terça-feira, 1 de outubro de 2013

Padre Antônio Vieira: "Sermão da Primeira Dominga do Advento"

SERMÃO DA PRIMEIRA DOMINGA DO ADVENTO (1655)
  
Cælum et terra transibunt;
Verba autem mea non transibunt.

Luc., XXI.


CAPÍTULO I

Passará o céu e a terra, mas o que dizem as minhas palavras não passará. Com esta notável, e não  usada sentença conclui Cristo Redentor nosso, a narração do Evangelho que acabamos de ouvir. Diz  que há de vir julgar e pedir conta ao mundo no último dia dele: e porque antes de o mundo ser julgado  há de ser abrasado primeiro, e convertido em cinzas; sobre o incêndio, que o há de consumir, cai a  primeira parte da conclusão: Coelum et terra transibunt; e sobre a conta que depois promete há de  tomar a todo o gênero humano, cai a segunda: Verba autem mea non transibunt. Estes são os dois  maiores portentos, que no teatro universal do Juízo verão naquele dia homens e anjos. Ali se verá o  princípio do mundo junto com o fim, e o fim junto com o princípio: o princípio com o fim, em tudo o  que passou, e o fim com o princípio, em tudo o que não há de passar. Parece dificultosa esta união em  tanta distância de séculos; mas esse é, e será um dos maiores milagres daquele dia, porque tudo o que  passou, e deixou de ser, e desapareceu com o tempo, como se não tivera passado, ou tornara a ser de  novo, há de aparecer com a conta. Se olharmos para todas as coisas quantas houve, há, e há de haver  no mundo, então se verá, que todas passaram, transibunt. Mas se olharmos para essas mesmas coisas,  as quais como ressuscitada com o gênero humano hão de ser citadas com ele para aparecer em Juízo;  então se verá também, e com maior assombro, que nenhuma delas passou, non transibunt. Estas duas  verdades, pois, cuja fé o mesmo Supremo Juiz com tanta expressão nos ratifica; estes dois  desenganos, a que tão mal nos persuadimos os mortais enquanto vivemos; e estas duas considerações  do que passou e do que não há de passar, transibunt et non transibunt, serão hoje os dois pólos, ou  pontos do meu discurso. No primeiro, que tudo passa para a vida: no segundo, que nada passa para a  conta. Em dia tão grande não pode o sermão ser breve. Aos ouvintes não peço atenção, mas paciência.  Deus, a quem tomo por testemunha de que procurei não lhe dar conta do que hoje disser, se sirva de  nos assistir a todos com sua graça em matéria que tanto toca a todos.


CAPÍTULO II

Tudo passa, e nada passa. Tudo passa para a vida, e nada para a conta. A verdade e desengano de que  tudo passa (que é o nosso primeiro ponto) posto que seja por uma parte tão evidente, e que parece não  há mister prova, é por outra tão dificultoso, que nenhuma evidência basta para o persuadir. Lede os  filósofos, lede os profetas, lede os apóstolos, lede os santos padres, e vereis como todos empregaram a  pena, e não uma senão muitas vezes, e com todas as forças da eloqüência, na declaração deste  desengano, posto por si mesmo tão claro.

Sabiamente falou quem disse que a perfeição não consiste nos verbos, senão nos advérbios: não em  que as nossas obras sejam honestas e boas, senão em que sejam bem feitas. E para que esta  condicional tão importante se estendesse também às coisas naturais e indiferentes, inventou o  apóstolo S. Paulo um notável advérbio. E qual foi? Tanquam non, como senão: Ut qui habent uxores,  tanquam non habentes sint: et qui flent, tanquam non flentes: et qui gaudent, tanquam nan gaudentes:  et qui emunt, tanquam non possidentes: et qui utuntur hoc mundo, tanquam non utantur. Sois casado?  (diz o apóstolo) pois empregai todo o vosso cuidado em Deus, como se o não fôreis. Tendes ocasiões  de tristezas? pois chorai, como se não choráreis. Não são de tristeza, senão de gosto? pois alegrai-vos,  como se não vos alegráreis. Comprastes o que havíeis mister, ou desejáveis? pois possuí-o, como se  não possuíreis. Finalmente usais de alguma outra coisa deste mundo? pois usai dela, como se não  usáreis. De sorte que quanto há, ou pode haver neste mundo, por mais que nos toque no amor, na  utilidade, no gosto, a tudo quer S. Paulo que acrescentemos um, como se não, tanquam non. Como se  não houvera tal coisa, como se não fora nossa, como se não nos pertencera. E por quê? Vede a  razão:Præterit enim figura hujus mundi. Porque nenhuma coisa deste mundo pára, ou permanece;  todas passam. E como todas passam e são como se não foram, assim é bem que nós usemos delas,  como se não usáramos: Tanquam non utantur. Por isso a essas mesmas coisas não lhes chamou o  oráculo do terceiro céu coisas, senão aparências, e ao mundo não lhe chamou mundo, senão figura do  mundo: Præterit enim figura hujus mundi.

Considerai-me o mundo desde seus princípios, e vê-lo-eis sempre, como nova figura no teatro,  aparecendo e desaparecendo juntamente, porque sempre está passando. A primeira cena deste teatro  foi o paraíso terreal, no qual apareceu o mundo vestido de imortalidade, e cercado de delícias; mas  quanto durou esta aparência? Estendeu Eva o braço à fruta vedada, e no brevíssimo espaço em que o  bocado fatal passou pela garganta do homem, passou também com ele o mundo do estado da  inocência ao da culpa, da imortalidade à morte, da pátria ao desterro, das flores aos espinhos, do  descanso aos trabalhos, e da felicidade suma ao sumo da infelicidade e miséria. Oh miserável mundo,  que se pararas assim, e te contentaras com comer o teu pão com o suor do teu rosto, foras menos  miserável! Mas não serias mundo, se de uma miséria grande não passasses sempre, e por tua natural  inclinação, a outra maior. Os homens naquela primeira infância do mundo todos vestiam de peles,  todos eram de uma cor, todos falavam a mesma língua, todos guardavam a mesma lei. Mas não foi  muita o tempo em que se conservaram na harmonia desta natural irmandade. Logo variaram e  mudaram as peles com tanta diferença de trajos, que cada dia, dos pés à cabeça, aparecem com nova  figura. Logo variaram e mudaram as línguas com tanta dissonância e confusão, como a da torre de  Babel. Logo variaram e mudaram as cores com a diversidade das terras e climas, e com a mistura do  sangue, posto que todo vermelho. Logo variaram e mudaram as leis, não com as de Platão, Sólon, ou  Licurgo, mas com a do mais imperioso e violento legislador, que é o próprio alvedrio. Tudo  mudaram, ou tudo se mudou, porque tudo passa.

As vidas naquele princípio costumavam ser de sete, de oito, de novecentos e quase de mil anos; e que  brevemente se acabou este bom costume? Então o viver muitos séculos era natureza, hoje chegar, não  a um século, mas perto dele, é milagre. Tardaram em passar até Noé, e também passaram. Com  aquelas vidas não só cresciam os anos, senão também os corpos: e dos filhos de Deus, que eram os  descendentes de Set, e das filhas dos homens, que eram as descendentes de Caim, nasceram os  gigantes, de quem diz a Escritura: Erant gigantes super terram. Alguns ossos que ainda duram destes  que o mesmo texto sagrado chama varões famosos, demonstraram pela simetria humana, que não  podiam ser menos que de vinte, e mais côvados: e ainda na história das batalhas de Davi temos  memória de outros quatro, posto que de muito menor estatura Mas, enfim, acabou a era dos gigantes;  porque tudo nesta vida, e mais depressa o que é grande, acaba e passa.  Diminuídos os homens nos corpos e nas idades, quando tinham a morte mais perto da vista (quem tal  crera!) então cresceram mais na ambição e soberba. E sendo todos iguais e livres por natureza, houve  alguns que entraram em pensamento de se fazer senhores dos outros por violência, e o conseguiram.  O primeiro que se atreveu a pôr coroa na cabeça, foi Membroth, que também como o nome de Nino,   ou Belo, deu princípio aos quatro impérios, ou monarquias do mundo. O primeiro foi o dos assírios e  caldeus; e onde está o império caldaico? O segundo foi o dos persas; e onde está o império persiano?  O terceiro foi o dos gregos; e onde está o império grego? O quarto, e maior de todos, foi o dos  romanos; e onde está o império romano? Se alguma coisa permanece deste, é só o nome: todos  passaram, porque tudo passa. Em três famosas visões representou Deus estes mesmos impérios a um  rei, e a dois profetas. A primeira visão foi a Nabucodonosor na estátua de quatro metais; a segunda a  Zacarias em quatro carroças de cavalos de diferentes cores; a terceira a Daniel em um conflito dos  quatro ventos principais, que no meio do mar se davam batalha. Pois se todas estas visões eram de  Deus e todas representavam os mesmos impérios, por que variou tanto a sabedoria divina as figuras, e  sobre a primeira da estátua, tão clara e manifesta, acrescentou outras duas tão diversas em tudo?

Porque a estátua, na dureza dos metais de que era composta, e no mesmo nome de estátua, parece que  representava estabilidade e firmeza: e porque nenhum daqueles impérios havia de preservar firme e  estável, mas todos se haviam de mudar sucessivamente, e ir passando de umas nações a outras; por  isso os tornou a representar na variedade das carroças na inconstância das rodas, e na carreira e  velocidade dos cavalos. Mas não parou aqui a energia da representação, como não encarecida ainda  bastantemente. A estátua estava de pé, e as carroças podiam estar paradas. E porque aqueles impérios  correndo mais precipitadamente que a rédea solta, não haviam de parar no mesmo passo, nem por um  só momento, e sempre se haviam de ir mudando, e passando; por isso, finalmente, os representou  Deus na causa mais inquieta, mudável, e instável, quais são os ventos, e muito mais quando  embravecidos e furiosos: Et ecce quatuor venti coeli pugnabant in mari magno.


