quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Padre Antônio Vieira: "Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma"

SERMÃO DA PRIMEIRA SEXTA-FEIRA DA QUARESMA (1651)

Ego autem dico vobis: Diligite inimicos vestros, benefacile his qui oderunt vos.


CAPÍTULO I

Que depressa nos leva a Igreja a Deus, e com toda a alma! Anteontem nos excitou a memória,  ontem nos ilustrou o entendimento, hoje nos aperfeiçoa a vontade. Excitou-nos a memória com a  lembrança da morte: Memento homo quia pulvis es; ilustrou-nos o entendimento com o maior  exemplo da fé: Non inveni tantam fidem in Israel; aperfeiçoa-nos a vontade com o ato mais  heróico da caridade, que é o amor dos inimigos: Diligite inimicos vestros. Este ato, como tão singular  da lei e tão próprio da profissão cristã, será o assunto único de todo o meu discurso. E, posto que a  matéria do amor dos inimigos seja tão pregada e tão batida, o que determino tratar sobre ela é uma  questão muito nova e muito própria deste lugar. Funda-se toda sobre aquele Vós do nosso texto: Ego  autem dico vobis. E a questão ou dúvida é: se debaixo deste vós se entendem também as altezas e as  majestades. As pessoas soberanas são superiores a toda a lei, e por isso será necessário examinar  exatamente até onde se estende o preceito de Cristo, e resolver com a graça do mesmo Senhor, e sem  lisonja de nenhum outro, se são obrigados também os reis a amar seus inimigos.

CAPÍTULO II

Primeiramente parece que não são obrigados. E está por esta parte toda a autoridade de Salomão  em uma obra famosa de sua sabedoria e grandeza. No capítulo terceiro dos Cânticos descreve ele a  fábrica de uma carroça triunfal, em que saía a passear pela corte de Jerusalém nos dias de maior  solenidade. A matéria era dos lenhos mais preciosos e cheirosos do Líbano, as colunas de prata, o  trono de ouro, as almofadas de púrpura, e no estrado onde punha os pés estava esculpida a caridade:  Ferculum fecit sibi Rex Salomon de lignis Libani: columnas ejus fecit argenteas, reclinatorium aurem,  ascensum purpureum; media charitate constravit. Nestas últimas palavras está o reparo, não só grande, mas digno de suma admiração. É possível que um rei tão sábio como Salomão, e não gentio,  senão fiel, quando faz a maior ostentação de sua grandeza e majestade, leve a caridade debaixo dos   pés? O rei assentado no trono, e a caridade debaixo dos pés do rei? O rei entronizado, e a caridade   pisada: Media charitate constravit? Sim, porque cuidam alguns reis — ou obram como se o cuidaram  — que tão fora estão de serem sujeitos às leis da caridade, que antes a mesma caridade e todas suas  leis lhes estão sujeitas a eles. Não falo dos Neros, nem dos Calígulas, e muito menos dos  Sardanapalos, que semelhantes monstros da natureza humana eram tiranos crudelíssimos, e não reis  nem homem. Falo dos que são como Salomão naquele tempo, e do mesmo Salomão particularmente,  o qual, para a pompa e vaidades inúteis, e para fazer a sua corte inveja das outras e ostentação de todo  mundo, carregou e oprimiu os seus povos com tal excesso, que chegaram por desesperação a sacudir  o jugo e privar da obediência e do reino a Roboão, seu primogênito. Se se antojava o apetite e vaidade  de Salomão já perdido, que houvesse prata e mais prata: columnas argenteas, que houvesse ouro e  mais ouro: reclinatorium aureum, que houvesse púrpura e mais púrpura: ascensum purpureum. —  Tudo isto há de haver, dizia ele, por qualquer via, por mais violenta que seja. E, se a caridade o  contradisser, mete-se a caridade debaixo dos pés. — Pois, não vês, ó rei sábio, a opressão e opressões   do teu povo? Não ouves os gemidos dos pobres? Não te lastimam as lágrimas dos miseráveis? Não  consideras que o nome de rei te obriga a ser pai dos vassalos? Não reconheces no seu mesmo  sofrimento que todos te amam como filhos, e que, quando te aborreceram e foram teus inimigos, os  deveras, contudo, amar? Onde está a proximidade? Onde está a humanidade? Onde está a caridade?  Onde? Lá está, debaixo dos pés do rei, porque os reis não são sujeitos à caridade nem a suas leis:  Media charitate constravit.

A este hieroglífico de Salomão se ajunta um argumento para mim de muito formal conseqüência.  Os reis não são obrigados a amar os amigos: logo, muito menos, a amar os inimigos. Quem não tem  amor para o amor, como há de ter amor para o ódio? Não há entre todos os corações humanos e entre todos os estados do mundo nem vontades mais desamoráveis que as soberanas, nem coisa mais oposta  ao amor que a majestade. E por que razão, se razão se pode chamar? Por duas. Pela desigualdade e  pela obrigação dos vassalos. O amor recíproco, que por outro nome se chama amizade, diz Aristóteles  que o não pode haver senão entre iguais; e como entre os reis e os vassalos há uma desigualdade tão  distante, como do inferior ao supremo, a mesma soberania, que os remonta sobre a igualdade, os  desobriga da correspondência. E porque amaremos vassalos ao rei é obrigação natural, esta é a  segunda isenção ou regalia que logram as majestades para nem lhes ser necessário amar para ser  amados, nem depois de ser amados, ficarem obrigados a amar. Como o amor dos vassalos é dívida,  nem os reis ficam obrigados à paga, nem os vassalos têm ação para a desejar nem pedir. Daqui se  segue aquela grande dor — por lhe não chamar injustiça — de que tenha mais ventura com os reis o  servir que o amar, porque os serviços alguma vez são premiados, o amor nunca é correspondido. Não  seriam as majestades majestades se se sujeitassem a amar. Por quê? Por outras duas razões da sua  parte. Amar é inclinar-se à vontade primeiro, e depois render-se; e o render-se é contra a potência da  majestade, o inclinar-se contra a soberania. Por isso disse bem quem lhe conhecia esta condição, que  nem pode haver majestade com amor, nem amor com majestade: Non bene conveniunt, nec in una  sede morantur majestas et amor. E se os reis, como dizia, nem amados se inclinam a amar os amigos,  odiados e aborrecidos, como se hão de sujeitar a amar inimigos?

Seja exemplo o rei de melhor coração de quantos empunharam cetro. Teve Davi muitos e grandes  inimigos — que não fora Davi se os não tivera. — E como os amava? Ele mesmo o diga: Persequar  inimicos meos, et comprehendam illos, et non convertar; donec deficiant. Confringam illos, nec  poteterunt stare; cadent subtus pedes meos. A meus inimigos hei-os de perseguir até os tomar às  mãos, nem hei de desistir ou descansar até os desfazer e consumir de todo. Eu lhes quebrarei o  orgulho e lhes torcerei o pescoço, até os meter debaixo dos pés. E se Cristo manda que não só  façamos bem aos inimigos, mas que oremos por eles: Et orate pro persequentibus et calumniantibus  vos, ouvi como os encomendava o mesmo Davi a Deus em suas orações: Averte mala inimicis  meis, et in veritate tua disperde illos: O mal que me desejam meus inimigos, peço-vos, Senhor, que  o convertais contra eles, e que pela má vontade que me têm, vós lhes ponhais as mãos e a boa   vontade, destruindo-os e aniquilando-os — que isso quer dizer disperde. Finalmente, chegado à hora  da morte, tempo em que até os corações mais duros não só perdoam a seus inimigos, mas lhes pedem  perdão, duas mandas do testamento de Davi foram deixar muito encarregado a seu filho Salomão que  de nenhum modo se esquecesse de mandar matar a Joab e a Semei, por certos agravos que lhe tinham  feito. E se desta maneira amava a seus inimigos um rei canonizado, que se levantava à meia-noite a  rezar o saltério, e debaixo da púrpura vestia cilícios, os que não são tão santos nem tão beatos, vede  como guardaram o diligite inimicos vestrost, e como tomaram por si o dico vobist?


CAPÍTULO III

Isto é o que se oferece pela primeira parte, e mais aparente que sólida da nossa questão; a segunda  não só defende, mas define que também as altezas e majestades, por mais altas e soberanas que sejam,  se entendem e compreendem debaixo daquele vobis, e que todas igualmente, como os outros cristãos,  sem nenhuma exceção nem privilégio, estão sujeitos ao preceito de Cristo, e obrigados a amar seus  inimigos e a lhes fazer bem: Diligite inimicos vestros, et benefacite his qui oderunt vos.

