SERMÃO DA PRIMEIRA DOMINGA DO
ADVENTO (1655)
Cælum et terra transibunt;
Verba autem mea non transibunt.
Luc., XXI.
CAPÍTULO I
Passará o céu e a terra, mas o
que dizem as minhas palavras não passará. Com esta notável, e não usada sentença conclui Cristo Redentor nosso,
a narração do Evangelho que acabamos de ouvir. Diz que há de vir julgar e pedir conta ao mundo
no último dia dele: e porque antes de o mundo ser julgado há de ser abrasado primeiro, e convertido em
cinzas; sobre o incêndio, que o há de consumir, cai a primeira parte da conclusão: Coelum et terra transibunt; e sobre a
conta que depois promete há de tomar a
todo o gênero humano, cai a segunda: Verba
autem mea non transibunt. Estes são os dois
maiores portentos, que no teatro universal do Juízo verão naquele dia
homens e anjos. Ali se verá o princípio
do mundo junto com o fim, e o fim junto com o princípio: o princípio com o fim,
em tudo o que passou, e o fim com o
princípio, em tudo o que não há de passar. Parece dificultosa esta união
em tanta distância de séculos; mas esse
é, e será um dos maiores milagres daquele dia, porque tudo o que passou, e deixou de ser, e desapareceu com o
tempo, como se não tivera passado, ou tornara a ser de novo, há de aparecer com a conta. Se olharmos
para todas as coisas quantas houve, há, e há de haver no mundo, então se verá, que todas passaram, transibunt. Mas se olharmos para essas
mesmas coisas, as quais como
ressuscitada com o gênero humano hão de ser citadas com ele para aparecer em
Juízo; então se verá também, e com maior
assombro, que nenhuma delas passou, non
transibunt. Estas duas verdades,
pois, cuja fé o mesmo Supremo Juiz com tanta expressão nos ratifica; estes
dois desenganos, a que tão mal nos
persuadimos os mortais enquanto vivemos; e estas duas considerações do que passou e do que não há de passar, transibunt et non transibunt, serão hoje
os dois pólos, ou pontos do meu
discurso. No primeiro, que tudo passa para a vida: no segundo, que nada passa
para a conta. Em dia tão grande não pode
o sermão ser breve. Aos ouvintes não peço atenção, mas paciência. Deus, a quem tomo por testemunha de que
procurei não lhe dar conta do que hoje disser, se sirva de nos assistir a todos com sua graça em matéria
que tanto toca a todos.
CAPÍTULO II
Tudo passa, e nada passa. Tudo
passa para a vida, e nada para a conta. A verdade e desengano de que tudo passa (que é o nosso primeiro ponto)
posto que seja por uma parte tão evidente, e que parece não há mister prova, é por outra tão dificultoso,
que nenhuma evidência basta para o persuadir. Lede os filósofos, lede os profetas, lede os
apóstolos, lede os santos padres, e vereis como todos empregaram a pena, e não uma senão muitas vezes, e com
todas as forças da eloqüência, na declaração deste desengano, posto por si mesmo tão claro.
Sabiamente falou quem disse que a
perfeição não consiste nos verbos, senão nos advérbios: não em que as nossas obras sejam honestas e boas,
senão em que sejam bem feitas. E para que esta
condicional tão importante se estendesse também às coisas naturais e
indiferentes, inventou o apóstolo S.
Paulo um notável advérbio. E qual foi? Tanquam
non, como senão: Ut qui habent
uxores, tanquam non habentes sint: et
qui flent, tanquam non flentes: et qui gaudent, tanquam nan gaudentes: et qui emunt, tanquam non possidentes: et qui
utuntur hoc mundo, tanquam non utantur. Sois casado? (diz o apóstolo) pois empregai todo o vosso
cuidado em Deus, como se o não fôreis. Tendes ocasiões de tristezas? pois chorai, como se não
choráreis. Não são de tristeza, senão de gosto? pois alegrai-vos, como se não vos alegráreis. Comprastes o que
havíeis mister, ou desejáveis? pois possuí-o, como se não possuíreis. Finalmente usais de alguma
outra coisa deste mundo? pois usai dela, como se não usáreis. De sorte que quanto há, ou pode
haver neste mundo, por mais que nos toque no amor, na utilidade, no gosto, a tudo quer S. Paulo que
acrescentemos um, como se não, tanquam
non. Como se não houvera tal coisa,
como se não fora nossa, como se não nos pertencera. E por quê? Vede a razão:Præterit
enim figura hujus mundi. Porque nenhuma coisa deste mundo pára, ou
permanece; todas passam. E como todas
passam e são como se não foram, assim é bem que nós usemos delas, como se não usáramos: Tanquam non utantur. Por isso a essas mesmas coisas não lhes chamou
o oráculo do terceiro céu coisas, senão
aparências, e ao mundo não lhe chamou mundo, senão figura do mundo: Præterit
enim figura hujus mundi.
Considerai-me o mundo desde seus
princípios, e vê-lo-eis sempre, como nova figura no teatro, aparecendo e desaparecendo juntamente, porque
sempre está passando. A primeira cena deste teatro foi o paraíso terreal, no qual apareceu o
mundo vestido de imortalidade, e cercado de delícias; mas quanto durou esta aparência? Estendeu Eva o
braço à fruta vedada, e no brevíssimo espaço em que o bocado fatal passou pela garganta do homem,
passou também com ele o mundo do estado da
inocência ao da culpa, da imortalidade à morte, da pátria ao desterro,
das flores aos espinhos, do descanso aos
trabalhos, e da felicidade suma ao sumo da infelicidade e miséria. Oh miserável
mundo, que se pararas assim, e te
contentaras com comer o teu pão com o suor do teu rosto, foras menos miserável! Mas não serias mundo, se de uma
miséria grande não passasses sempre, e por tua natural inclinação, a outra maior. Os homens naquela
primeira infância do mundo todos vestiam de peles, todos eram de uma cor, todos falavam a mesma
língua, todos guardavam a mesma lei. Mas não foi muita o tempo em que se conservaram na
harmonia desta natural irmandade. Logo variaram e mudaram as peles com tanta diferença de
trajos, que cada dia, dos pés à cabeça, aparecem com nova figura. Logo variaram e mudaram as línguas
com tanta dissonância e confusão, como a da torre de Babel. Logo variaram e mudaram as cores com a
diversidade das terras e climas, e com a mistura do sangue, posto que todo vermelho. Logo
variaram e mudaram as leis, não com as de Platão, Sólon, ou Licurgo, mas com a do mais imperioso e
violento legislador, que é o próprio alvedrio. Tudo mudaram, ou tudo se mudou, porque tudo passa.
As vidas naquele princípio
costumavam ser de sete, de oito, de novecentos e quase de mil anos; e que brevemente se acabou este bom costume? Então
o viver muitos séculos era natureza, hoje chegar, não a um século, mas perto dele, é milagre.
Tardaram em passar até Noé, e também passaram. Com aquelas vidas não só cresciam os anos, senão
também os corpos: e dos filhos de Deus, que eram os descendentes de Set, e das filhas dos homens,
que eram as descendentes de Caim, nasceram os
gigantes, de quem diz a Escritura: Erant
gigantes super terram. Alguns ossos
que ainda duram destes que o mesmo texto
sagrado chama varões famosos, demonstraram pela simetria humana, que não podiam ser menos que de vinte, e mais
côvados: e ainda na história das batalhas de Davi temos memória de outros quatro, posto que de muito
menor estatura Mas, enfim, acabou a era dos gigantes; porque tudo nesta vida, e mais depressa o que
é grande, acaba e passa. Diminuídos os
homens nos corpos e nas idades, quando tinham a morte mais perto da vista (quem
tal crera!) então cresceram mais na
ambição e soberba. E sendo todos iguais e livres por natureza, houve alguns que entraram em pensamento de se fazer
senhores dos outros por violência, e o conseguiram. O primeiro que se atreveu a pôr coroa na
cabeça, foi Membroth, que também como o nome de Nino, ou Belo, deu princípio aos quatro impérios,
ou monarquias do mundo. O primeiro foi o dos assírios e caldeus; e onde está o império caldaico? O
segundo foi o dos persas; e onde está o império persiano? O terceiro foi o dos gregos; e onde está o
império grego? O quarto, e maior de todos, foi o dos romanos; e onde está o império romano? Se
alguma coisa permanece deste, é só o nome: todos passaram, porque tudo passa. Em três famosas
visões representou Deus estes mesmos impérios a um rei, e a dois profetas. A primeira visão foi
a Nabucodonosor na estátua de quatro metais; a segunda a Zacarias em quatro carroças de cavalos de
diferentes cores; a terceira a Daniel em um conflito dos quatro ventos principais, que no meio do mar
se davam batalha. Pois se todas estas visões eram de Deus e todas representavam os mesmos
impérios, por que variou tanto a sabedoria divina as figuras, e sobre a primeira da estátua, tão clara e
manifesta, acrescentou outras duas tão diversas em tudo?
Porque a estátua, na dureza dos
metais de que era composta, e no mesmo nome de estátua, parece que representava estabilidade e firmeza: e porque
nenhum daqueles impérios havia de preservar firme e estável, mas todos se haviam de mudar
sucessivamente, e ir passando de umas nações a outras; por isso os tornou a representar na variedade das
carroças na inconstância das rodas, e na carreira e velocidade dos cavalos. Mas não parou aqui a
energia da representação, como não encarecida ainda bastantemente. A estátua estava de pé, e as
carroças podiam estar paradas. E porque aqueles impérios correndo mais precipitadamente que a rédea
solta, não haviam de parar no mesmo passo, nem por um só momento, e sempre se haviam de ir mudando,
e passando; por isso, finalmente, os representou Deus na causa mais inquieta, mudável, e
instável, quais são os ventos, e muito mais quando embravecidos e furiosos: Et ecce quatuor venti coeli pugnabant in mari magno.
CAPÍTULO III
Enquanto passaram estes quatro
impérios, que foi a terceira, quarta, quinta e sexta idade do mundo, entrando, também, pela sétima: quem haverá
que possa compreender quanto passou no mesmo
mundo? Quando começou o primeiro império, então começou também a
idolatria, digno castigo do céu, que
pois os homens se fizeram adorar, chegassem os mesmos a adorar paus e pedras.
Os reis, porém, que eram, ou tinham sido
os idólatras, canonizados depois pela adulação e lisonja, ou na vida, ou depois da morte, vinham também eles a ser
ídolos. Assim Saturno, assim Júpiter, assim Mercúrio, assim Apolo, assim Marte, assim Vênus, assim
Diana; e posto que todos estes deixaram os seus
nomes gravados nas estrelas, elas permanecem, mas eles passaram.
Passaram os ídolos, e também passaram os
oráculos com que neles respondia o pai da mentira, porque ao som da verdade do
Evangelho todos emudeceram.
Então começaram as guerras: e que
direi dos exércitos inumeráveis, das batalhas campais e marítimas, das vitórias. e triunfos de umas nações, e da
ruína, abatimento e servidão de outras, tão vária e alternada sempre? Só digo, que assim a glória
e alegria dos vencedores, como a dor e afronta dos vencidos, tudo passou; porque tudo passa. O
exército de Xerxes, que foi o maior que viu o mundo, constava de cinco mil naus, e cinco milhões
de combatentes; e porque de uma e outra parte fez continente o Helesponto, e cavou e fez
navegável o monte Ato, disse dele Marco Túlio, que caminhava os mares a pé, e navegava os
montes: Tantis classibus Xerxes in
Groeciam transia, ut Hellesponto juncto.
