SERMÃO DA PRIMEIRA SEXTA-FEIRA DA
QUARESMA (1651)
Ego autem dico vobis: Diligite inimicos vestros, benefacile his qui
oderunt vos.
CAPÍTULO I
Que depressa nos leva a Igreja a
Deus, e com toda a alma! Anteontem nos excitou a memória, ontem nos ilustrou o entendimento, hoje nos
aperfeiçoa a vontade. Excitou-nos a memória com a lembrança da morte: Memento homo quia pulvis es; ilustrou-nos o entendimento com o
maior exemplo da fé: Non inveni tantam fidem in Israel;
aperfeiçoa-nos a vontade com o ato mais
heróico da caridade, que é o amor dos inimigos: Diligite inimicos vestros. Este ato, como tão singular da lei e tão próprio da profissão cristã,
será o assunto único de todo o meu discurso. E, posto que a matéria do amor dos inimigos seja tão pregada
e tão batida, o que determino tratar sobre ela é uma questão muito nova e muito própria deste
lugar. Funda-se toda sobre aquele Vós do nosso texto: Ego autem dico vobis. E a
questão ou dúvida é: se debaixo deste vós se entendem também as altezas e
as majestades. As pessoas soberanas são
superiores a toda a lei, e por isso será necessário examinar exatamente até onde se estende o preceito de
Cristo, e resolver com a graça do mesmo Senhor, e sem lisonja de nenhum outro, se são obrigados
também os reis a amar seus inimigos.
CAPÍTULO II
Primeiramente parece que não são
obrigados. E está por esta parte toda a autoridade de Salomão em uma obra famosa de sua sabedoria e
grandeza. No capítulo terceiro dos Cânticos descreve ele a fábrica de uma carroça triunfal, em que saía
a passear pela corte de Jerusalém nos dias de maior solenidade. A matéria era dos lenhos mais
preciosos e cheirosos do Líbano, as colunas de prata, o trono de ouro, as almofadas de púrpura, e no
estrado onde punha os pés estava esculpida a caridade: Ferculum
fecit sibi Rex Salomon de lignis Libani: columnas ejus fecit argenteas,
reclinatorium aurem, ascensum purpureum;
media charitate constravit. Nestas últimas palavras está o reparo, não só grande,
mas digno de suma admiração. É possível que um rei tão sábio como Salomão, e
não gentio, senão fiel, quando faz a
maior ostentação de sua grandeza e majestade, leve a caridade debaixo dos pés? O rei assentado no trono, e a caridade
debaixo dos pés do rei? O rei entronizado, e a caridade pisada: Media
charitate constravit? Sim, porque cuidam alguns reis — ou obram como se o
cuidaram — que tão fora estão de serem
sujeitos às leis da caridade, que antes a mesma caridade e todas suas leis lhes estão sujeitas a eles. Não falo dos
Neros, nem dos Calígulas, e muito menos dos
Sardanapalos, que semelhantes monstros da natureza humana eram tiranos
crudelíssimos, e não reis nem homem.
Falo dos que são como Salomão naquele tempo, e do mesmo Salomão
particularmente, o qual, para a pompa e
vaidades inúteis, e para fazer a sua corte inveja das outras e ostentação de
todo mundo, carregou e oprimiu os seus
povos com tal excesso, que chegaram por desesperação a sacudir o jugo e privar da obediência e do reino a
Roboão, seu primogênito. Se se antojava o apetite e vaidade de Salomão já perdido, que houvesse prata e
mais prata: columnas argenteas, que
houvesse ouro e mais ouro: reclinatorium aureum, que houvesse
púrpura e mais púrpura: ascensum
purpureum. — Tudo isto há de haver,
dizia ele, por qualquer via, por mais violenta que seja. E, se a caridade
o contradisser, mete-se a caridade
debaixo dos pés. — Pois, não vês, ó rei sábio, a opressão e opressões do teu povo? Não ouves os gemidos dos
pobres? Não te lastimam as lágrimas dos miseráveis? Não consideras que o nome de rei te obriga a ser
pai dos vassalos? Não reconheces no seu mesmo
sofrimento que todos te amam como filhos, e que, quando te aborreceram e
foram teus inimigos, os deveras,
contudo, amar? Onde está a proximidade? Onde está a humanidade? Onde está a
caridade? Onde? Lá está, debaixo dos pés
do rei, porque os reis não são sujeitos à caridade nem a suas leis: Media
charitate constravit.
A este hieroglífico de Salomão se
ajunta um argumento para mim de muito formal conseqüência. Os reis não são obrigados a amar os amigos:
logo, muito menos, a amar os inimigos. Quem não tem amor para o amor, como há de ter amor para o
ódio? Não há entre todos os corações humanos e entre todos os estados do mundo
nem vontades mais desamoráveis que as soberanas, nem coisa mais oposta ao amor que a majestade. E por que razão, se
razão se pode chamar? Por duas. Pela desigualdade e pela obrigação dos vassalos. O amor
recíproco, que por outro nome se chama amizade, diz Aristóteles que o não pode haver senão entre iguais; e
como entre os reis e os vassalos há uma desigualdade tão distante, como do inferior ao supremo, a
mesma soberania, que os remonta sobre a igualdade, os desobriga da correspondência. E porque
amaremos vassalos ao rei é obrigação natural, esta é a segunda isenção ou regalia que logram as
majestades para nem lhes ser necessário amar para ser amados, nem depois de ser amados, ficarem
obrigados a amar. Como o amor dos vassalos é dívida, nem os reis ficam obrigados à paga, nem os
vassalos têm ação para a desejar nem pedir. Daqui se segue aquela grande dor — por lhe não chamar
injustiça — de que tenha mais ventura com os reis o servir que o amar, porque os serviços alguma
vez são premiados, o amor nunca é correspondido. Não seriam as majestades majestades se se
sujeitassem a amar. Por quê? Por outras duas razões da sua parte. Amar é inclinar-se à vontade primeiro,
e depois render-se; e o render-se é contra a potência da majestade, o inclinar-se contra a soberania.
Por isso disse bem quem lhe conhecia esta condição, que nem pode haver majestade com amor, nem amor
com majestade: Non bene conveniunt, nec
in una sede morantur majestas et amor.
E se os reis, como dizia, nem amados se inclinam a amar os amigos, odiados e aborrecidos, como se hão de
sujeitar a amar inimigos?
Seja exemplo o rei de melhor
coração de quantos empunharam cetro. Teve Davi muitos e grandes inimigos — que não fora Davi se os não
tivera. — E como os amava? Ele mesmo o diga: Persequar inimicos meos, et
comprehendam illos, et non convertar; donec deficiant. Confringam illos,
nec poteterunt stare; cadent subtus
pedes meos. A meus inimigos hei-os de perseguir até os tomar às mãos, nem hei de desistir ou descansar até os
desfazer e consumir de todo. Eu lhes quebrarei o orgulho e lhes torcerei o pescoço, até os
meter debaixo dos pés. E se Cristo manda que não só façamos bem aos inimigos, mas que oremos por
eles: Et orate pro persequentibus et
calumniantibus vos, ouvi como os
encomendava o mesmo Davi a Deus em suas orações: Averte mala inimicis meis, et in
veritate tua disperde illos: O mal que me desejam meus inimigos, peço-vos,
Senhor, que o convertais contra eles, e
que pela má vontade que me têm, vós lhes ponhais as mãos e a boa vontade, destruindo-os e aniquilando-os —
que isso quer dizer disperde. Finalmente, chegado à hora da morte, tempo em que até os corações mais
duros não só perdoam a seus inimigos, mas lhes pedem perdão, duas mandas do testamento de Davi
foram deixar muito encarregado a seu filho Salomão que de nenhum modo se esquecesse de mandar matar
a Joab e a Semei, por certos agravos que lhe tinham feito. E se desta maneira amava a seus
inimigos um rei canonizado, que se levantava à meia-noite a rezar o saltério, e debaixo da púrpura vestia
cilícios, os que não são tão santos nem tão beatos, vede como guardaram o diligite inimicos vestrost, e como tomaram por si o dico vobist?
CAPÍTULO III
Isto é o que se oferece pela
primeira parte, e mais aparente que sólida da nossa questão; a segunda não só defende, mas define que também as
altezas e majestades, por mais altas e soberanas que sejam, se entendem e compreendem debaixo daquele vobis, e que todas igualmente, como os
outros cristãos, sem nenhuma exceção nem
privilégio, estão sujeitos ao preceito de Cristo, e obrigados a amar seus inimigos e a lhes fazer bem: Diligite inimicos vestros, et benefacite his
qui oderunt vos.