CAPÍTULO III

Enquanto passaram estes quatro impérios, que foi a terceira, quarta, quinta e sexta idade do mundo,  entrando, também, pela sétima: quem haverá que possa compreender quanto passou no mesmo  mundo? Quando começou o primeiro império, então começou também a idolatria, digno castigo do  céu, que pois os homens se fizeram adorar, chegassem os mesmos a adorar paus e pedras. Os reis,  porém, que eram, ou tinham sido os idólatras, canonizados depois pela adulação e lisonja, ou na vida,  ou depois da morte, vinham também eles a ser ídolos. Assim Saturno, assim Júpiter, assim Mercúrio,  assim Apolo, assim Marte, assim Vênus, assim Diana; e posto que todos estes deixaram os seus  nomes gravados nas estrelas, elas permanecem, mas eles passaram. Passaram os ídolos, e também  passaram os oráculos com que neles respondia o pai da mentira, porque ao som da verdade do Evangelho todos emudeceram.

Então começaram as guerras: e que direi dos exércitos inumeráveis, das batalhas campais e marítimas,  das vitórias. e triunfos de umas nações, e da ruína, abatimento e servidão de outras, tão vária e  alternada sempre? Só digo, que assim a glória e alegria dos vencedores, como a dor e afronta dos  vencidos, tudo passou; porque tudo passa. O exército de Xerxes, que foi o maior que viu o mundo,  constava de cinco mil naus, e cinco milhões de combatentes; e porque de uma e outra parte fez  continente o Helesponto, e cavou e fez navegável o monte Ato, disse dele Marco Túlio, que  caminhava os mares a pé, e navegava os montes: Tantis classibus Xerxes in Groeciam transia, ut  Hellesponto juncto. Athoque monte perfosso, maria ambularit, terramque navigarit maria pedibus  peragrans, classibus montes. Mas todo aquele intenso e formidável aparato, que visto fez tremer o mar  e a terra, tão brevemente passou e desapareceu sendo desbaratado e vencido, que só ficou dele este  dito. O mesmo Temístocles, que com muito desigual poder o desfez e pôs em fugida, também passou,  como na Grécia e fora dela passaram todos os famosos capitães e suas vitórias. Passou Pirro, passou  Miltrídates, passou Filipe de Macedônia: passaram Heitor e Aquiles, passaram Aníbal e Cipião,  passaram Pompeu e Júlio César, passou o grande Alexandre, nome singular e sem parelha, e até Hércules, ou fosse um, ou muitos todos passaram, porque tudo passo.

Costumam às letras seguir-se as armas, porque tudo leva após si o maior poder; e assim floresceram  variamente, em diversas partes no tempo destes impérios, todas as ciências e artes. Floresceu a  filosofia, floresceu a matemática, floresceu a teologia, floresceu a astrologia, floresceu a medicina,  floresceu a música, floresceu a oratória, floresceu a poética, floresceu a história, passou o a  arquitetura, floresceu a pintura, floresceu a estatuária; mas assim como as flores se murcham e se  secam, assim passaram todos os autores mais celebrados das mesmas ciências e artes. Na estatuária  passou Fídias e Lisipo; na pintura passou Timantes e Apeles; na arquitetura passou Meliagenes e  Demócrates; na música passou Orfeu e Amphion; na história, Tucídides e Lívio; na eloqüência,  Demóstenes e Túlio; na poética, Homero e Virgílio; na astrologia, Anaxágoras e Ptolomeu; na  medicina, Esculápio e Hipócrates; na matemática, Euclides e Arquimedes; na filosofia, Platão e  Aristóteles; na teologia, Mercúrio Trismegisto e Apolônio Tiâneo; e por junto em todas as ciências  passaram no mesmo tempo os sete sábios da Grécia, porque, ou junto ou dividido, tudo passa. Só a  ética e a moral, como tão necessárias ó, vida e à virtude, parece que não haviam de passar; mas os platônicos, os peripatéticos, os epicureus, os cínicos, os pitagóricos, os estóicos, os acadêmicos, eles, e suas escolas e seitas, todos passaram.

Nenhuma coisa é mais própria desta consideração em que vamos, que os jogos e espetáculos públicos,  que os homens inventaram a título de passatempo, como se o mesmo tempo não passara mais velozmente que tudo quanto passa. Uns jogos foram os circenses, outros os dionisíos, outros os juvenais, outros os nemeus, outros os maratoneus, todos cheios de diferentes divertimentos, em que, ou se perdia a honestidade, como nos de Vênus; ou o Juízo, como nos de Baco; mas nenhuns mais indigno dos olhos humanos e piedade natural, que os gladiatórios. Saía toda Roma ao anfiteatro, a  quê? a ver e festejar como se matavam homens a homens; saíam uns, e sobrevinham outros, e outros, sem estar o posto vago um só momento, aclamando a cabeça do mundo, com aplausos mais carniceiros que cruéis, assim no dar, como no receber das feridas, tanto a intrepideza dos mortos, como a fúria dos matadores. Os jogos seculares se chamavam assim, porque se celebravam uma só vez de século a século; e dizia o pregão público que convidava para eles: Venite ad ludos, quos nemo vìdit unquam, nec visurus est: Vinde ver os jogos, que ninguém viu, nem há de tornar a ver. E com este desengano da vida passada e desesperação da futura, os iam todos ver, e se chamavam jogos. Os olímpicos foram os mais célebres e famosos de todos, em que de cinco em cinco anos, concorria todo  o mundo a uma cidade do mesmo nome, ou levar, ou ver quem levava uma coroa de louro. Por estes  jogos, mais que pelo curso do sol, se contavam e distinguiam os anos. Mas como toda a competência era a correr, e o que mais corria era o que triunfava, não podiam deixar de passar as Olimpíadas,  como passaram todos os outros jogos daqueles tempos, ou todos os passatempos daqueles jogos. Só uma coisa há que não pode passar, porque o que nunca foi, não pode deixar de ser, e tais parece que foram as fábulas que neste mesmo tempo se inventaram e fingiram. Mas se elas não passaram em  si mesmas, passaram naqueles casos e coisas que deram ocasiões a se fingirem. Na seca universal que  abrasou todo o mundo, passou a fábula de Faetonte: no dilúvio particular que inundou grande parte dele, passou a fábula de Deucalion; no estudo com que el-rei Atlante contemplava o curso e  movimento das estrelas, passou a fábula de trazer o céu aos ombros; na especulação contínua de todas  as noites, com que Endimion observava os efeitos do planeta mais vizinho à Terra, passou a fábula  dos seus amores com a Lua. E porque também os nossos vícios, a nossa fraca virtude, e a nossa mesma vida passam como fábula; o amor e complacência de nós mesmos passou na fábula de  Narciso; a riqueza sem juízo, na fábula de Midas; a cobiça insaciável, na fábula de Tântalo; a inveja  do bem alheio, na fábula e abutre de Tício; a inconstância da fortuna mais alta, na fábula e roda de  Ixion; o perigo de acertar com o meio da virtude, e não declinar aos vícios dos extremos, na fábula de  Cila e Caribde; e finalmente a certeza da morte, a incerteza da vida, pendente sempre de um fio,  passou e está continuamente passando na fábula das Parcas. Assim envolveram e misturaram os  sábios daquele tempo o que há com o que não há, e o certo com o fabuloso; para que nem o louvor  nos desvaneça, nem a calúnia nos desanime, pois o verdadeiro e o falso, a verdade e a mentira, tudo passa.
  
Mas não é justo que nesta passagem de tudo o que passou no tempo dos quatro impérios profanos do  mundo, passemos nós em silêncio aquela república sagrada, que alcançou a todos quatro, e por ser  fundada por Deus, parece que tinha direito a não passar. Nasceu a república hebréia no cativeiro do  Egito; e quem então lhe levantasse figura, facilmente lhe podia prognosticar os três cativeiros e  transmigrações com que foi arrancada da pátria. Uma vez cativa por Salmanasar, em que passou  desterrada aos assírios; outra vez cativa por Nabucodonosor, em que passou desterrada aos  babilônios; e a terceira e última vez cativa por Tito e Vespasiano, em que passou desterrada a todas as   terras e nações do mundo. Começou no famoso triunvirato de Abraão, Isaac, e Jacó, tantas vezes nomeado e honrado por boca do mesmo Deus; mas nem por isso deixaram de passar todos três. Sucedeu-1he José, o que sonhou as suas felicidades e as adorações de seu pai e irmãos; e posto que todas se cumpriram, todas passaram como se foram sonho. Teve o mesmo povo três estados de governo: o dos juizes, o dos reis, o dos capitães; e se bem subindo e descendo, as varas se trocaram com os cetros, e os cetros com os bastões, nenhum daqueles estados foi estável, todos passaram. Nos juizes passou a espada de Gedeão, o arado de Sangar, e a queixada de Sansão. Nos reis passou a valentia de Davi, a sabedoria de Salomão, e a piedade e religião de Josias. Nos capitães passou o braço invencível de Judas Macabeu, vencedor de tantas batalhas; passou a façanha imortal de Eleazar, que metendo-se debaixo do elefante, cavou a sua própria sepultura: e passou mais gloriosa que todos o honrado e glorioso testamento do velho Matias, digno de ser escrito em branzes. E porque não fiquem totalmente em silêncio as heroínas da mesma nação, quatro houve nela insignes na formosura: Sara, Raquel, Ester e Judite, todas porém fatais a quem as amou. Sara a um peregrino com perigos;  Raquel a um pastor com trabalhos; Ester a um rei com desgostos; e Judite a um general com a morte.  Este acabou miseravelmente a vida; mas as formosuras antes de se acabarem as vidas, já tinham passado. Floresceram no mesmo povo, além de outros igualmente verdadeiros, dezesseis profetas  canônicos, quatro maiores, e doze menores; mas em espaço de três séculos os maiores e menores,  desde Oséias a Malaquias, todos passaram: Passaram os milagres da vara, passaram os da serpente de  metal, passaram os de Elias e Eliseu: e porque só faltava passar a lei de Moisés, e o sacerdócio de  Arão, a lei e o sacerdócio também passaram, porque tudo passa.