Athoque monte perfosso, maria ambularit, terramque navigarit maria pedibus peragrans, classibus montes. Mas todo
aquele intenso e formidável aparato, que visto fez tremer o mar e a terra, tão brevemente passou e
desapareceu sendo desbaratado e vencido, que só ficou dele este dito. O mesmo Temístocles, que com muito
desigual poder o desfez e pôs em fugida, também passou, como na Grécia e fora dela passaram todos os
famosos capitães e suas vitórias. Passou Pirro, passou Miltrídates, passou Filipe de Macedônia:
passaram Heitor e Aquiles, passaram Aníbal e Cipião, passaram Pompeu e Júlio César, passou o grande
Alexandre, nome singular e sem parelha, e até Hércules, ou fosse um, ou muitos
todos passaram, porque tudo passo.
Costumam às letras seguir-se as
armas, porque tudo leva após si o maior poder; e assim floresceram variamente, em diversas partes no tempo
destes impérios, todas as ciências e artes. Floresceu a filosofia, floresceu a matemática, floresceu
a teologia, floresceu a astrologia, floresceu a medicina, floresceu a música, floresceu a oratória,
floresceu a poética, floresceu a história, passou o a arquitetura, floresceu a pintura, floresceu a
estatuária; mas assim como as flores se murcham e se secam, assim passaram todos os autores mais
celebrados das mesmas ciências e artes. Na estatuária passou Fídias e Lisipo; na pintura passou
Timantes e Apeles; na arquitetura passou Meliagenes e Demócrates; na música passou Orfeu e Amphion;
na história, Tucídides e Lívio; na eloqüência,
Demóstenes e Túlio; na poética, Homero e Virgílio; na astrologia,
Anaxágoras e Ptolomeu; na medicina,
Esculápio e Hipócrates; na matemática, Euclides e Arquimedes; na filosofia,
Platão e Aristóteles; na teologia,
Mercúrio Trismegisto e Apolônio Tiâneo; e por junto em todas as ciências passaram no mesmo tempo os sete sábios da
Grécia, porque, ou junto ou dividido, tudo passa. Só a ética e a moral, como tão necessárias ó, vida
e à virtude, parece que não haviam de passar; mas os platônicos, os
peripatéticos, os epicureus, os cínicos, os pitagóricos, os estóicos, os
acadêmicos, eles, e suas escolas e seitas, todos passaram.
Nenhuma coisa é mais própria
desta consideração em que vamos, que os jogos e espetáculos públicos, que os homens inventaram a título de
passatempo, como se o mesmo tempo não passara mais velozmente que tudo quanto passa.
Uns jogos foram os circenses, outros os dionisíos, outros os juvenais, outros
os nemeus, outros os maratoneus, todos cheios de diferentes divertimentos, em
que, ou se perdia a honestidade, como nos de Vênus; ou o Juízo, como nos de
Baco; mas nenhuns mais indigno dos olhos humanos e piedade natural, que os
gladiatórios. Saía toda Roma ao anfiteatro, a
quê? a ver e festejar como se matavam homens a homens; saíam uns, e
sobrevinham outros, e outros, sem estar o posto vago um só momento, aclamando a
cabeça do mundo, com aplausos mais carniceiros que cruéis, assim no dar, como
no receber das feridas, tanto a intrepideza dos mortos, como a fúria dos
matadores. Os jogos seculares se chamavam assim, porque se celebravam uma só
vez de século a século; e dizia o pregão público que convidava para eles: Venite ad ludos, quos nemo vìdit unquam, nec
visurus est: Vinde ver os jogos, que ninguém viu, nem há de tornar a ver. E
com este desengano da vida passada e desesperação da futura, os iam todos ver,
e se chamavam jogos. Os olímpicos foram os mais célebres e famosos de todos, em
que de cinco em cinco anos, concorria todo
o mundo a uma cidade do mesmo nome, ou levar, ou ver quem levava uma
coroa de louro. Por estes jogos, mais
que pelo curso do sol, se contavam e distinguiam os anos. Mas como toda a
competência era a correr, e o que mais corria era o que triunfava, não podiam
deixar de passar as Olimpíadas, como
passaram todos os outros jogos daqueles tempos, ou todos os passatempos
daqueles jogos. Só uma coisa há que não pode passar, porque o que nunca foi,
não pode deixar de ser, e tais parece que foram as fábulas que neste mesmo
tempo se inventaram e fingiram. Mas se elas não passaram em si mesmas, passaram naqueles casos e coisas
que deram ocasiões a se fingirem. Na seca universal que abrasou todo o mundo, passou a fábula de
Faetonte: no dilúvio particular que inundou grande parte dele, passou a fábula
de Deucalion; no estudo com que el-rei Atlante contemplava o curso e movimento das estrelas, passou a fábula de
trazer o céu aos ombros; na especulação contínua de todas as noites, com que Endimion observava os
efeitos do planeta mais vizinho à Terra, passou a fábula dos seus amores com a Lua. E porque também os
nossos vícios, a nossa fraca virtude, e a nossa mesma vida passam como fábula; o
amor e complacência de nós mesmos passou na fábula de Narciso; a riqueza sem juízo, na fábula de
Midas; a cobiça insaciável, na fábula de Tântalo; a inveja do bem alheio, na fábula e abutre de Tício; a
inconstância da fortuna mais alta, na fábula e roda de Ixion; o perigo de acertar com o meio da
virtude, e não declinar aos vícios dos extremos, na fábula de Cila e Caribde; e finalmente a certeza da
morte, a incerteza da vida, pendente sempre de um fio, passou e está continuamente passando na
fábula das Parcas. Assim envolveram e misturaram os sábios daquele tempo o que há com o que não
há, e o certo com o fabuloso; para que nem o louvor nos desvaneça, nem a calúnia nos desanime,
pois o verdadeiro e o falso, a verdade e a mentira, tudo passa.
Mas não é justo que nesta
passagem de tudo o que passou no tempo dos quatro impérios profanos do mundo, passemos nós em silêncio aquela
república sagrada, que alcançou a todos quatro, e por ser fundada por Deus, parece que tinha direito a
não passar. Nasceu a república hebréia no cativeiro do Egito; e quem então lhe levantasse figura,
facilmente lhe podia prognosticar os três cativeiros e transmigrações com que foi arrancada da pátria.
Uma vez cativa por Salmanasar, em que passou
desterrada aos assírios; outra vez cativa por Nabucodonosor, em que
passou desterrada aos babilônios; e a
terceira e última vez cativa por Tito e Vespasiano, em que passou desterrada a
todas as terras e nações do mundo.
Começou no famoso triunvirato de Abraão, Isaac, e Jacó, tantas vezes nomeado e
honrado por boca do mesmo Deus; mas nem por isso deixaram de passar todos três.
Sucedeu-1he José, o que sonhou as suas felicidades e as adorações de seu pai e
irmãos; e posto que todas se cumpriram, todas passaram como se foram sonho. Teve
o mesmo povo três estados de governo: o dos juizes, o dos reis, o dos capitães;
e se bem subindo e descendo, as varas se trocaram com os cetros, e os cetros
com os bastões, nenhum daqueles estados foi estável, todos passaram. Nos juizes
passou a espada de Gedeão, o arado de Sangar, e a queixada de Sansão. Nos reis
passou a valentia de Davi, a sabedoria de Salomão, e a piedade e religião de
Josias. Nos capitães passou o braço invencível de Judas Macabeu, vencedor de
tantas batalhas; passou a façanha imortal de Eleazar, que metendo-se debaixo do
elefante, cavou a sua própria sepultura: e passou mais gloriosa que todos o
honrado e glorioso testamento do velho Matias, digno de ser escrito em branzes.
E porque não fiquem totalmente em silêncio as heroínas da mesma nação, quatro
houve nela insignes na formosura: Sara, Raquel, Ester e Judite, todas porém
fatais a quem as amou. Sara a um peregrino com perigos; Raquel a um pastor com trabalhos; Ester a um
rei com desgostos; e Judite a um general com a morte. Este acabou miseravelmente a vida; mas as
formosuras antes de se acabarem as vidas, já tinham passado. Floresceram no
mesmo povo, além de outros igualmente verdadeiros, dezesseis profetas canônicos, quatro maiores, e doze menores;
mas em espaço de três séculos os maiores e menores, desde Oséias a Malaquias, todos passaram:
Passaram os milagres da vara, passaram os da serpente de metal, passaram os de Elias e Eliseu: e
porque só faltava passar a lei de Moisés, e o sacerdócio de Arão, a lei e o sacerdócio também passaram,
porque tudo passa.
Agora quisera eu perguntar ao
mundo, se como me enche a memória de tantas coisas, que todas passaram, me mostrará alguma aos olhos que
não passasse? As sete fábricas a que a fama deu o nome de maravilhas, acrescentaram alguns como
oitava o anfiteatro romano. Mas a maravilha oitava, ou nona, é que todas essas maravilhas, que
pareciam eternas, passaram. A primeira maravilha foram as pirâmides do Egito, a segunda os muros de
Babilônia, a terceira a torre de Faros, a quarta o colosso de Rodes, a quinta o mausoléu de Cária, a sexta
o Templo de Diana Efesina, a sétima o simulacro de Júpiter Olímpico. E deixando o anfiteatro, de
que só se vêem as ruínas, as pirâmides caíram, os muros arrasaram-se, o colosso desfez-se, o mausoléu
sepultou-se, a torre sumiu-se, o farol apagou-se, o templo ardeu, e o simulacro como simulacro,
desvaneceu-se em si mesmo. Tem mais que dizer, ou que opor o mundo? Só pode apelar para as mais
fortes e bem fundadas cidades, cortes e metrópoles dos mais poderosos impérios: argumento
verdadeiramente de grande boato, antes de se lhe tomar o peso. Nínive, corte de Nino, foi a maior
cidade do mundo: andava-se de porta a porta, não menos que em três dias de caminho; edificada de
propósito com arrogância de que nenhuma outra a igualasse, como não igualou. Mas onde está essa Nínive?
Ecbátana, corte de Arfaxad, e cidade que o texto sagrado chama potentíssima, era cercada de
sete ordens de muros, todos de pedras quadradas, cada uma com vinte e sete palmos por todas as
faces, e as portas com a prodigiosa. altura de cem côvados. Mas onde está essa Ecbátana? Susa, corte de
Assuero, e metrópole de cento e vinte e sete Províncias, cujo palácio representava um céu estrelado,
fundado sobre colunas de oiro e pedras preciosas, e cujos muros eram de mármores brancos e jaspes de
diferentes cores; bem se deixa ver quão forte e
inexpugnável seria, pois defendia tão grande monarca, dominava tantos
reinos e guardava tantos tesouros. Mas
onde está essa Suas? Se houvéssemos de fazer a mesma pergunta às ruínas de
Tebas, de Memphis, de Bactra, de
Cartago, de Corinto, de Sebaste, e da mais conhecida de todas, Jerusalém, necessário seria dar volta a toda a redondeza
da Terra. De Tróia disse Ovídio: Jam
seges est ubi Troia fuit. E o mesmo
podemos dizer das planícies, vales e montes, donde se levantavam às nuvens
aqueles vastíssimos corpos de casas,
muralhas e torres. De umas se não sabem os lugares onde estiveram; doutras se lavram, semeiam, e plantam os
mesmos lugares, sem mais vestígios de haverem sido, que os que encontram os arados, quando rompem a
terra. Para que os homens compostos de carne e
sangue se não queixem da brevidade da vida, pois também as pedras
morrem; e para que ninguém se atreva a
negar, que tudo quanto houve, passou, e tudo quanto é, passa.
CAPÍTULO IV
A razão deste curso, ou
precipício geral com que tudo passa, não é uma só, senão duas: uma
contrária a toda a estabilidade, e outra
repugnante ao mesmo ser. E quais são? O tempo, e antes do tempo, o nada. Que coisa mais veloz, mais fugitiva, e
mais instável que o tempo? Tão instável, que nenhum poder, nem ainda o divino o pode parar. Por
isso os quatro animais, que tiravam pela carroça da . glória de Deus neste
mundo, não tinham rédeas. Descreveu o Tempo no palácio do Sol o mais engenhoso
de todos os poetas, e dividindo-o em suas partes, disse assim elegantemente:
A dextra, loevaque dies, et mensis, et annus,
Soeculaque et positoe spatiis aqualibus horoe:
Verque novum stabat cinctum florente corona;
Stabat nuda oestas, et spicea serta gerebat
Stabat et Autumnus calcatis sodidus uvis;
Et glacialis Hyems canis hirsuta capillis.