O fundamento desta obrigação está
na primeira palavra do mesmo texto: Ego
autem dico vobis. Ego: Eu. E quem é
esse eu? Não é Platão, nem Licurgo, nem Numa Pompílio, cujas leis, contudo,
por serem racionais, as veneravam e
obedeciam todos os reis que alcançaram fama de justos; mas é aquele Eu que disse
a Moisés: Ego sum qui sum (Êx. 3,14):
Eu sou o que sou — o que só tem o ser de si, e o deu a todas as coisas; aquele Eu que faz os
reis e também os desfaz, quando eles não fazem o que devem: Per
me reges regnant; aquele Eu que traz escrito na orla da opa real: Rex Regum, et
Dominus dominantium (Apc. 19,16): Rei dos reis, e Senhor dos
senhores; aquele Eu de quem os reis são
mais súditos do que os vassalos dos reis, porque os reis todos receberam o
domínio e jurisdição da mão e consenso
dos povos e, se conservam em si, e perpetuam na sua posteridade o mesmo poder
e soberania, é por mercê e à mercê de
Deus, enquanto ele for servido, e com um aceno da sua vontade não mandar o contrário. E este Eu: Ego autem dico vobis — este Eu é o que
diz a todos, sem distinção nem exceção
de pessoas ou dignidades: Diligite
inimicos vestros, para que entendam os reis da terra e de terra: Et
nunc, reges, intelligite: erudimini qui judicatis terram — que este e qualquer outro preceito de Deus o devem receber não pesadamente,
senão com alegria, e observar com temor e
tremor: Servite Domino in timore,
et exultate ei cum tremore, sob pena de que, se eles não amarem os inimigos, Deus os terá por inimigos
a eles, e os destruirá, e perecerão como tais: Ne quandeo irascatur Dominus, et
pereatis de via justa.
Nem faz contra isto o exemplo
alegado de Davi, antes persuade o contrário, porque Davi era soldado de Deus e capitão general de seus
exércitos, e aqueles, a quem chamava seus inimigos, eram os inimigos de Deus, observando tal diferença
e distinção entre uns e outros, que aos inimigos seus amava e fazia bem, e só aos de Deus perseguia
e fazia cruel guerra, tão insigne vingador das injúrias divinas, como perdoador das próprias. Assim
perdoou tantas vezes a Saul, e desejou perdoar a Absalão, e sentiu e lamentou sua morte, como
a de Abner, alegando sempre a Deus que a nenhum seu inimigo dera mal por mal: Si reddidi retribuentibus mihi mala,
sendo eles tão ingratos que lhe davam
mal por bem: Retribuebant mihi mala pro
bonisti. E se mandou matar a Joab e a Semei, foi por justiça, como rei, e não por
vingança, guardando estas duas sentenças e execuções para o testamento e para a hora da morte, para que
se visse que o fazia por escrúpulo, e não por ódio. Este era o coração de Davi, e, por isso, coração
verdadeiramente real e digno de que Deus tirasse a coroa da cabeça de Saul para lha pôr na sua, como o
mesmo Saul confessou.
Andava Saul pelos montes à caça
de Davi para lhe tirar a vida, quando acaso entrou só em uma gruta onde o mesmo Davi estava escondido com
os poucos que seguiam sua fortuna. Todos lhe
disseram e instaram que lograsse a ocasião que Deus lhe tinha metido nas
mãos, e, com a morte de Saul, se
livrasse de uma vez das suas perseguições. Mas ele, contentando-se com lhe
cortar um retalho da roupa para amostra
da sua fidelidade, depois que Saul saiu da gruta apareceu subitamente
diante dele, e mostrando-lhe aquele
testemunho tão claro do perigo em que estivera e da vida que lhe não quisera tirar nem consentir que lha tirassem,
prostrado a seus pés lhe disse desta sorte: — Eis aqui, ó Rei de Israel, a quem andas buscando pelos
desertos para o matar. Eis aqui aquele bichinho vil da terra, à caça do qual sai da sua corte em
pessoa um tão grande monarca. Eis aqui como te merece que o persigas com tão mortal ódio, e o faças
andar desterrado e fugitivo de ti por estes montes. -Ficou assombrado do que via e do que ouvia Saul, e,
compungido, e com as lágrimas nos olhos, lhe disse: Agora conheço, Davi — e não só lhe chamou
Davi, senão filho — agora conheço, filho, e sei
certissimamente que hás de reinar, e que deste mesmo Reino de Israel,
que eu chamo meu, hás de ser tu o rei. Nunc scio quod certissime regnaturus sis, et
habiturus in manu tua regnum Israel (1 Rs. 24, 21). O que só te peço, é que me prometas e
jures diante de Deus que a mesma piedade que usaste comigo, a terás da minha
casa e descendência, e não extinguirás do mundo o meu nome: Jura mihi ne
deleas semen meum post me, neque auferas nomem meum de domo patris mei.
Tão certa e infalivelmente conheceu e
creu Saul que havia Davi de ser rei. Mas aonde tirou esta certeza, que chama certíssima, e não antes, senão agora e
neste mesmo caso: Nunc scio quod
certissime regnaturus sis?
Abulense, e todos os outros
expositores dizem que o inferiu Saul da generosidade de ânimo com que, sendo tão capital inimigo de Davi, ele
lhe perdoara. Mas não é necessário que o digam
expositores, porque o mesmo Saul o ponderou e o disse. Notai todas as
palavras: Tu enim tribuisti mihi bona; ego autem reddidi tibi mala
(Ibid. 18): Porque tu, Davi, deste-me bem por mal, sendo que eu sempre te dei mal por bem. Et tu indicasti hodie quae feceris mihi
bona: quomodo tradiderit me Dominus in
manum tuam, et non occideris me (Ibid. 19): E bem mostraste e provaste hoje
isto que digo, pois, entregando-me Deus
nas tuas mãos, e podendo-me matar, me deste a vida. Quis enim, cum invenerit
inimicum suum, dimittet eum in via bona: Por que que homem há que, tendo
seu inimigo debaixo da lança, lhe perdoe
e o deixe ir em paz? Sed Dominus reddat
tibi vicissitudinem hanc pro eo quod
hodie operatus es in me (Ibid. 20): Mas eu confio e estou certo — concluiu
Saul — que Deus não há de deixar sem
prêmio esta diferença que hoje usaste comigo. E como? Tirando-me a mim a coroa da cabeça, e pondo-a na tua: Quia scio quod certissime regnaturus sis.
Assim entendeu Saul, posto que obrava o
contrário, que um homem que, tendo na sua mão a vingança, não sabia vingar agravos, um homem que, podendo fazer
mal a seu maior inimigo, lhe fazia os maiores bens, um homem que pagava o ódio com amor, e a
morte, que lhe queriam dar, com a vida, um tal homem como este, não o tinha Deus dotado de um
coração tão generoso e tão real, senão porque o queria e havia de fazer rei: Quod regnaturus sis.
Reparem muito os reis no que
inferiu com tanta certeza este rei, e reparem também no que eu agora quero inferir, não com menor certeza. Assim
como é certo que Deus deu a coroa a Davi porque se não vingou de Saul, assim digo, e tenho por certo
que, se Davi pelo contrário se vingara, ainda que Deus o tivesse destinado para a coroa, lha não havia
de dar. Caso notável é que repartindo Jacó na hora da morte a bênção que tocava ou havia de tocar a
cada um de seus filhos, a do cetro e coroa de Israel a desse e colocasse no quarto. Este quarto
filho era então Judas, do qual descenderam os Davis, os Salomões e outros reis do reino por isso chamado
de Judá, e do qual também descendeu Cristo. Mas, por que razão? O reino e a primeira bênção,
segundo o uso dos patriarcas e conforme a lei natural que ainda hoje se observa, pertence ao
primogênito, que era Rúben. E, posto que Rúben perdeu este direito e se fez indigno da coroa pela
gravíssima injúria que cometeu contra seu pai, no incesto que todos sabem, a Rúben seguia-se, com o mesmo
direito, Simeão, que era o filho segundo, e a Simeão se seguia Levi, que era o terceiro. Pois, por
que não deu Jacó a bênção ou investidura do reino nem a Simeão, nem a Levi, senão a Judas, e,
deixando deserdados daquele grande e supremo morgado ao segundo e ao terceiro filho, o assentou e
instituiu no quarto?
Também aqui não havemos mister
doutores, porque na bênção de ambos os deserdados dá o mesmo texto e o mesmo Jacó a causa: Simeon et Levi fratres, vasa iniquitatis
bellantia. In consilium
eorum non veniat anima mea, et in caetu illorum non sit gloria mea, quia
in furore suo occiderunt virum, et in
voluntate sua suffoderunt murum. Maledictus furor eorum, quia pertinax,
et indignatio eorum, quia durat.
Simeão e Levi foram aqueles dois irmãos que, para vingar a injúria que o príncipe Siquém tinha feito à sua irmã,
mataram ao mesmo Siquém e a todos os siquemistas, e lhes destruíram e assolaram
a cidade. E homens tão duros de coração, homens tão furiosos, pertinazes e vingativos — posto que a causa parecesse
justificada — não só não são dignos de reinar, nem de ter o supremo domínio sobre os outros homens, mas
merecem justissimamente que, se por outra qualquer via lhes pertence o cetro e a coroa, de
nenhum modo, e em nenhum tempo a logrem, antes sejam para sempre privados e deserdados do reino, como
eu, com a minha maldição, em nome de Deus os
deserdo. — Isto disse e fez Jacó, deserdando e privando do reino aos
dois filhos, a quem de direito
pertencia, só por serem vingativos e não perdoarem agravos. E o mesmo
sucederia sem dúvida a Davi, se ele,
como perdão de Saul, lhe não tirara da cabeça a coroa de que, por inimigo, era
indigno, e a pusera na sua.