Agora quisera eu perguntar ao mundo, se como me enche a memória de tantas coisas, que todas  passaram, me mostrará alguma aos olhos que não passasse? As sete fábricas a que a fama deu o nome  de maravilhas, acrescentaram alguns como oitava o anfiteatro romano. Mas a maravilha oitava, ou  nona, é que todas essas maravilhas, que pareciam eternas, passaram. A primeira maravilha foram as  pirâmides do Egito, a segunda os muros de Babilônia, a terceira a torre de Faros, a quarta o colosso de  Rodes, a quinta o mausoléu de Cária, a sexta o Templo de Diana Efesina, a sétima o simulacro de  Júpiter Olímpico. E deixando o anfiteatro, de que só se vêem as ruínas, as pirâmides caíram, os muros  arrasaram-se, o colosso desfez-se, o mausoléu sepultou-se, a torre sumiu-se, o farol apagou-se, o  templo ardeu, e o simulacro como simulacro, desvaneceu-se em si mesmo. Tem mais que dizer, ou  que opor o mundo? Só pode apelar para as mais fortes e bem fundadas cidades, cortes e metrópoles  dos mais poderosos impérios: argumento verdadeiramente de grande boato, antes de se lhe tomar o  peso. Nínive, corte de Nino, foi a maior cidade do mundo: andava-se de porta a porta, não menos que  em três dias de caminho; edificada de propósito com arrogância de que nenhuma outra a igualasse,  como não igualou. Mas onde está essa Nínive? Ecbátana, corte de Arfaxad, e cidade que o texto  sagrado chama potentíssima, era cercada de sete ordens de muros, todos de pedras quadradas, cada  uma com vinte e sete palmos por todas as faces, e as portas com a prodigiosa. altura de cem côvados.  Mas onde está essa Ecbátana? Susa, corte de Assuero, e metrópole de cento e vinte e sete Províncias,  cujo palácio representava um céu estrelado, fundado sobre colunas de oiro e pedras preciosas, e cujos  muros eram de mármores brancos e jaspes de diferentes cores; bem se deixa ver quão forte e  inexpugnável seria, pois defendia tão grande monarca, dominava tantos reinos e guardava tantos  tesouros. Mas onde está essa Suas? Se houvéssemos de fazer a mesma pergunta às ruínas de Tebas, de  Memphis, de Bactra, de Cartago, de Corinto, de Sebaste, e da mais conhecida de todas, Jerusalém,  necessário seria dar volta a toda a redondeza da Terra. De Tróia disse Ovídio: Jam seges est ubi Troia  fuit. E o mesmo podemos dizer das planícies, vales e montes, donde se levantavam às nuvens aqueles  vastíssimos corpos de casas, muralhas e torres. De umas se não sabem os lugares onde estiveram;  doutras se lavram, semeiam, e plantam os mesmos lugares, sem mais vestígios de haverem sido, que  os que encontram os arados, quando rompem a terra. Para que os homens compostos de carne e  sangue se não queixem da brevidade da vida, pois também as pedras morrem; e para que ninguém se  atreva a negar, que tudo quanto houve, passou, e tudo quanto é, passa.


CAPÍTULO IV

A razão deste curso, ou precipício geral com que tudo passa, não é uma só, senão duas: uma contrária  a toda a estabilidade, e outra repugnante ao mesmo ser. E quais são? O tempo, e antes do tempo, o  nada. Que coisa mais veloz, mais fugitiva, e mais instável que o tempo? Tão instável, que nenhum  poder, nem ainda o divino o pode parar. Por isso os quatro animais, que tiravam pela carroça da . glória de Deus neste mundo, não tinham rédeas. Descreveu o Tempo no palácio do Sol o mais engenhoso de todos os poetas, e dividindo-o em suas partes, disse assim elegantemente:

A dextra, loevaque dies, et mensis, et annus,
Soeculaque et positoe spatiis aqualibus horoe:
Verque novum stabat cinctum florente corona;
Stabat nuda oestas, et spicea serta gerebat
Stabat et Autumnus calcatis sodidus uvis;
Et glacialis Hyems canis hirsuta capillis.

Elegantemente, torno a dizer, mas falsa e impropriamente. Aquele stabat tantas vezes repetido, é o que tirou toda a semelhança de verdade à engenhosa pintura. Porque nem a primavera com as suas flores, nem o estio com as suas espigas, nem o outono com os seus frutos, nem o inverno com os seus frios e neves, por mais tolhido e entorpecido que pareça, podem estar parados um momento. Passam as horas, passam os dias, passam os anos, passam os séculos, e se houvesse hieroglífico com que se pudessem pintar, haviam de ser todos com asas, não só correndo e fugindo, mas voando e desaparecendo. Nem escusa esta impropriedade estar o Sol assentado: Sedebat in solio Poebus; porque o Sol pode parar, como no tempo de Josué, ou tornar atrás, como no tempo de Ezequias; mas o tempo em nenhum tempo, pode deixar de ir por diante sempre, e com a mesma velocidade. Bem emendou esta sua impropriedade o mesmo poeta, quando depois disse:

Ipsa quoque assiduo labuntur motu
Non secus ac flumen, neque enim consistere flumen
Aut levis hora potest.

E como o tempo não tem, nem pode ter consistência alguma, e todas as coisas desde seu princípio  nasceram juntamente com o tempo, por isso nem ele, nem elas podem parar um momento, mas com  perpétuo moto, e revolução insuperável passar, e ir passando sempre.

A segunda razão ainda é mais natural e mais forte: o nada. Todas as coisas se resolvem naturalmente,  e vão buscar com todo o peso o ímpeto da natureza, o princípio donde nasceram. O homem porque foi  formado da terra, ainda que seja como dispêndio da própria vida, e suma repugnância da vontade,  sempre vai buscar a terra, e só descansa na sepultura. Os rios esquecidos da doçura de suas águas,  posto que as do mar sejam amargosas, como todos nasceram do mar, todos vão buscar o mesmo mar,  e só nele se desafogam, e param como em seu centro. Assim todas as coisas deste mundo, por grandes  e estáveis que pareçam, tirou-as Deus com o mesmo mundo do não ser ao ser; e como Deus as criou  do nada, todas correm precipitadamente, e sem que ninguém lhes possa ter mão, ao mesmo nada de  que foram criadas. Vistes a torrente formada da tempestade súbita, como se despenha impetuosa, e  com ruído; e tanto que cessou a chuva, também ela se secou, e sumiu subitamente, e tornou a ser o  nada que dantes era? Pois assim é tudo, e somos todos, diz Davi: Ad nihilum devenient tanquam aqua  decurrens. Sonhastes no último quarto da noite, quando as representações da fantasia são menos  confusas, que possuíeis grandes riquezas, que gozáveis grandes delícias, e que estáveis levantado a  grandes dignidades; e quando depois acordastes, vistes com os olhos abertos, que tudo era nada? Pois  assim passam a ser nada em um abrir de olhos todas as aparências deste mundo, diz o mesmo profeta:  Velut somnium surgentium, Domine, imaginem ipsorum ad nihilum rediges. De sorte que estas são  as duas razões por que todas. as coisas passam. Passam, porque voam com o tempo, e passam, parque  vão caminhando para o nada donde saíram. Por isso, como disse o Espírito Santo, quando umas  passaram, ou têm passado; é necessário que venham outras para também passar: Generatio praeterit,  et generatio advenit: terra autem in oeternum stat.

Mas se bem se repara nesta mesma sentença, sendo tão poucas as suas palavras, assim como umas  confirmam assim outras parece que impugnam, e destroem quanto vínhamos dizendo. Porque se a  Terra está sempre firme, e estável: terra autem in aeternum stat; segue-se que ao menos a mesma  Terra não passa, e que há no mundo alguma coisa, que não passe. Concederemos pois esta exceção ao  nosso assunto, e diremos que passam as figuras, como diz S. Paulo, mas que a Terra, que é o teatro,  não passa? Não digo, nem concedo tal. A Terra toda não passa, mas passam, e sempre estão passando  todas as partes dela. A Terra compõe-se de reinos, os reinos compõem-se de cidades, as cidades  compõem-se de casas e campos, e principalmente de homens, e tudo isto, que tudo é terra (e toda a  Terra) perpetuamente está passando. Daniel revelando a Nabucodonosor a inteligência da sua estátua,  disse que Deus muda os tempos, e as idades, e conforme elas passa os reinos de uma parte para outra:  Ipse mutat tempora, et aetates: transfert regna, atque constituit ). Assim passou o reino do mesmo  Nabuco para a Pérsia, o dos persas para a Grécia, o dos gregos para Roma, e dos romanos para tantos  outros, quantos hoje coroam outras cabeças, as quais se devem lembrar daquela infalível sentença:  Regnum a gente in gentem transfertur propter injustitias. O nosso reino não sendo no sítio original  dos maiores, quantas vezes passou a outras gentes? Passou aos suevos, passou aos álanos, passou aos  cartagineses, passou aos romanos, passou aos árabes e sarracenos e, dentro da mesma Espanha,  também passou, e tornou a passar. Os terremotos, que se geram do ar violentado nas entranhas da  Terra, são muito raros, mas os que se fazem na superfície dela, sempre a trazem em perpétuo  movimento.

E se os grandes reinos e impérios não são estáveis, e passam; que serão as cidades particulares, para  que não é necessário, que a roda da fortuna dê toda a volta? Não falo daquelas que acabaram como de  morte súbita, abrasadas até à última cinza no incêndio de uma noite, como Tróia e Lugduno. Desta  disse judiciosamente Sêneca: Quando una nox fuit inter urbem maximam, et nullam, nihil privatim,  nihil publice stabile est: tam hominum, quam urbium fata volvuntur. Deixadas pois estas, que  subitamente passaram do ser ao não ser; só falo das que por seus passos contados vieram de um  domínio a outro domínio. E quantas vezes as pombas de Babilônia, quantas os leões de Jerusalém,  quantas as águias de Roma e de Constantinopla viram sobre suas muralhas outras bandeiras? O maior  teatro de Marte no nosso século, e porventura, que em nenhum outro, foram as guerras bélgicas; e na  grande Província de Holanda, exceta Dorth, por isso chamada a Virgem, nenhuma cidade houve, que  não fosse conquistada e alternasse o domínio. Que direi dos confins sempre incertos, e tão  freqüentemente mudados, de Espanha com França, de França com Germânia, de Germânia com a  Turquia, e da Turquia com Itália? Anos há, que a antiga Creta, hoje Cândia, sem ser das ilhas errantes  do arquipélago, tem posto em dúvida o mundo para onde há de ir, e se há de reconhecer as cruzes, ou  as meias-luas.