Elegantemente, torno a dizer, mas
falsa e impropriamente. Aquele stabat tantas vezes repetido, é o que tirou toda
a semelhança de verdade à engenhosa pintura. Porque nem a primavera com as suas
flores, nem o estio com as suas espigas, nem o outono com os seus frutos, nem o
inverno com os seus frios e neves, por mais tolhido e entorpecido que pareça,
podem estar parados um momento. Passam as horas, passam os dias, passam os
anos, passam os séculos, e se houvesse hieroglífico com que se pudessem pintar,
haviam de ser todos com asas, não só correndo e fugindo, mas voando e
desaparecendo. Nem escusa esta impropriedade estar o Sol assentado: Sedebat in solio Poebus; porque o Sol
pode parar, como no tempo de Josué, ou tornar atrás, como no tempo de Ezequias;
mas o tempo em nenhum tempo, pode deixar de ir por diante sempre, e com a mesma
velocidade. Bem emendou esta sua impropriedade o mesmo poeta, quando depois
disse:
Ipsa quoque assiduo labuntur motu
Non secus ac flumen, neque enim consistere flumen
Aut levis hora potest.
E como o tempo não tem, nem pode
ter consistência alguma, e todas as coisas desde seu princípio nasceram juntamente com o tempo, por isso nem
ele, nem elas podem parar um momento, mas com
perpétuo moto, e revolução insuperável passar, e ir passando sempre.
A segunda razão ainda é mais
natural e mais forte: o nada. Todas as coisas se resolvem naturalmente, e vão buscar com todo o peso o ímpeto da
natureza, o princípio donde nasceram. O homem porque foi formado da terra, ainda que seja como
dispêndio da própria vida, e suma repugnância da vontade, sempre vai buscar a terra, e só descansa na
sepultura. Os rios esquecidos da doçura de suas águas, posto que as do mar sejam amargosas, como
todos nasceram do mar, todos vão buscar o mesmo mar, e só nele se desafogam, e param como em seu
centro. Assim todas as coisas deste mundo, por grandes e estáveis que pareçam, tirou-as Deus com o
mesmo mundo do não ser ao ser; e como Deus as criou do nada, todas correm precipitadamente, e sem
que ninguém lhes possa ter mão, ao mesmo nada de que foram criadas. Vistes a torrente formada
da tempestade súbita, como se despenha impetuosa, e com ruído; e tanto que cessou a chuva, também
ela se secou, e sumiu subitamente, e tornou a ser o nada que dantes era? Pois assim é tudo, e
somos todos, diz Davi: Ad nihilum
devenient tanquam aqua decurrens. Sonhastes
no último quarto da noite, quando as representações da fantasia são menos confusas, que possuíeis grandes riquezas, que
gozáveis grandes delícias, e que estáveis levantado a grandes dignidades; e quando depois
acordastes, vistes com os olhos abertos, que tudo era nada? Pois assim passam a ser nada em um abrir de olhos
todas as aparências deste mundo, diz o mesmo profeta: Velut
somnium surgentium, Domine, imaginem
ipsorum ad nihilum rediges. De sorte que estas são as duas razões por que todas. as coisas
passam. Passam, porque voam com o tempo, e passam, parque vão caminhando para o nada donde saíram. Por
isso, como disse o Espírito Santo, quando umas
passaram, ou têm passado; é necessário que venham outras para também
passar: Generatio praeterit, et generatio advenit: terra autem in oeternum
stat.
Mas se bem se repara nesta mesma
sentença, sendo tão poucas as suas palavras, assim como umas confirmam assim outras parece que impugnam, e
destroem quanto vínhamos dizendo. Porque se a
Terra está sempre firme, e estável: terra
autem in aeternum stat; segue-se que ao menos a mesma Terra não passa, e que há no mundo alguma
coisa, que não passe. Concederemos pois esta exceção ao nosso assunto, e diremos que passam as
figuras, como diz S. Paulo, mas que a Terra, que é o teatro, não passa? Não digo, nem concedo tal. A Terra
toda não passa, mas passam, e sempre estão passando todas as partes dela. A Terra compõe-se de
reinos, os reinos compõem-se de cidades, as cidades compõem-se de casas e campos, e
principalmente de homens, e tudo isto, que tudo é terra (e toda a Terra) perpetuamente está passando. Daniel
revelando a Nabucodonosor a inteligência da sua estátua, disse que Deus muda os tempos, e as idades, e
conforme elas passa os reinos de uma parte para outra: Ipse
mutat tempora, et aetates: transfert regna, atque constituit ). Assim
passou o reino do mesmo Nabuco para a
Pérsia, o dos persas para a Grécia, o dos gregos para Roma, e dos romanos para
tantos outros, quantos hoje coroam
outras cabeças, as quais se devem lembrar daquela infalível sentença: Regnum a gente in gentem transfertur propter
injustitias. O nosso reino não sendo no sítio original dos maiores, quantas vezes passou a outras
gentes? Passou aos suevos, passou aos álanos, passou aos cartagineses, passou aos romanos, passou aos
árabes e sarracenos e, dentro da mesma Espanha,
também passou, e tornou a passar. Os terremotos, que se geram do ar
violentado nas entranhas da Terra, são
muito raros, mas os que se fazem na superfície dela, sempre a trazem em
perpétuo movimento.
E se os grandes reinos e impérios
não são estáveis, e passam; que serão as cidades particulares, para que não é necessário, que a roda da fortuna
dê toda a volta? Não falo daquelas que acabaram como de morte súbita, abrasadas até à última cinza no
incêndio de uma noite, como Tróia e Lugduno. Desta disse judiciosamente Sêneca: Quando una nox fuit inter urbem maximam, et
nullam, nihil privatim, nihil publice
stabile est: tam hominum, quam urbium fata volvuntur. Deixadas pois estas,
que subitamente passaram do ser ao não
ser; só falo das que por seus passos contados vieram de um domínio a outro domínio. E quantas vezes as
pombas de Babilônia, quantas os leões de Jerusalém, quantas as águias de Roma e de Constantinopla
viram sobre suas muralhas outras bandeiras? O maior teatro de Marte no nosso século, e
porventura, que em nenhum outro, foram as guerras bélgicas; e na grande Província de Holanda, exceta Dorth,
por isso chamada a Virgem, nenhuma cidade houve, que não fosse conquistada e alternasse o domínio.
Que direi dos confins sempre incertos, e tão
freqüentemente mudados, de Espanha com França, de França com Germânia,
de Germânia com a Turquia, e da Turquia
com Itália? Anos há, que a antiga Creta, hoje Cândia, sem ser das ilhas
errantes do arquipélago, tem posto em
dúvida o mundo para onde há de ir, e se há de reconhecer as cruzes, ou as meias-luas.
E quanto às casas, membros
menores de que se compõem inumeravelmente as cidades; quem poderá compreender o inextricável labirinto, com
que, à maneira de peixes do mar, se andam sempre movendo, e passando de um dono para outro
dono? Ouçam a familiar evidência com que o grande juízo de Santo Agostinho demonstrou a um
deles esta perpétua instabilidade. Introduz um rico, que, jactancioso de ser senhor da sua casa, dizia:
Domum meam habeo; e pergunta-lhe o
santo assim: Quam domum tuam? Quam Pater meus mihi dimisit. Et unde ille habuit?
Avus noster illam reliquit. Recurre ad
Proavum, inde ad Abavum et jam nomina nan potes dicere. Pater tuus hic eam dimisit
transivit per illam, sic et tu transibis. Esta casa de que
vos jactais ser senhor, por que é vossa? Porque
a herdei de meu pai; e vosso pai de quem a houve? De meu avô; e de quem
a houve vosso avô? De meu bisavô; e vosso
bisavô de quem? De meu trisavô. Já não tendes palavras com que prosseguir de
quem mais foi, e a quem mais passou essa casa, que chamais vossa. Pois assim
como ela passou, e, vossas antepassados
passaram por ela, assim ela e vós também haveis de passar. Por este modo
sem firmeza, nem estabilidade alguma,
estão sempre passando neste mundo as casas, as quintas, as herdades, os morgados: uns, porque os faz
passar a morte, outros, porque os manda passar a justiça, outros, porque os convida a passar a riqueza
dos que os compram, outros, porque os obriga á
necessidade dos que os vendem, outros, porque a força e poder os rouba e
senhoreia por violência: em suma, que
não há pedra, nem telha, nem planta, nem raiz, nem palmo de terra na Terra, que
não esteja sempre passando, porque tudo
passa.
CAPÍTULO V
Deste tudo que está sempre
passando, é o homem não só a parte principal, mas verdadeiramente o tudo do mesmo tudo. E vendo o homem com os
olhos abertos e, ainda os cegos, como tudo passa, só nós vivemos como se não passáramos. Somos
como os que navegando com vento e maré, e correndo velocissimamente pelo Tejo acima, se olham
fixamente para a terra, parece-lhes que os montes, astorres, e a cidade é a que
passa; e os que passam, são eles. É o que disse o poeta: Montes, urbes que recedunt. Mas demos volta a esta mesma
comparação, e veremos na Terra outro gênero de engano ainda maior. A maior
ostentação de grandeza e majestade que se viu neste mundo, e uma das três
que Santo Agostinho desejara ver foi a
pompa e magnificência dos triunfos romanos. Entravam por uma das portas da cidade, naquele tempo
vastíssimo, encaminhados longamente ao Capitólio: precediam os soldados vencedores com aclamações:
seguiam-se, representadas ao natural, as cidades vencidas, as montanhas inacessíveis escaladas, os rios
caudalosos vadeados com pontes: as fortalezas e armas dos inimigos, e as máquinas com que foram
expugnadas: em grande número de carros os despojos e riquezas, e todo o raro e admirável das
regiões novamente sujeitas: depois de tudo isto a multidão dos cativos, e talvez os mesmos reis manietados;
e por fim em carroça de ouro e pedraria, tirada por elefantes, tigres, ou leões domados, o famoso
triunfador, ouvindo a espaços aquele glorioso e
temeroso pregão: Memento te esse
mortalem. Enquanto esta grande procissão (que assim lhe chama Sêneca) caminhava, estavam as ruas, as
praças, as janelas e os palanques, que para este fim se faziam, cobertos de infinita gente, todos a ver. E se
Diógenes então perguntasse, quais eram os que passavam, se os do triunfo, se os que o estavam vendo,
não há dúvida, que pareceria a pergunta digna de riso. Mas o certo é que tanto os da procissão e do
triunfo, como os que das janelas e palanques os estavam vendo, uns e outros igualmente passavam,
porque a vida e o tempo nunca param: e ou indo, ou estando ou caminhando ou parados, todos
sempre com igual velocidade passamos.
Declarou esta verdade tão mal
advertida com uma semelhança muito própria Santo Ambrósio elegantemente: Et si non videmur ire corporaliter, progredimus. Nam sicut in navibus
dormientes ventis aguntur ir portus; sic
vitae nostroe spatio defluente, ad proprium unusquisque finem, cursu labente deducimur. Tu enim dormis, et tempus
tuum ambulat. Todos vamos embarcados na mesma nau, que é a vida, e todos navegamos com o
mesmo vento, que é o tempo; e assim como na nau uns governam o leme, outros mareiam as velas; uns
vigiam, outros dormem; uns passeiam, outros estão assentados;uns cantam, outros jogam, outros
comem, outros nenhuma coisa fazem, e todos
igualmente caminham ao mesmo porto; assim nós, ainda que o não pareça,
insensivelmente vamos passando sempre, e
avizinhando-se cada um ao seu fim; porque tu, conclui Ambrósio, dormes, e o
teu tempo anda: Tu dormis, et tempus tuum ambulat. Disse pouco em dizer que o tempo
anda, porque corre e voa; mas advertiu
bem em notar que nós dormimos; porque tendo os olhos abertos para ver que tudo passa, só para considerar que nós
também passamos, parece que os temos fechados.