De tão longe ia Deus estabelecendo
e fundando já o preceito que hoje havia de promulgar por sua própria boca, ensinando, com tão graves e
temerosas experiências, aos reis que quando dissesse: Ego dico vobis, também
falava com eles. E notem os que de presente reinam que com muito maior
razão lho diz hoje Cristo do que o
disse antigamente, porque aquele Eu: Ego
autem, ainda então não era o que
hoje é. Era Deus, era supremo Legislador, era Rei dos Reis, mas ainda não era
Rei que tivesse pedido perdão pelos que
o crucificavam, nem Rei que tivesse tomado por título Rei dos que lhe tiraram a vida. Lendo Santo Agostinho no
título da cruz Rex Judaeorum (Jo.
19,19), admira-se muito de que Cristo
tomasse título de Rei dos judeus, sendo Rei de todo o mundo e de todas as
nações dele. Nos quatro braços da mesma
cruz se significava o domínio que tinha o Rei crucificado sobre as quatro partes do mundo; e nas letras hebraicas,
gregas e latinas, que eram as mais universais, o senhorio e império de todas as nações. Pois, se Cristo
era Rei de todo o mundo e de todos os homens, por que toma só por título o de Rei dos judeus?
Porque, ainda que era Rei de todos, e morrera por todos, só os judeus foram aqueles que lhe tiraram a vida,
e onde foi maior o amor dos inimigos, ali assentou melhor o título de Rei. Rei de todos,
Redentor de todos, e o que perdoou os pecados de todos; mas dos judeus, de quem recebeu os maiores
agravos, dos judeus que lhe tiveram o maior ódio, dos judeus que mais que todos foram seus inimigos,
desses particularmente Rei: Rex Judaeorum.
Para que acabem de entender os que são e
se chamam reis, que não só pelo preceito que lhes pus, senão pelo exemplo que lhes dei, e para perpetuarem os
seus reinos, como eu eternizei o meu, todos sem
exceção, são obrigados ao amor dos inimigos, e todos a fazer bem aos que
lhes tiverem ódio: Diligite inimicos vestros, et benefacite his qui
oderunt vos.
CAPÍTULO IV
Declarado o dico vobis, e provado como também aos reis compreende o preceito de
amar os inimigos, segue-se a declaração
do diligite, e o modo com que os hão
de amar, cuja prática, se for como se
usa, não tem menos dificuldade nem menor perigo. Mas, antes que cheguemos a
este ponto, é necessário averiguar outro,
e saber e distinguir quem são os inimigos dos reis. Perguntando um doutor da lei a Cristo, Senhor nosso, que havia de
fazer para se salvar, respondeu o Senhor que amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a si
mesmo, fazendo-lhe primeiro repetir o texto: Diliges Dominum Deum tuum ex
toto corde tuo, et proximum tuum sicut te ipsum. Porém o doutor, para se justificar, como diz S. Lucas: Volens justificare seipsum , desta mesma
resposta de Cristo levantou outra
questão, dizendo: Et quis est meus
proximus (Lc. 10,29)? Bem está que seja eu obrigado a amar a meu próximo,
mas esse meu próximo, quem é? O mesmo digo eu, ou me podem dizer e perguntar a mim. Bem provado está que
os reis têm obrigação de amar a seus inimigos; mas esses inimigos dos reis, quem são? A resposta
não é fácil, antes tal e de tão mau gosto, que se eu a der, como devo, também pode granjear
inimigos.
Começando pelos de mais longe,
parece que os inimigos dos reis são os que lhes impugnam o reino, os que lhes sitiam as cidades, os que
lhes infestam os mares, os que lhes roubam as conquistas, e os outros, que por qualquer modo lhes fazem
guerra. Mas estes não são os de que mais propriamente fala Cristo. Os que nos fazem guerra -posto
que a nossa língua equivocamente lhes dê o mesmo nome — não se chamam propriamente inimicos, chamam-se hostes. Inimicos são os inimigos por
inimizade e ódio, como costumam ser os
de dentro: hostes são os inimigos por hostilidade e por guerra, que só podem ser os estranhos e os de fora. Isto posto
Tertuliano teve para si que nenhum cristão podia ser hoste: Christianus
nullius est hostis. E, persistindo coerentemente neste seu parecer, chegou
a afirmar que nenhum rei podia ser
cristão, nem algum homem, que fosse cristão, podia ser rei: Si christiani Caesares esse possent, aut Caesares
christiani. E que fundamento teve ou podia ter este antiquíssimo autor, e de muito são e profundo juízo em
outras matérias — ao qual S. Cipriano chamava o Mestre — para ensinar uma doutrina tão alheia do que
hoje se pratica em toda a cristandade? O fundamento que teve foi o exemplo da humildade e
paciência de Cristo, persuadindo-se que as armas do cristão não podia ser a espada, que o mesmo Senhor
mandara embainhar a S. Pedro, senão a mansidão e a paciência. E como via, pelo contrário, que à
obrigação e oficio dos reis e imperadores eram
necessárias as armas e os exércitos para defender seus estados e vingar
as injúrias que lhes fizessem ou
intentassem fazer seus inimigos, esta mesma vingança dos inimigos julgou que os
excluía da lei do Evangelho e os fazia
incapazes de ser cristãos, definindo como por conclusão e vidente que todo aquele que por este modo fizesse mal a seus
inimigos, e, por conseqüência, os não amasse, se fosse rei, não podia ser cristão, e, se quisesse
ser cristão, havia de deixar de ser rei.
Este erro de Tertuliano — que
ainda hoje seguem os hereges anabatistas — se refutou e desfez publicamente daí a cento e vinte anos, com a
conversão e batismo do imperador Constantino Magno, que foi o primeiro príncipe cristão que houve
no mundo, o qual, contudo, sendo convertido pelo mesmo São Pedro, nem por isso desistiu da
guerra e empresas militares, armando, como dantes, exércitos, dando batalhas, alcançando
vitórias, conquistando cidades e províncias. Nem daqui se segue que ele ou outro imperador e rei
cristão pudesse ter ódio a seus inimigos e fazer-lhes mal, porque — como bem supunha Tertuliano nesta
parte — seria obrar direitamente contra o preceito expresso de Cristo, que manda amar e fazer
bem a todos e quaisquer inimigos: Diligite
inimicos vestros, et benefacite his qui
oderunt vos.
Mas, se esses reis cristãos, na
invasão das terras de seus inimigos, talam os campos, arrasam castelos, escalam cidades e derramam tanto
sangue, matando homens a milhares, como podem fazer tudo isto e amar juntamente aos mesmos seus
inimigos? Eu o direi, e respondo a uma pergunta com outra. Quando o legítimo juiz, segundo o
merecimento dos autos, condena à morte e à confiscação de bens um réu, e manda
executar nele a sentença, pode fazer isto sem ódio? É certo que não só sem ódio, senão amando muito ao mesmo homem, e
não procedendo àquele rigor senão muito a seu pesar, e obrigado somente das leis da justiça, de
que é ministro. Pois, do mesmo modo obra o rei cristão na guerra que faz a seus inimigos, porque naqueles
casos ele e só ele é o legítimo juiz. Qual cuidais que é a maior dignidade e autoridade do rei?
Porventura o domínio e superioridade suprema sobre tantas cidades e povos, de quantos se compõe um
reino ou muitos reinos? Não. A maior autoridade e soberania dos reis é que nas controvérsias
com outros príncipes estranhos eles sejam, e Deus fiasse deles o serem, juízes em causa própria. E
como os reis são juízes, e juízes postos por Deus em seu lugar, assim como o juiz inferior pode
sentenciar o réu a perdimento da vida e da fazenda, sem ódio, antes com amor, assim o rei, na guerra justa
e julgada por sua própria autoridade, pode mandar matar e despojar seus inimigos, amando-os
juntamente, e observando o preceito de os amar: Diligite inimicos vestros.
Isto quanto à primeira parte do
preceito está claro; mas quanto à segunda ainda parece dificultoso, porque Cristo não só manda que amemos aos
inimigos, senão que lhes façamos bem: Et
benefacite his qui oderunt vos.
Pois, se o rei cristão, com a guerra e hostilidades dela, faz a seus inimigos o
maior mal desta vida, antes os dois
maiores males, que é despojá-los dos bens que possuem e da mesma vida se resistirem, como pode estar com isto o não
lhes fazer mal — que não basta — mas o fazer-lhes positivamente bem, que é o que manda o
preceito: Diligite, et benefacite?