O fundamento desta obrigação está na primeira palavra do mesmo texto: Ego autem dico vobis.  Ego: Eu. E quem é esse eu? Não é Platão, nem Licurgo, nem Numa Pompílio, cujas leis, contudo, por  serem racionais, as veneravam e obedeciam todos os reis que alcançaram fama de justos; mas é aquele Eu que disse a Moisés: Ego sum qui sum (Êx. 3,14): Eu sou o que sou — o que só tem o ser de si, e o  deu a todas as coisas; aquele Eu que faz os reis e também os desfaz, quando eles não fazem o que  devem: Per me reges regnant; aquele Eu que traz escrito na orla da opa real: Rex Regum, et  Dominus dominantium (Apc. 19,16): Rei dos reis, e Senhor dos senhores; aquele Eu de quem os reis  são mais súditos do que os vassalos dos reis, porque os reis todos receberam o domínio e jurisdição da  mão e consenso dos povos e, se conservam em si, e perpetuam na sua posteridade o mesmo poder e  soberania, é por mercê e à mercê de Deus, enquanto ele for servido, e com um aceno da sua vontade  não mandar o contrário. E este Eu: Ego autem dico vobis — este Eu é o que diz a todos, sem distinção  nem exceção de pessoas ou dignidades: Diligite inimicos vestros, para que entendam os reis da terra e  de terra: Et nunc, reges, intelligite: erudimini qui judicatis terram  — que este e qualquer outro  preceito de Deus o devem receber não pesadamente, senão com alegria, e observar com temor e  tremor: Servite Domino in timore, et exultate ei cum tremore, sob pena de que, se eles não  amarem os inimigos, Deus os terá por inimigos a eles, e os destruirá, e perecerão como tais: Ne  quandeo irascatur Dominus, et pereatis de via justa.

Nem faz contra isto o exemplo alegado de Davi, antes persuade o contrário, porque Davi era  soldado de Deus e capitão general de seus exércitos, e aqueles, a quem chamava seus inimigos, eram  os inimigos de Deus, observando tal diferença e distinção entre uns e outros, que aos inimigos seus  amava e fazia bem, e só aos de Deus perseguia e fazia cruel guerra, tão insigne vingador das injúrias  divinas, como perdoador das próprias. Assim perdoou tantas vezes a Saul, e desejou perdoar a  Absalão, e sentiu e lamentou sua morte, como a de Abner, alegando sempre a Deus que a nenhum seu inimigo dera mal por mal: Si reddidi retribuentibus mihi mala, sendo eles tão ingratos que lhe  davam mal por bem: Retribuebant mihi mala pro bonisti. E se mandou matar a Joab e a Semei,  foi por justiça, como rei, e não por vingança, guardando estas duas sentenças e execuções para o  testamento e para a hora da morte, para que se visse que o fazia por escrúpulo, e não por ódio. Este  era o coração de Davi, e, por isso, coração verdadeiramente real e digno de que Deus tirasse a coroa  da cabeça de Saul para lha pôr na sua, como o mesmo Saul confessou.

Andava Saul pelos montes à caça de Davi para lhe tirar a vida, quando acaso entrou só em uma  gruta onde o mesmo Davi estava escondido com os poucos que seguiam sua fortuna. Todos lhe  disseram e instaram que lograsse a ocasião que Deus lhe tinha metido nas mãos, e, com a morte de  Saul, se livrasse de uma vez das suas perseguições. Mas ele, contentando-se com lhe cortar um retalho  da roupa para amostra da sua fidelidade, depois que Saul saiu da gruta apareceu subitamente diante  dele, e mostrando-lhe aquele testemunho tão claro do perigo em que estivera e da vida que lhe não  quisera tirar nem consentir que lha tirassem, prostrado a seus pés lhe disse desta sorte: — Eis aqui, ó  Rei de Israel, a quem andas buscando pelos desertos para o matar. Eis aqui aquele bichinho vil da  terra, à caça do qual sai da sua corte em pessoa um tão grande monarca. Eis aqui como te merece que  o persigas com tão mortal ódio, e o faças andar desterrado e fugitivo de ti por estes montes. -Ficou  assombrado do que via e do que ouvia Saul, e, compungido, e com as lágrimas nos olhos, lhe disse:  Agora conheço, Davi — e não só lhe chamou Davi, senão filho — agora conheço, filho, e sei  certissimamente que hás de reinar, e que deste mesmo Reino de Israel, que eu chamo meu, hás de ser  tu o rei. Nunc scio quod certissime regnaturus sis, et habiturus in manu tua regnum Israel (1 Rs. 24,  21). O que só te peço, é que me prometas e jures diante de Deus que a mesma piedade que usaste comigo, a terás da minha casa e descendência, e não extinguirás do mundo o meu nome: Jura mihi ne  deleas semen meum post me, neque auferas nomem meum de domo patris mei. Tão certa e  infalivelmente conheceu e creu Saul que havia Davi de ser rei. Mas aonde tirou esta certeza, que  chama certíssima, e não antes, senão agora e neste mesmo caso: Nunc scio quod certissime regnaturus  sis?

Abulense, e todos os outros expositores dizem que o inferiu Saul da generosidade de ânimo com  que, sendo tão capital inimigo de Davi, ele lhe perdoara. Mas não é necessário que o digam  expositores, porque o mesmo Saul o ponderou e o disse. Notai todas as palavras: Tu enim tribuisti  mihi bona; ego autem reddidi tibi mala (Ibid. 18): Porque tu, Davi, deste-me bem por mal, sendo que  eu sempre te dei mal por bem. Et tu indicasti hodie quae feceris mihi bona: quomodo tradiderit me  Dominus in manum tuam, et non occideris me (Ibid. 19): E bem mostraste e provaste hoje isto que  digo, pois, entregando-me Deus nas tuas mãos, e podendo-me matar, me deste a vida. Quis enim, cum  invenerit inimicum suum, dimittet eum in via bona: Por que que homem há que, tendo seu inimigo  debaixo da lança, lhe perdoe e o deixe ir em paz? Sed Dominus reddat tibi vicissitudinem hanc pro eo  quod hodie operatus es in me (Ibid. 20): Mas eu confio e estou certo — concluiu Saul — que Deus  não há de deixar sem prêmio esta diferença que hoje usaste comigo. E como? Tirando-me a mim a  coroa da cabeça, e pondo-a na tua: Quia scio quod certissime regnaturus sis. Assim entendeu  Saul, posto que obrava o contrário, que um homem que, tendo na sua mão a vingança, não sabia  vingar agravos, um homem que, podendo fazer mal a seu maior inimigo, lhe fazia os maiores bens,  um homem que pagava o ódio com amor, e a morte, que lhe queriam dar, com a vida, um tal homem  como este, não o tinha Deus dotado de um coração tão generoso e tão real, senão porque o queria e  havia de fazer rei: Quod regnaturus sis.

Reparem muito os reis no que inferiu com tanta certeza este rei, e reparem também no que eu agora  quero inferir, não com menor certeza. Assim como é certo que Deus deu a coroa a Davi porque se não  vingou de Saul, assim digo, e tenho por certo que, se Davi pelo contrário se vingara, ainda que Deus o  tivesse destinado para a coroa, lha não havia de dar. Caso notável é que repartindo Jacó na hora da  morte a bênção que tocava ou havia de tocar a cada um de seus filhos, a do cetro e coroa de Israel a  desse e colocasse no quarto. Este quarto filho era então Judas, do qual descenderam os Davis, os  Salomões e outros reis do reino por isso chamado de Judá, e do qual também descendeu Cristo. Mas,  por que razão? O reino e a primeira bênção, segundo o uso dos patriarcas e conforme a lei natural que  ainda hoje se observa, pertence ao primogênito, que era Rúben. E, posto que Rúben perdeu este  direito e se fez indigno da coroa pela gravíssima injúria que cometeu contra seu pai, no incesto que  todos sabem, a Rúben seguia-se, com o mesmo direito, Simeão, que era o filho segundo, e a Simeão  se seguia Levi, que era o terceiro. Pois, por que não deu Jacó a bênção ou investidura do reino nem a  Simeão, nem a Levi, senão a Judas, e, deixando deserdados daquele grande e supremo morgado ao  segundo e ao terceiro filho, o assentou e instituiu no quarto?

Também aqui não havemos mister doutores, porque na bênção de ambos os deserdados dá o  mesmo texto e o mesmo Jacó a causa: Simeon et Levi fratres, vasa iniquitatis bellantia. In consilium  eorum non veniat anima mea, et in caetu illorum non sit gloria mea, quia in furore suo occiderunt  virum, et in voluntate sua suffoderunt murum. Maledictus furor eorum, quia pertinax, et indignatio  eorum, quia durat. Simeão e Levi foram aqueles dois irmãos que, para vingar a injúria que o  príncipe Siquém tinha feito à sua irmã, mataram ao mesmo Siquém e a todos os siquemistas, e lhes destruíram e assolaram a cidade. E homens tão duros de coração, homens tão furiosos, pertinazes e  vingativos — posto que a causa parecesse justificada — não só não são dignos de reinar, nem de ter o  supremo domínio sobre os outros homens, mas merecem justissimamente que, se por outra qualquer  via lhes pertence o cetro e a coroa, de nenhum modo, e em nenhum tempo a logrem, antes sejam para  sempre privados e deserdados do reino, como eu, com a minha maldição, em nome de Deus os  deserdo. — Isto disse e fez Jacó, deserdando e privando do reino aos dois filhos, a quem de direito  pertencia, só por serem vingativos e não perdoarem agravos. E o mesmo sucederia sem dúvida a Davi,  se ele, como perdão de Saul, lhe não tirara da cabeça a coroa de que, por inimigo, era indigno, e a  pusera na sua.

