está pegado e unido à
mesma potência, é como se estivera ausente: há de estar apartado dos olhos para se poder ver. Assim a
presença, para ser presença, não há de passar a seríntima, nem há de estar
totalmente unida, senão, de algum modo, distante. É a queixa de Narciso,
com verdadeira razão, em história
fabulosa: Quod cupio mecum est: inopem me
copia fecit: O que desejo, tenho-o
em mim; e porque o tenho em mim, careço do que tenho. — Pois, que remédio? Votum in
amante novum: o remédio é um desejo novo, qual nunca desejou quem
amasse. E que desejo é este? Velle quod amamus abesse: desejar que o
que amo se ausente e se aparte de mim. — Tal era o desejo da Senhora, e tal a razão do seu desejo.
Carecia do mesmo bem que tinha, porque o tinha dentro em si. Por isso suspirava e desejava com ânsia
vê-lo já fora, e esta era a causa dos seus OO: Quis mihi det te fratrem meum,
ut inveniam te foris: Oh! quem me dera, irmão e filho meu — irmão
porque tomastes de mim a natureza
humana, e filho, porque eu vo-la dei — oh! quem me dera ver-vos já fora de minhas entranhas, porque dentro delas,
posto que vos tenho e possuo, não vos posso gozar. Ut inveniam te; diz ainda
com maior energia: Oh! quem me dera achar-vos! Como se dissera a ansiosa Mãe, falando como mesmo Filho: — No dia em
que vos concebi, foi como se vos perdera e vos
escondêsseis de mim, porque vos não posso ver. Se me pergunta a fé, onde
estais: Ubi est Deus tuus? respondo,
com toda a certeza que dentro em mim. Mas se mo perguntam os olhos, só lhes
posso responder que ainda vos busco e
suspiro por vos achar: Ut inveniam te.
E sendo esta a presença do seu bem —
ausente por muito presente — vede se tinha razão a Senhora de o desejar com
ânsias, e suspirar mais e mais por ele?
Deseja a Virgem Santíssima gozar
a seu Filho ao medo com que o Padre Eterno o goza, pois era Filho comum de ambos. Voai agora, se puderes
tanto, os que pusestes a dúvida. Descreve o
evangelista S. João a geração eterna do Verbo, e diz que o Filho estava
junto ao Padre, ou perto dele: Et Verbum erat apud Deum. Aquele apud,
assim como foi escândalo aos arianos, assim tem sido reparo altíssimo a todos os maiores teólogos.
Não diz Cristo, falando da mesma geração sua enquanto Deus, que ele está no Padre, e o Padre nele: Ego in Patre, et Pater in me est (Jo.
14,10)? Pois, por que não diz também S.
João que o Verbo estava no Padre, senão junto a ele: Et Verbum erat apud Deum? E
se estava junto a ele, onde estava, e qual era o seu lugar: Ubi erat hoc Verbum? Quis erat locus ejus? — pergunta Ruperto. E responde que
o lugar onde estava o Verbo, era a distinção real com que a pessoa do Padre se distingue do Filho, e a
pessoa do Filho se distingue do Padre: Verbum
erat apud Deum, ut de personis non
dubites, dum alteram audis esse vel fuisse ad alteram. O mesmo tinha
dito antes dele São Basílio e depois de
ambos o diz Santo Tomás. Mas ouçamos discorrer altamente na matéria altíssima a Ricardo
Vitorino. Deus é sumamente bom e sumamente beato: enquanto sumamente bom, é suma e infinitamente
comunicável; logo, não se podia comunicar infinitamente senão a quem também fosse Deus, e este é o
Filho. Enquanto sumamente beato, não podia ser ou estar só, porque não há felicidade sem companhia:
logo, quem lhe fizesse companhia nesta suma felicidade, havia de ser distinto dele; e esta é a
distinção real que há entre o Filho e o Padre.