Também a esta pergunta respondo com
outra dentro no mesmo exemplo. Quando o juiz, entre dois litigantes, condena o
injusto possuidor, e o executa com
violência, privando-o do que injustamente possuía, faz-lhe bem ou mal? Não há dúvida que lhe não faz mal, senão bem,
e o maior de todos os bens. Por quê? Porque o obriga a restituir por força o que nunca havia de
restituir por vontade, e por meio desta restituição, sem a qual se não podia salvar, o põe em estado de
salvação. Tal é o bem e grandíssimo bem que os reis cristãos fazem aos outros príncipes seus
inimigos, quando, por meio da guerra justa e poderosa, recuperam deles as terras, cidades ou reinos
que eles ou seus maiores lhes tinham usurpado. Porque, obrigando-os por força a restituir o alheio,
os desobrigam da restituição que nunca haviam de fazer de grado, sendo, nestes casos, mais venturosos
os despojados e vencidos do que cuidam e festejam os vencedores. A espada antigamente era a
insígnia do juiz, por onde disse São Paulo: Non
enim sine causa gladium portat; e
como os juízes inferiores não têm jurisdição nem alçada sobre os pleitos dos
reis, o que eles não podem com a espada da justiça, fazem os reis com a justiça
da espada. É verdade que derramam
sangue, e muito sangue; mas, assim como o médico o tira sem querer mal nem fazer mal, assim o podem fazer os reis, não
por ódio, senão com boa vontade, e não para matar o corpo mal afecto, senão para o descarregar do
humor que o mata, e o reduzir à saúde. Esta é a reta intenção com que deve proceder na guerra todo
o rei justo, por duas razões: a primeira, para obedecer ao preceito de Deus, que é o Senhor dos
exércitos; a segunda, para o fazer propício a suas armas que, movidas por ódio ou vingança, nunca podem ter
bom sucesso. Assim o entendeu e deixou escrito
aquele tão grande rei como soldado, Davi: Si reddidi retribuentibus mihi mala, decidam merito ab inimicis meis inanis.
CAPÍTULO V
Temos visto e distinguido quais são
os inimigos que se chamam hostes, e declarado em todo o rigor da Teologia como se podem amar e devem amar,
ainda quando se lhes faz ou faça guerra — matéria muito própria do tempo presente, e não menos
necessária a purificar a emulação nacional, que entre gente de pouca nobreza e entendimento passa
talvez a ser ódio. — Agora, recolhendo-nos dos muros ou das raias a dentro, segue-se ver quais
sejam os outros que propriamente se chamam inimicos: Diligite
inimicos vestros. E, suposto que não falamos de inimigos em geral, senão
dos inimigos dos reis, dentro dos
limites da nossa questão, uma coisa entendo neste ponto, e outra parece que se
não pode entender. Entendo que os inimigos
dos reis, neste caso, não podem ser outros senão os vassalos; mas não entendo, nem sei como se pode
entender nem imaginar — ao menos entre nós — que haja homem tão indigno e tão vil que mereça tão
abominável nome. Se o primeiro e maior amor dos
vassalos é o do seu rei; se os mortos suspiravam por este nome, e nele
se sustentam os vivos; se, para o
sustentar, defender e conservar, todo o outro amor já não é amor,
desprezando-se a fazenda, o sangue, a
vida, a mulher, os filhos, como pode ser que haja ainda, ou possa haver, não
digo homens, senão monstros que sejam e
se possam chamar inimigos dos reis? Eu não direi quais são, porque o não sei entender, como já disse; mas
referirei e me referirei somente aos que os nomeiam, e são testemunhas todas legais, e a quem a opinião
do mundo dá grande crédito.
Entre os políticos, Xenofonte,
Tácito, Cassiodoro; entre os históricos, Tito Lívio, Suetônio, Quinto Cúrcio; entre os filósofos, Sêneca, Plutarco,
Severino Boécio; entre os Santos Padres, Jerônimo, Crisóstomo, Gregório, Agostinho, Bernardo —
deixando os demais -todos, só com discrepância no encarecimento, dizem e
ensinam concordemente que os inimigos dos reis, e os maiores inimigos, são os aduladores. E, suposto que sejam os
aduladores, como logo se provará largamente, onde vivem, ou onde estão
encastelados estes inimigos dos reis? É certo que não são os que lavram os
campos, nem os que aram os mares, nem os
que presidiam as torres, nem os que pleiteiam nos tribunais, nem os que comerciam nas praças, nem menos todos os
outros que, com o trabalho de suas mãos, servem à república e só conhecem de palácio as
paredes, e as adoram de fora. Logo, se não são os que somente as vêem de fora, devem de ser sem dúvida os
que as freqüentam de dentro, verificando-se também dos reis o que Cristo pronunciou geralmente de
todos os homens: Inimici hominis
domestici ejus. Os domésticos, os
familiares, os que só são admitidos a ouvir e ser ouvidos, estes são os
aduladores e por isso, os inimigos.
Assim comenta o texto de Cristo S. Bernardino de Sena, declarando que a razão
de serem inimigos os domésticos, é por
serem aduladores, e que esta pensão ou desgraça é a mais perniciosa dos príncipes: Nihil principi pernitiosius esse potest,
quam domesticus inimicus, hujusmodi
autem sunt adulatores.
S. Gregório Magno que, depois de
grandes cargos políticos nas duas maiores cortes, de Roma e Constantinopla, foi cabeça suprema de toda a
Igreja, e por si mesmo e seu juízo, ciência e experiência, uma das mais eminentes cabeças do mundo, não
só diz que os aduladores secretos são públicos
inimigos dos reis, mas dá por regra e cautela aos mesmos reis, que
quando virem que são maiores os louvores
com que forem adulados deles, tanto os reconheçam por maiores inimigos, e
creiam que o são: Tanto majores hostes credendi sunt, quanto magis laudibus adulantur.
E se isto não vêem claramente todos os
reis, é porque é tal o doce veneno da lisonja que, entrando pelos ouvidos,
lhes cega também os olhos. Por isso S.
Pedro Damião, tão prático e desenganado das cortes, que por fugir muito longe delas, renunciou à púrpura, a que
compararia os aduladores de palácio? Comparou-os às andorinhas de Tobias, as quais, fazendo o
ninho na sua casa, lhe pagaram a hospedagem com lhe tirar a vista. Tais — diz ele — são os aduladores: Quidum adulationis oleo audientis caput
impinguant, interiores oculos, ne solida
lucefruantur, excaecant. Santo
Agostinho, autor em toda a matéria primaz, com doutrina tirada da escolha de
el-rei Davi, ensina que há dois gêneros
de inimigo: uns que perseguem, outros que adulam; mas que mais se há de temer a língua do adulador que as mãos do
perseguidor: Duo sunt genere enim eorum,
persequentium et adulantium, sed plus
persequitur lingua adulatoris, quam manus persecutoris. A mão do perseguidor arma-se com a espada, com a
lança, com a seta, com o veneno, e com todos os outros instrumentos de ferir e matar, que a fúria e
violência do fogo acrescentou à dureza do ferro; e, contudo, diz o maior doutor da Igreja que
mais se há de temer a língua desarmada do adulador, que todas as armas do perseguidor e inimigo.
Mas, porque dirão os palacianos — como dizem aos da nossa profissão — que falou Santo Agostinho
como teólogo e como santo, e não como político,
ponhamos-lhe de um lado a Pitágoras e do outro a Sócrates, que nem foram
teólogos, nem santos, mas ambos
famosíssimos mestres da república mais política, qual foi a de Atenas. Que diz
Pitágoras? Gaude potius arguentibus quam adulantibus, et tanquam deteriores
inimicis adulatores aversare: Gosta
antes dos que te arguem que dos que te adulam, e tem maior aversão aos
aduladores que aos inimigos, porque são
piores. — E Sócrates, que diz? Adulatorum
benevolentiae tanquam hostibus dato terga,
fuge infortunium: A benevolência dos aduladores dá-lhe logo as
costas, e foge deles como de inimigos,
por que te não suceda algum infortúnio dos que a adulação traz sempre consigo.
— Creiam ao menos a Sócrates e a
Pitágoras os que não quiserem dar crédito a Santo Agostinho.
Sinésio, aquele insigne varão que
compôs os livros De Regno e, depois de governar
prudentissimamente o mundo, com igual zelo e santidade governou e
ilustrou a Igreja, escrevendo ao
imperador Arcádio, o conselho que lhe dá sobre todos, exortando a que o
observe como primeiro e maior cuidado, é
que não consinta junto a si aduladores, e se guarde e vigie deles, porque, por
mais cercado que esteja de guardas o seu
palácio, a adulação se sabe introduzir sutilissimamente sem ser sentida, e bastará ela só para primeiro o
sujeitar e dominar a ele, e depois o despojar do império: Sola quippe alulatio nec
quicquam vigilantibus satellitibus in ima usque conclavia sensim penetrat,
et imperium depraedatur. Coisa
dificultosa parece que, tendo Arcádio presidiado o seu império com as legiões romanas, e não havendo então inimigo
estranho que com poderosos exércitos lhe fizesse guerra, houvesse de bastar poucos homens
desarmados para, dentro em sua própria casa, destruírem o imperador e mais o império. Mas tão oculta e
poderosa guerra é a que faz aos príncipes a adulação, e tão perniciosos inimigos, mais que todos, são
os aduladores. Ouçam os políticos o texto da sua Bíblia: Adulatio
perpetuum malum regum, quorum opes saepius assentatio, quam hostis evertit:
A adulação é aquele perpétuo mal ou
achaque mortal dos reis, cuja grandeza, opulência e impérios muitas mais vezes destruiu a lisonja dos aduladores que
as armas dos inimigos.