De tão longe ia Deus estabelecendo e fundando já o preceito que hoje havia de promulgar por sua  própria boca, ensinando, com tão graves e temerosas experiências, aos reis que quando dissesse: Ego  dico vobis, também falava com eles. E notem os que de presente reinam que com muito maior razão   lho diz hoje Cristo do que o disse antigamente, porque aquele Eu: Ego autem, ainda então não era o  que hoje é. Era Deus, era supremo Legislador, era Rei dos Reis, mas ainda não era Rei que tivesse  pedido perdão pelos que o crucificavam, nem Rei que tivesse tomado por título Rei dos que lhe  tiraram a vida. Lendo Santo Agostinho no título da cruz Rex Judaeorum (Jo. 19,19), admira-se muito   de que Cristo tomasse título de Rei dos judeus, sendo Rei de todo o mundo e de todas as nações dele.  Nos quatro braços da mesma cruz se significava o domínio que tinha o Rei crucificado sobre as quatro  partes do mundo; e nas letras hebraicas, gregas e latinas, que eram as mais universais, o senhorio e  império de todas as nações. Pois, se Cristo era Rei de todo o mundo e de todos os homens, por que  toma só por título o de Rei dos judeus? Porque, ainda que era Rei de todos, e morrera por todos, só os  judeus foram aqueles que lhe tiraram a vida, e onde foi maior o amor dos inimigos, ali assentou  melhor o título de Rei. Rei de todos, Redentor de todos, e o que perdoou os pecados de todos; mas  dos judeus, de quem recebeu os maiores agravos, dos judeus que lhe tiveram o maior ódio, dos judeus  que mais que todos foram seus inimigos, desses particularmente Rei: Rex Judaeorum. Para que  acabem de entender os que são e se chamam reis, que não só pelo preceito que lhes pus, senão pelo  exemplo que lhes dei, e para perpetuarem os seus reinos, como eu eternizei o meu, todos sem  exceção, são obrigados ao amor dos inimigos, e todos a fazer bem aos que lhes tiverem ódio: Diligite  inimicos vestros, et benefacite his qui oderunt vos.


CAPÍTULO IV

Declarado o dico vobis, e provado como também aos reis compreende o preceito de amar os  inimigos, segue-se a declaração do diligite, e o modo com que os hão de amar, cuja prática, se for  como se usa, não tem menos dificuldade nem menor perigo. Mas, antes que cheguemos a este ponto, é  necessário averiguar outro, e saber e distinguir quem são os inimigos dos reis. Perguntando um doutor  da lei a Cristo, Senhor nosso, que havia de fazer para se salvar, respondeu o Senhor que amar a Deus  sobre todas as coisas, e ao próximo como a si mesmo, fazendo-lhe primeiro repetir o texto: Diliges  Dominum Deum tuum ex toto corde tuo, et proximum tuum sicut te ipsum. Porém o doutor, para  se justificar, como diz S. Lucas: Volens justificare seipsum , desta mesma resposta de Cristo  levantou outra questão, dizendo: Et quis est meus proximus (Lc. 10,29)? Bem está que seja eu obrigado a amar a meu próximo, mas esse meu próximo, quem é? O mesmo digo eu, ou me podem  dizer e perguntar a mim. Bem provado está que os reis têm obrigação de amar a seus inimigos; mas  esses inimigos dos reis, quem são? A resposta não é fácil, antes tal e de tão mau gosto, que se eu a  der, como devo, também pode granjear inimigos.

Começando pelos de mais longe, parece que os inimigos dos reis são os que lhes impugnam o  reino, os que lhes sitiam as cidades, os que lhes infestam os mares, os que lhes roubam as conquistas,  e os outros, que por qualquer modo lhes fazem guerra. Mas estes não são os de que mais propriamente  fala Cristo. Os que nos fazem guerra -posto que a nossa língua equivocamente lhes dê o mesmo nome  — não se chamam propriamente inimicos, chamam-se hostes. Inimicos são os inimigos por inimizade  e ódio, como costumam ser os de dentro: hostes são os inimigos por hostilidade e por guerra, que só  podem ser os estranhos e os de fora. Isto posto Tertuliano teve para si que nenhum cristão podia ser  hoste: Christianus nullius est hostis. E, persistindo coerentemente neste seu parecer, chegou a afirmar  que nenhum rei podia ser cristão, nem algum homem, que fosse cristão, podia ser rei: Si christiani  Caesares esse possent, aut Caesares christiani. E que fundamento teve ou podia ter este antiquíssimo  autor, e de muito são e profundo juízo em outras matérias — ao qual S. Cipriano chamava o Mestre  — para ensinar uma doutrina tão alheia do que hoje se pratica em toda a cristandade? O fundamento  que teve foi o exemplo da humildade e paciência de Cristo, persuadindo-se que as armas do cristão  não podia ser a espada, que o mesmo Senhor mandara embainhar a S. Pedro, senão a mansidão e a  paciência. E como via, pelo contrário, que à obrigação e oficio dos reis e imperadores eram  necessárias as armas e os exércitos para defender seus estados e vingar as injúrias que lhes fizessem  ou intentassem fazer seus inimigos, esta mesma vingança dos inimigos julgou que os excluía da lei do  Evangelho e os fazia incapazes de ser cristãos, definindo como por conclusão e vidente que todo  aquele que por este modo fizesse mal a seus inimigos, e, por conseqüência, os não amasse, se fosse  rei, não podia ser cristão, e, se quisesse ser cristão, havia de deixar de ser rei.

Este erro de Tertuliano — que ainda hoje seguem os hereges anabatistas — se refutou e desfez  publicamente daí a cento e vinte anos, com a conversão e batismo do imperador Constantino Magno,  que foi o primeiro príncipe cristão que houve no mundo, o qual, contudo, sendo convertido pelo  mesmo São Pedro, nem por isso desistiu da guerra e empresas militares, armando, como dantes,  exércitos, dando batalhas, alcançando vitórias, conquistando cidades e províncias. Nem daqui se  segue que ele ou outro imperador e rei cristão pudesse ter ódio a seus inimigos e fazer-lhes mal,  porque — como bem supunha Tertuliano nesta parte — seria obrar direitamente contra o preceito  expresso de Cristo, que manda amar e fazer bem a todos e quaisquer inimigos: Diligite inimicos  vestros, et benefacite his qui oderunt vos.

Mas, se esses reis cristãos, na invasão das terras de seus inimigos, talam os campos, arrasam  castelos, escalam cidades e derramam tanto sangue, matando homens a milhares, como podem fazer  tudo isto e amar juntamente aos mesmos seus inimigos? Eu o direi, e respondo a uma pergunta com  outra. Quando o legítimo juiz, segundo o merecimento dos autos, condena à morte e à confiscação de bens um réu, e manda executar nele a sentença, pode fazer isto sem ódio? É certo que não só sem  ódio, senão amando muito ao mesmo homem, e não procedendo àquele rigor senão muito a seu pesar,  e obrigado somente das leis da justiça, de que é ministro. Pois, do mesmo modo obra o rei cristão na  guerra que faz a seus inimigos, porque naqueles casos ele e só ele é o legítimo juiz. Qual cuidais que é  a maior dignidade e autoridade do rei? Porventura o domínio e superioridade suprema sobre tantas  cidades e povos, de quantos se compõe um reino ou muitos reinos? Não. A maior autoridade e  soberania dos reis é que nas controvérsias com outros príncipes estranhos eles sejam, e Deus fiasse  deles o serem, juízes em causa própria. E como os reis são juízes, e juízes postos por Deus em seu  lugar, assim como o juiz inferior pode sentenciar o réu a perdimento da vida e da fazenda, sem ódio,  antes com amor, assim o rei, na guerra justa e julgada por sua própria autoridade, pode mandar matar  e despojar seus inimigos, amando-os juntamente, e observando o preceito de os amar: Diligite  inimicos vestros.