E quanto às casas, membros menores de que se compõem inumeravelmente as cidades; quem poderá  compreender o inextricável labirinto, com que, à maneira de peixes do mar, se andam sempre  movendo, e passando de um dono para outro dono? Ouçam a familiar evidência com que o grande  juízo de Santo Agostinho demonstrou a um deles esta perpétua instabilidade. Introduz um rico, que,  jactancioso de ser senhor da sua casa, dizia: Domum meam habeo; e pergunta-lhe o santo assim:  Quam domum tuam? Quam Pater meus mihi dimisit. Et unde ille habuit? Avus noster illam reliquit.  Recurre ad Proavum, inde ad Abavum et jam nomina nan potes dicere. Pater tuus hic eam dimisit  transivit per illam, sic et tu transibis. Esta casa de que vos jactais ser senhor, por que é vossa? Porque  a herdei de meu pai; e vosso pai de quem a houve? De meu avô; e de quem a houve vosso avô? De  meu bisavô; e vosso bisavô de quem? De meu trisavô. Já não tendes palavras com que prosseguir de quem mais foi, e a quem mais passou essa casa, que chamais vossa. Pois assim como ela passou, e,  vossas antepassados passaram por ela, assim ela e vós também haveis de passar. Por este modo sem  firmeza, nem estabilidade alguma, estão sempre passando neste mundo as casas, as quintas, as  herdades, os morgados: uns, porque os faz passar a morte, outros, porque os manda passar a justiça,  outros, porque os convida a passar a riqueza dos que os compram, outros, porque os obriga á  necessidade dos que os vendem, outros, porque a força e poder os rouba e senhoreia por violência: em  suma, que não há pedra, nem telha, nem planta, nem raiz, nem palmo de terra na Terra, que não esteja  sempre passando, porque tudo passa.


CAPÍTULO V

Deste tudo que está sempre passando, é o homem não só a parte principal, mas verdadeiramente o  tudo do mesmo tudo. E vendo o homem com os olhos abertos e, ainda os cegos, como tudo passa, só  nós vivemos como se não passáramos. Somos como os que navegando com vento e maré, e correndo  velocissimamente pelo Tejo acima, se olham fixamente para a terra, parece-lhes que os montes, astorres, e a cidade é a que passa; e os que passam, são eles. É o que disse o poeta: Montes, urbes que  recedunt. Mas demos volta a esta mesma comparação, e veremos na Terra outro gênero de engano ainda maior. A maior ostentação de grandeza e majestade que se viu neste mundo, e uma das três que  Santo Agostinho desejara ver foi a pompa e magnificência dos triunfos romanos. Entravam por uma  das portas da cidade, naquele tempo vastíssimo, encaminhados longamente ao Capitólio: precediam  os soldados vencedores com aclamações: seguiam-se, representadas ao natural, as cidades vencidas,  as montanhas inacessíveis escaladas, os rios caudalosos vadeados com pontes: as fortalezas e armas  dos inimigos, e as máquinas com que foram expugnadas: em grande número de carros os despojos e  riquezas, e todo o raro e admirável das regiões novamente sujeitas: depois de tudo isto a multidão dos  cativos, e talvez os mesmos reis manietados; e por fim em carroça de ouro e pedraria, tirada por  elefantes, tigres, ou leões domados, o famoso triunfador, ouvindo a espaços aquele glorioso e  temeroso pregão: Memento te esse mortalem. Enquanto esta grande procissão (que assim lhe chama  Sêneca) caminhava, estavam as ruas, as praças, as janelas e os palanques, que para este fim se faziam,  cobertos de infinita gente, todos a ver. E se Diógenes então perguntasse, quais eram os que passavam,  se os do triunfo, se os que o estavam vendo, não há dúvida, que pareceria a pergunta digna de riso.  Mas o certo é que tanto os da procissão e do triunfo, como os que das janelas e palanques os estavam  vendo, uns e outros igualmente passavam, porque a vida e o tempo nunca param: e ou indo, ou  estando ou caminhando ou parados, todos sempre com igual velocidade passamos.

Declarou esta verdade tão mal advertida com uma semelhança muito própria Santo Ambrósio  elegantemente: Et si non videmur ire corporaliter, progredimus. Nam sicut in navibus dormientes  ventis aguntur ir portus; sic vitae nostroe spatio defluente, ad proprium unusquisque finem, cursu  labente deducimur. Tu enim dormis, et tempus tuum ambulat. Todos vamos embarcados na mesma  nau, que é a vida, e todos navegamos com o mesmo vento, que é o tempo; e assim como na nau uns  governam o leme, outros mareiam as velas; uns vigiam, outros dormem; uns passeiam, outros estão  assentados;uns cantam, outros jogam, outros comem, outros nenhuma coisa fazem, e todos  igualmente caminham ao mesmo porto; assim nós, ainda que o não pareça, insensivelmente vamos  passando sempre, e avizinhando-se cada um ao seu fim; porque tu, conclui Ambrósio, dormes, e o teu  tempo anda: Tu dormis, et tempus tuum ambulat. Disse pouco em dizer que o tempo anda, porque  corre e voa; mas advertiu bem em notar que nós dormimos; porque tendo os olhos abertos para ver  que tudo passa, só para considerar que nós também passamos, parece que os temos fechados.  Dito foi do grande filósofo Heráclito, alegado e celebrado por Sócrates: Non posse quenquam bis in  eumden fluvium descendere: que nenhum homem podia entrar duas vezes em um rio: e por quê?  Porque quando entrasse a segunda vez, já o rio, que sempre corre e passa, é outro. E daqui infiro eu,  que o mesmo sucederia se não fosse rio, senão lago ou tanque aquele em que o homem entrasse;  porque ainda que a água do lago e do tanque não corre, nem se muda, corre porém, e sempre se está  mudando o homem, que nunca permanece no mesmo estado: Et nunquam in eodem statu permanet:  Assim o disse Jó, e quem o não disser assim de todo o homem, e de si mesmo, não se conhece.  Admira-se Philo Hebreu, de que perguntando Deus a Adão ande estava: Adam, ubi es? ele não  respondesse. Mas logo escusa ao mesmo Adão, e a qualquer outro homem a quem Deus fizesse a  mesma pergunta; porque, como pode responder onde está, quem não está? Se dissera, estou aqui  (como sutilmente argúi Santo Agostinho) entre a primeira. sílaba e a segunda já o estou não seria  estou, nem o aqui seria o mesmo lugar; porque como tudo está passando, tudo se teria mudado. Por  isso conclui o mesmo Philo, que se Adão houvesse de responder própria e verdadeiramente onde  estava, haveria de dizer: nusquam, em nenhuma parte; porque em nenhuma parte está aquilo que  nunca está, mas sempre passa: Ad quod proprie respondere poterat, nusquam: eo quod humana res  nunguam in eodem statu maneat.

Considerando este contínuo passar do homem (não fora de si, senão onde verdadeiramente parecer que está e permanece, que é dentro em si mesmo) diziam os sábios da Grécia, como refere Eusébio Cesariense, que todo o homem que chega a ser velho, morre seis vezes. E como? Passando da infância à puerícia, morre a infância; passando da puerícia à adolescência, morre a puerícia; passando da adolescência à juventude morre a adolescência; passando da juventude a idade do varão morre a juventude; passando da idade de varão à velhice, morre a idade de varão; e, finalmente, acabando de viver por tanta continuação e sucessão de morte, com a última, que só chamamos morte, morre a velhice. Assim o consideravam aqueles sábios, mais larga e menos sabiamente do que deveram, aos quais por isso emendou S. Paulo, dizendo que morria todos os dias: Quotidie morior. E já pode ser que da comunicação que Sêneca teve com S. Paulo, ensinou ele esta mesma lição ao seu discípulo, quando lhe diz: Singulus dies, singulas vitas puta. Se o Sol, que sempre é o mesmo, todos os dias tem um novo nascimento, e um novo ocaso, quanto mais o homem por sua natural inconstância tão mudável, que nenhum é hoje o que foi ontem, nem há de ser amanhã o que é hoje! Desenganemo-nos pois todos, e diga,.ou diga-se cada um com el-rei Ezequias: De mane usque ad vesperam finies me. E seja o última conclusão deste largo discurso; que então definiremos bem e conheceremos o que é esta vida e este mundo, quando entendermos que não só estamos nele em perpétua passagem, mas em perpétuo passamento.


CAPÍTULO VI

Assim passamos todos, e assim passa tudo para a vida; desengano verdadeiramente não só triste, mas tristíssimo, se este superlativo e outros de maior horror não foram mais devidos ao que, e depois de  tudo passar, se segue. Depois da vida segue-se a conta; e sendo a conta que se há de dar, de tudo o que se passou na vida; tristíssima e terribilíssima consideração é que, passando tudo para a vida, nada passe para a conta. O que faz, e há de fazer dificultosa a conta são os pecados da vida, e de toda a vida. E que confusão será naquele dia tão cheio de horror e assombro, olhar para a vida, e para os pecados de toda ela, e ver que a vida passou e os pecados não passaram!