Comentando este texto de Cornélio
Tácito outro Cornélio de maior erudição, de melhor juízo e de mais largas experiências que ele, confirma a
verdade do seu dito com a falta da verdade, de que só carecem os que são senhores de tudo, e com os
exemplos de Nero, César e Roboão, todos
desastradamente perdidos, não por inimigos de fora, mas pelos aduladores
domésticos: Et quidem reges abundant rebus omnibus in aula, excepta
veritate. Quid Neronem castissime educatum crudelem fecit? Adulatio. Quid Caesarem contra patriam rebellare fecit? Adulatio. Quid
Roboam tyrannum reddit? Adulatio. Nem a Roboão aproveitou ter
por pai a Salomão, nem a Nero ter por mestre a
Sêneca, nem a César ter-se esmerado nele a natureza em o dotar de uns
espíritos tão generosos e
verdadeiramente reais, para que a adulação de seus próprios familiares a
um não corrompessem as virtudes, a outro
não despojassem do reino, a outro não tirasse a vida, e a todos não destruísse
tão infausta e miseravelmente, como
todos sabem. Esta mesma conclusão inferiram sobre a lição de todas as histórias do mundo aqueles dois grandes historiadores,
que em sentença de Lípsio, depois de
Salústio e Lívio, merecem os dois seguintes lugares: entre os latinos
Cúrcio, e entre os espanhóis Mariana. Regnum saepius ab assentatoribus quam ab
hostibus everti solet — diz Cúrcio na história de Alexandre. — Vide hic ut magis adulatio, quam hostis, reges et principes perdat —
diz Mariana no Comentário de Oséias. —
De sorte que tudo o que se sabe por vista ou por memória dos períodos e catástrofes dos reinos e dos fins
mal-afortunados dos reis e causas deles, as menos vezes se deve atribuir aos inimigos de fora, que são os que
só se temem, senão a quem? Aos lisonjeiros e aduladores de dentro, aos que têm
as entradas francas e as chaves tão douradas como as línguas, aos que participam os segredos e arcanos da
monarquia, e os que só são admitidos a dizer e a ser ouvidos; enfim, aos inimigos interiores e domésticos,
que são os que mais se deveram temer.
CAPÍTULO VI
Antes, porém, que refira o que
dizemos demais — pois somente sou relator neste ponto — para que se ouça com maior atenção e se dê inteiro
crédito ao que eles disserem, é necessário sossegar primeiro um escrúpulo ou suspensão com que estou vendo
que este nome de inimigo dos reis, ou se reputa por injusta censura, ou, quando menos, por
demasiado encarecimento. Todas as pessoas que os reis admitem assistência mais interior de palácio,
além das qualidades e talentos que os fazem dignos de tão soberana eleição, ninguém pode duvidar
que o seu maior cuidado e desvelo é servir e agradar ao seu príncipe, e que eles são os que mais lhes
desejam a vida e procuram a saúde; eles os que mais solicitam o bem, a conservação e aumento do
reino; eles os que, de dia e de noite, sem descansar, mais se empregam e mais trabalham no que mais
que tudo importa. E, posto que as suas palavras — como pede o respeito e reverência real -se
pronunciem vestidas ou adornadas com algum daqueles enfeites que popularmente se chamam lisonjas,
nem por isso desmerece o afeto de seus corações o nome de amigos, e verdadeiros amigos: com que
vem a ser afronta, não só injusta e caluniosa, mas indigna de se dizer nem ouvir, que sujeitos
tão ilustres e tão leais sejam chamados inimigos dos reis, e se lhes aplique no texto de Cristo a censura
de inimicos vestros.
Tudo isto digo eu também, e
geralmente assim, é. Mas, porque nesta regra, como em todas, pode haver alguma exceção, ouçamos sobre ela o
mesmo legislador, que é o melhor intérprete das suas leis. E assim o mesmo Cristo que diz Diligite inimicos vestros, será também o
que nos declare estes inimigos quem são,
e como são, e como não podem deixar de o ser. Nemo potest duobus dominis
servire (Mt. 6,24), diz Cristo: Ninguém pode servir a dois senhores.
— E por quê? Porque, se tiver amor a um,
há de ter ódio ao outro: Aut enim unum
odio habebit, et alterum diliget. Suposta esta definição infalível da suma verdade, pergunto
agora: e os que servem aos reis em palácio, a quantos senhores servem? Se alguns se não quiserem
lisonjear também a si mesmos, é força que confessem que servem a dois senhores: ao senhor rei, e
ao senhor interesse próprio. Logo, segue-se que, se amam a um, têm ódio a outro, e que se de um destes
senhores são amigos, do outro são inimigos: Aut
enim unum odio habebit, et alterum
diliget. Notai que não diz Cristo: Unum
diliget et alterum non diliget, senão:
Unum odio habebit, et alterum diliget — porque se não pode servir e amar a
um, sem ser inimigo do outro. E, se em
algum dos que servem ao rei se provasse que ama mais o seu interesse que o
rei, provado estava que este tal é
inimigo do rei.
O Papa chama-se Servus Servorum, é, creio eu, que a
muitos reis se pudera estender o mesmo título
sem ofensa da Sé Apostólica. Por que há tantos que queiram servir de
perto aos reis? Por que querem que também
os reis os sirvam a eles? Não digo tanto. Servem aos reis porque lhes serve o
servi-los. Arrima-se a hera à torre, não
por amor da torre, senão por amor de si, não porque queira coroar a torre — que as coroas de hera não são as dos reis —
mas porque a hera não pode crescer sem arrimo, e ela quer crescer e subir. Por isso vemos tão
subidos e tão crescidos os que talvez, antes de chegarem a este arrimo, mal se levantavam da terra. Pelo
contrário, vemos também que muitos se retiraram do serviço do rei, porque lhe negaram ou
dilataram a subida. Logo, ao senhor interesse é que serviam, e não ao rei. Sete anos de pastor servira Jacó
a Labão, pai de Raquel, mas não servia a ele: servia a ela. E por que servia Jacó a Raquel, e não a
Labão? Porque Raquel era a que amava. Porque amava a Raquel, por isso servia a Labão, e o amor não
está no por isto, está no porquê. Porque amam o seu interesse, por isso servem ao rei. Indigna
coisa, por certo, que seja o rei o Labão, quando o vil interesse é a Raquel. Mas ouçamos a outro
melhor autor.
Stellio manibus nititur, et moratur in aedibus regis (Prov. 30,28):
A aranha — diz Salomão — não tem pés, e,
sustentando-se sobre as mãos, mora nos palácios dos reis. — Bom fora que
moraram nos palácios dos reis e tiveram
neles grande lugar os que só têm mãos. Mas a aranha não tem pés, e tem pequena cabeça, e sabe muito bem o seu conto.
Sobe-se mão ante mão a um canto dessas abóbadas
douradas, e a primeira coisa que faz é desentranhar-se toda em finezas.
Com estes fios tão finos, que ao
princípio mal se divisam, lança suas linhas, arma seus teares, e toda a fábrica
se vem a rematar em uma rede para pescar
e comer. Tais são — diz o rei que mais soube — as aranhas de palácio. Quem vir ao princípio as finezas com que todos se
desfazem e desentranham em zelo do serviço do príncipe, parece que o amor do mesmo príncipe é o que
unicamente os trouxe ali; mas, depois que armaram os teares como tecedeiras, e as redes como
pescadores, lago se descobre que toda a teia, por mais fina que parecesse, era urdida e endereçada a
pescar, e não a pescar moscas. E se não, veja-se o que todos pescam: as melhores comendas, os títulos, as
presidências, os senhorios, e, talvez, diz o mesmo Salomão, que sendo a malha tão miúda, pescam
o mesmo dono da casa. Homo, qui blandis
fictis que sermonibus loquitur amico
suo, recte expandit gressibus ejus, As palavras brandas do adulador são redes que ele arma para tomar nelas ao
mesmo adulado. — E este é o artifício sem arte dos aduladores reais. Servem lisonjeiramente aos
príncipes para os ganhar ou lhes ganhar a graça, e para se servirem da mesma graça para os fins que
só pretendem de seus próprios interesses. E como, por declaração do mesmo legislador do nosso
texto, ninguém pode servir a dois senhores sem amar a um e ser inimigo do outro, provado fica, sem
réplica, e concluído, que quantos forem em palácio os amigos de seus interesses, tantos são os
inimigos dos reis.