Isto quanto à primeira parte do preceito está claro; mas quanto à segunda ainda parece dificultoso,  porque Cristo não só manda que amemos aos inimigos, senão que lhes façamos bem: Et benefacite his  qui oderunt vos. Pois, se o rei cristão, com a guerra e hostilidades dela, faz a seus inimigos o maior  mal desta vida, antes os dois maiores males, que é despojá-los dos bens que possuem e da mesma vida  se resistirem, como pode estar com isto o não lhes fazer mal — que não basta — mas o fazer-lhes  positivamente bem, que é o que manda o preceito: Diligite, et benefacite? Também a esta pergunta  respondo com outra dentro no mesmo exemplo. Quando o juiz, entre dois litigantes, condena o injusto  possuidor, e o executa com violência, privando-o do que injustamente possuía, faz-lhe bem ou mal?  Não há dúvida que lhe não faz mal, senão bem, e o maior de todos os bens. Por quê? Porque o obriga  a restituir por força o que nunca havia de restituir por vontade, e por meio desta restituição, sem a  qual se não podia salvar, o põe em estado de salvação. Tal é o bem e grandíssimo bem que os reis  cristãos fazem aos outros príncipes seus inimigos, quando, por meio da guerra justa e poderosa,  recuperam deles as terras, cidades ou reinos que eles ou seus maiores lhes tinham usurpado. Porque,  obrigando-os por força a restituir o alheio, os desobrigam da restituição que nunca haviam de fazer de  grado, sendo, nestes casos, mais venturosos os despojados e vencidos do que cuidam e festejam os  vencedores. A espada antigamente era a insígnia do juiz, por onde disse São Paulo: Non enim sine  causa gladium portat; e como os juízes inferiores não têm jurisdição nem alçada sobre os pleitos dos reis, o que eles não podem com a espada da justiça, fazem os reis com a justiça da espada. É  verdade que derramam sangue, e muito sangue; mas, assim como o médico o tira sem querer mal nem  fazer mal, assim o podem fazer os reis, não por ódio, senão com boa vontade, e não para matar o  corpo mal afecto, senão para o descarregar do humor que o mata, e o reduzir à saúde. Esta é a reta  intenção com que deve proceder na guerra todo o rei justo, por duas razões: a primeira, para obedecer  ao preceito de Deus, que é o Senhor dos exércitos; a segunda, para o fazer propício a suas armas que,  movidas por ódio ou vingança, nunca podem ter bom sucesso. Assim o entendeu e deixou escrito  aquele tão grande rei como soldado, Davi: Si reddidi retribuentibus mihi mala, decidam merito ab  inimicis meis inanis.


CAPÍTULO  V

Temos visto e distinguido quais são os inimigos que se chamam hostes, e declarado em todo o rigor  da Teologia como se podem amar e devem amar, ainda quando se lhes faz ou faça guerra — matéria  muito própria do tempo presente, e não menos necessária a purificar a emulação nacional, que entre  gente de pouca nobreza e entendimento passa talvez a ser ódio. — Agora, recolhendo-nos dos muros  ou das raias a dentro, segue-se ver quais sejam os outros que propriamente se chamam inimicosDiligite inimicos vestros. E, suposto que não falamos de inimigos em geral, senão dos inimigos dos  reis, dentro dos limites da nossa questão, uma coisa entendo neste ponto, e outra parece que se não  pode entender. Entendo que os inimigos dos reis, neste caso, não podem ser outros senão os vassalos;  mas não entendo, nem sei como se pode entender nem imaginar — ao menos entre nós — que haja  homem tão indigno e tão vil que mereça tão abominável nome. Se o primeiro e maior amor dos  vassalos é o do seu rei; se os mortos suspiravam por este nome, e nele se sustentam os vivos; se, para  o sustentar, defender e conservar, todo o outro amor já não é amor, desprezando-se a fazenda, o  sangue, a vida, a mulher, os filhos, como pode ser que haja ainda, ou possa haver, não digo homens,  senão monstros que sejam e se possam chamar inimigos dos reis? Eu não direi quais são, porque o  não sei entender, como já disse; mas referirei e me referirei somente aos que os nomeiam, e são  testemunhas todas legais, e a quem a opinião do mundo dá grande crédito.

Entre os políticos, Xenofonte, Tácito, Cassiodoro; entre os históricos, Tito Lívio, Suetônio, Quinto  Cúrcio; entre os filósofos, Sêneca, Plutarco, Severino Boécio; entre os Santos Padres, Jerônimo,  Crisóstomo, Gregório, Agostinho, Bernardo — deixando os demais -todos, só com discrepância no encarecimento, dizem e ensinam concordemente que os inimigos dos reis, e os maiores inimigos, são  os aduladores. E, suposto que sejam os aduladores, como logo se provará largamente, onde vivem, ou onde estão encastelados estes inimigos dos reis? É certo que não são os que lavram os campos, nem  os que aram os mares, nem os que presidiam as torres, nem os que pleiteiam nos tribunais, nem os que  comerciam nas praças, nem menos todos os outros que, com o trabalho de suas mãos, servem à  república e só conhecem de palácio as paredes, e as adoram de fora. Logo, se não são os que somente  as vêem de fora, devem de ser sem dúvida os que as freqüentam de dentro, verificando-se também dos  reis o que Cristo pronunciou geralmente de todos os homens: Inimici hominis domestici ejus. Os  domésticos, os familiares, os que só são admitidos a ouvir e ser ouvidos, estes são os aduladores e por  isso, os inimigos. Assim comenta o texto de Cristo S. Bernardino de Sena, declarando que a razão de   serem inimigos os domésticos, é por serem aduladores, e que esta pensão ou desgraça é a mais  perniciosa dos príncipes: Nihil principi pernitiosius esse potest, quam domesticus inimicus, hujusmodi  autem sunt adulatores.

S. Gregório Magno que, depois de grandes cargos políticos nas duas maiores cortes, de Roma e  Constantinopla, foi cabeça suprema de toda a Igreja, e por si mesmo e seu juízo, ciência e experiência,  uma das mais eminentes cabeças do mundo, não só diz que os aduladores secretos são públicos  inimigos dos reis, mas dá por regra e cautela aos mesmos reis, que quando virem que são maiores os  louvores com que forem adulados deles, tanto os reconheçam por maiores inimigos, e creiam que o  são: Tanto majores hostes credendi sunt, quanto magis laudibus adulantur. E se isto não vêem  claramente todos os reis, é porque é tal o doce veneno da lisonja que, entrando pelos ouvidos, lhes  cega também os olhos. Por isso S. Pedro Damião, tão prático e desenganado das cortes, que por fugir  muito longe delas, renunciou à púrpura, a que compararia os aduladores de palácio? Comparou-os às  andorinhas de Tobias, as quais, fazendo o ninho na sua casa, lhe pagaram a hospedagem com lhe tirar  a vista. Tais — diz ele — são os aduladores: Quidum adulationis oleo audientis caput impinguant,  interiores oculos, ne solida lucefruantur, excaecant.  Santo Agostinho, autor em toda a matéria primaz, com doutrina tirada da escolha de el-rei Davi,  ensina que há dois gêneros de inimigo: uns que perseguem, outros que adulam; mas que mais se há de  temer a língua do adulador que as mãos do perseguidor: Duo sunt genere enim eorum, persequentium  et adulantium, sed plus persequitur lingua adulatoris, quam manus persecutoris. A mão do  perseguidor arma-se com a espada, com a lança, com a seta, com o veneno, e com todos os outros  instrumentos de ferir e matar, que a fúria e violência do fogo acrescentou à dureza do ferro; e,  contudo, diz o maior doutor da Igreja que mais se há de temer a língua desarmada do adulador, que    todas as armas do perseguidor e inimigo. Mas, porque dirão os palacianos — como dizem aos da  nossa profissão — que falou Santo Agostinho como teólogo e como santo, e não como político,  ponhamos-lhe de um lado a Pitágoras e do outro a Sócrates, que nem foram teólogos, nem santos, mas  ambos famosíssimos mestres da república mais política, qual foi a de Atenas. Que diz Pitágoras?  Gaude potius arguentibus quam adulantibus, et tanquam deteriores inimicis adulatores aversare: Gosta  antes dos que te arguem que dos que te adulam, e tem maior aversão aos aduladores que aos inimigos,  porque são piores. — E Sócrates, que diz? Adulatorum benevolentiae tanquam hostibus dato terga,  fuge infortunium: A benevolência dos aduladores dá-lhe logo as costas, e foge deles como de  inimigos, por que te não suceda algum infortúnio dos que a adulação traz sempre consigo. — Creiam  ao menos a Sócrates e a Pitágoras os que não quiserem dar crédito a Santo Agostinho.

Sinésio, aquele insigne varão que compôs os livros De Regno e, depois de governar  prudentissimamente o mundo, com igual zelo e santidade governou e ilustrou a Igreja, escrevendo ao  imperador Arcádio, o conselho que lhe dá sobre todos, exortando a que o observe como primeiro e  maior cuidado, é que não consinta junto a si aduladores, e se guarde e vigie deles, porque, por mais  cercado que esteja de guardas o seu palácio, a adulação se sabe introduzir sutilissimamente sem ser  sentida, e bastará ela só para primeiro o sujeitar e dominar a ele, e depois o despojar do império: Sola  quippe alulatio nec quicquam vigilantibus satellitibus in ima usque conclavia sensim penetrat, et  imperium depraedatur. Coisa dificultosa parece que, tendo Arcádio presidiado o seu império com as  legiões romanas, e não havendo então inimigo estranho que com poderosos exércitos lhe fizesse  guerra, houvesse de bastar poucos homens desarmados para, dentro em sua própria casa, destruírem o  imperador e mais o império. Mas tão oculta e poderosa guerra é a que faz aos príncipes a adulação, e  tão perniciosos inimigos, mais que todos, são os aduladores. Ouçam os políticos o texto da sua Bíblia:  Adulatio perpetuum malum regum, quorum opes saepius assentatio, quam hostis evertit: A adulação é  aquele perpétuo mal ou achaque mortal dos reis, cuja grandeza, opulência e impérios muitas mais  vezes destruiu a lisonja dos aduladores que as armas dos inimigos.