Neste segundo ponto, que é o
nosso, as palavras de Ricardo são: Felicitas
summa non potest esse unius solitarii
sine consortio; Deus autem est sume felix, quare consortio debet habere. E
se alguém replicar que antes de haver
mundo Deus estava só, porque somente havia Deus, responde Tertuliano contra Praxéias, distinguindo uma soledade da
outra, tão profundamente como costuma: Deus
ante omnia solus erat, ipse sibi, et
mundus, et locus, et omnia: solus autem, quia nihil extrinsecus praeter illum. Caeterum ne tum quidem solus, habebat
enim secum rationem suam, hanc Graeci logon dicunt: Deus antes do mundo estava só, porque fora de
si não tinha produzido coisa alguma. Porém ainda então não estava só, porque estava
acompanhado do Verbo, o qual tinha consigo. Notai muito a palavra habebat
secum. De maneira que na natureza divina, sumamente comunicável, não bastou
que o Padre tivesse o Filho em si: Ego
in Patre; mas, para que o mesmo Padre não estivesse só, e para que fosse sumamente beato, foi necessário que
tivesse o Filho também consigo: Habebat
secum. E porque o não podia ter
consigo, senão distinguindo-se realmente uma Pessoa da outra, por isso foi
juntamente necessário que o Filho se
distinguisse realmente do Padre, para que deste modo, não só estivesse
nele, senão junto a ele: Et Verbum erat apud Deum. Estava o Filho
no Padre pela identidade da natureza, e
estava com o Padre pela distinção das Pessoas. E esta mesma diferença,
que fazia no Pai a identidade e a
distinção, fazia na Mãe a conceição, e havia de fazer o parto, porque depois da
conceição tinha o Filho em si, e depois
do parto havia-o de ter consigo. E se na diferença daquele in e daquele
apud: Ego in Patre, et Verbum apud Deum, consistia a razão da suma
felicidade em Deus: Deus autem est summe felix, quare consortium debet habere,
— vede se era bastante motivo na Mãe do mesmo Deus, ainda que o tivesse em si, desejar e desejar
sumamente tê-lo junto a si?
Esta é a verdadeira filosofia, porque o bem
presente pode causar desejos, e porque a presença, para se lograr, há de ter
alguma coisa de ausência. O bem e sumo bem da Senhora, enquanto o tinha
dentro em si, por muito presente,
fazia-o presença invisível; porém, depois que o teve fora de si, e em seus braços, esta mesma distância, que era parte
de ausência, fez que o pudesse ver e gozar. E se é propriedade do sumo bem visto, fazer as
eternidades breves, que muito é que não visto, nem se podendo ver, fizesse os dias eternos? Não acabava
de entender S. Gregório Nazianzeno como pudesse
ser que os anos que serviu Jacó por Raquel lhe parecessem poucos dias, e
no cabo achou e deu a verdadeira razão,
a qual não era nem podia ser outra, senão porque em todo aquele tempo gozava
Jacó a vista da mesma Raquel: Cujus rei haec fortasse causa erat, quia rei
expetitae conspectu fruebatur. Se
enquanto a Senhora tinha o bendito fruto de seu ventre dentro em si o
pudera ver, então os nove meses lhe
pareceriam breves dias; mas como era bem e sumo bem, por muito presente,
invisível, todo o tempo em que o não via
nem podia ver se lhe fazia eterno. E por isso os seus desejos, como vimos, mudaram o et
do anjo em O, consumando a eternidade, que no mesmo et teve seu princípio: Ecce conscipies, et paries.
CAPÍTULO IX
Tenho acabado o sermão, e mais
depressa porventura, ou mais de repente do que imagináveis. Todos esperavam que eu me lembrasse de duas
obrigações mui precisas, das quais parece me esqueci totalmente, porque, tendo presente a
Majestade Sacrossanta do Diviníssimo Sacramento, e falando a um auditório tão grave e tão numeroso, como
se não olhasse para o altar nem para a Igreja, nem do Sacramento disse uma só palavra, nem ao
auditório dei um só documento. Este é sem dúvida o reparo que todos fizestes nos dois discursos que
preguei. E eu agora acabo de entender que nem percebestes bem o primeiro, nem aplicastes, como devíeis,
o segundo, porque o primeiro todo foi do Sacramento, encarecendo a sua maior excelência, e o
segundo todo foi ao auditório, dando-lhe a mais importante doutrina.