CAPÍTULO VII
E se eles disserem que são isto
discursos, também eu folgara muito que não só foram discursos, senão muito mal fundados e muito falsos; mas
no nosso mesmo texto o benefacere é
prova do diligere: Diligite, et
benefacite. Vejamos, pois, o bem ou mal que os aduladores fazem aos reis, e
logo se verá claramente se os amam ou
são seus inimigos. A maior fatalidade dos reis é nascerem todos em signo de ser louvados. Lançou Jacó a bênção a
Judas, seu quarto filho, e as palavras por onde
começou foram estas: Juda, te
laudabunt fratres tui (Gên. 49,8): Judas, a ti louvarão teus irmãos. — Os irmãos eram onze, e muitos deles tiveram
muito que louvar; pelo contrário, Judas não deixou de fazer muitas ações dignas de ser vituperadas.
Pois, se nos outros houve também coisas merecedoras de louvor, e em Judas merecedoras de vitupério,
por que se dá por bênção só a Judas que ele será o louvado, e que todos o louvarão: Te laudabunt? Porque Judas, como vimos
ao princípio, ainda que era o filho
quarto, foi o que levou o cetro e a coroa, e em quem se fundou o direito
hereditário da casa e sucessão real, e é
bênção ou fatalidade dos reis que tudo o que fizerem ou quiserem, ainda que não
seja louvável, seja louvado: Te laudabunt.
Se o rei, como Saul, tomar para si os despojos de Amalec consagrados a Deus, e os aplicar a usos
profanos: Te laudabunt. Se o rei, como Davi, por uma simples informação suspeitosa, singular e sem nenhuma
legalidade, privar do patrimônio a Mefiboset, e o der ao seu criado Siba: Te laudabunt. Se o rei, como Salomão, para edificar soberba e
deliciosamente o bom ou mau retiro do
Líbano, derrubar as casas dos poucos poderosos, e queimar as choupanas dos miseráveis: Te laudabunt. Se o rei, como
Roboão, sobre o jugo pesadíssimo e intolerável de seu pai, acrescentar tributos sobre tributos,
opressões sobre opressões, e rigores sobre rigores, nadando todo o reino em rios de lágrimas: Te laudabunt. E quem são os panegiristas
destes louvores? Não são os que padecem
o dilúvio fora da arca, não são os que moram e morrem fora das paredes de
palácio, senão os que vivem e reinam de
portas a dentro. Estes são os aduladores, que louvam o que não deveram louvar, e aplaudem o que não deveram
aplaudir; e ajudam o que deveram estorvar, atentos somente a não desgostar ou entristecer o agrado em que
têm fundado seus interesses, sem atenção ao crédito e à fama, nem talvez à consciência dos mesmos reis,
como verdadeiros inimigos: In malitia
sua laetificaverunt regem.
Eu bem creio do bom entendimento
de alguns, que no mesmo tempo em que louvam e aplaudem com a boca, gemem e choram com o coração. Nem
eles deixam de o confessar assim, onde não é
perigoso o sigilo. Mas, como servem mais ao próprio interesse que ao
rei, esta covarde dependência lhes
equivoca a dor com a alegria, e o coração com a língua. Caso verdadeiramente
lamentável e trágico, mas já
representado no teatro de Roma. Depois que o imperador Nero se esqueceu de si,
e da temperança e compostura real em que
fora criado, fez tão pouco caso da própria autoridade e decência, que, entre os citaredos e estriões,
saía no teatro público a competir com eles em todas as baixezas ridículas daquelas artes, próprias
de gente vil e infame. A este espetáculo ou ludíbrio da maior fortuna, assistiam todas as ordens,
senatória, consular e eqüestre; assistiam os centuriões, os tribunos, e toda a flor das legiões romanas;
assistiam principalmente todos os familiares do palácio imperial, e, entre eles, diz com grande
ponderação Tácito: Et maerens Burrhus, ac
laudans. Era Afrânio Burro homem de
grave e maduro juízo, mestre ou aio que tinha sido, com Sêneca, do mesmo Nero. E, quando todos os outros faziam
grandes aplausos às mudanças, saltos e gestos do imperador citaredo, como se foram outros tantos
triunfos, só Afrânio estava triste, mas também louvava como os demais: Et
maerens Burrhus, ac laudans. Pois, homem ou animal — que te não quero
chamar com o nome próprio, por não
parecer que o faço apelativo — se conheces a indecência, a desautoridade e
a afronta do teu príncipe, se estás
engolindo as lágrimas e afogando os gemidos, por que ao menos não emudeces e calas, para que veja Nero na tua
tristeza a tua dor, e leia no teu silêncio o teu voto? Mas no mesmo tempo em que estás chorando o que
condenas, hás de louvar o que choras: Et
maerens Burrhus, ac laudans? Sim,
que tais são os aduladores de palácio, ainda os de maiores obrigações e de menos corrupto juízo.
Uns autores comparam estes
aduladores ao camaleão que, não tendo cor certa nem própria, se reveste e pinta de todas as cores, quaisquer
que sejam as do objeto vizinho. Outros os comparam à sombra, que não tem outra ação, figura ou
movimento que a do corpo interposto à luz, do qual nunca se aparta, e sempre, e para qualquer parte o
segue. Outros o comparam ao espelho, retrato natural e recíproco de quem nele se vê, porque, se lhe
pondes os olhos, olha para vós, se rides, ri, se chorais, chora, lágrimas, porém, sem dor, e riso sem
alegria, que não fora o espelho adulador se assim não fora. Mas, como o camaleão, a sombra e o
espelho tudo são assistentes mudos, a comparação de Santo Agostinho é a mais própria e semelhante de
todas, porque os comparou ao eco: Jucundum
est, ac volupe cum clamantibus nobis
responsant sylvae, et, acceptas, voces, numerosiori repercussu reddunt. Talis echo adulator. — O eco sempre
repete o que diz a voz, nem sabe dizer outra coisa; e onde as concavidades são muitas, é cena
verdadeiramente aprazível ver como os ecos se vão respondendo sucessivamente uns aos outros, e todos sem
discrepância dizendo o mesmo. O que disse a primeira voz é o que todos uniformemente repetem. E
isto que fez a natureza nos bosques, faz a adulação nos palácios, diz Agostinho. Diz o rei que quer
fazer uma guerra, e, ainda que a empresa seja pouco provável, e o sucesso de perigosas
conseqüências, que respondem os ecos? Guerra, guerra, guerra. Diz que quer fazer uma paz, e, ainda que a
ocasião seja intempestiva e os pactos e condições pouco decorosos, que respondem os ecos? Paz, paz,
paz. Diz que quer enriquecer o erário, e para isso multiplica os tributos, e, ainda que os fins
ou pretexto tenham mais de vaidade que de utilidade, que respondem os ecos? Tributos, tributos,
tributos.
E para que eu também acrescente a
minha comparação, são parecidos os aduladores aqueles quatro animais do Apocalipse, os quais cercavam o
trono do cordeiro dominador da terra, e tendo cada um deles quatro rostos e quatro línguas, nenhuma
coisa diziam nem sabiam dizer, senão amém: Et quatuor animalia dicebant: Amen. Pois,
para isto assistem ao trono, para isto os tem junto a si o supremo dominante?
Para isto tanta diversidade de rostos e tanto aparato de línguas? Sim, para
isto, e só para isto; para quando sair do trono a voz, eles dizerem os améns. E
para que os améns digam com o rosto, e o
rosto não desdiga do que eles dizem, por isso, sendo a voz uma só, os rostos
são muitos, e tão vários quantos podem
ser os afetos da majestade adulada. Se o rei está benigno e humano, para isso tem rosto de homem: facies hominis. Se está colérico e
irado, para isso tem rosto de leão: facies leonis. Se está sobrelevado e altivo,
para isto tem rosto de águia: facies
aquilae. Se está melancólico e
carregado, para isto tem rosto de bezerro: facies bovis (Ez. 1,10). Enfim, muitos rostos e uma só voz, porque sempre a língua e os gestos estão
aparelhados, ou na vontade, declarada para a aprovar, ou na inclinação, só presumida para a prevenir.
CAPÍTULO VIII
A intenção reta dos príncipes não
é esta, senão que cada um diga livremente o que entende, e aconselhem o que mais importa; mas, como o
norte sempre fixo do adulador é o interesse e
conveniência própria, nenhum há que se fie deste seguro real, e todos
temem arriscar a graça onde têm posta a
esperança Dizia Sêneca — e dizia o que obrava -que antes queria ofender com a
verdade que agradar com a lisonja: Maluerim veris offendere, quam placere
adulando. Mas, quem era Sêneca? Era
aquele grande estóico, em cuja estimação a maior riqueza era o desprezo de
todas. Era tão opulento o seu patrimônio
que só ele pudera fundar e enriquecer muitas casas, e tão grandes como as que hoje são titulares, e tudo renunciou
Sêneca, e aplicou ao fisco real. E quem com a sua fazenda quer acrescentar os tesouros do rei, escolhe
antes ofender com a verdade que agradar com a adulação. Porém, aqueles que com os tesouros do rei
querem acrescentar a sua casa e enriquecer a sua pobreza ou a sua vaidade, que se pode crer ou esperar
que façam? Que digam cinqüenta lisonjas para granjear uma comenda, e que não se atrevam a dizer
meia verdade por se não arriscar a perdê-la. Oh! reis! Oh! monarcas do mundo, que por esta causa, e só
por esta, é digna de compaixão a vossa suprema fortuna!