Comentando este texto de Cornélio Tácito outro Cornélio de maior erudição, de melhor juízo e de  mais largas experiências que ele, confirma a verdade do seu dito com a falta da verdade, de que só  carecem os que são senhores de tudo, e com os exemplos de Nero, César e Roboão, todos  desastradamente perdidos, não por inimigos de fora, mas pelos aduladores domésticos: Et quidem  reges abundant rebus omnibus in aula, excepta veritate. Quid Neronem castissime educatum crudelem  fecit? Adulatio. Quid Caesarem contra patriam rebellare fecit? Adulatio. Quid Roboam tyrannum  reddit? Adulatio. Nem a Roboão aproveitou ter por pai a Salomão, nem a Nero ter por mestre a  Sêneca, nem a César ter-se esmerado nele a natureza em o dotar de uns espíritos tão generosos e  verdadeiramente reais, para que a adulação de seus próprios familiares a um não corrompessem as  virtudes, a outro não despojassem do reino, a outro não tirasse a vida, e a todos não destruísse tão  infausta e miseravelmente, como todos sabem. Esta mesma conclusão inferiram sobre a lição de todas  as histórias do mundo aqueles dois grandes historiadores, que em sentença de Lípsio, depois de  Salústio e Lívio, merecem os dois seguintes lugares: entre os latinos Cúrcio, e entre os espanhóis  Mariana. Regnum saepius ab assentatoribus quam ab hostibus everti solet — diz Cúrcio na história de  Alexandre. — Vide hic ut magis adulatio, quam hostis, reges et principes perdat — diz Mariana no  Comentário de Oséias. — De sorte que tudo o que se sabe por vista ou por memória dos períodos e  catástrofes dos reinos e dos fins mal-afortunados dos reis e causas deles, as menos vezes se deve  atribuir aos inimigos de fora, que são os que só se temem, senão a quem? Aos lisonjeiros e aduladores de dentro, aos que têm as entradas francas e as chaves tão douradas como as línguas, aos que  participam os segredos e arcanos da monarquia, e os que só são admitidos a dizer e a ser ouvidos;  enfim, aos inimigos interiores e domésticos, que são os que mais se deveram temer.


CAPÍTULO  VI

Antes, porém, que refira o que dizemos demais — pois somente sou relator neste ponto — para que  se ouça com maior atenção e se dê inteiro crédito ao que eles disserem, é necessário sossegar primeiro  um escrúpulo ou suspensão com que estou vendo que este nome de inimigo dos reis, ou se reputa por  injusta censura, ou, quando menos, por demasiado encarecimento. Todas as pessoas que os reis  admitem assistência mais interior de palácio, além das qualidades e talentos que os fazem dignos de  tão soberana eleição, ninguém pode duvidar que o seu maior cuidado e desvelo é servir e agradar ao  seu príncipe, e que eles são os que mais lhes desejam a vida e procuram a saúde; eles os que mais  solicitam o bem, a conservação e aumento do reino; eles os que, de dia e de noite, sem descansar,  mais se empregam e mais trabalham no que mais que tudo importa. E, posto que as suas palavras —  como pede o respeito e reverência real -se pronunciem vestidas ou adornadas com algum daqueles  enfeites que popularmente se chamam lisonjas, nem por isso desmerece o afeto de seus corações o  nome de amigos, e verdadeiros amigos: com que vem a ser afronta, não só injusta e caluniosa, mas  indigna de se dizer nem ouvir, que sujeitos tão ilustres e tão leais sejam chamados inimigos dos reis, e  se lhes aplique no texto de Cristo a censura de inimicos vestros.

Tudo isto digo eu também, e geralmente assim, é. Mas, porque nesta regra, como em todas, pode  haver alguma exceção, ouçamos sobre ela o mesmo legislador, que é o melhor intérprete das suas leis.  E assim o mesmo Cristo que diz Diligite inimicos vestros, será também o que nos declare estes  inimigos quem são, e como são, e como não podem deixar de o ser. Nemo potest duobus dominis  servire (Mt. 6,24), diz Cristo: Ninguém pode servir a dois senhores. — E por quê? Porque, se tiver  amor a um, há de ter ódio ao outro: Aut enim unum odio habebit, et alterum diliget. Suposta esta  definição infalível da suma verdade, pergunto agora: e os que servem aos reis em palácio, a quantos  senhores servem? Se alguns se não quiserem lisonjear também a si mesmos, é força que confessem  que servem a dois senhores: ao senhor rei, e ao senhor interesse próprio. Logo, segue-se que, se amam  a um, têm ódio a outro, e que se de um destes senhores são amigos, do outro são inimigos: Aut enim  unum odio habebit, et alterum diliget. Notai que não diz Cristo: Unum diliget et alterum non diliget,  senão: Unum odio habebit, et alterum diliget — porque se não pode servir e amar a um, sem ser inimigo  do outro. E, se em algum dos que servem ao rei se provasse que ama mais o seu interesse que o rei,  provado estava que este tal é inimigo do rei.

O Papa chama-se Servus Servorum, é, creio eu, que a muitos reis se pudera estender o mesmo título  sem ofensa da Sé Apostólica. Por que há tantos que queiram servir de perto aos reis? Por que querem  que também os reis os sirvam a eles? Não digo tanto. Servem aos reis porque lhes serve o servi-los.  Arrima-se a hera à torre, não por amor da torre, senão por amor de si, não porque queira coroar a torre  — que as coroas de hera não são as dos reis — mas porque a hera não pode crescer sem arrimo, e ela  quer crescer e subir. Por isso vemos tão subidos e tão crescidos os que talvez, antes de chegarem a  este arrimo, mal se levantavam da terra. Pelo contrário, vemos também que muitos se retiraram do  serviço do rei, porque lhe negaram ou dilataram a subida. Logo, ao senhor interesse é que serviam, e  não ao rei. Sete anos de pastor servira Jacó a Labão, pai de Raquel, mas não servia a ele: servia a ela.  E por que servia Jacó a Raquel, e não a Labão? Porque Raquel era a que amava. Porque amava a  Raquel, por isso servia a Labão, e o amor não está no por isto, está no porquê. Porque amam o seu  interesse, por isso servem ao rei. Indigna coisa, por certo, que seja o rei o Labão, quando o vil  interesse é a Raquel. Mas ouçamos a outro melhor autor.

Stellio manibus nititur, et moratur in aedibus regis (Prov. 30,28): A aranha — diz Salomão — não  tem pés, e, sustentando-se sobre as mãos, mora nos palácios dos reis. — Bom fora que moraram nos  palácios dos reis e tiveram neles grande lugar os que só têm mãos. Mas a aranha não tem pés, e tem  pequena cabeça, e sabe muito bem o seu conto. Sobe-se mão ante mão a um canto dessas abóbadas  douradas, e a primeira coisa que faz é desentranhar-se toda em finezas. Com estes fios tão finos, que  ao princípio mal se divisam, lança suas linhas, arma seus teares, e toda a fábrica se vem a rematar em  uma rede para pescar e comer. Tais são — diz o rei que mais soube — as aranhas de palácio. Quem  vir ao princípio as finezas com que todos se desfazem e desentranham em zelo do serviço do príncipe,  parece que o amor do mesmo príncipe é o que unicamente os trouxe ali; mas, depois que armaram os  teares como tecedeiras, e as redes como pescadores, lago se descobre que toda a teia, por mais fina  que parecesse, era urdida e endereçada a pescar, e não a pescar moscas. E se não, veja-se o que todos  pescam: as melhores comendas, os títulos, as presidências, os senhorios, e, talvez, diz o mesmo  Salomão, que sendo a malha tão miúda, pescam o mesmo dono da casa. Homo, qui blandis fictis que  sermonibus loquitur amico suo, recte expandit gressibus ejus, As palavras brandas do adulador  são redes que ele arma para tomar nelas ao mesmo adulado. — E este é o artifício sem arte dos  aduladores reais. Servem lisonjeiramente aos príncipes para os ganhar ou lhes ganhar a graça, e para  se servirem da mesma graça para os fins que só pretendem de seus próprios interesses. E como, por  declaração do mesmo legislador do nosso texto, ninguém pode servir a dois senhores sem amar a um  e ser inimigo do outro, provado fica, sem réplica, e concluído, que quantos forem em palácio os  amigos de seus interesses, tantos são os inimigos dos reis.