Desse passar e não passar, não só temos os documentos da Escritura, mas grandes e manifestos exemplos da mesma natureza. Cristo, Redentor e Juiz universal nosso, comparou o dia do Juízo a uma rede lançada no mar: Sagenoe missae in mare. O mar é este mundo; a rede é a compreensão da  ciência e justiça divina; os que nela andam nadando já presos, ou com maior ou menor larqueza, são  todos os homens. E assim como na rede, quando a malha é muito estreita, só a água pode passar e nenhuma outra coisa; assim passa somente por ela a vida, e tudo o mais (que são os pecados) fica  dentro, e nada passa. Oh quão apertada e estreita é esta malha de rede de Deus; e quão fácil de passar, ainda por ela, a vida, que, como água, sempre está passando! Omnes morimur, et quasi aqua  dilabimur. O mesmo Cristo comparou este passar e não passar ao crivo, quando disse a seus  discípulos: Satanás expetivit vos ut cribraret sicut triticum. Assim como no crivo (diz S. João  Crisóstomo, comentando estas palavras) , assim como no criva dando uma e muitas voltas passa o  grão, e só fica a palha, assim neste mundo (que é todo furado) com a volta que dão os dias e os anos,  passa a vida e os gostos dela: Et in novíssimo nihil remanet, nisi solum peccatum, e no fim, e para o fim só fica o pecado. De outro crivo fala Davi, que é o das nuvens, por onde se côa a água da chuva, o  qual mais altamente nos inculca este mesmo documento: Cribrans aquas de nubibus coelorum. Desce  a nuvem como esponja a beber no mar, e sendo a água do mar salgada e amargosa, passada porém pela nuvem, o que lá fica é o amargoso, e o que cá desce, o doce. Por isso com grande propriedade este passar e não passar se compara na nuvem ao crivo, e na vida e na conta à nuvem. O que passa por ela e cá logramos, é o doce da vida; o que fica lá em cima e não vemos, é o amargoso da conta.  Não podia Jó faltar a enobrecer este mesmo assunto, como tão próprio das suas experiências, com  alguma semelhança que mais ainda no-lo declare. Diz que observou Deus todos os seus caminhos, e  considerou as pegadas dos seus pés: Observasti omnes semitas meas, et vestigia pedum meorum  considerasti. E por que considera Deus não os passos, senão as pegadas? Porque os passos passam, as  pegadas ficam; os passos pertencem à vida que passou, as pegadas à conta, que não passa. Mas que diferentemente não passa Deus pelo que nós tão facilmente passamos! Nós deixamos as pegadas  detrás das costas, e Deus tem-nas sempre diante dos olhos, com que as nota e observa: as pegadas  para nós apagam-se, como formadas em pó, para Deus não se apagam, como gravadas em diamante.  Tal é a consideração dos pecados, que na nossa memória logo se perde, e na ciência divina sempre  está presente. O Setenta, em lugar de pegadas, trasladaram raízes: Et radices pedum meorum  considerasti. Assim como os pés se chamam plantas, assim às pegadas lhes quadra. bem o nome de  raízes. E por que deu este nome Jó às pegadas dos seus passos? Não só porque os passos passam, e as  pegadas ficam; mas porque ficam como raízes fundas e firmes, e que sempre permanecem. As  pegadas estão manifestas e vêem-se; as raízes estão escondidas e não se vêem: e assim tem Deus  guardados invisivelmente todos os nossos pecados, os quais no dia da conta rebentarão como raízes, e  brotarão nos castigos, que pertencem à natureza de cada um. Isto é o que tanto cuidado dava a Jó.

Finalmente, o apóstolo S. Paulo, pregando contra os que abusam da paciência e benignidade de Deus,  e em vez de se aproveitarem do espaço que lhes dá para a penitência, gastam a vida em acumular pecados sobre pecados: não vês (diz), ó homem, que desprezas as riquezas do sofrimento e longanimidade divina, e que pelo contrário, segundo a dureza do teu coração, entesouras para ti a ira e vingança, que te espera no dia do Juízo? An divitias bonitatis ejus, et patientiae et longanimitatis contemnis? Secundum autem duritiam tuam, et revelationis justi judicii Dei? De maneira que ao pecar  sobre pecar chama S. Paulo entesourar: thesaurizas tibi; porque ainda que a vida e os dias em que  pecamos passam, os pecados que neles cometemos, não passam, mas ficam depositados nos tesouros  da ira divina. Fala o apóstolo por boca do mesmo Deus, o qual diz no Deuteronômio: Nonne hoec  condíta sunt apud me, et signata in thesauris meis? Mea est ultio, et ego retribuam in tempore. Estes  tesouros, pois, que agora estão cerrados, se abrirão a seu tempo, e se descobrirão para a conta no dia  do Juízo, que isso quer dizer, in dïe iroe, et revelationis justi judicii Dei. Considerai-me um homem  rico, e que tem mais rendas cada ano do que há mister para se sustentar que faz este homem? Uma  parte do que tem gasta, e outra parte entesoura. Pois isto é o que fazemos todos. Todos gastamos, e todos entesouramos; todos gastamos o que passa, e todos entesouramos a que não passa; o que  gastamos, é o da vida; o que entesouramos, o da conta.

Infinita matéria seria, se agora houvéramos de reduzir à prática uma e outra parte desta demonstração,  e pô-las ambas em teatro. Mas por isso nos detivemos tanto no primeiro ponto do nosso discurso. Não  vimos nele, desde o principio do mundo, como tudo passou? Não vimos, como todos os que em tantos  séculos viveram, passaram? Pois esse tudo que então passou para a vida, é o nada que não passou para  a conta; e esses todos que então morreram, e agora estão sepultados, são os que ressuscitados neste  mesmo dia hão de aparecer vivos diante do tribunal divino, para dar essa conta estreitíssima de quanto  fizeram, Neste tribunal viu S. João assentado sobre um trono de admirável majestade o Supremo Juiz,  e com aspecto tão terrível, que afirma fugiu dele o céu e a terra: Et vidi thronum magnum candidum,  et sedentem super eum, a cujus conspectu fugit terra, et coelum . Diz mais, que viu a todos os mortos,  grandes e pequenos, em pé, como réus, diante do mesmo trono: Et vidi mortuos magnos et pusillos stantes in conspectu throni. E finalmente conclui, que então apareceram e se abriram um livro e  muitos livros, e que pelo que estava escrito nestes livros foram julgados todos, cada um conforme  suas obras: Et libri aperti sunt; et alius liber apertus est, qui est vitae; et judicati sunt mortui ex his  quoe scripta erant in libris secundum opera ipsorum. Desta distinção que o evangelista faz de livro a  livros, se vê claramente, que o livro era da vida, liber qui est vitae, e que os livros eram da conta,  porque pelos livros foram julgados os mortos: Et judicati sunt mortui ex his quoe scripta erant in  libris. Assim entendem literalmente estes textos como soam, Beda e outros padres. Mas por que razão  o livro da vida, era livro, e os livros da conta, livros? Porque o livro da vida contém os dias da mesma  vida, que são poucos, e os livros da conta contêm os pecados cometidos nos mesmos dias, que são muitos. Assim que postos à vista no tremendo tribunal, de uma parte o livro, e, da outra os livros,  então se verão juntas e concordes as duas combinações do nosso assunto: no livro, como tudo passa  para a vida; nos livros, como nada passa para a conta.


CAPÍTULO VII

Este nada, do qual dizemos que nada passa para a conta, é o que agora havemos de examinar. Pergunto: se nada passa para a conta, parece que também o nada pode ser chamado a Juízo? E se acaso for chamado, escapará da conta o nada por ser nada? Creio que todos estão dizendo que sim. Mas é certo, e de fé, que também o nada, por mais qualificado que seja, há de ser chamado a Juízo, e porque nada passa para a conta, nem o mesmo nada há de passar sem ela, e mui rigorosa. Ninguém foi mais qualificado na lei da natureza que Jó, e ninguém mais qualificado na lei da graça que S. Paulo: e que dizia de si um e outro? Jó dizia que nada tinha feito contra Deus: Quia nihil impium fecerim. S. Paulo dizia que nada havia na sua consciência, de que ela o acusasse: Nihil mihi conscius sum. E este nada de Jó, e este nada de S. Paulo escaparam porventura da conta e do Juízo? Eles mesmos confessam, que de nenhum modo. Jó dizia que Deus o tinha posto a questão de tormento, como réu, para averiguar se o que ele tinha por nada, verdadeiramente era nada: Ut quoeras iniquitatem meam, ei peccatum meum scruteris, et scias, quia nihil impium fecerim. E S. Paulo dizia, que ele se não dava por justificado do que na sua consciência reputava por nada, porque desse nada não havia ele de ser o juiz, senão Deus: Nihil mihi conscius sum, sed non in hoc justificatus sum; qui autem judicat me, Dominus est. Eis aqui quão manifesta e provada verdade é, que nada passa para a conta, pois até do mesmo nada a há de tomar Deus, e tão estreita.

Mas qual é, ou pode ser a razão por que onde dois homens tão grandes, tão qualificados e tão santos, como Jó e S. Paulo, não reconhecem nada de culpa, lha haja, de argüir Deus, e pedir-lhes conta? A primeira razão e da parte de Deus (a qual só pode ignorar quem o não conhece) é, porque ainda nas coisas mais interiores nossas, conhece Deus muito mais de nós, do que nós de nós. Quando Cristo na mesa da última Ceia revelou aos apóstolos, que um deles o havia de entregar: Amen dico vobis, quia uns vestrum me traditurus est, diz o evangelista, que muito tristes todos com tal notícia, começou cada um a perguntar: Nunquid ego num, Domine? Porventura, Senhor, sou eu esse? Pedro, André, João e os demais, exceto Judas, bem sabia cada um de si, que não era o traidor, nem tal coisa lhe passara pelo pensamento; pois por que se não deixam estar muito seguros na boa fé da sua lealdade, mas pondo em dúvida o que não duvidavam, pergunta cada um a Cristo se é ele o traidor: Nunquid ego sum? Porque ainda que a própria consciência os não acusava, sabiam todos que sabia Cristo mais de cada um deles, do que eles de si. Eles conheciam-se, como homens, Cristo conhecia-os, como Deus. Esse foi o erro e engano de S. Pedro, que estava à mesma mesa! Pedro disse, que se fosse necessário daria a vida por Cristo; Cristo pelo contrário disse, que três vezes o havia de negar naquela noite. E por que foi esta a verdade? Porque Pedro falou pelo que ignorava de si, e Cristo pelo que conhecia dele. Hoc illi Christus pracnuntiabat qued in se ipse ignorabat, diz Santo Agostinho. E como o juiz daquele dia conhece mais de nós, do que nós de nós, não é muito que ele nos condene pelo que nós ignoramos, e que no seu juízo seja culpa, o que no nosso parece inocência.