Dito foi do grande filósofo Heráclito, alegado e celebrado por Sócrates:
Non posse quenquam bis in eumden fluvium descendere: que nenhum
homem podia entrar duas vezes em um rio: e por quê? Porque quando entrasse a segunda vez, já o
rio, que sempre corre e passa, é outro. E daqui infiro eu, que o mesmo sucederia se não fosse rio, senão
lago ou tanque aquele em que o homem entrasse;
porque ainda que a água do lago e do tanque não corre, nem se muda,
corre porém, e sempre se está mudando o
homem, que nunca permanece no mesmo estado: Et nunquam in eodem statu permanet:
Assim o disse Jó, e quem o não disser assim de todo o homem, e de si
mesmo, não se conhece. Admira-se Philo
Hebreu, de que perguntando Deus a Adão ande estava: Adam, ubi es? ele não
respondesse. Mas logo escusa ao mesmo Adão, e a qualquer outro homem a
quem Deus fizesse a mesma pergunta;
porque, como pode responder onde está, quem não está? Se dissera, estou
aqui (como sutilmente argúi Santo
Agostinho) entre a primeira. sílaba e a segunda já o estou não seria estou, nem o aqui seria o mesmo lugar; porque
como tudo está passando, tudo se teria mudado. Por isso conclui o mesmo Philo, que se Adão
houvesse de responder própria e verdadeiramente onde estava, haveria de dizer: nusquam, em nenhuma parte; porque em
nenhuma parte está aquilo que nunca
está, mas sempre passa: Ad quod proprie
respondere poterat, nusquam: eo quod humana res
nunguam in eodem statu maneat.
Considerando este contínuo passar
do homem (não fora de si, senão onde verdadeiramente parecer que está e
permanece, que é dentro em si mesmo) diziam os sábios da Grécia, como refere
Eusébio Cesariense, que todo o homem que chega a ser velho, morre seis vezes. E
como? Passando da infância à puerícia, morre a infância; passando da puerícia à
adolescência, morre a puerícia; passando da adolescência à juventude morre a
adolescência; passando da juventude a idade do varão morre a juventude;
passando da idade de varão à velhice, morre a idade de varão; e, finalmente,
acabando de viver por tanta continuação e sucessão de morte, com a última, que
só chamamos morte, morre a velhice. Assim o consideravam aqueles sábios, mais
larga e menos sabiamente do que deveram, aos quais por isso emendou S. Paulo,
dizendo que morria todos os dias: Quotidie
morior. E já pode ser que da comunicação que Sêneca teve com S. Paulo,
ensinou ele esta mesma lição ao seu discípulo, quando lhe diz: Singulus dies, singulas vitas puta. Se o
Sol, que sempre é o mesmo, todos os dias tem um novo nascimento, e um novo
ocaso, quanto mais o homem por sua natural inconstância tão mudável, que nenhum
é hoje o que foi ontem, nem há de ser amanhã o que é hoje! Desenganemo-nos pois
todos, e diga,.ou diga-se cada um com el-rei Ezequias: De mane usque ad vesperam finies me. E seja o última conclusão
deste largo discurso; que então definiremos bem e conheceremos o que é esta
vida e este mundo, quando entendermos que não só estamos nele em perpétua
passagem, mas em perpétuo passamento.
CAPÍTULO VI
Assim passamos todos, e assim
passa tudo para a vida; desengano verdadeiramente não só triste, mas
tristíssimo, se este superlativo e outros de maior horror não foram mais
devidos ao que, e depois de tudo passar,
se segue. Depois da vida segue-se a conta; e sendo a conta que se há de dar, de
tudo o que se passou na vida; tristíssima e terribilíssima consideração é que,
passando tudo para a vida, nada passe para a conta. O que faz, e há de fazer
dificultosa a conta são os pecados da vida, e de toda a vida. E que confusão
será naquele dia tão cheio de horror e assombro, olhar para a vida, e para os
pecados de toda ela, e ver que a vida passou e os pecados não passaram!
Desse passar e não passar, não só
temos os documentos da Escritura, mas grandes e manifestos exemplos da mesma
natureza. Cristo, Redentor e Juiz universal nosso, comparou o dia do Juízo a
uma rede lançada no mar: Sagenoe missae
in mare. O mar é este mundo; a rede é a compreensão da ciência e justiça divina; os que nela andam
nadando já presos, ou com maior ou menor larqueza, são todos os homens. E assim como na rede, quando
a malha é muito estreita, só a água pode passar e nenhuma outra coisa; assim
passa somente por ela a vida, e tudo o mais (que são os pecados) fica dentro, e nada passa. Oh quão apertada e
estreita é esta malha de rede de Deus; e quão fácil de passar, ainda por ela, a
vida, que, como água, sempre está passando! Omnes
morimur, et quasi aqua dilabimur. O
mesmo Cristo comparou este passar e não passar ao crivo, quando disse a
seus discípulos: Satanás expetivit vos ut cribraret sicut triticum. Assim como no
crivo (diz S. João Crisóstomo,
comentando estas palavras) , assim como no criva dando uma e muitas voltas
passa o grão, e só fica a palha, assim
neste mundo (que é todo furado) com a volta que dão os dias e os anos, passa a vida e os gostos dela: Et in novíssimo nihil remanet, nisi solum
peccatum, e no fim, e para o fim só fica o pecado. De outro crivo fala
Davi, que é o das nuvens, por onde se côa a água da chuva, o qual mais altamente nos inculca este mesmo
documento: Cribrans aquas de nubibus
coelorum. Desce a nuvem como esponja
a beber no mar, e sendo a água do mar salgada e amargosa, passada porém pela
nuvem, o que lá fica é o amargoso, e o que cá desce, o doce. Por isso com
grande propriedade este passar e não passar se compara na nuvem ao crivo, e na
vida e na conta à nuvem. O que passa por ela e cá logramos, é o doce da vida; o
que fica lá em cima e não vemos, é o amargoso da conta. Não podia Jó faltar a enobrecer este mesmo
assunto, como tão próprio das suas experiências, com alguma semelhança que mais ainda no-lo
declare. Diz que observou Deus todos os seus caminhos, e considerou as pegadas dos seus pés: Observasti omnes semitas meas, et vestigia
pedum meorum considerasti. E por que
considera Deus não os passos, senão as pegadas? Porque os passos passam,
as pegadas ficam; os passos pertencem à
vida que passou, as pegadas à conta, que não passa. Mas que diferentemente não
passa Deus pelo que nós tão facilmente passamos! Nós deixamos as pegadas detrás das costas, e Deus tem-nas sempre
diante dos olhos, com que as nota e observa: as pegadas para nós apagam-se, como formadas em pó, para
Deus não se apagam, como gravadas em diamante.
Tal é a consideração dos pecados, que na nossa memória logo se perde, e
na ciência divina sempre está presente.
O Setenta, em lugar de pegadas, trasladaram raízes: Et radices pedum meorum
considerasti. Assim como os pés se chamam plantas, assim às pegadas
lhes quadra. bem o nome de raízes. E por
que deu este nome Jó às pegadas dos seus passos? Não só porque os passos
passam, e as pegadas ficam; mas porque
ficam como raízes fundas e firmes, e que sempre permanecem. As pegadas estão manifestas e vêem-se; as raízes
estão escondidas e não se vêem: e assim tem Deus guardados invisivelmente todos os nossos
pecados, os quais no dia da conta rebentarão como raízes, e brotarão nos castigos, que pertencem à
natureza de cada um. Isto é o que tanto cuidado dava a Jó.
Finalmente, o apóstolo S. Paulo,
pregando contra os que abusam da paciência e benignidade de Deus, e em vez de se aproveitarem do espaço que
lhes dá para a penitência, gastam a vida em acumular pecados sobre pecados: não
vês (diz), ó homem, que desprezas as riquezas do sofrimento e longanimidade
divina, e que pelo contrário, segundo a dureza do teu coração, entesouras para
ti a ira e vingança, que te espera no dia do Juízo? An divitias bonitatis ejus, et patientiae et longanimitatis contemnis?
Secundum autem duritiam tuam, et revelationis justi judicii Dei? De maneira
que ao pecar sobre pecar chama S. Paulo
entesourar: thesaurizas tibi; porque
ainda que a vida e os dias em que
pecamos passam, os pecados que neles cometemos, não passam, mas ficam
depositados nos tesouros da ira divina.
Fala o apóstolo por boca do mesmo Deus, o qual diz no Deuteronômio: Nonne hoec
condíta sunt apud me, et signata in thesauris meis? Mea est ultio, et
ego retribuam in tempore. Estes
tesouros, pois, que agora estão cerrados, se abrirão a seu tempo, e se
descobrirão para a conta no dia do
Juízo, que isso quer dizer, in dïe iroe,
et revelationis justi judicii Dei. Considerai-me um homem rico, e que tem mais rendas cada ano do que
há mister para se sustentar que faz este homem? Uma parte do que tem gasta, e outra parte
entesoura. Pois isto é o que fazemos todos. Todos gastamos, e todos
entesouramos; todos gastamos o que passa, e todos entesouramos a que não passa;
o que gastamos, é o da vida; o que
entesouramos, o da conta.
Infinita matéria seria, se agora
houvéramos de reduzir à prática uma e outra parte desta demonstração, e pô-las ambas em teatro. Mas por isso nos
detivemos tanto no primeiro ponto do nosso discurso. Não vimos nele, desde o principio do mundo, como
tudo passou? Não vimos, como todos os que em tantos séculos viveram, passaram? Pois esse tudo que
então passou para a vida, é o nada que não passou para a conta; e esses todos que então morreram, e
agora estão sepultados, são os que ressuscitados neste mesmo dia hão de aparecer vivos diante do
tribunal divino, para dar essa conta estreitíssima de quanto fizeram, Neste tribunal viu S. João assentado
sobre um trono de admirável majestade o Supremo Juiz, e com aspecto tão terrível, que afirma fugiu
dele o céu e a terra: Et vidi thronum
magnum candidum, et sedentem super eum,
a cujus conspectu fugit terra, et coelum . Diz mais, que viu a todos os
mortos, grandes e pequenos, em pé, como
réus, diante do mesmo trono: Et vidi
mortuos magnos et pusillos stantes in conspectu throni. E finalmente
conclui, que então apareceram e se abriram um livro e muitos livros, e que pelo que estava escrito
nestes livros foram julgados todos, cada um conforme suas obras: Et libri aperti sunt; et alius liber apertus est, qui est vitae; et
judicati sunt mortui ex his quoe scripta
erant in libris secundum opera ipsorum. Desta distinção que o evangelista
faz de livro a livros, se vê claramente,
que o livro era da vida, liber qui est
vitae, e que os livros eram da conta,
porque pelos livros foram julgados os mortos: Et judicati sunt mortui ex his quoe scripta erant in libris. Assim entendem literalmente estes
textos como soam, Beda e outros padres. Mas por que razão o livro da vida, era livro, e os livros da
conta, livros? Porque o livro da vida contém os dias da mesma vida, que são poucos, e os livros da conta
contêm os pecados cometidos nos mesmos dias, que são muitos. Assim que postos à
vista no tremendo tribunal, de uma parte o livro, e, da outra os livros, então se verão juntas e concordes as duas combinações
do nosso assunto: no livro, como tudo passa
para a vida; nos livros, como nada passa para a conta.