O Salmo Miserere mei, Deus não só o fez Davi para lamentar a sua miséria
como pecador, senão também como rei.
Esse foi o seu pensamento e o seu sentimento quando disse: Tibi soli peccavi (Sl.50,6):
Eu, Senhor, só para vós pequei. — E por que só para vós, e não para os outros?
Porque só vós me estranhastes o meu
pecado, porque fui pecador, e nenhum dos outros mo estranhou, porque era rei. — Em próprios termos Esíquio: Quoniam reliquis omnibus ei tanquam regis
indulgentibus, solus Deus misit Nathan,
et nefarium scelus neprehendit. O pecado de Davi só para Deus foi
pecado, porque para todos os outros,
como era rei, foi indulgência Eis aqui de que serve aos reis o ser rei, e quão lisonjeiramente o servem os que o
servem. Se alguma vez na antecâmara de Davi — onde ele o não ouvisse — se tocou no seu pecado, o que
os palacianos discorriam era desta maneira. Que o amor
de Bersabé fora um galanteio de príncipe soldado; que o casar-se com ele
fora uma honrada restituição de sua
fama; que o matar a Urias fora um conselho necessário, prudente e
generoso, porque o fez morrer nobremente
na guerra: prudente, porque pareceu acaso o que foi indústria, e necessário, porque o modo mais seguro de
sepultar o agravo é meter debaixo da terra o agravado. Tão levemente se falava em palácio em um caso,
mais que escandaloso, atroz, chamando ao adultério galanteio, ao homicídio necessidade, e à aleivosia
prudência. No capítulo oitavo do Segundo Livro
dos Reis se nomeiam as pessoas de que constava a casa e família superior
de Davi, e é coisa que excede todo o
encarecimento da lisonja, que em tantos homens de tão grandes qualidades e suposições se não achasse nem um só que, ou
por zelo da honra, ou por escrúpulo da consciência, ou por obrigação do ofício, ou por memória de
benefícios e mercês recebidas, se atrevesse a acudir a um rei na sua desgraça, e lhe abrir os olhos com
a verdade em tão perigosa cegueira (2 Rs. 8,16 ss). Por isso ele, considerando o seu desamparo, e conhecendo
o risco da própria salvação, orava e clamava a
Deus dizendo: Salvum me fac,
Domine, quoniam defecit sanctus, quoniam diminutae sunt veritates a filiis hominum (Sl. 11,2): Salvai-me
vós, Senhor; acudi-me e socorrei-me como Deus, porque entre os homens já não
acho nem um só que tenha virtude e valor para me dizer a verdade.
Dois porquês aponta Davi nestas
palavras, muito dignos de reparo: porque faltaram os santos: Quoniam
defecit sanctus e porque faltaram homens que com inteireza lhe dissessem a
verdade: Quoniam diminutae sunt veritates a filiis hominum: Filii hominum,
em frase da Escritura, significa os
homens de ilustre geração, quais são os que assistem ao lado dos reis; e
de lhes faltarem estes se lamenta Davi.
Pois, por que faltaram os santos, por isso não há quem fale verdade aos reis?
Sim: de um porquê se segue o outro
porquê. Porque faltaram os santos, que são os que não querem nada deste mundo, essa é a razão por que Davi e os
outros reis não têm quem lhes diga a verdade, estando cercados de tantos que os lisonjeiam e
adulam. Até entre os gentios era verdadeira esta conseqüência. Entre os gentios também, por seu modo, havia
santos, os quais eram os filósofos, principalmente estóicos e cínicos. Diógenes, filósofo
cínico, queria tão pouco das coisas deste mundo, que nem uma choupana tinha em que viver; e morava dentro
em uma cuba. Foi-o ver por maravilha Alexandre
Magno, e, dizendo-lhe com sua natural magnificência que pedisse quanto
quisesse, que responderia Diógenes? —
Peço-te que não tires o que me não podes dar. — E disse isto porque era
inverno, e Alexandre, com a sombra do
corpo, lhe tirava o sol. Parece-vos que adularia aos reis um homem que tão pouco queria deles? Bem o mostrou em uma
famosa resposta sua, que refere Valério Máximo. No tempo em que reinava
Dionísio em Sicília, estava Diógenes à porta ou à boca da sua cuba,
lavando umas ervas para comer, e
disse-lhe um dos que passavam: — Se tu adularas a Dionísio, não comeras ervas. — E ele respondeu: — E se tu te contentaras
com comer ervas, não adularas a Dionísio: Si
tu Dionysio adulati velles, isto non
ederes. Cui respondit: Si tu ista edere velles, Dionysio adulari nolles. Porque os reis se não servem de homens que se
contentem com comer ervas, por isso estão comidos de aduladores, e cercados de inimigos: Quoniam defecit sanctus. Para ser santo
deste gênero não é necessário que faça
milagres o que serve ao rei: basta ser homem que se contente com o seu pouco,
e não aspire a ter mais do que tem, nem
a ser mais do que é. Mas, se há algum
destes — que sim há — o primeiro cuidado dos quatro animais que estão in
circuito throni, e nele têm cercados ou sitiados os reis, o primeiro
e maior cuidado dos aduladores é que
Dionísio não ouça a Diógenes, antes se asseste contra ele toda a artilharia,
para que não suceda romper as linhas da circunvalação, e, por força ou por
vontade, se retire muito longe da corte. É texto e caso expresso da Escritura Sagrada, não já
em homem filósofo, senão profeta El-rei Jeroboão, depois da divisão das coroas de Israel e
Judá, tinha o seu palácio em Betel, e junto dele a mesquita que edificara aos dois bezerros de ouro, para
divertir o povo de irem sacrificar ao templo de
Jerusalém. Vivia na mesma cidade de Betel o profeta Amós, o qual dizia a
Jeroboão algumas verdades das que Deus
revelava acerca daquele reino e seu perigo. E, como os aduladores de
Jeroboão se temessem da eficácia e
energia de Amós, ao qual caluniavam com o rei, que totalmente lhe não tinha perdido o amor e reverência, um deles
chamado Amasias, se foi ter com o profeta, e lhe disse em termos de amizade estas palavras: Qui vides, gradere, fuge in terram Juda, et
comede ibi panem, et prophetabis ibi. Et in Bethel
non adjicies ultra ut prophetes, quia sanctificatio regis est, et domus
regni est (Am. 7,12 s). Quer dizer: Tu Amós, que
vês os futuros, põe-te e logo a caminho, e foge daqui, e vai-te e para a tua pátria: lá comerás o
teu pão, e profetizarás; porém, aqui não te aconteça falar mais palavra, porque Betel é a casa e palácio do
reino, a santificação do rei. — Reparai muito nesta última cláusula, que em moral e político sentido
fecha admiravelmente todo o nosso discurso: Quia sanctificatio regis est, et domus regni est.
De maneira que exortando Amasias ao profeta Amós, ou cominando-lhe que se saia da corte e fuja
dela, o motivo que alega para isso é que a casa e palácio real é a santificação do rei. E por quê? Não
pudera melhor definir um adulador o que é palácio. E o palácio, na definição dos aduladores, a santificação
do rei, porque ali são santificados os reis e todas as suas ações; e quanto o rei faz, ordena,
deseja ou imagina, tudo é santo. Se Jeroboão se divide de Roboão, seu legítimo senhor, ainda que seja
rebelião, santo. Se proíbe ao povo que apareça no Templo de Jerusalém três vezes no ano, ainda
que seja contra a lei expressa de Deus, santo. Se levanta altares aos bezerros de ouro, e os manda
adorar, ainda que seja manifesta e pública idolatria, santo. — E por que tu, Amós — dizia Amasias — aconselhas
outra coisa ao rei, contra o que todos seus criados lhe aprovamos, e não queres ajuntar atua voz
com as nossas, dizendo também conosco: santo, santo, santo — não só não hás de entrar mais em
palácio, mas sair logo da corte e de todo o reino: Gradere, et fuge in terram Juda,
et in Bethel non adjicies ultra ut prophetes.
Tal é a sagacidade dos aduladores
e sua potência. E tão tiranizadas andam entre eles as mesmas majestades aduladas, que não só lhes não
dizem a verdade, nem querem que outros lha digam, mas afastam e lançam muito longe da corte a todos
os que lha podem dizer. Não é isto manifesta tirania? Biantes, um dos sete sábios da Grécia,
perguntado qual era o animal mais venenoso, respondeu que, dos bravos, o tirano, dos mansos, o adulador.