No primeiro discurso, sobre as
palavras: Ecce concipies in utero,
não provei eu que o ventre virginal da
Senhora, pela conceição do Verbo Encarnado, fora a circunferência da
imensidade, e um círculo que compreendeu
o imenso? Pois isso mesmo é o que a onipotência divina tornou a obrar por nosso amor no mistério altíssimo do
Sacramento, encerrando naquele círculo breve de pão toda a imensidade de seu Ser divino e humano. Por
que cuidais que instituiu a Igreja que a forma da Hóstia consagrada fosse de figura circular, como foi
desde seu princípio e se continuou sempre? Alguns quiseram na Grécia que a figura da Hóstia
fosse quadrada, para significar os quatro elementos de que é composto o corpo de Cristo, e as quatro
partes do mundo, sobre que tem absoluto e supremo domínio; mas prevaleceu a figura circular,
não só porque no círculo se representa também a
redondeza do mundo, mas, como diz São Gregório Papa, porque sendo figura
que não tem princípio nem fim, em
nenhuma outra se exprime mais claramente a eternidade, a infinidade e a
imensidade divina, que naquele milagroso
círculo está encerrada. Assim se fez e assim se havia de fazer, porque muitos séculos antes da Encarnação do Filho
de Deus, já era tradição dos doutores hebraicos, na exposição do salmo setenta e um, que o
sacrifício do Messias, como sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, havia de ser em pão, e esse pão
formado em figura circular do tamanho da palma de uma mão: Sacrificium
Messiae fore placentam rotundam, sicut est vola manus.
Mas, para que são tradições, onde
temos o ritual de Davi? Circuivi, et
immolavi hostiam vociferationis.
Fala Davi de um sacrifício que ofereceu a Deus em ação de graças — como consta de todo o salmo — e tal é o nosso
sacrifício. Quando Cristo o instituiu, deu primeiro graças: Gratias
agens, fregit, e por isso se chama Sacramento da Eucaristia, que quer dizer
ação de graças. E quais foram os ritos
ou cerimônias deste sacrifício? Três a coisas, diz o profeta, que só como profeta as podia antever e imitar. Diz que
fez um círculo à roda: circuivi; diz
que ofereceu a Hóstia: immolavi hostiam; e diz que a
acompanhou, não com preces e orações, senão com brados e vozes: vociferationis.
No sacrifício, com nome de Hóstia, antevia e significava a que temos e
adoramos presente; no círculo que fez em
roda, a figura circular de que havia de ser formada, em representação da imensidade divina que encerra dentro em
si; e nas vezes, não dearticuladas, senão a gritos, que queria significar Davi? Parece que tinha
diante dos olhos a solenidade deste dia. Desde o dia de hoje por diante, até do nascimento do Senhor, na
Catedral de Toledo, onde começou esta instituição, e em muitas outras igrejas da cristandade, a
última clausura dos Ofícios Divinos são vozes sem concerto nem harmonia, clamando todo o clero e todo o
povo a gritos oh! oh! oh! Isto é o que quer dizer propriamente vociferationis. E como o diviníssimo Sacramento é a segunda parte
do mistério da Encarnação — por onde São
João Crisóstomo lhe chamou Encarnação mais estendida — não é coisa alheia ao espírito de Davi, antes mui própria
dos seus fervorosos e arrebatados afetos, que à vista daquela sagrada Hóstia, quando a sacrificava
em figura, acompanhasse o mesmo círculo que fazia exclamando ele e fazendo exclamar a todos com
OO de júbilos, com OO de aplausos, com OO de
admirações: Oh! Hóstia, em que o sacrificado é Deus! Oh! círculo, que
cercas e compreendes o incompreensível!
Oh! invento maior da Sabedoria! Oh! milagre sem igual da Onipotência! Oh! firmeza! Oh! excesso! Oh! extremo do amor
infinito para com os homens! Enfim, todos aqueles OO que a Igreja resumiu em um só O: O sacrum convivium, in quo Christus sumitur!
Esta foi a alegoria do meu
primeiro discurso, toda dirigida, Senhor, à vossa divina e humana Majestade sacramentada. E a doutrina do
segundo, em afetos tão sobre-humanos do primeiro exemplar das virtudes, também foi encaminhada
toda à imitação dos ouvintes. Que ouvistes sobre as segundas palavras do tema: Et paries Filium? Ouvistes que estando a
Virgem Santíssima toda cheia de Deus,
ainda se não satisfizeram seus desejos, desejando ter consigo ao que tinha em
si, e acabar de ver com seus olhos ao
que estava escondido em suas entranhas. Ora, aplicai isto mesmo a vós.