CAPÍTULO VII
Este nada, do qual dizemos que
nada passa para a conta, é o que agora havemos de examinar. Pergunto: se nada
passa para a conta, parece que também o nada pode ser chamado a Juízo? E se
acaso for chamado, escapará da conta o nada por ser nada? Creio que todos estão
dizendo que sim. Mas é certo, e de fé, que também o nada, por mais qualificado
que seja, há de ser chamado a Juízo, e porque nada passa para a conta, nem o mesmo
nada há de passar sem ela, e mui rigorosa. Ninguém foi mais qualificado na lei
da natureza que Jó, e ninguém mais qualificado na lei da graça que S. Paulo: e
que dizia de si um e outro? Jó dizia que nada tinha feito contra Deus: Quia nihil impium fecerim. S. Paulo
dizia que nada havia na sua consciência, de que ela o acusasse: Nihil mihi conscius sum. E este nada de Jó, e este nada de S. Paulo escaparam
porventura da conta e do Juízo? Eles mesmos confessam, que de nenhum modo. Jó
dizia que Deus o tinha posto a questão de tormento, como réu, para averiguar se
o que ele tinha por nada, verdadeiramente era nada: Ut quoeras iniquitatem meam, ei peccatum meum scruteris, et scias, quia
nihil impium fecerim. E S. Paulo dizia, que ele se não dava por justificado
do que na sua consciência reputava por nada, porque desse nada não havia ele de
ser o juiz, senão Deus: Nihil mihi
conscius sum, sed non in hoc justificatus sum; qui autem judicat me, Dominus
est. Eis aqui quão manifesta e provada verdade é, que nada passa para a
conta, pois até do mesmo nada a há de tomar Deus, e tão estreita.
Mas qual é, ou pode ser a razão
por que onde dois homens tão grandes, tão qualificados e tão santos, como Jó e
S. Paulo, não reconhecem nada de culpa, lha haja, de argüir Deus, e pedir-lhes
conta? A primeira razão e da parte de Deus (a qual só pode ignorar quem o não
conhece) é, porque ainda nas coisas mais interiores nossas, conhece Deus muito
mais de nós, do que nós de nós. Quando Cristo na mesa da última Ceia revelou
aos apóstolos, que um deles o havia de entregar: Amen dico vobis, quia uns vestrum me traditurus est, diz o
evangelista, que muito tristes todos com tal notícia, começou cada um a
perguntar: Nunquid ego num, Domine?
Porventura, Senhor, sou eu esse? Pedro, André, João e os demais, exceto Judas,
bem sabia cada um de si, que não era o traidor, nem tal coisa lhe passara pelo
pensamento; pois por que se não deixam estar muito seguros na boa fé da sua
lealdade, mas pondo em dúvida o que não duvidavam, pergunta cada um a Cristo se
é ele o traidor: Nunquid ego sum?
Porque ainda que a própria consciência os não acusava, sabiam todos que sabia
Cristo mais de cada um deles, do que eles de si. Eles conheciam-se, como
homens, Cristo conhecia-os, como Deus. Esse foi o erro e engano de S. Pedro,
que estava à mesma mesa! Pedro disse, que se fosse necessário daria a vida por
Cristo; Cristo pelo contrário disse, que três vezes o havia de negar naquela
noite. E por que foi esta a verdade? Porque Pedro falou pelo que ignorava de
si, e Cristo pelo que conhecia dele. Hoc
illi Christus pracnuntiabat qued in se ipse ignorabat, diz Santo Agostinho.
E como o juiz daquele dia conhece mais de nós, do que nós de nós, não é muito
que ele nos condene pelo que nós ignoramos, e que no seu juízo seja culpa, o
que no nosso parece inocência.
A segunda razão, e da parte nossa
é, porque assim como Deus sabe tanto de nós, assim nós sabemos muito pouco de
Deus; e por isso as nossas razões não podem alcançar as suas. Um dia, depois de
Cristo entrar triunfante em Jerusalém, vindo de Betânia para a mesma cidade,
esuriit, teve fome; e como visse ao longe uma figueira verde e copada,
encaminhou as passos até ela, para ver se acaso tinha algum fruto: Si quid forte inveniret in ea. Mas
porque não achou mais que folhas, lançou-lhe o Senhor maldição de que
eternamente não desse fruta: Nunquam ex
te fructus nascatur insempiternum; e no mesmo momento se secou a árvore
desde as folhas até as raízes. É porém muita de notar neste caso, coma nota S.
Marcos, que não era tempo de figos: Non
enim erat tempus ficorum. Pois se não era tempo de aquela árvore ter fruto,
por que a amaldiçoa Cristo, e a seca, não só para aquele ano, senão para
sempre? Podia haver causa, ou desculpa mais natural de não ter fruto, que não
ser tempo dele? Da árvore a que é comparado o justo, diz Davi, que dará o seu
fruto no seu tempo: Et fructum suum dabit
in tempore suo. Pois se é louvor nas melhores árvores darem a seu fruto,
como foi culpa nesta não se achar nela fruto, quando não era tempo? O mesmo evangelista
S. Marcos diz que esta sentença de Crista foi resposta que o Senhor deu à
árvore: Et respondens dixit ei: Jam non
amplius in aeternum ex te fructum quisquam manducet. Se a sentença de
Cristo foi resposta que deu à árvore, sinal é que a ouviu primeiro, e ela
alegou de sua justiça. Reparem aqui os juizes, ou condenadores, que nem a um
tronco irracional e insensível condena Deus sem o ouvir. Mas que é a que alegou
a árvore? Alegou o mesmo texto do evangelista; e estava. como dizendo
maduramente ao Senhor: Eu bem tomara estar carregada de frutos maduros e
sazonados, para os oferecer a meu Criador; porém a causa e impedimento natural
de me achar sem eles, é por não ser ainda chegado o tempo: Non erat tempus ficorum. E que sem embargo desta réplica, ao parecer
tão justificada, a condenasse Cristo, e com condenação eterna: in sempiternum! Assim foi. Mas com que
fundamento, ou justiça? Entre todos os expositores da Escritura, mais letrados
e de maior engenho, nenhum houve até agora que desse satisfação cabal a esta
dúvida. E a razão de se lhe não achar razão, é porque as razões dos homens não
alcançaram as de Deus, e onde não sabe descobrir culpa o juízo humano, a pode
achar o divino. Por que não compreende o homem a Deus? Porque Deus é
incompreensível. Pois também por isso os juízos humanos não compreendem os
divinos, porque os divinos são incompreensíveis: Quam incomprehensibilia judicia ejus!
Sobre estes dois princípios tão
manifestos, um da ciência de Deus para conosco, outro da nossa ignorância para
com Deus, fica satisfeita e emudecida toda a admiração de que Deus haja de
julgar até o que reputamos por nada, e nesse mesmo nada haja de argüir e achar
culpas de que pedir e tomar conta no dia do Juízo. Só resta um escrúpulo, que
ainda não acaba de se aquietar, e não menos que acerca da justiça com que Deus
nos haja de castigar pelo que não conhecemos. É verdade que Deus sabe de nós o
que nós ignoramos de nós, mas essa mesma ignorância nossa não só parece que nos
desculpa, mas nos livra de ser pecado o que não conhecemos como tal. Sem
vontade não há culpa, sem conhecimento não há vontade; como logo pode ser
pecado, e castigado como pecado o que eu não conheço? Bem tinha decifrado esta
teologia o autor do nosso provérbio: Quem ignorantemente peca, ignorantemente
vai ao inferno. Uma só ignorância escusa do pecado, que é a invencível. Mas
esta poucas vezes se acha. Os demais não só pecam no pecado, mas na ignorância
com que o não conhecem. Não pecaram gravissimamente os judeus na morte de
Cristo? E contudo diz S. Pedro que eles e os seus príncipes o fizeram
ignorantemente: Scio quia per ignorantiam
fecistis, sicut et Principes vestri. E o mesmo Cristo quando disse: Pater, ignosce illis, non enim sciunt quid
faciunt; justamente alegou por eles a ignorância, e pediu para eles o
perdão. Se a ignorância os livrara do pecado, não tinham necessidade de perdão;
mas pediu-lhes o Senhor o perdão, quando lhe confessou a ignorância, porque tão
fora estiveram de ficar isentos do pecado, pela ignorância com que o cometeram,
que antes a mesma ignorância lhes acrescentou um pecado sobre outro pecado. Um pecado,
porque tiraram a vida ao Messias não conhecido, e outro pecado, porque o não
conheceram, tendo tanta obrigação como evidência para o conhecer. Isto mesmo é
o que se vê hoje entre os que conhecem e adoram Cristo; e não por acontecimento
raro, senão comumente; nem só nas vidas, serão também nas mortes. Quantos
pecados vemos, e quão grandes, nem emendados na vida, nem confessados na morte,
os quais não só Deus, mas todo o mundo está conhecendo, e só os mesmos que os
cometem os não conhecem! Não os conhecem, porque a largueza e relaxação da vida
escurece a consciência e cega a alma; não os conhecem, porque o amor-próprio
sempre escusa e aligeira o que nos condena; não os conhecem, porque os
interesses e conveniências deste mundo trazem consigo o esquecimento do outro;
não os conhecem, porque os não querem examinar, nem consultar com quem deviam;
não os conhecem, finalmente, porque com ignorância afetada os não querem
conhecer para os não emendar: Noluit
inteligere, ut bene ageret, vede agora se castigará Deus justamente no dia
do Juízo os pecados não conhecidos, se por cometidos merecem um castigo, e por
não conhecidos outro maior? Porém se até aquele dia estarão desconhecidos e sepultados
nas trevas desta maliciosa e ignorante ignorância, então ressuscitarão, sairão
à luz, porque o mesmo juiz universal, como diz S. Paulo, com os resplendores de
sua presença alumiará as consciências de todos os homens, e descobrirá
manifestamente a cada um tudo o que nelas estava escondido e às escuras: Quoadusque veniat Domínus, qui et
illuminabit abscondita tenebrarum. Por meio desta luz, desenganadas então,
e assombradas as mesmas consciências do muito que verão sair debaixo do nada,
que não viam ou não quiseram ver, nenhuma terá que estranhar, nem replicar à
sentença, ainda que seja de eterna condenação, e todas dirão convencidas:
Justus es, Domine, et rectum judicium
tuum.
CAPÍTULO VIII
Oh que grande mercê de Deus fora,
se hoje, que estamos na representação do mesmo dia do Juízo, o mesmo soberano
juiz nos comunicara um raio daquela luz, para que víramos agora o que então
havemos de ver, e com os pecados conhecidos nos presentáramos antes ao tribunal
de sua misericórdia, que depois ao de sua justiça! Mas bendita seja a bondade
do mesmo Senhor, que não só nos deixou comunicado na sua doutrina um raio
daquela luz, senão três, se nós lhe não cerramos os olhos. Sendo a matéria de
tudo o que passou para a vida, e não há de passar para a conta, tão imensa à capacidade
humana, só a sabedoria divina a poderá compreender; e assim o fez Cristo Senhor
Nosso, reduzindo-a, repartindo-a em três parábolas, nas quais nos ensinou em
suma toda a conta que nos há de pedir, e de quê. A primeira parábola é dos
ofícios, a segunda dos talentos, a terceira das dívidas. E este mesmo número e
ordem seguiremos para maior distinção e clareza.