A segunda razão, e da parte nossa é, porque assim como Deus sabe tanto de nós, assim nós sabemos muito pouco de Deus; e por isso as nossas razões não podem alcançar as suas. Um dia, depois de Cristo entrar triunfante em Jerusalém, vindo de Betânia para a mesma cidade, esuriit, teve fome; e como visse ao longe uma figueira verde e copada, encaminhou as passos até ela, para ver se acaso tinha algum fruto: Si quid forte inveniret in ea. Mas porque não achou mais que folhas, lançou-lhe o Senhor maldição de que eternamente não desse fruta: Nunquam ex te fructus nascatur insempiternum; e no mesmo momento se secou a árvore desde as folhas até as raízes. É porém muita de notar neste caso, coma nota S. Marcos, que não era tempo de figos: Non enim erat tempus ficorum. Pois se não era tempo de aquela árvore ter fruto, por que a amaldiçoa Cristo, e a seca, não só para aquele ano, senão para sempre? Podia haver causa, ou desculpa mais natural de não ter fruto, que não ser tempo dele? Da árvore a que é comparado o justo, diz Davi, que dará o seu fruto no seu tempo: Et fructum suum dabit in tempore suo. Pois se é louvor nas melhores árvores darem a seu fruto, como foi culpa nesta não se achar nela fruto, quando não era tempo? O mesmo evangelista S. Marcos diz que esta sentença de Crista foi resposta que o Senhor deu à árvore: Et respondens dixit ei: Jam non amplius in aeternum ex te fructum quisquam manducet. Se a sentença de Cristo foi resposta que deu à árvore, sinal é que a ouviu primeiro, e ela alegou de sua justiça. Reparem aqui os juizes, ou condenadores, que nem a um tronco irracional e insensível condena Deus sem o ouvir. Mas que é a que alegou a árvore? Alegou o mesmo texto do evangelista; e estava. como dizendo maduramente ao Senhor: Eu bem tomara estar carregada de frutos maduros e sazonados, para os oferecer a meu Criador; porém a causa e impedimento natural de me achar sem eles, é por não ser ainda chegado o tempo: Non erat tempus ficorum. E que sem embargo desta réplica, ao parecer tão justificada, a condenasse Cristo, e com condenação eterna: in sempiternum! Assim foi. Mas com que fundamento, ou justiça? Entre todos os expositores da Escritura, mais letrados e de maior engenho, nenhum houve até agora que desse satisfação cabal a esta dúvida. E a razão de se lhe não achar razão, é porque as razões dos homens não alcançaram as de Deus, e onde não sabe descobrir culpa o juízo humano, a pode achar o divino. Por que não compreende o homem a Deus? Porque Deus é incompreensível. Pois também por isso os juízos humanos não compreendem os divinos, porque os divinos são incompreensíveis: Quam incomprehensibilia judicia ejus!

Sobre estes dois princípios tão manifestos, um da ciência de Deus para conosco, outro da nossa ignorância para com Deus, fica satisfeita e emudecida toda a admiração de que Deus haja de julgar até o que reputamos por nada, e nesse mesmo nada haja de argüir e achar culpas de que pedir e tomar conta no dia do Juízo. Só resta um escrúpulo, que ainda não acaba de se aquietar, e não menos que acerca da justiça com que Deus nos haja de castigar pelo que não conhecemos. É verdade que Deus sabe de nós o que nós ignoramos de nós, mas essa mesma ignorância nossa não só parece que nos desculpa, mas nos livra de ser pecado o que não conhecemos como tal. Sem vontade não há culpa, sem conhecimento não há vontade; como logo pode ser pecado, e castigado como pecado o que eu não conheço? Bem tinha decifrado esta teologia o autor do nosso provérbio: Quem ignorantemente peca, ignorantemente vai ao inferno. Uma só ignorância escusa do pecado, que é a invencível. Mas esta poucas vezes se acha. Os demais não só pecam no pecado, mas na ignorância com que o não conhecem. Não pecaram gravissimamente os judeus na morte de Cristo? E contudo diz S. Pedro que eles e os seus príncipes o fizeram ignorantemente: Scio quia per ignorantiam fecistis, sicut et Principes vestri. E o mesmo Cristo quando disse: Pater, ignosce illis, non enim sciunt quid faciunt; justamente alegou por eles a ignorância, e pediu para eles o perdão. Se a ignorância os livrara do pecado, não tinham necessidade de perdão; mas pediu-lhes o Senhor o perdão, quando lhe confessou a ignorância, porque tão fora estiveram de ficar isentos do pecado, pela ignorância com que o cometeram, que antes a mesma ignorância lhes acrescentou um pecado sobre outro pecado. Um pecado, porque tiraram a vida ao Messias não conhecido, e outro pecado, porque o não conheceram, tendo tanta obrigação como evidência para o conhecer. Isto mesmo é o que se vê hoje entre os que conhecem e adoram Cristo; e não por acontecimento raro, senão comumente; nem só nas vidas, serão também nas mortes. Quantos pecados vemos, e quão grandes, nem emendados na vida, nem confessados na morte, os quais não só Deus, mas todo o mundo está conhecendo, e só os mesmos que os cometem os não conhecem! Não os conhecem, porque a largueza e relaxação da vida escurece a consciência e cega a alma; não os conhecem, porque o amor-próprio sempre escusa e aligeira o que nos condena; não os conhecem, porque os interesses e conveniências deste mundo trazem consigo o esquecimento do outro; não os conhecem, porque os não querem examinar, nem consultar com quem deviam; não os conhecem, finalmente, porque com ignorância afetada os não querem conhecer para os não emendar: Noluit inteligere, ut bene ageret, vede agora se castigará Deus justamente no dia do Juízo os pecados não conhecidos, se por cometidos merecem um castigo, e por não conhecidos outro maior? Porém se até aquele dia estarão desconhecidos e sepultados nas trevas desta maliciosa e ignorante ignorância, então ressuscitarão, sairão à luz, porque o mesmo juiz universal, como diz S. Paulo, com os resplendores de sua presença alumiará as consciências de todos os homens, e descobrirá manifestamente a cada um tudo o que nelas estava escondido e às escuras: Quoadusque veniat Domínus, qui et illuminabit abscondita tenebrarum. Por meio desta luz, desenganadas então, e assombradas as mesmas consciências do muito que verão sair debaixo do nada, que não viam ou não quiseram ver, nenhuma terá que estranhar, nem replicar à sentença, ainda que seja de eterna condenação, e todas dirão convencidas: Justus es, Domine, et rectum judicium tuum.


CAPÍTULO VIII

Oh que grande mercê de Deus fora, se hoje, que estamos na representação do mesmo dia do Juízo, o mesmo soberano juiz nos comunicara um raio daquela luz, para que víramos agora o que então havemos de ver, e com os pecados conhecidos nos presentáramos antes ao tribunal de sua misericórdia, que depois ao de sua justiça! Mas bendita seja a bondade do mesmo Senhor, que não só nos deixou comunicado na sua doutrina um raio daquela luz, senão três, se nós lhe não cerramos os olhos. Sendo a matéria de tudo o que passou para a vida, e não há de passar para a conta, tão imensa à capacidade humana, só a sabedoria divina a poderá compreender; e assim o fez Cristo Senhor Nosso, reduzindo-a, repartindo-a em três parábolas, nas quais nos ensinou em suma toda a conta que nos há de pedir, e de quê. A primeira parábola é dos ofícios, a segunda dos talentos, a terceira das dívidas. E este mesmo número e ordem seguiremos para maior distinção e clareza.

Quanto aos ofícios, diz a primeira parábola (que é a do Vilico) que houve um homem rico, o qual deu a superintendência das suas herdades a um criado, com nome de administrador delas. E porque não teve boa. informação de seus procedimentos, o chamou à sua presença, e lhe pediu conta, dizendo: Redde rationem villicationis tuae; jam enim non poteris villicare. Dai conta da vossa administração, porque desde esta hora estais excluído dela. Esta circunstância de ser a conta a última, e não se poder emendar, é uma das mais rigorosas do dia do Juízo. Vindo pois ao sentido da parábola: o homem rico é Deus; as suas herdades são as igrejas e as províncias; o administrador no espiritual é o papa, no temporal é o rei, e, abaixo destes dois supremos, todos os outros ministros eclesiásticos e seculares, que repartidamente têm inferior jurisdição sobre os mesmos súditos. A todos estes, pois, há de pedir Deus estreita conta, não só quanto às pessoas, senão também, e muito mais, quanto aos ofícios. Quanto à pessoa, há de dar cada um conta de si, e quanto aos ofícios, há de dar a mesma conta de todos aqueles que governou e lhe foram sujeitos. De sorte que o papa há de dar conta de toda a cristandade, o rei de toda a monarquia, o bispo de toda a diocese, o governador de toda a Província, o pároco de toda a freguesia, o magistrado de toda a cidade, e o cabeça da casa de toda a família. Oh, se os homens souberam o peso que tomam sobre si, quando com tanta ânsia e negociação pretendem e procuram os ofícios, ou seculares ou eclesiásticos, como é certo que haviam de fugir e benzer-se deles! Mas não os procuram pelo peso, senão pela dignidade, pelo poder, pela honra, pela estimação, e, mais que tudo hoje, pelo interesse. Porém, quando no dia de Juízo se lhes tomar a conta pelo peso, então verão onde os leva a balança.