Nada menos do que a Virgem concebeu
dentro em si é o que nós recebemos dentro em nós quando comungamos: ela ao Verbo a quem deu carne, e
nós ao Verbo encarnado; ela a todo Deus, tão imenso como é, e nós a todo Deus com toda a sua
imensidade. E daqui se colhe quão grande injúria fará o mesmo Deus quem depois de o ter todo em si,
ainda deseja outra coisa. Qualquer outro desejo do mundo neste caso, ou é declarada heresia, ou
rematada loucura: ou heresia, porque é não ter fé ou loucura, porque é não ter juízo. Condenando
Sêneca a ambição monstruosa de Alexandre, disse com profunda sentença: Inventus est qui aliquid concupisceret post omnia: Basta que se
achou no mundo um homem que, depois de
ter tudo, ainda desejou mais alguma coisa? O tudo que possuía e dominava Alexandre era nada: só Deus verdadeiramente é
tudo. E que tendo um cristão a Deus, e a todo Deu sem si, ainda haja de desejar
os nadas do mundo? Ó cegos, ó enganados, ó perdidos, ó infiéis desejos! Uma só coisa pode desejar lícita e
cristãmente quem chegou a ter a Deus em si. E qual é? Chegar também a o ter consigo, que é o que desejava
a Senhora.
Desiderium habens dissolvi, et esse cum Christo (Flp. 1,23): Uma só
coisa desejo — diz S. Paulo — que é
desatar a minha alma das cadeias do corpo, para estar com Cristo. — Tornai a
dizer, apóstolo sagrado, que vos não
entendo. Vós não dizeis que nesta mesma
vida está Cristo em vós: Vivit vero
in me Christus? Pois se Cristo está
em vós nesta vida, para que quereis deixar a vida para estar com Cristo? Porque vai muita diferença de estar
Cristo em mim, ou estar eu com ele. Estar Cristo em mim, é possuí-lo sem o ver; estar eu com ele é
vê-lo e gozá-lo. Esta é a mesma razão por que a Virgem, tendo a seu Filho e a seu Deus dentro em si,
ainda desejava e suspirava, porque o desejava ter de modo que o pudesse ver e gozar. E esta é
também a razão — se temos uso de razão — porque tendo a Cristo dentro em nós sacramentado e
invisível, esta mesma felicidade nos deve excitar o desejo da outra maior e felicíssima, que é chegar a
estar com ele, onde o vejamos e gozemos por toda a eternidade. Para fartar a fome de todos os
outros desejos, basta termos a todo Deus em nós; mas desta mesma fome, já satisfeita, há de nascer uma sede
insaciável de se romperem aquelas nuvens, e o
vermos descobertamente na glória: Sitivit
anima mea ad Deum fortem vivum: satiabor cum apparuerit gloria tua. Estes hão de ser os OO dos
nossos desejos, como eram os do mesmo profeta: Quando veniam, et apparebo ante
faciem Dei? Oh! quando virá aquele ditoso dia, em que apareça, meu Deus, diante de vós? Oh! quando chegará
aquela hora em que vos veja face a face! Oh! quando se verá livre a minha alma do cárcere deste
corpo mortal, que lhe impede a vossa vista. — Quis me liberabit de corpore
mortis hujus? O Domine, libera animam
meam; O Domine, salvum me fac. O Domine,
bene, prosperare! Estes hão de ser os OO dos nossos desejos, e não os do
mundo, os da cobiça, os da ambição, os
do falso amor, que não são OO, senão ais: Heu
mihi, quia incolatus meus prolongatus
est. Virgem Senhora do O, esta é a graça que hoje vos devemos pedir todos,
e a que eu, em nome de todos, vos peço
de todo o coração. Que reformeis todos nossos desencaminhados desejos, que os aparteis de todas as coisas
temporais e da terra, que os levanteis ao céu, e os encaminheis à eternidade, para que nela, por
vossa intercessão, e pelos merecimentos infinitos de vosso Santíssimo Filho, consigamos, com a sua
vista sem fim, o fim para que fomos criados. Amém.
---
Fonte:
Padre Antônio Vieira: "Sermão de Nossa Senhora do Ó" (1640)
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