Quanto aos ofícios, diz a
primeira parábola (que é a do Vilico) que houve um homem rico, o qual deu a
superintendência das suas herdades a um criado, com nome de administrador
delas. E porque não teve boa. informação de seus procedimentos, o chamou à sua
presença, e lhe pediu conta, dizendo: Redde
rationem villicationis tuae; jam enim non poteris villicare. Dai conta da
vossa administração, porque desde esta hora estais excluído dela. Esta
circunstância de ser a conta a última, e não se poder emendar, é uma das mais
rigorosas do dia do Juízo. Vindo pois ao sentido da parábola: o homem rico é
Deus; as suas herdades são as igrejas e as províncias; o administrador no
espiritual é o papa, no temporal é o rei, e, abaixo destes dois supremos, todos
os outros ministros eclesiásticos e seculares, que repartidamente têm inferior
jurisdição sobre os mesmos súditos. A todos estes, pois, há de pedir Deus estreita
conta, não só quanto às pessoas, senão também, e muito mais, quanto aos
ofícios. Quanto à pessoa, há de dar cada um conta de si, e quanto aos ofícios,
há de dar a mesma conta de todos aqueles que governou e lhe foram sujeitos. De
sorte que o papa há de dar conta de toda a cristandade, o rei de toda a
monarquia, o bispo de toda a diocese, o governador de toda a Província, o
pároco de toda a freguesia, o magistrado de toda a cidade, e o cabeça da casa
de toda a família. Oh, se os homens souberam o peso que tomam sobre si, quando
com tanta ânsia e negociação pretendem e procuram os ofícios, ou seculares ou
eclesiásticos, como é certo que haviam de fugir e benzer-se deles! Mas não os
procuram pelo peso, senão pela dignidade, pelo poder, pela honra, pela estimação,
e, mais que tudo hoje, pelo interesse. Porém, quando no dia de Juízo se lhes
tomar a conta pelo peso, então verão onde os leva a balança.
Se é tão dificultoso dar boa
conta da alma própria, que é uma, quão difícil e quão impossível será dá-la boa
de tantas mil? Como é certo, que não temos fé, nem sabemos a que nos obriga!
Vedes quantas almas há nesta cidade, quantas almas há nesta Província, quantas
almas há em todo o reino? Pois sabei, se o ignorais, ou não advertis, que de
todas essas almas hão de dar conta a Deus os que governam a cidade, a Província
e o reino. Porque assim como sobre todos e cada um tem poder e mando, assim em
todos e cada um são obrigados a lhes fazer guardar as leis, não só humanas,
senão também as divinas. Não é isto encarecimento meu, senão doutrina sólida e
de fé, pronunciada por boca de S. Paulo: Obedite
praepositis vestris, et subjacete eis; ipsi enim pervigilant, quasi rationem
pro animabus vestris reddituri. Obedecei, diz o apóstolo, a vossos
superiores e sede-lhes muito sujeitos, porque a sua obrigação é zelar e vigiar
sobre as vossas vidas, como aqueles que hão de dar conta a Deus de vossas
almas. Vede quanto maior é a sujeição dos superiores que a dos súditos. Quantos
são os súditos que estão sujeitos ao superior, tantas são as almas de que está
sujeito o superior a dar conta a Deus. E posto que este oráculo bastava para
nenhum homem que tem fé querer tomar sobre si uma tal sujeição, ouvi agora o
que nunca ouviste. Nem todas as sentenças de Cristo estão escritas no Evangelho,
algumas ficaram somente impressas na tradição de seus discípulos, entre as
quais é tão notável como terrível esta: Omne
peccatum, quod remissus, et indisciplinatus admiserit frater, ad negligentem
protinus revertitur seniarem. Quer dizer: todos os pecados que cometem os
súditos, se escrevem e carregam logo no livro das culpas do superior, porque há
de dar conta deles. De modo que segundo esta sentença e revelação do mesmo
Cristo, todos os homicídios, todos os adultérios, todos os furtos, todos os sacrilégios
e mais pecados que os vassalos cometem na vida e reinado de um rei, e as
ovelhas e súditos na vida e governo de um prelado, todos estes pecados se
lançam logo e escrevem nos livros de Deus, debaixo do título do tal rei e
debaixo do título do tal prelado, para se lhes pedir conta deles, no dia do
Juízo.
Ponhamos agora este rei, e depois
poremos também este prelado diante do tribunal divino, e vejamos que respondem
a estes cargos. O rei é a cabeça dos vassalos; e quem há de dar conta dos
membros, senão a cabeça? O rei é a alma do reino; e quem há de dar conta do
corpo, senão a alma? Pedirá, pois, conta Deus a qualquer rei, não digo dos
pecados seus e da sua pessoa, senão dos alheios e do ofício. E que responderá
já não rei, mas réu? Parece que poderá dizer: Eu, Senhor, bem conhecia que era
obrigado a evitar os pecados dos meus vassalos, quanto me fosse possível, mas a
minha corte era grande, o meu reino dilatado, a minha monarquia estendida pela
África, pela Ásia e pela América; e como eu não podia estar em tantas partes, e
tão distantes, na corte tinha provido os tribunais de presidentes e
conselheiros, no reino de ministros de justiça e letras, nas conquistas de
vice-reis e governadores, instruídos de regimentos muito justos e aprovados. E
isto ë tudo o que fiz e pude fazer. Também poderá meter nesta conta o seu
próprio palácio, e aqueles de que se servia mais familiar e interiormente. Mas
sobre todos cai a réplica. E estes que elegestes (dirá Deus) por que os
elegestes? Não foram alguns por afeição, e outros por intercessão, e outros por
adulação, e outros por ruim e apaixonada informação? E os que ficaram de fora
com mais conhecido merecimento, por que os excluístes? Mas dado que todos
fossem eleitos com os olhos em mim, e justamente, depois que na administração
de seus ofícios conhecestes que não procediam como eram obrigados, por que os
não removestes logo, por que os dissimulastes e conservastes, e, o que pior é,
por que os despachastes de novo, e com mais autorizados postos? Se o que
assolou uma Província o deixastes continuar na mesma assolação, e depois o
promovestes a outro governo maior, como não fostes cúmplice das suas
injustiças, e das culpas que ele em vez de remediar acrescentou com as suas, e
com o exemplo delas? Se as suas tiranias vos foram manifestas, como as
deixastes sem castigo, e os danos dos ofendidos sem restituição? Quantas
lágrimas de órfãos, quantos gemidos de viúvas, quantos clamores de pobres
chegavam ao céu no vosso reinado, porque para suprir superfluidades vãs, e doações
inoficiosas, vossos ministras (por isso premiados e louvados) com impiedade
mais que desumana, não os despojavam, mas despiam. Isto é o que poderá replicar
Deus, emudecendo, e não tendo que responder o triste rei. E qual será a sua
sentença? No dia do Juízo se ouvirá. O certo é que Davi, rei santo antes de
pecador e depois de pecador exemplo de penitência, o que pedia perdão a Deus,
era dos pecados ocultos e dos alheios: Ab
occultis meis munda me, et ab alenis parce servo tuo. Mas os pecados
ocultos naquele dia são manifestos, e dos alheios, por ter sido rei, se lhe
pedirá tão estreita conta como dos próprios.
Entre agora o prelado a dar
conta, e a ouvir em estátua o processo que depois da ressurreição lhe será
notificado em carne. Oh que espetáculo será aparecer descoroado da mitra, e
despido dos paramentos pontificiais diante da majestade de Cristo Jesus, aquele
a quem o mesmo Senhor autorizou com o nome e poderes de seu vigário, e cuja
humana e divina pessoa representou nesta vida! O pastor, et Idolum! lhe dirá Cristo: Tu que foste pastor no nome, e como
ídolo te contentaste com a adoração exterior que não merecias, dá conta. Não ta
peço das misérias ocultas, senão das públicas e escandalosas de tuas mal
guardadas e desprezadas ovelhas. Eram miseráveis no temporal, e não trataste de
remediar suas pobrezas, e eram muito mais miseráveis no espiritual, e não
cuidaste de curar nem de preservar seus pecados. Se as rendas, que com tanta
cobiça recolhias, e com tantas avarezas guardavas, eram o mou patrimônio, que
eu adquiri, não menos que com o meu sangue, por que o não distribuíste aos meus
verdadeiros credores, que são os pobres? Por que o dispendeste em carroças,
criados e cavalos regulados, estando eles morrendo de fome, e em vestir as suas
paredes de oiro e seda, andando eles despidos e tremendo de frio? Se o zelo de
teus ministros visitava as vidas dos pequeninos, tratando mais de se aproveitar
das condenações, que de lhes emendar as consciências; os pecados monstruosos
dos grandes, que tão soberba e escandalosamente viviam na face do mundo, como
os deixaste triunfar com perpétua imunidade, como se foram superiores às leis
da minha Igreja?
Confesso, Senhor, responderá o
prelado, que em uma e outra coisa faltei mas não sem causa. O que dispendi com
minha casa e pessoa foi para satisfazer aos olhos do vulgo, que só se leva
destes exteriores, e para conservar a autoridade do ofício e veneração da
dignidade. E se contra os pecados dos grandes me não atrevi, foi porque os seus
poderes são inexpugnáveis; e julguei por menos inconveniente não entrar com eles
em batalha, que com afronta e desprezo das mesmas leis da Igreja, ficar no fim
da peleja vencido: e finalmente, Senhor em uma e outra omissão segui o exemplo
universal, e o que usam neste ofício os que com mais poderosas armas, e com
maiores jurisdições que a minha, costumam em toda a parte fazer o mesmo. ó
ignorante! ó covarde! replicará Cristo. Tão ignorante e covarde, como se não
tiveras lido as Escrituras, nem os Canones, e exemplos da mesma Igreja. Porventura
Pedro, e Paulo, e os outros apóstolos que me imitaram a mim, e os seus
verdadeiros sucessores, que os imitaram a eles, conciliavam a autoridade das
pessoas e do ofício, ainda entre gentios, com os aparatos exteriores? Não sabes
que esse mesmo povo, com cujos olhos te escusas, se por dares tudo aos pobres,
te vissem desacompanhado, só, e a pé pelas ruas, e ainda com os pés descalços,
então se ajoelhariam todos diante de ti, e te adorariam? E quanto à covardia de
te não atreveres com os grandes, tendo a teu lado a espada de Pedro; contra
quem se atrevia Davi, que foi o exemplar dos meus pastores? Entre as feras
tomava-se com os leões, e entre os homens com os gigantes. Que fera mais fera
que a imperatriz Eudóxia, e vê como a não temeu Crisóstomo; e que leão mais
coroado que o imperador Teodósío, e vê como o humilhou e pôs a seus pés
Ambrósio. Finalmente, se não seguiste o valor destes, senão o que chamas
costume dos outros, agora verás em ti e neles, que se eles o costumam fazer
assim, tu também costumo mandar ao inferno os que assim o fazem. Isto baste
quanto à conta dos ofícios, e tomem exemplo os ministros seculares na conta do
rei, e os eclesiásticos na do prelado.
CAPÍTULO IX
Quanto à conta dos talentos, esta
temos na parábola dos criados, a quem o rei encomendou diferentes cabedais,
para que negociassem com eles enquanto fazia certa jornada: Negotiamini dum venio. O rei é Cristo, a
jornada foi a de sua subida ao céu, e a tornada há de ser no dia do Juízo ,em
que há de pedir conta a cada um, do que negociou com os talentos que lhe deu, e
do que lucrou e ganhou com eles: Post
multum vero temporis venit dominus servorum illorum , et possuit rationem cum
eis. Os talentos são os meios assim universais como particulares, com. que
a providência divina assiste a todos os homens, e a cada um para sua salvação e
perfeição; e os avanços ou ganâncias, são o aumento das virtudes, merecimentos
e graça, que no exercício, agência e indústria, com que se aplicam os mesmos
meios, alcançam os que não são negligentes. Quão exata pois haja de ser esta
conta, e quão rigorosa para os que usarem mal do talento, na mesma história o
temos. Os criados, a quem o rei fiou os talentos, eram três: ao primeiro
entregou cinco, o qual granjeou outros cinco: ao segundo entregou dois, o qual granjeou
outros dois; e ambos foram louvados; ao terceiro deu um só talento, o qual ele
enterrou. E posto que na conta o ofereceu outra vez, e restituiu inteiro,
porque não tinha negociado com ele, nem adquirido coisa alguma, o senhor não só
o lançou fora de sua casa, e o mandou privar de talento, mas o pronunciou por
mau criado: serve nequam, que foi a
sentença de sua condenação. E se quem na conta torna a entregar o talento que
Deus lhe deu, inteiro e sem defraudo, e condena, que será dos que o desbaratam
e perdem, e talvez o convertem contra si, e contra o mesmo Deus?