Se é tão dificultoso dar boa conta da alma própria, que é uma, quão difícil e quão impossível será dá-la boa de tantas mil? Como é certo, que não temos fé, nem sabemos a que nos obriga! Vedes quantas almas há nesta cidade, quantas almas há nesta Província, quantas almas há em todo o reino? Pois sabei, se o ignorais, ou não advertis, que de todas essas almas hão de dar conta a Deus os que governam a cidade, a Província e o reino. Porque assim como sobre todos e cada um tem poder e mando, assim em todos e cada um são obrigados a lhes fazer guardar as leis, não só humanas, senão também as divinas. Não é isto encarecimento meu, senão doutrina sólida e de fé, pronunciada por boca de S. Paulo: Obedite praepositis vestris, et subjacete eis; ipsi enim pervigilant, quasi rationem pro animabus vestris reddituri. Obedecei, diz o apóstolo, a vossos superiores e sede-lhes muito sujeitos, porque a sua obrigação é zelar e vigiar sobre as vossas vidas, como aqueles que hão de dar conta a Deus de vossas almas. Vede quanto maior é a sujeição dos superiores que a dos súditos. Quantos são os súditos que estão sujeitos ao superior, tantas são as almas de que está sujeito o superior a dar conta a Deus. E posto que este oráculo bastava para nenhum homem que tem fé querer tomar sobre si uma tal sujeição, ouvi agora o que nunca ouviste. Nem todas as sentenças de Cristo estão escritas no Evangelho, algumas ficaram somente impressas na tradição de seus discípulos, entre as quais é tão notável como terrível esta: Omne peccatum, quod remissus, et indisciplinatus admiserit frater, ad negligentem protinus revertitur seniarem. Quer dizer: todos os pecados que cometem os súditos, se escrevem e carregam logo no livro das culpas do superior, porque há de dar conta deles. De modo que segundo esta sentença e revelação do mesmo Cristo, todos os homicídios, todos os adultérios, todos os furtos, todos os sacrilégios e mais pecados que os vassalos cometem na vida e reinado de um rei, e as ovelhas e súditos na vida e governo de um prelado, todos estes pecados se lançam logo e escrevem nos livros de Deus, debaixo do título do tal rei e debaixo do título do tal prelado, para se lhes pedir conta deles, no dia do Juízo.

Ponhamos agora este rei, e depois poremos também este prelado diante do tribunal divino, e vejamos que respondem a estes cargos. O rei é a cabeça dos vassalos; e quem há de dar conta dos membros, senão a cabeça? O rei é a alma do reino; e quem há de dar conta do corpo, senão a alma? Pedirá, pois, conta Deus a qualquer rei, não digo dos pecados seus e da sua pessoa, senão dos alheios e do ofício. E que responderá já não rei, mas réu? Parece que poderá dizer: Eu, Senhor, bem conhecia que era obrigado a evitar os pecados dos meus vassalos, quanto me fosse possível, mas a minha corte era grande, o meu reino dilatado, a minha monarquia estendida pela África, pela Ásia e pela América; e como eu não podia estar em tantas partes, e tão distantes, na corte tinha provido os tribunais de presidentes e conselheiros, no reino de ministros de justiça e letras, nas conquistas de vice-reis e governadores, instruídos de regimentos muito justos e aprovados. E isto ë tudo o que fiz e pude fazer. Também poderá meter nesta conta o seu próprio palácio, e aqueles de que se servia mais familiar e interiormente. Mas sobre todos cai a réplica. E estes que elegestes (dirá Deus) por que os elegestes? Não foram alguns por afeição, e outros por intercessão, e outros por adulação, e outros por ruim e apaixonada informação? E os que ficaram de fora com mais conhecido merecimento, por que os excluístes? Mas dado que todos fossem eleitos com os olhos em mim, e justamente, depois que na administração de seus ofícios conhecestes que não procediam como eram obrigados, por que os não removestes logo, por que os dissimulastes e conservastes, e, o que pior é, por que os despachastes de novo, e com mais autorizados postos? Se o que assolou uma Província o deixastes continuar na mesma assolação, e depois o promovestes a outro governo maior, como não fostes cúmplice das suas injustiças, e das culpas que ele em vez de remediar acrescentou com as suas, e com o exemplo delas? Se as suas tiranias vos foram manifestas, como as deixastes sem castigo, e os danos dos ofendidos sem restituição? Quantas lágrimas de órfãos, quantos gemidos de viúvas, quantos clamores de pobres chegavam ao céu no vosso reinado, porque para suprir superfluidades vãs, e doações inoficiosas, vossos ministras (por isso premiados e louvados) com impiedade mais que desumana, não os despojavam, mas despiam. Isto é o que poderá replicar Deus, emudecendo, e não tendo que responder o triste rei. E qual será a sua sentença? No dia do Juízo se ouvirá. O certo é que Davi, rei santo antes de pecador e depois de pecador exemplo de penitência, o que pedia perdão a Deus, era dos pecados ocultos e dos alheios: Ab occultis meis munda me, et ab alenis parce servo tuo. Mas os pecados ocultos naquele dia são manifestos, e dos alheios, por ter sido rei, se lhe pedirá tão estreita conta como dos próprios.

Entre agora o prelado a dar conta, e a ouvir em estátua o processo que depois da ressurreição lhe será notificado em carne. Oh que espetáculo será aparecer descoroado da mitra, e despido dos paramentos pontificiais diante da majestade de Cristo Jesus, aquele a quem o mesmo Senhor autorizou com o nome e poderes de seu vigário, e cuja humana e divina pessoa representou nesta vida! O pastor, et Idolum! lhe dirá Cristo: Tu que foste pastor no nome, e como ídolo te contentaste com a adoração exterior que não merecias, dá conta. Não ta peço das misérias ocultas, senão das públicas e escandalosas de tuas mal guardadas e desprezadas ovelhas. Eram miseráveis no temporal, e não trataste de remediar suas pobrezas, e eram muito mais miseráveis no espiritual, e não cuidaste de curar nem de preservar seus pecados. Se as rendas, que com tanta cobiça recolhias, e com tantas avarezas guardavas, eram o mou patrimônio, que eu adquiri, não menos que com o meu sangue, por que o não distribuíste aos meus verdadeiros credores, que são os pobres? Por que o dispendeste em carroças, criados e cavalos regulados, estando eles morrendo de fome, e em vestir as suas paredes de oiro e seda, andando eles despidos e tremendo de frio? Se o zelo de teus ministros visitava as vidas dos pequeninos, tratando mais de se aproveitar das condenações, que de lhes emendar as consciências; os pecados monstruosos dos grandes, que tão soberba e escandalosamente viviam na face do mundo, como os deixaste triunfar com perpétua imunidade, como se foram superiores às leis da minha Igreja?

Confesso, Senhor, responderá o prelado, que em uma e outra coisa faltei mas não sem causa. O que dispendi com minha casa e pessoa foi para satisfazer aos olhos do vulgo, que só se leva destes exteriores, e para conservar a autoridade do ofício e veneração da dignidade. E se contra os pecados dos grandes me não atrevi, foi porque os seus poderes são inexpugnáveis; e julguei por menos inconveniente não entrar com eles em batalha, que com afronta e desprezo das mesmas leis da Igreja, ficar no fim da peleja vencido: e finalmente, Senhor em uma e outra omissão segui o exemplo universal, e o que usam neste ofício os que com mais poderosas armas, e com maiores jurisdições que a minha, costumam em toda a parte fazer o mesmo. ó ignorante! ó covarde! replicará Cristo. Tão ignorante e covarde, como se não tiveras lido as Escrituras, nem os Canones, e exemplos da mesma Igreja. Porventura Pedro, e Paulo, e os outros apóstolos que me imitaram a mim, e os seus verdadeiros sucessores, que os imitaram a eles, conciliavam a autoridade das pessoas e do ofício, ainda entre gentios, com os aparatos exteriores? Não sabes que esse mesmo povo, com cujos olhos te escusas, se por dares tudo aos pobres, te vissem desacompanhado, só, e a pé pelas ruas, e ainda com os pés descalços, então se ajoelhariam todos diante de ti, e te adorariam? E quanto à covardia de te não atreveres com os grandes, tendo a teu lado a espada de Pedro; contra quem se atrevia Davi, que foi o exemplar dos meus pastores? Entre as feras tomava-se com os leões, e entre os homens com os gigantes. Que fera mais fera que a imperatriz Eudóxia, e vê como a não temeu Crisóstomo; e que leão mais coroado que o imperador Teodósío, e vê como o humilhou e pôs a seus pés Ambrósio. Finalmente, se não seguiste o valor destes, senão o que chamas costume dos outros, agora verás em ti e neles, que se eles o costumam fazer assim, tu também costumo mandar ao inferno os que assim o fazem. Isto baste quanto à conta dos ofícios, e tomem exemplo os ministros seculares na conta do rei, e os eclesiásticos na do prelado.


CAPÍTULO IX

Quanto à conta dos talentos, esta temos na parábola dos criados, a quem o rei encomendou diferentes cabedais, para que negociassem com eles enquanto fazia certa jornada: Negotiamini dum venio. O rei é Cristo, a jornada foi a de sua subida ao céu, e a tornada há de ser no dia do Juízo ,em que há de pedir conta a cada um, do que negociou com os talentos que lhe deu, e do que lucrou e ganhou com eles: Post multum vero temporis venit dominus servorum illorum , et possuit rationem cum eis. Os talentos são os meios assim universais como particulares, com. que a providência divina assiste a todos os homens, e a cada um para sua salvação e perfeição; e os avanços ou ganâncias, são o aumento das virtudes, merecimentos e graça, que no exercício, agência e indústria, com que se aplicam os mesmos meios, alcançam os que não são negligentes. Quão exata pois haja de ser esta conta, e quão rigorosa para os que usarem mal do talento, na mesma história o temos. Os criados, a quem o rei fiou os talentos, eram três: ao primeiro entregou cinco, o qual granjeou outros cinco: ao segundo entregou dois, o qual granjeou outros dois; e ambos foram louvados; ao terceiro deu um só talento, o qual ele enterrou. E posto que na conta o ofereceu outra vez, e restituiu inteiro, porque não tinha negociado com ele, nem adquirido coisa alguma, o senhor não só o lançou fora de sua casa, e o mandou privar de talento, mas o pronunciou por mau criado: serve nequam, que foi a sentença de sua condenação. E se quem na conta torna a entregar o talento que Deus lhe deu, inteiro e sem defraudo, e condena, que será dos que o desbaratam e perdem, e talvez o convertem contra si, e contra o mesmo Deus?