Em chamar veneno à adulação acertou-lhe o nome; mas em distinguir o tirano do adulador não disse
bem, porque todo o adulador é tirano. O maior tirano que houve no mundo foi Herodes; mas os seus
aduladores ainda foram maiores tiranos, porque o rei foi tirano dos vassalos, e os aduladores foram
tiranos do rei. O texto de Miquéias, que lhe explicaram acerca do nascimento do novo rei, fala
expressamente de dois nascimentos do Messias, um temporal, como homem, e outro eterno, como Deus: o
temporal, como homem: Ex te enim exiet
dux qui regat populum meum ; o
eterno, como Deus: Et egressus ejus ab
initio, a diebus aeternitatis. E os
aduladores, que fizeram? Calaram totalmente o segundo nascimento, e só
fizeram menção do primeiro, com que,
enganado Herodes, e supondo que o nascido em Belém era somente homem, e
não Deus, entendeu que o podia matar, e
assim deliberou a morte dos inocentes. Mas qual foi o motivo deste engano? O que os aduladores têm em
todos os seus, que é o próprio interesse. Divinamente São João Crisóstomo: In adulationem profecto regis, ut ad humanae gratiale lucrum veritatis
damna proficerent. Sendo a matéria
tão grave, e a mais grave que podia haver, pois envolvia a coroa e a salvação, não duvidaram, contudo, os
aduladores de mentir e lisonjear ao rei, para que os danos da verdade fossem lucros do interesse: Ut ad humanae gratiae lucrum damna veritatis
proficenent. Tão certa é a
proposição do nosso assunto, e tão verdadeira e sólida a razão fundamental
dele, que todos os que em palácio são
amigos do seu interesse, são inimigos do rei: Inimicos vestros.
CAPÍTULO IX
Suposto, pois, que os aduladores
são inimigos dos reis, como todos os outros cristãos têm também obrigação de amar a seus inimigos e
fazer-lhes bem, seguia-se agora exortar os príncipes a este amor e beneficência: Diligite inimicos vestros, et benefacite his qui oderunt vos. Mas
este meu sermão hoje será a primeira
oração evangélica que, contra todas as leis da retórica, acabará sem peroração.
Se a cristandade de todos os príncipes
católicos na observância deste preceito de Cristo é tão comum, geralmente, e tão notória, que sendo os
aduladores de palácio os seus maiores inimigos, esses são os
maiores validos, os mais
favorecidos e os mais amados conforme o diligite,
e esses os mais cheios de honras, mercês
e benefícios, conforme o benefacite,
nenhum lugar nos fica para a peroração do
discurso, pois os mesmos exemplos deste amor e beneficência real excedem
todos os limites da eficácia a que se podia estender a exortação. Assim víramos
estimados, premiados e satisfeitos os que
não servem à sombra de telhados de ouro nem ao calor de braseiros de
prata, senão ao sol e ao frio, lidando
com as ondas e com as balas.
Uma só invectiva me ocorria para
poder acabar o sermão, mas essa contra el-rei Davi, estranhando-lhe e
repreendendo muito o modo tão alheio desta caridade com que ele tratava aos
aduladores seus inimigos. No Salmo
sessenta e nove diz Davi estas palavras, ou as torna a repetir, porque já tinha
dito as mesmas no Salmo trinta e nove: Avertantur
retrorsum, et erubescant, qui volunt mihi mala;
avertantur statim erubescentes, qui dicunt mihi; Euge, euge!
Primeiro que tudo se deve advertir, em
confirmação do que fica dito, que aqueles qui
dicunt mihi: Euge, euge são os
mesmos qui volunt mihí mala, porque
adular é querer mal, e ser adulador é ser inimigo, e quantos são os euges que vos dizem, tantos são os males
que vos querem. E a estes aduladores, que Davi reconhecia por seus inimigos, que é o que lhes fazia ou resolvia
fazer como rei? Quatro coisas. Primeira, que
experimentassem a grande aversão que lhes tinha: Avertantur, avertantur. Segunda, que logo saíssem de sua casa, e não aparecessem mais em sua
presença: Avertantur statim.
Terceira, que não fossem adiantados em
nada, senão abatidos e atrasados: Avertantur
retrorsum. Quarta e última, que pois se
não envergonharam de ser aduladores, padecessem a vergonha de ser
conhecidos publicamente e tratados como
tais: Avertantur et erubescant;
avertantur statim erubescentes. — Isto é, Davi, o que vós fazíeis aos aduladores, vossos inimigos
como rei; mas não é isto o que lhes devíeis fazer como profeta, que tão clara luz tivestes do
Evangelho de Cristo. Pois, se Cristo vos manda que ameis a vossos inimigos: Diligite inimicos vestros — como vós os aborreceis tanto que os não
podeis ver, e os lançais de vossa casa
e de vossa presença? E se Cristo vos manda que lhes façais bem: Et benefacite his qui odenunt vos — como vós lhes
fazeis tanto mal que os afrontais e envergonhais, não secretamente, mas com infâmia pública, que
para homens que tiveram tantos postos, é o maior vitupério?
Responde Davi, e a invectiva que
eu fazia contra ele, revolta ele contra mim. — E tu, pregador, és filósofo e teólogo, e ainda não sabes a
definição do amor? Amare est valle bonum
alicui: Amar é querer bem àquele a
quem se ama. — E que maior bem posso eu querer a um adulador, que fazer
que não continue em tão vil exercício? E
que maior benefício pode esperar de mim um amigo do seu interesse, e inimigo da verdade, que tirá-lo
da ocasião de fazer traições à mesma verdade e a vender infamemente pelo interesse? Se eles,
adulando-me, são meus inimigos, maiores inimigos são de si mesmos, e eu quero que cessem deste ódio que
se têm, tanto maior quanto menos conhecido. E se, adulando-me, podem fazer mal ao meu governo e
à minha coroa, muito maior é o mal que se fazem às suas consciências e às suas almas, e eu quero
que desistam deste grande mal contra seu gosto, pois o não hão de fazer por vontade. Se Assuero,
depois que conheceu a cobiça e falso amor de Amã, o lançara de sua graça e de sua casa, não
chegara ele a ser tão mofino, que viesse a morrer em um pau; e o que aquele rei não soube fazer a tempo a
seus aduladores, faço eu logo aos meus, sem o dissimular, porque os amo e lhes desejo o verdadeiro bem,
e quero observar neles o preceito de Cristo: Diligite inimicos vestros, et
benefacite his qui oderunt vos. — Deste modo rebateu Davi a minha
invectiva, e, ajuntando eu ao exemplo
que me alegou de Amã, o de Sejano em Roma, o de Olivato em França, o de Wolsey
em Inglaterra, o de Álvaro de Luna em Espanha, e os da antiga e fresca memória
no nosso Portugal, conheci a verdade
sobre-humana da razão de Davi, e fiquei convencido dela. Mas, porque eu em todo
este sermão só professei e protestei referir, e não ajuizar, posto finalmente
agora entre dois extremos tão contrários, como o de el-rei Davi e o dos outros
reis, acabarei com o exemplo do primeiro
fundador da nossa corte, o qual, entre um e outro extremo, tomou um tal
meio de composição, que, parece,
satisfez a ambos. E que meio foi este? Ouvir os aduladores, mas não se mover por eles. S. Pedro Damião e outros
santos comparam os aduladores às sereias, as quais com a suavidade das suas vozes de tal modo
encantavam os navegantes, que voluntariamente se lançavam e precipitavam às ondas, e se afogavam no mar
em que elas viviam. Houve de passar por este mesmo mar — que era junto a Sila e Caribdes, — o
fundador de Lisboa, Ulisses, e, usando da sua ciência e sagacidade, que fez? Navegava em uma formosa
galé da Grécia, e para que a chusma não faltasse à voga dos remos, nem a outra gente náutica à
mareação das velas, e todos escapassem do encanto das sereias, tampou-lhes a todos os ouvidos, de
tal sorte que as não ouvissem. Ele, porém, para que pudesse ouvir as vozes, deixou os ouvidos
abertos, e para não padecer os efeitos do encanto, nem se precipitar ao mar, como acontecia a todos,
mandou-se atar ao mastro tão fortemente, que, ainda que quisesse, não se pudesse bulir nem mover.
Esta é a história ou fábula engenhosamente fingida por Homero para ensinar que os varões sábios e
constantes, como Ulisses, ainda que ouçam os aduladores e o contraponto doce das suas lisonjas, nem
por isso se hão de deixar vencer de seus enganos e artifícios, mas persistir e continuar a
derrota certa, sem mudar, deter nem torcer a carreira do bom governo. Assim o pudera fazer também quem
tanto confiar ou presumir de sua constância, e não conhecer que isto mesmo, ainda somente dito,
é fábula. Mas, se eu tivera autoridade para emendar a Homero, e confiança para aconselhar a
Ulisses, não o havia de querer com os ouvidos abertos e as mãos atadas, senão com os ouvidos tapados e
as mãos soltas, porque, com os ouvidos tapados não daria entrada à adulação, e com as mãos
soltas seriam todas as ações suas, e, como suas, verdadeiramente reais. Deste modo se
conquista no mundo a fama imortal, e se assegura também no céu a glória eterna.
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma" (1651)
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma" (1651)
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