Para inteligência desta
gravíssima e perigosa matéria, havemos de supor o que se não cuida; e é que,
não só são talentos os dotes da natureza, os bens da fortuna e os dons
particulares da graça, senão também os contrários, ou privações de tudo isto.
Não só é dote da natureza a formosura, senão também a fealdade; não só as
grandes forças, senão a fraqueza; não só o agudo entendimento, senão o rude;
não só a perfeita vista, senão a cegueira; não só a saúde, senão a enfermidade;
não só a larga vida, senão a breve. Do mesmo modo nos bens que chamam da
fortuna, não só é bem o ilustre nascimento senão o humilde; não só as
dignidades altas, senão o lugar e ofício abatido; não só as riquezas, senão a pobreza;
não só o descanso, senão os trabalhos; não só os sucessos prósperos, senão os
adversos, não só os mandos, senão o ser mandado; nem só as vitórias e triunfos,
senão o ser vencido. Finalmente, nas graças, ou dons da graça, não só é graça o
dom das línguas, mas o não saber falar, ou ser mudo; não só o das letras e
ciências, senão o da ignorância; não só o do conselho e discrição, senão o de
não ter nem poder dar voto; não só o da ostentação e boato dos milagres, senão
o de não ser em coisa alguma maravilhoso, senão totalmente desconhecido e
desprezado. A razão desta verdade interior e providência verdadeiramente
divina, é, porque todas estas coisas, posto que entre si contrárias, podem ser
meios que igualmente nos levem à salvação e promovam à virtude, principalmente
sendo distribuídos por Deus e aplicados conforme o gênio de cada um, que por
isso diz o texto, que foram dados os talentos: Uniquique secundum propriam virtutem. Assim que, tanto se podia
aproveitar Raquel da sua formosura, como Lia da sua deformidade: tanto
Aquitofel do seu entendimento, como Nabal da sua rudeza; tanto Matusalém dos
seus novecentos anos, como o moço de Naim dos seus vinte; tanto Crasso dos seus
tesouros como Jó da sua pobreza, tanto Júlio César da sua fortuna, como Pompeu da
sua desgraça; tanto Alexandre Magno das suas vitórias, como Dario e Poro de ele
os ter vencido; tanto Arão da soltura e eloqüência da sua língua, como Moisés
do impedimento da sua; tanto o sutilíssimo Escoto da sua ciência, como frei
Junípero da sua simplicidade; tanto S. Pedro dos seus milagres, como o Batista
de nunca fazer milagre. Daqui se segue, que tanta conta há de pedir Deus ao
rico da sua riqueza, como ao pobre da sua pobreza; tanta ao são da sua saúde,
como ao doente da sua enfermidade; tanta ao honrado da sua estimação, como ao
afrontado da sua injúria; e tanta a todos do que deu a uns, como do que negou a
outros; porque se o rico pode granjear com o seu talento por meio da esmola, o
pobre também pode com o seu por meio da paciência. E assim dos demais. Antes é
certo que entre as coisas, que se chamam prósperas, ou adversas, mais eficazes
são para o merecimento as que mortificam a natureza, que as que lisonjeiam o
apetite; e mais seguras para a salvação as que pesam e carregam para a
humildade, que as que elevam e desvanecem para a soberba. Só souberam manejar
uns e outros meios e aproveitar-se com igualdade de ambos os talentos um S.
Paulo, que dizia: Scio abundasse et scio
esurire. E um Jó, que na mesma volta da sua primeira para a segunda fortuna,
disse: Si bona suscepimus de manu Dei,
mala quare non suscipiamus? Mas estes homens quadrados nascem poucas vezes
no mundo. Os dados tão firmes se assentam com poucos pontos, como com muitos; e
tão direitos estão com as sortes, como com os azares.
Desta maneira (e seja esta a
única e importantíssima advertência), desta maneira devemos aceitar como da não
de Deus, e contentar-nos, com o talento, ou talentos, que Ele foi servido
dar-nos, ou sejam como os cinco, ou como os dois, ou como um somente; e se
pudera ser nenhum, ainda fora mais seguro. Quando o rei distribuiu os talentos
aos criados, não lemos que algum deles se descontentasse da repartição. Se os
que Deus deu a outros, são maiores que os vossos, eles terão mais, e vós menos
de que dar conta ao mesmo Deus. Mas somos como os que lançam nas rendas dos
reis, que só olham para o que recebem de presente, e não para a conta, que hão
de dar de futuro. Admirável foi neste gênero a variedade e repartição de
fortunas, com que Jacó (digamo-lo assim) fadou a seus filhos quando na hora da
morte lhes lançou a bênção. Usou dos nomes de diferentes animais, e a Judas
chamou leão: Catulus leonis Juda; a
Dan serpente: Fiat Dan coluber in via;
a Benjamim lobo: Benjamin lupus rapax;
a Nephtali cervo. Nephtali cervas emissus;
A Issachar jumento: Issachar asinus
fortis. Os animais todos têm suas inclinações, instintos e propriedades, e
todos suas como virtudes, ou vícios naturais: o leão generoso, a serpente
astuta, o lobo voraz, o cervo ligeiro, o jumento sofredor do trabalho. E
debaixo destas metáforas significava Jacó aos filhos os talentos de cada um e o
uso deles, e quais haviam de ser as ações e sucessos de suas vidas e
descendências. E sendo assim, que estes mesmos irmãos sofreram tão mal ao mesmo
pai fazer uma túnica a um deles de melhor estofa, que por isso a quiseram
tingir em seu próprio sangue; como agora nenhum deles se queixa de o pai os
vestir de tão diferentes peles e pêlos, e de lhes dar ou chamar tão diferentes
nomes, e de tão diferente nobreza, quanto vai de lobo a cervo, de serpente a
leão, e de leão a jumento? Por que na diferença da túnica obrava Jacó como pai
em seu nome: na diferença e repartição o dos talentos, falava como profeta em
nome de Deus; e como a distribuição era feita por Deus e os talentos dados por
ele, posto que fossem tão diversos na estimação e crédito, quanto vai do
império à servidão, e do leão ao jumento, todos abaixando a cabeça se
contentaram e conformaram com a sua sorte, e nenhum houve que abrisse a boca
para se queixar, ou metesse os olhos debaixo das sobrancelhas para mostrar
descontentamento. E que dirão a isto os que tantas vezes deixaram a religião e
a mesma fé, por não terem humildade, nem paciência para sofrer que se lhes
antepusessem os que não podiam igualar no talento?
Todo o talento é arriscado á o
perder, ou não dar boa conta dele a presunção humana. Os maiores pela soberba,
os menores pela inveja, e os mínimos pela desesperação e pusilanimidade. Das
casta destes últimos foi o que enterrou o talento, podendo ser melhor e mais
celebrado que todos se o não enterrara. Puseram alguns teólogos em questão qual
dos criados se mostrara mais industrioso, se o que com dois talentos granjeara
dois, ou o que com cinco granjeara cinco; e como entre eles se não decidisse a
questão, devolveu-se a uma academia de mercadores, os quais todos resolveram,
que mais industrioso fora o que com dois negociara dois, que o que com cinco
granjeara cinco; porque mais dificultoso é ganhar pouco com pouco, que muito
com muito. E sobre esta, que é primeira máxima dos negociantes, provada com a
experiência, acrescentaram que se o que teve um só talento granjeara outro,
excederia sem comparação na indústria ao dos dois, e ao dos cinco. Grande
consolação, e verdadeira, se a quisessem aceitar os talentos meridianos. Mas
quem poderá curar a cegueira, e contentar a inveja dos que se vêem excedidos?
Saul porque ouviu (vede a quem? porque ouviu que as chacotas lhe preferiam a
Davi, tantas vezes e por tantos modos o quis matar, e por isso perdeu a coroa. E
Dédalo, aquele famoso artífice, que preso em uma torre, inventou e formou as
asas com que fugiu dela voando, vendo que Perdiz, seu discípulo, inventara o
compasso e da imitação de uma espinha a serra, temendo que o havia de exceder
no talento, o despenhou primeiro da mesma torre.
Mas ainda são mais arriscados os
talentos, que na iminência se estremam sobre todos. Que havia de ser de Saulo
se o mesmo Cristo descera do céu, e o derribara do cavalo para lhe enfrear o
orgulho? Que havia de ser de Agostinho, de quem se rezava nas escolas
católicas: A logica Augustini libera nos
Domine; se amolecida com as lágrimas de sua mãe, ela (como um lírio que se
gera das lágrimas de outro) o não tornara a gerar? Suceder-lhe-ia o que ao
profundíssimo engenho de Tertuliano, e ao imenso de Orígines, os quais
venerados como oráculos da sua idade, e primeiros mestres da Igreja, a perderam
e se perderam. Mas que muito é que o barro caia, e se quebre, se o entendimento
de Lúcifer, sendo o maior que Deus criou, excedendo-o só o do mesmo Deus, antes
quis cair do céu, que ver-se nele excedido! Tanta conta têm como isto os
talentos menores, e só por isso poderão dar boa conta.
CAPÍTULO X
A das dívidas é a que só nos
resta, última, maior, e mais dificultosa de todas. Esta se contém na parábola
do outro rei, o qual fez o que muitos não fazem, que é tomar conta aos criados
de sua casa: Qui voluit rationem ponere cum servis suis. Do que logo se segue,
no princípio das contas se mostra bem, que este chamado rei, seria o mais
poderoso e rico monarca de quantos houve, ou não houve no mundo; porque o primeiro criado foi convencido
de que era devedor à fazenda ou erário real de cento e vinte milhões de oiro.
Tanto vêm a montar os que o texto chama decem
millia talenta; porque falando
Cristo com os hebreus, e na língua hebraica, também o cômputo e valor da dívida
se há de entender de talentos, não
gregos, senão hebraicos. Mas como era possível que um criado devesse a seu rei cento e vinte milhões? Respondo que
quando a parábola dissera dez mil vezes outros tantos, ainda diria muito menos dó que queria
significar. Porque este rei é Deus, e esta dívida é a dos benefícios que Deus tem feito ao homem; e como
o menor benefício divino, por si mesmo, ou por seu autor, é de valor infinito, não há número em
toda a aritmética, nem preço em todas as criaturas, com que se possa comparar, quanto mais igualar.