CAPÍTULO  VII

E se eles disserem que são isto discursos, também eu folgara muito que não só foram discursos,  senão muito mal fundados e muito falsos; mas no nosso mesmo texto o benefacere é prova do  diligere: Diligite, et benefacite. Vejamos, pois, o bem ou mal que os aduladores fazem aos reis, e logo  se verá claramente se os amam ou são seus inimigos. A maior fatalidade dos reis é nascerem todos em  signo de ser louvados. Lançou Jacó a bênção a Judas, seu quarto filho, e as palavras por onde  começou foram estas: Juda, te laudabunt fratres tui (Gên. 49,8): Judas, a ti louvarão teus irmãos. —  Os irmãos eram onze, e muitos deles tiveram muito que louvar; pelo contrário, Judas não deixou de  fazer muitas ações dignas de ser vituperadas. Pois, se nos outros houve também coisas merecedoras  de louvor, e em Judas merecedoras de vitupério, por que se dá por bênção só a Judas que ele será o  louvado, e que todos o louvarão: Te laudabunt? Porque Judas, como vimos ao princípio, ainda que era  o filho quarto, foi o que levou o cetro e a coroa, e em quem se fundou o direito hereditário da casa e  sucessão real, e é bênção ou fatalidade dos reis que tudo o que fizerem ou quiserem, ainda que não seja louvável, seja louvado: Te laudabunt. Se o rei, como Saul, tomar para si os despojos de Amalec  consagrados a Deus, e os aplicar a usos profanos: Te laudabunt. Se o rei, como Davi, por uma simples  informação suspeitosa, singular e sem nenhuma legalidade, privar do patrimônio a Mefiboset, e o der  ao seu criado Siba: Te laudabunt. Se o rei, como Salomão, para edificar soberba e deliciosamente o  bom ou mau retiro do Líbano, derrubar as casas dos poucos poderosos, e queimar as choupanas dos  miseráveis: Te laudabunt. Se o rei, como Roboão, sobre o jugo pesadíssimo e intolerável de seu pai,  acrescentar tributos sobre tributos, opressões sobre opressões, e rigores sobre rigores, nadando todo o  reino em rios de lágrimas: Te laudabunt. E quem são os panegiristas destes louvores? Não são os que  padecem o dilúvio fora da arca, não são os que moram e morrem fora das paredes de palácio, senão os  que vivem e reinam de portas a dentro. Estes são os aduladores, que louvam o que não deveram  louvar, e aplaudem o que não deveram aplaudir; e ajudam o que deveram estorvar, atentos somente a  não desgostar ou entristecer o agrado em que têm fundado seus interesses, sem atenção ao crédito e à  fama, nem talvez à consciência dos mesmos reis, como verdadeiros inimigos: In malitia sua  laetificaverunt regem.

Eu bem creio do bom entendimento de alguns, que no mesmo tempo em que louvam e aplaudem  com a boca, gemem e choram com o coração. Nem eles deixam de o confessar assim, onde não é  perigoso o sigilo. Mas, como servem mais ao próprio interesse que ao rei, esta covarde dependência  lhes equivoca a dor com a alegria, e o coração com a língua. Caso verdadeiramente lamentável e  trágico, mas já representado no teatro de Roma. Depois que o imperador Nero se esqueceu de si, e da  temperança e compostura real em que fora criado, fez tão pouco caso da própria autoridade e  decência, que, entre os citaredos e estriões, saía no teatro público a competir com eles em todas as  baixezas ridículas daquelas artes, próprias de gente vil e infame. A este espetáculo ou ludíbrio da  maior fortuna, assistiam todas as ordens, senatória, consular e eqüestre; assistiam os centuriões, os  tribunos, e toda a flor das legiões romanas; assistiam principalmente todos os familiares do palácio  imperial, e, entre eles, diz com grande ponderação Tácito: Et maerens Burrhus, ac laudans. Era  Afrânio Burro homem de grave e maduro juízo, mestre ou aio que tinha sido, com Sêneca, do mesmo  Nero. E, quando todos os outros faziam grandes aplausos às mudanças, saltos e gestos do imperador  citaredo, como se foram outros tantos triunfos, só Afrânio estava triste, mas também louvava como os  demais: Et maerens Burrhus, ac laudans. Pois, homem ou animal — que te não quero chamar com o  nome próprio, por não parecer que o faço apelativo — se conheces a indecência, a desautoridade e a  afronta do teu príncipe, se estás engolindo as lágrimas e afogando os gemidos, por que ao menos não   emudeces e calas, para que veja Nero na tua tristeza a tua dor, e leia no teu silêncio o teu voto? Mas  no mesmo tempo em que estás chorando o que condenas, hás de louvar o que choras: Et maerens  Burrhus, ac laudans? Sim, que tais são os aduladores de palácio, ainda os de maiores obrigações e de  menos corrupto juízo.

Uns autores comparam estes aduladores ao camaleão que, não tendo cor certa nem própria, se  reveste e pinta de todas as cores, quaisquer que sejam as do objeto vizinho. Outros os comparam à  sombra, que não tem outra ação, figura ou movimento que a do corpo interposto à luz, do qual nunca  se aparta, e sempre, e para qualquer parte o segue. Outros o comparam ao espelho, retrato natural e  recíproco de quem nele se vê, porque, se lhe pondes os olhos, olha para vós, se rides, ri, se chorais,  chora, lágrimas, porém, sem dor, e riso sem alegria, que não fora o espelho adulador se assim não  fora. Mas, como o camaleão, a sombra e o espelho tudo são assistentes mudos, a comparação de Santo  Agostinho é a mais própria e semelhante de todas, porque os comparou ao eco: Jucundum est, ac  volupe cum clamantibus nobis responsant sylvae, et, acceptas, voces, numerosiori repercussu reddunt.  Talis echo adulator. — O eco sempre repete o que diz a voz, nem sabe dizer outra coisa; e onde as  concavidades são muitas, é cena verdadeiramente aprazível ver como os ecos se vão respondendo  sucessivamente uns aos outros, e todos sem discrepância dizendo o mesmo. O que disse a primeira  voz é o que todos uniformemente repetem. E isto que fez a natureza nos bosques, faz a adulação nos  palácios, diz Agostinho. Diz o rei que quer fazer uma guerra, e, ainda que a empresa seja pouco  provável, e o sucesso de perigosas conseqüências, que respondem os ecos? Guerra, guerra, guerra.  Diz que quer fazer uma paz, e, ainda que a ocasião seja intempestiva e os pactos e condições pouco  decorosos, que respondem os ecos? Paz, paz, paz. Diz que quer enriquecer o erário, e para isso  multiplica os tributos, e, ainda que os fins ou pretexto tenham mais de vaidade que de utilidade, que  respondem os ecos? Tributos, tributos, tributos.

E para que eu também acrescente a minha comparação, são parecidos os aduladores aqueles quatro  animais do Apocalipse, os quais cercavam o trono do cordeiro dominador da terra, e tendo cada um  deles quatro rostos e quatro línguas, nenhuma coisa diziam nem sabiam dizer, senão amém: Et  quatuor animalia dicebant: Amen. Pois, para isto assistem ao trono, para isto os tem junto a si o supremo dominante? Para isto tanta diversidade de rostos e tanto aparato de línguas? Sim, para isto, e só para isto; para quando sair do trono a voz, eles dizerem os améns. E para que os améns digam com  o rosto, e o rosto não desdiga do que eles dizem, por isso, sendo a voz uma só, os rostos são muitos, e  tão vários quantos podem ser os afetos da majestade adulada. Se o rei está benigno e humano, para   isso tem rosto de homem: facies hominis. Se está colérico e irado, para isso tem rosto de leão: facies  leonis. Se está sobrelevado e altivo, para isto tem rosto de águia: facies aquilae. Se está melancólico e  carregado, para isto tem rosto de bezerro: facies bovis (Ez. 1,10). Enfim, muitos rostos e uma só voz,  porque sempre a língua e os gestos estão aparelhados, ou na vontade, declarada para a aprovar, ou na  inclinação, só presumida para a prevenir.


CAPÍTULO VIII

A intenção reta dos príncipes não é esta, senão que cada um diga livremente o que entende, e  aconselhem o que mais importa; mas, como o norte sempre fixo do adulador é o interesse e  conveniência própria, nenhum há que se fie deste seguro real, e todos temem arriscar a graça onde  têm posta a esperança Dizia Sêneca — e dizia o que obrava -que antes queria ofender com a verdade  que agradar com a lisonja: Maluerim veris offendere, quam placere adulando. Mas, quem era Sêneca?  Era aquele grande estóico, em cuja estimação a maior riqueza era o desprezo de todas. Era tão  opulento o seu patrimônio que só ele pudera fundar e enriquecer muitas casas, e tão grandes como as  que hoje são titulares, e tudo renunciou Sêneca, e aplicou ao fisco real. E quem com a sua fazenda  quer acrescentar os tesouros do rei, escolhe antes ofender com a verdade que agradar com a adulação.  Porém, aqueles que com os tesouros do rei querem acrescentar a sua casa e enriquecer a sua pobreza  ou a sua vaidade, que se pode crer ou esperar que façam? Que digam cinqüenta lisonjas para granjear  uma comenda, e que não se atrevam a dizer meia verdade por se não arriscar a perdê-la. Oh! reis! Oh!  monarcas do mundo, que por esta causa, e só por esta, é digna de compaixão a vossa suprema fortuna!