Santo Agostinho, para representar
mais claro e mais patentemente esta conta, introduz ao mesmo Cristo fazendo-nos por sua própria pessoa os
cargos do que lhe devemos, como fará no dia do Juízo: Quid est
quod debui ultra facere vineae meae, et non feci ei? Que coisa há, que eu
devesse fazer-te, ó homem, ou devesse fazer por ti, que não tenha feito? De
nada te era. devedor, e como se o fora, de quanto tenho, de quanto posso, e de quanto
sou, tudo empreguei e dispendi contigo. Criei-te quando não eras, tirando-se dos abismos do não ser ao
ser; dei-te um corpo formado com minhas mãos, o mais perfeito; dei-te uma alma tirada de
minhas entranhas, e feita à imagem e semelhança; ornei, e habilitei um e outro, com as mais excelentes
potências, e os mais nobres sentidos, para que fossem os instrumentos com que me servisses e amasses; e
tu, ingrato, que fizeste? Dá conta dos cuidados, pensamentos e máquinas do teu entendimento;
das lembranças e esquecimentos da tua memória; dos desejos e afeições da tua
vontade. Dá conta de todos os passos de teus pés, de todas as obras de tuas mãos, de todas as vistas dos teus olhos, de
todas as atenções dos teus ouvidos, de todas as palavras de tua língua, e de tudo mais que tu sabes, e não
cabe em palavras. Depois de criado, que seria de ti, se eu com o mesmo poder e providência te não
conservara? De repente perderias o ser e tornarias ao nada donde saíste. Para
tua conservação, te dei não só o necessário, senão o superabundante, e tanta imensidade de criaturas no céu e na terra,
todas sujeitas a ti, e ocupadas em teu serviço. Dei-te um anjo, que de dia e de noite, velando e
dormindo, te assistisse e guardasse, como sempre assistiu e guardou. Agora te revelo os perigos secretos e
ocultos, de que foste livre por seu meio; e tu lembra-te dos públicos e manifestos, que experimentaste
e viste. Quantos pereceram em outros muito menores? Quantos mais moços que tu, acabaram de mortes
desastradas e repentinas, sem tempo, nem lugar de arrependimento e emenda que eu, sempre te
concedi? Dá, pois, conta da vida, dá conta da saúde, dá conta dos anos, dá conta dos dias, dá conta
das horas, sendo mui poucas, e contadas as que não empregaste em me ofender.
Até agora te referi as dívidas
exteriores do poder; agora me responderás às interiores e pessoais do amor, e do muito que fiz e padeci por ti. Por
ti depois de te fazer à minha imagem e semelhança, me fiz à tua, fazendo-me homem;
por ti nasci nos desamparos de um presépio; por ti fui desterrado ao Egito; por ti vivi trinta anos sujeito à
obediência de um oficial, ajudando o trabalho de suas mãos com as minhas, e acompanhando o suor do seu rosto
com o meu; por ti, e para ti, saí ao mundo a pregar o reino do céu; por ti nas pereginações de toda
a Judéia e Galiléia, sempre a pé, e muitas vezes descalço, padeci fomes, sedes, pobrezas, sem
ter lugar de descanso, nem onde reclinar a cabeça, por ti recebi ingratidões por benefícios, ódios por
amor, perseguições por boas obras; por ti suei sangue; por ti fui preso; por ti fui afrontado; por ti
esbofeteado; por ti cuspido; por ti açoitado; por ti escarnecido; por ti coroado de espinhos; por ti, enfim,
crucificado entre ladrões, aberto em quatro fontes de sangue, atormentado e afligido de angústias e agonias
mortais, e ainda depois de morto, atravessado o coração com uma lança. De tudo isto pedi por ti perdão
a Deus, e o pago que tu me deste, foi não me perdoar tornando-me a crucificar tantas vezes, quantas
gravemente pecaste, como te mandei declarar pelo meu apóstolo: Rursum
crucifigentes Filium Dei. Se as gotas de sangue que derramei por ti,
tiveram conta, nem de uma só me pudera
dar boa conta, ainda que padeceras por mim mil mortes; mas os milhares e os milhões foram das vezes que pisaste o
mesmo sangue, sacrificando o infinito valor e merecimento dele, aos ídolos do
teu apetite.
Ainda em certo modo a maior
dívida, a de que agora te pedirei conta é a da vocação. Reservei o saíres à luz deste mundo para o tempo da lei da
graça; chamei-te à fé antes de me poderes ouvir, antecipou-se o meu amor ao teu
uso da razão, e fiz-te meu amigo pelo batismo. Com o leite e doutrina da
Igreja, te dei o verdadeiro conhecimento
de mim, benefício que por meus justos juízos em quatro e cinco mil anos não concedi a tantos, e de que ainda nos
teus dias careceram muitos. Não tiveste juízo, nem consideração, para ponderar e pasmar, de que
tendo a minha justiça razões para condenar um gentio que me não conheceu, as tivesse minha
misericórdia para perdoar a um cristão, que conhecendo-me, tanto me ofendia.
Perdida a graça da primeira vocação, caíste, e tornei-te a chamar, e dar a mão,
para que te levantasses; levantado
tornaste a reincidir uma e tantas vezes, e eu, posto que tão repetidamente
ofendido, e com tão continuadas experiências da pouca firmeza de teus
propósitos, e falsidade de tuas promessas, não cessei de te oferecer de novo
meus braços, e te receber sempre com eles abertos; até que infiel, rebelde, e
obstinado, cerrando totalmente os ouvidos a minhas vozes, te deixaste jazer no
profundo letargo da impenitência final. Dá agora conta de tantas inspirações
interiores minhas, de tantos conselhos dos confessores e amigos, de tantas
vozes e ameaças dos pregadores, que ou não querias ouvir, ou ouvias por
curiosidade e cerimônia; e também ta pudera pedir, de eu mesmo te não chamar
eficazmente na hora da morte, porque o desmereceste na vida.
Sete fontes de graça deixei na
minha Igreja (que é o benefício da justificação) para que nelas se lavassem as
almas de seus pecados, e com elas se regassem e crescessem nas virtudes. Em uma
te facilitei em tal forma o remédio para todas as culpas, que só com as
confessar te prometi o perdão, que tu não quiseste aceitar, fugindo da
benignidade daquele sacramento como rigoroso, e amando mais as mesmas culpas,
que estimando o perdão. Em outra te dei a comer minha carne e a beber meu
sangue, e juntamente os tesouros infinitos de toda a minha divindade, em penhor
da glória e bem-aventurança eterna, que foi o altíssimo fim para que te criei.
Desprezaste o fim, não quiseste usar dos meios; e porque escolheste antes estar
para sempre sem mim no inferno, que comigo no céu; tua é, e não minha, a
sentença que logo ouvirás com os outros mal-aventurados: Ite maledicti in ignem aeternum.
CAPÍTULO XI
Aqui parou a conta das dívidas,
que era a última e maior partida que só estava para as contas. E aqui virão a parar todos os que tão descuidados
vivem de as dar boas naquele dia. ó dia de ira! ó dia de furor! ó dia de
vingança! ó dia de amargura! ó dia de calamidade! ó dia de miséria! ó dia
estupendo! ó dia tremendo! ó dia sobre
toda a compreensão terrível! Assim lhe chamam, com horror, os clamores dos profetas, pela estreitíssima conta que
nele se nos há de pedir a todos. E se tudo passa para a vida, e nada passa para
a conta; que cegueira, e que insânia é a dos que todos seus cuidados empregam
no que passa, sem memória nem cuidado do
que não há de passar? Pode caber em entendimento com juízo, maior loucura, que trabalhar de dia e
de noite um homem, e cansar-se, e desvelar-se e matar-se, pelo que passa com a vida, e há de deixar com
a morte, e não ser o único cuidado e desvelo, tratar só da que há de levar consigo, e do que só se lhe
há de pedir conta? Ouçam estes loucos a Santo Agostinho: Peccas
propter pecuniam? hic dimittenda est. Peccas propter villam? hic dimittenda
est. Peccas prapter mulierem? hic
dimittenda est. Et quidquid est propter quod peccas, hic dimittis, et ipsum peccatum, quod committis, tecum portas.
Pecas, homem, por amor do dinheiro? e cá há de ficar o dinheiro. Pecas por amor da herdade? e cá há
de ficar a herdade. Pecas por amor da mulher, ou tua, ou não tua? e cá há de
ficar a mulher. Mas havendo de ficar cá tudo aquilo por que pecaste, o que só hás de levar contigo é o pecado. Toda a
matéria dos pecados cá há de ficar, porque passou com a vida, e só o pecado há de ir conosco, porque não
passou para a conta.
Parece-me, que para desenganar a
quem tem fé, basta a evidência destes pontos. O que só quisera alcançar de Deus, e pedir aos que me ouvirem,
é que tomem este desengano enquanto vivem neste mundo, e não o guardem para o inferno.
Descreve o Espírito Santo no livro da Sabedoria, uma prática que tiveram entre si no inferno os que lá
foram, depois de ter gastado a vida em tudo o que passa com a mesma vida; e o que falavam, era desta
maneira: Ergo erravimus a via veritatis,
et sol intelligentiae non est ortus
nobis. O certo é (diziam) que erramos o caminho, e que andávamos às
escuras, e que em tantos dias quantos
vivemos, nunca nos amanheceu a luz do sol. Quid
nobis profuit superbia: que nos aproveitaram
a soberba, e glória vã das honras do mundo? Divitiarum
jactantia quid contulít nobis: de que
nos serviu a jactância das riquezas? E os gostos, delícias e passatempos em que
elas se consomem, de que nos
aproveitaram? Todas essas coisas passaram como a sombra: Transierunt omnia illa tanquam
umbra. Todas passaram como o correio, que sempre caminha, e não pára:
Tanquam nuntius percurrens. Todas passaram como a nau que vai cortando as
ondas, e depois que passou, se lhe não
acha rasto: Et tanquam navis, quoe
pertransit fluctuantem aquam; cujus, cum praeterierit, non est vestigium
invenire. Todos passaram como a ave, que voando e batendo o leve vento, que corta, nem sinal deixa do seu
caminho: Aut tanquam avis quoe transvolat
in aere verberans levem ventum, et
nullum signum invenitur itineris illius. Todas passaram como a seta
despedida do arco ao lugar destinado,
que dividindo o ar, o qual logo se cerra e une, não se pode conhecer por onde
passou: Aut tanquam saggitta emissa in
locum destinatum, divisus aere in se reclusus est, ut ignoretur transitus ilIíus. Agora, agora, conhecem
bem no inferno, e não acham comparação, com que bastantemente declarar a suma
velocidade com que todas as coisas passam, e com a mesma pressa (dizem)
passamos nós, porque apenas nascidos logo deixamos de ser, e sem deixar sinal
algum de virtude, em nossos próprios vícios nos consumimos: Sic et nos nati continua desivimus esse: et
virtutis quidem nullum signum voluimus ostendere: in malignitate autem nostra
consumpti sumus. Isto conferiam entre si naquela triste e tarde desenganada
conversação os miseráveis condenados, os quais para maior dor, levantando os olhos ao
céu, e vendo lá gloriosos e triunfantes os que trataram mais da estreiteza da conta, que da largueza
da vida: Paenitentiam agentes, et proe angustia spiritus gementes ; com vozes
que lhes saíam do interior angustiado, e com arrependimento e gemidos, que já
não aproveitavam , dicentes infra se, diziam entre si e consigo: que é o que
diziam? Hi sunt quos habuimus aliquando in derisum, et in
similitudinem impraperii. Aqueles são os de que nós zombávamos, rindo-nos dos seus escrúpulos de
consciência, e das penitências e rigores com que mortificavam seus corpos,
quando nós só tratávamos de regalar os nossos, e satisfazer nossos apetites; e agora vemos que eles foram os prudentes e
sisudos, e nós os loucos e insensatos, pois eles, pondo os olhos no fim e no prêmio de que nós não
fizemos caso, estão gozando da glória entre os santos, coma nós padecendo as penas entre os condenados: Nos insensati vitam illorum cestimabamus
insaniam, et finem illorum sine hanare:
ecce quomodo computati sunt inter filios Dei, et inter santos sor illorum est. Tais são as coisas que disseram, conclui o Espírito Santo, e tais os
discursos que fizeram no inferno os maus quando lá se viram. Talia dixerunt in inferno hi qui peccaverunt.
Vejamos agora, e consideremos bem, o que por misericórdia de Deus ainda temos
tempo e vida, se é melhor aproveitar deste desengano neste mundo, ou guardá-lo
para o inferno, e se folgaremos no dia da conta de ter imitado os prudentes, que eternamente hão de gozar
a vista de Deus no céu, ou acompanhar as insensatos, que hão de padecer as
penas do inferno por toda a eternidade?
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão da Primeira Dominga do Advento" (1655)
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão da Primeira Dominga do Advento" (1655)
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