O Salmo Miserere mei, Deus não só o fez Davi para lamentar a sua miséria como pecador, senão  também como rei. Esse foi o seu pensamento e o seu sentimento quando disse: Tibi soli peccavi  (Sl.50,6): Eu, Senhor, só para vós pequei. — E por que só para vós, e não para os outros? Porque só  vós me estranhastes o meu pecado, porque fui pecador, e nenhum dos outros mo estranhou, porque  era rei. — Em próprios termos Esíquio: Quoniam reliquis omnibus ei tanquam regis indulgentibus,  solus Deus misit Nathan, et nefarium scelus neprehendit. O pecado de Davi só para Deus foi pecado,  porque para todos os outros, como era rei, foi indulgência Eis aqui de que serve aos reis o ser rei, e  quão lisonjeiramente o servem os que o servem. Se alguma vez na antecâmara de Davi — onde ele o  não ouvisse — se tocou no seu pecado, o que os palacianos discorriam era desta maneira. Que o  amor  de Bersabé fora um galanteio de príncipe soldado; que o casar-se com ele fora uma honrada  restituição de sua fama; que o matar a Urias fora um conselho necessário, prudente e generoso,  porque o fez morrer nobremente na guerra: prudente, porque pareceu acaso o que foi indústria, e  necessário, porque o modo mais seguro de sepultar o agravo é meter debaixo da terra o agravado. Tão  levemente se falava em palácio em um caso, mais que escandaloso, atroz, chamando ao adultério  galanteio, ao homicídio necessidade, e à aleivosia prudência. No capítulo oitavo do Segundo Livro  dos Reis se nomeiam as pessoas de que constava a casa e família superior de Davi, e é coisa que  excede todo o encarecimento da lisonja, que em tantos homens de tão grandes qualidades e  suposições se não achasse nem um só que, ou por zelo da honra, ou por escrúpulo da consciência, ou  por obrigação do ofício, ou por memória de benefícios e mercês recebidas, se atrevesse a acudir a um  rei na sua desgraça, e lhe abrir os olhos com a verdade em tão perigosa cegueira (2 Rs. 8,16 ss). Por  isso ele, considerando o seu desamparo, e conhecendo o risco da própria salvação, orava e clamava a  Deus dizendo: Salvum me fac, Domine, quoniam defecit sanctus, quoniam diminutae sunt veritates a   filiis hominum (Sl. 11,2): Salvai-me vós, Senhor; acudi-me e socorrei-me como Deus, porque entre os homens já não acho nem um só que tenha virtude e valor para me dizer a verdade.

Dois porquês aponta Davi nestas palavras, muito dignos de reparo: porque faltaram os santos:  Quoniam defecit sanctus e porque faltaram homens que com inteireza lhe dissessem a verdade:  Quoniam diminutae sunt veritates a filiis hominum: Filii hominum, em frase da Escritura, significa os  homens de ilustre geração, quais são os que assistem ao lado dos reis; e de lhes faltarem estes se  lamenta Davi. Pois, por que faltaram os santos, por isso não há quem fale verdade aos reis? Sim: de  um porquê se segue o outro porquê. Porque faltaram os santos, que são os que não querem nada deste  mundo, essa é a razão por que Davi e os outros reis não têm quem lhes diga a verdade, estando  cercados de tantos que os lisonjeiam e adulam. Até entre os gentios era verdadeira esta conseqüência.  Entre os gentios também, por seu modo, havia santos, os quais eram os filósofos, principalmente  estóicos e cínicos. Diógenes, filósofo cínico, queria tão pouco das coisas deste mundo, que nem uma  choupana tinha em que viver; e morava dentro em uma cuba. Foi-o ver por maravilha Alexandre  Magno, e, dizendo-lhe com sua natural magnificência que pedisse quanto quisesse, que responderia  Diógenes? — Peço-te que não tires o que me não podes dar. — E disse isto porque era inverno, e  Alexandre, com a sombra do corpo, lhe tirava o sol. Parece-vos que adularia aos reis um homem que  tão pouco queria deles? Bem o mostrou em uma famosa resposta sua, que refere Valério Máximo. No tempo em que reinava Dionísio em Sicília, estava Diógenes à porta ou à boca da sua cuba, lavando  umas ervas para comer, e disse-lhe um dos que passavam: — Se tu adularas a Dionísio, não comeras  ervas. — E ele respondeu: — E se tu te contentaras com comer ervas, não adularas a Dionísio: Si tu  Dionysio adulati velles, isto non ederes. Cui respondit: Si tu ista edere velles, Dionysio adulari nolles.  Porque os reis se não servem de homens que se contentem com comer ervas, por isso estão comidos  de aduladores, e cercados de inimigos: Quoniam defecit sanctus. Para ser santo deste gênero não é  necessário que faça milagres o que serve ao rei: basta ser homem que se contente com o seu pouco, e  não aspire a ter mais do que tem, nem a ser mais do que é.  Mas, se há algum destes — que sim há — o primeiro cuidado dos quatro animais que estão in  circuito throni, e nele têm cercados ou sitiados os reis, o primeiro e maior cuidado dos aduladores é  que Dionísio não ouça a Diógenes, antes se asseste contra ele toda a artilharia, para que não suceda romper as linhas da circunvalação, e, por força ou por vontade, se retire muito longe da corte. É texto  e caso expresso da Escritura Sagrada, não já em homem filósofo, senão profeta El-rei Jeroboão,  depois da divisão das coroas de Israel e Judá, tinha o seu palácio em Betel, e junto dele a mesquita  que edificara aos dois bezerros de ouro, para divertir o povo de irem sacrificar ao templo de  Jerusalém. Vivia na mesma cidade de Betel o profeta Amós, o qual dizia a Jeroboão algumas  verdades das que Deus revelava acerca daquele reino e seu perigo. E, como os aduladores de Jeroboão  se temessem da eficácia e energia de Amós, ao qual caluniavam com o rei, que totalmente lhe não  tinha perdido o amor e reverência, um deles chamado Amasias, se foi ter com o profeta, e lhe disse  em termos de amizade estas palavras: Qui vides, gradere, fuge in terram Juda, et comede ibi panem, et  prophetabis ibi. Et in Bethel non adjicies ultra ut prophetes, quia sanctificatio regis est, et domus regni  est (Am. 7,12 s). Quer dizer: Tu Amós, que vês os futuros, põe-te e logo a caminho, e foge daqui,  e vai-te e para a tua pátria: lá comerás o teu pão, e profetizarás; porém, aqui não te aconteça falar mais  palavra, porque Betel é a casa e palácio do reino, a santificação do rei. — Reparai muito nesta última  cláusula, que em moral e político sentido fecha admiravelmente todo o nosso discurso: Quia  sanctificatio regis est, et domus regni est. De maneira que exortando Amasias ao profeta Amós, ou  cominando-lhe que se saia da corte e fuja dela, o motivo que alega para isso é que a casa e palácio  real é a santificação do rei. E por quê? Não pudera melhor definir um adulador o que é palácio. E o  palácio, na definição dos aduladores, a santificação do rei, porque ali são santificados os reis e todas  as suas ações; e quanto o rei faz, ordena, deseja ou imagina, tudo é santo. Se Jeroboão se divide de  Roboão, seu legítimo senhor, ainda que seja rebelião, santo. Se proíbe ao povo que apareça no  Templo de Jerusalém três vezes no ano, ainda que seja contra a lei expressa de Deus, santo. Se levanta  altares aos bezerros de ouro, e os manda adorar, ainda que seja manifesta e pública idolatria, santo. —  E por que tu, Amós — dizia Amasias — aconselhas outra coisa ao rei, contra o que todos seus criados  lhe aprovamos, e não queres ajuntar atua voz com as nossas, dizendo também conosco: santo, santo,  santo — não só não hás de entrar mais em palácio, mas sair logo da corte e de todo o reino: Gradere,  et fuge in terram Juda, et in Bethel non adjicies ultra ut prophetes.

Tal é a sagacidade dos aduladores e sua potência. E tão tiranizadas andam entre eles as mesmas  majestades aduladas, que não só lhes não dizem a verdade, nem querem que outros lha digam, mas  afastam e lançam muito longe da corte a todos os que lha podem dizer. Não é isto manifesta tirania?  Biantes, um dos sete sábios da Grécia, perguntado qual era o animal mais venenoso, respondeu que,  dos bravos, o tirano, dos mansos, o adulador. Em chamar veneno à adulação acertou-lhe o nome; mas  em distinguir o tirano do adulador não disse bem, porque todo o adulador é tirano. O maior tirano que  houve no mundo foi Herodes; mas os seus aduladores ainda foram maiores tiranos, porque o rei foi  tirano dos vassalos, e os aduladores foram tiranos do rei. O texto de Miquéias, que lhe explicaram  acerca do nascimento do novo rei, fala expressamente de dois nascimentos do Messias, um temporal,  como homem, e outro eterno, como Deus: o temporal, como homem: Ex te enim exiet dux qui regat  populum meum ; o eterno, como Deus: Et egressus ejus ab initio, a diebus aeternitatis. E os  aduladores, que fizeram? Calaram totalmente o segundo nascimento, e só fizeram menção do  primeiro, com que, enganado Herodes, e supondo que o nascido em Belém era somente homem, e não  Deus, entendeu que o podia matar, e assim deliberou a morte dos inocentes. Mas qual foi o motivo  deste engano? O que os aduladores têm em todos os seus, que é o próprio interesse. Divinamente São  João Crisóstomo: In adulationem profecto regis, ut ad humanae gratiale lucrum veritatis damna  proficerent. Sendo a matéria tão grave, e a mais grave que podia haver, pois envolvia a coroa e a  salvação, não duvidaram, contudo, os aduladores de mentir e lisonjear ao rei, para que os danos da  verdade fossem lucros do interesse: Ut ad humanae gratiae lucrum damna veritatis proficenent. Tão  certa é a proposição do nosso assunto, e tão verdadeira e sólida a razão fundamental dele, que todos  os que em palácio são amigos do seu interesse, são inimigos do rei: Inimicos vestros.


CAPÍTULO IX

Suposto, pois, que os aduladores são inimigos dos reis, como todos os outros cristãos têm também  obrigação de amar a seus inimigos e fazer-lhes bem, seguia-se agora exortar os príncipes a este amor  e beneficência: Diligite inimicos vestros, et benefacite his qui oderunt vos. Mas este meu sermão hoje  será a primeira oração evangélica que, contra todas as leis da retórica, acabará sem peroração. Se a  cristandade de todos os príncipes católicos na observância deste preceito de Cristo é tão comum,  geralmente, e tão notória, que sendo os aduladores de palácio os seus maiores inimigos, esses são os 
maiores validos, os mais favorecidos e os mais amados conforme o diligite, e esses os mais cheios de  honras, mercês e benefícios, conforme o benefacite, nenhum lugar nos fica para a peroração do  discurso, pois os mesmos exemplos deste amor e beneficência real excedem todos os limites da eficácia a que se podia estender a exortação. Assim víramos estimados, premiados e satisfeitos os que  não servem à sombra de telhados de ouro nem ao calor de braseiros de prata, senão ao sol e ao frio,  lidando com as ondas e com as balas.

Uma só invectiva me ocorria para poder acabar o sermão, mas essa contra el-rei Davi, estranhando-lhe e repreendendo muito o modo tão alheio desta caridade com que ele tratava aos aduladores seus  inimigos. No Salmo sessenta e nove diz Davi estas palavras, ou as torna a repetir, porque já tinha dito as mesmas no Salmo trinta e nove: Avertantur retrorsum, et erubescant, qui volunt mihi mala;  avertantur statim erubescentes, qui dicunt mihi; Euge, euge! Primeiro que tudo se deve advertir,  em confirmação do que fica dito, que aqueles qui dicunt mihi: Euge, euge são os mesmos qui volunt  mihí mala, porque adular é querer mal, e ser adulador é ser inimigo, e quantos são os euges que vos dizem, tantos são os males que vos querem. E a estes aduladores, que Davi reconhecia por seus  inimigos, que é o que lhes fazia ou resolvia fazer como rei? Quatro coisas. Primeira, que  experimentassem a grande aversão que lhes tinha: Avertantur, avertantur. Segunda, que logo saíssem  de sua casa, e não aparecessem mais em sua presença: Avertantur statim. Terceira, que não fossem  adiantados em nada, senão abatidos e atrasados: Avertantur retrorsum. Quarta e última, que pois se  não envergonharam de ser aduladores, padecessem a vergonha de ser conhecidos publicamente e  tratados como tais: Avertantur et erubescant; avertantur statim erubescentes. — Isto é, Davi, o que  vós fazíeis aos aduladores, vossos inimigos como rei; mas não é isto o que lhes devíeis fazer como  profeta, que tão clara luz tivestes do Evangelho de Cristo. Pois, se Cristo vos manda que ameis a  vossos inimigos: Diligite inimicos vestros — como vós os aborreceis tanto que os não podeis ver, e os   lançais de vossa casa e de vossa presença? E se Cristo vos manda que lhes façais bem: Et benefacite  his qui odenunt vos — como vós lhes fazeis tanto mal que os afrontais e envergonhais, não  secretamente, mas com infâmia pública, que para homens que tiveram tantos postos, é o maior  vitupério?

Responde Davi, e a invectiva que eu fazia contra ele, revolta ele contra mim. — E tu, pregador, és  filósofo e teólogo, e ainda não sabes a definição do amor? Amare est valle bonum alicui: Amar é  querer bem àquele a quem se ama. — E que maior bem posso eu querer a um adulador, que fazer que  não continue em tão vil exercício? E que maior benefício pode esperar de mim um amigo do seu  interesse, e inimigo da verdade, que tirá-lo da ocasião de fazer traições à mesma verdade e a vender  infamemente pelo interesse? Se eles, adulando-me, são meus inimigos, maiores inimigos são de si  mesmos, e eu quero que cessem deste ódio que se têm, tanto maior quanto menos conhecido. E se,  adulando-me, podem fazer mal ao meu governo e à minha coroa, muito maior é o mal que se fazem às  suas consciências e às suas almas, e eu quero que desistam deste grande mal contra seu gosto, pois o  não hão de fazer por vontade. Se Assuero, depois que conheceu a cobiça e falso amor de Amã, o  lançara de sua graça e de sua casa, não chegara ele a ser tão mofino, que viesse a morrer em um pau; e  o que aquele rei não soube fazer a tempo a seus aduladores, faço eu logo aos meus, sem o dissimular,  porque os amo e lhes desejo o verdadeiro bem, e quero observar neles o preceito de Cristo: Diligite  inimicos vestros, et benefacite his qui oderunt vos. — Deste modo rebateu Davi a minha invectiva, e,  ajuntando eu ao exemplo que me alegou de Amã, o de Sejano em Roma, o de Olivato em França, o de Wolsey em Inglaterra, o de Álvaro de Luna em Espanha, e os da antiga e fresca memória no nosso  Portugal, conheci a verdade sobre-humana da razão de Davi, e fiquei convencido dela. Mas, porque eu em todo este sermão só professei e protestei referir, e não ajuizar, posto finalmente agora entre dois extremos tão contrários, como o de el-rei Davi e o dos outros reis, acabarei com o  exemplo do primeiro fundador da nossa corte, o qual, entre um e outro extremo, tomou um tal meio  de composição, que, parece, satisfez a ambos. E que meio foi este? Ouvir os aduladores, mas não se  mover por eles. S. Pedro Damião e outros santos comparam os aduladores às sereias, as quais com a  suavidade das suas vozes de tal modo encantavam os navegantes, que voluntariamente se lançavam e  precipitavam às ondas, e se afogavam no mar em que elas viviam. Houve de passar por este mesmo  mar — que era junto a Sila e Caribdes, — o fundador de Lisboa, Ulisses, e, usando da sua ciência e  sagacidade, que fez? Navegava em uma formosa galé da Grécia, e para que a chusma não faltasse à  voga dos remos, nem a outra gente náutica à mareação das velas, e todos escapassem do encanto das  sereias, tampou-lhes a todos os ouvidos, de tal sorte que as não ouvissem. Ele, porém, para que  pudesse ouvir as vozes, deixou os ouvidos abertos, e para não padecer os efeitos do encanto, nem se  precipitar ao mar, como acontecia a todos, mandou-se atar ao mastro tão fortemente, que, ainda que  quisesse, não se pudesse bulir nem mover. Esta é a história ou fábula engenhosamente fingida por  Homero para ensinar que os varões sábios e constantes, como Ulisses, ainda que ouçam os aduladores  e o contraponto doce das suas lisonjas, nem por isso se hão de deixar vencer de seus enganos e  artifícios, mas persistir e continuar a derrota certa, sem mudar, deter nem torcer a carreira do bom  governo. Assim o pudera fazer também quem tanto confiar ou presumir de sua constância, e não  conhecer que isto mesmo, ainda somente dito, é fábula. Mas, se eu tivera autoridade para emendar a  Homero, e confiança para aconselhar a Ulisses, não o havia de querer com os ouvidos abertos e as  mãos atadas, senão com os ouvidos tapados e as mãos soltas, porque, com os ouvidos tapados não  daria entrada à adulação, e com as mãos soltas seriam todas as ações suas, e, como suas,  verdadeiramente reais. Deste modo se conquista no mundo a fama imortal, e se assegura também no  céu a glória eterna.


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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma" (1651)

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