Para inteligência desta gravíssima e perigosa matéria, havemos de supor o que se não cuida; e é que, não só são talentos os dotes da natureza, os bens da fortuna e os dons particulares da graça, senão também os contrários, ou privações de tudo isto. Não só é dote da natureza a formosura, senão também a fealdade; não só as grandes forças, senão a fraqueza; não só o agudo entendimento, senão o rude; não só a perfeita vista, senão a cegueira; não só a saúde, senão a enfermidade; não só a larga vida, senão a breve. Do mesmo modo nos bens que chamam da fortuna, não só é bem o ilustre nascimento senão o humilde; não só as dignidades altas, senão o lugar e ofício abatido; não só as riquezas, senão a pobreza; não só o descanso, senão os trabalhos; não só os sucessos prósperos, senão os adversos, não só os mandos, senão o ser mandado; nem só as vitórias e triunfos, senão o ser vencido. Finalmente, nas graças, ou dons da graça, não só é graça o dom das línguas, mas o não saber falar, ou ser mudo; não só o das letras e ciências, senão o da ignorância; não só o do conselho e discrição, senão o de não ter nem poder dar voto; não só o da ostentação e boato dos milagres, senão o de não ser em coisa alguma maravilhoso, senão totalmente desconhecido e desprezado. A razão desta verdade interior e providência verdadeiramente divina, é, porque todas estas coisas, posto que entre si contrárias, podem ser meios que igualmente nos levem à salvação e promovam à virtude, principalmente sendo distribuídos por Deus e aplicados conforme o gênio de cada um, que por isso diz o texto, que foram dados os talentos: Uniquique secundum propriam virtutem. Assim que, tanto se podia aproveitar Raquel da sua formosura, como Lia da sua deformidade: tanto Aquitofel do seu entendimento, como Nabal da sua rudeza; tanto Matusalém dos seus novecentos anos, como o moço de Naim dos seus vinte; tanto Crasso dos seus tesouros como Jó da sua pobreza, tanto Júlio César da sua fortuna, como Pompeu da sua desgraça; tanto Alexandre Magno das suas vitórias, como Dario e Poro de ele os ter vencido; tanto Arão da soltura e eloqüência da sua língua, como Moisés do impedimento da sua; tanto o sutilíssimo Escoto da sua ciência, como frei Junípero da sua simplicidade; tanto S. Pedro dos seus milagres, como o Batista de nunca fazer milagre. Daqui se segue, que tanta conta há de pedir Deus ao rico da sua riqueza, como ao pobre da sua pobreza; tanta ao são da sua saúde, como ao doente da sua enfermidade; tanta ao honrado da sua estimação, como ao afrontado da sua injúria; e tanta a todos do que deu a uns, como do que negou a outros; porque se o rico pode granjear com o seu talento por meio da esmola, o pobre também pode com o seu por meio da paciência. E assim dos demais. Antes é certo que entre as coisas, que se chamam prósperas, ou adversas, mais eficazes são para o merecimento as que mortificam a natureza, que as que lisonjeiam o apetite; e mais seguras para a salvação as que pesam e carregam para a humildade, que as que elevam e desvanecem para a soberba. Só souberam manejar uns e outros meios e aproveitar-se com igualdade de ambos os talentos um S. Paulo, que dizia: Scio abundasse et scio esurire. E um Jó, que na mesma volta da sua primeira para a segunda fortuna, disse: Si bona suscepimus de manu Dei, mala quare non suscipiamus? Mas estes homens quadrados nascem poucas vezes no mundo. Os dados tão firmes se assentam com poucos pontos, como com muitos; e tão direitos estão com as sortes, como com os azares.

Desta maneira (e seja esta a única e importantíssima advertência), desta maneira devemos aceitar como da não de Deus, e contentar-nos, com o talento, ou talentos, que Ele foi servido dar-nos, ou sejam como os cinco, ou como os dois, ou como um somente; e se pudera ser nenhum, ainda fora mais seguro. Quando o rei distribuiu os talentos aos criados, não lemos que algum deles se descontentasse da repartição. Se os que Deus deu a outros, são maiores que os vossos, eles terão mais, e vós menos de que dar conta ao mesmo Deus. Mas somos como os que lançam nas rendas dos reis, que só olham para o que recebem de presente, e não para a conta, que hão de dar de futuro. Admirável foi neste gênero a variedade e repartição de fortunas, com que Jacó (digamo-lo assim) fadou a seus filhos quando na hora da morte lhes lançou a bênção. Usou dos nomes de diferentes animais, e a Judas chamou leão: Catulus leonis Juda; a Dan serpente: Fiat Dan coluber in via; a Benjamim lobo: Benjamin lupus rapax; a Nephtali cervo. Nephtali cervas emissus; A Issachar jumento: Issachar asinus fortis. Os animais todos têm suas inclinações, instintos e propriedades, e todos suas como virtudes, ou vícios naturais: o leão generoso, a serpente astuta, o lobo voraz, o cervo ligeiro, o jumento sofredor do trabalho. E debaixo destas metáforas significava Jacó aos filhos os talentos de cada um e o uso deles, e quais haviam de ser as ações e sucessos de suas vidas e descendências. E sendo assim, que estes mesmos irmãos sofreram tão mal ao mesmo pai fazer uma túnica a um deles de melhor estofa, que por isso a quiseram tingir em seu próprio sangue; como agora nenhum deles se queixa de o pai os vestir de tão diferentes peles e pêlos, e de lhes dar ou chamar tão diferentes nomes, e de tão diferente nobreza, quanto vai de lobo a cervo, de serpente a leão, e de leão a jumento? Por que na diferença da túnica obrava Jacó como pai em seu nome: na diferença e repartição o dos talentos, falava como profeta em nome de Deus; e como a distribuição era feita por Deus e os talentos dados por ele, posto que fossem tão diversos na estimação e crédito, quanto vai do império à servidão, e do leão ao jumento, todos abaixando a cabeça se contentaram e conformaram com a sua sorte, e nenhum houve que abrisse a boca para se queixar, ou metesse os olhos debaixo das sobrancelhas para mostrar descontentamento. E que dirão a isto os que tantas vezes deixaram a religião e a mesma fé, por não terem humildade, nem paciência para sofrer que se lhes antepusessem os que não podiam igualar no talento?

Todo o talento é arriscado á o perder, ou não dar boa conta dele a presunção humana. Os maiores pela soberba, os menores pela inveja, e os mínimos pela desesperação e pusilanimidade. Das casta destes últimos foi o que enterrou o talento, podendo ser melhor e mais celebrado que todos se o não enterrara. Puseram alguns teólogos em questão qual dos criados se mostrara mais industrioso, se o que com dois talentos granjeara dois, ou o que com cinco granjeara cinco; e como entre eles se não decidisse a questão, devolveu-se a uma academia de mercadores, os quais todos resolveram, que mais industrioso fora o que com dois negociara dois, que o que com cinco granjeara cinco; porque mais dificultoso é ganhar pouco com pouco, que muito com muito. E sobre esta, que é primeira máxima dos negociantes, provada com a experiência, acrescentaram que se o que teve um só talento granjeara outro, excederia sem comparação na indústria ao dos dois, e ao dos cinco. Grande consolação, e verdadeira, se a quisessem aceitar os talentos meridianos. Mas quem poderá curar a cegueira, e contentar a inveja dos que se vêem excedidos? Saul porque ouviu (vede a quem? porque ouviu que as chacotas lhe preferiam a Davi, tantas vezes e por tantos modos o quis matar, e por isso perdeu a coroa. E Dédalo, aquele famoso artífice, que preso em uma torre, inventou e formou as asas com que fugiu dela voando, vendo que Perdiz, seu discípulo, inventara o compasso e da imitação de uma espinha a serra, temendo que o havia de exceder no talento, o despenhou primeiro da mesma torre.

Mas ainda são mais arriscados os talentos, que na iminência se estremam sobre todos. Que havia de ser de Saulo se o mesmo Cristo descera do céu, e o derribara do cavalo para lhe enfrear o orgulho? Que havia de ser de Agostinho, de quem se rezava nas escolas católicas: A logica Augustini libera nos Domine; se amolecida com as lágrimas de sua mãe, ela (como um lírio que se gera das lágrimas de outro) o não tornara a gerar? Suceder-lhe-ia o que ao profundíssimo engenho de Tertuliano, e ao imenso de Orígines, os quais venerados como oráculos da sua idade, e primeiros mestres da Igreja, a perderam e se perderam. Mas que muito é que o barro caia, e se quebre, se o entendimento de Lúcifer, sendo o maior que Deus criou, excedendo-o só o do mesmo Deus, antes quis cair do céu, que ver-se nele excedido! Tanta conta têm como isto os talentos menores, e só por isso poderão dar boa conta.


CAPÍTULO X

A das dívidas é a que só nos resta, última, maior, e mais dificultosa de todas. Esta se contém na parábola do outro rei, o qual fez o que muitos não fazem, que é tomar conta aos criados de sua casa:  Qui voluit rationem ponere cum servis suis. Do que logo se segue, no princípio das contas se mostra bem, que este chamado rei, seria o mais poderoso e rico monarca de quantos houve, ou não houve no  mundo; porque o primeiro criado foi convencido de que era devedor à fazenda ou erário real de cento e vinte milhões de oiro. Tanto vêm a montar os que o texto chama decem millia talenta; porque  falando Cristo com os hebreus, e na língua hebraica, também o cômputo e valor da dívida se há de  entender de talentos, não gregos, senão hebraicos. Mas como era possível que um criado devesse a  seu rei cento e vinte milhões? Respondo que quando a parábola dissera dez mil vezes outros tantos,  ainda diria muito menos dó que queria significar. Porque este rei é Deus, e esta dívida é a dos  benefícios que Deus tem feito ao homem; e como o menor benefício divino, por si mesmo, ou por seu  autor, é de valor infinito, não há número em toda a aritmética, nem preço em todas as criaturas, com  que se possa comparar, quanto mais igualar.

Santo Agostinho, para representar mais claro e mais patentemente esta conta, introduz ao mesmo  Cristo fazendo-nos por sua própria pessoa os cargos do que lhe devemos, como fará no dia do Juízo:  Quid est quod debui ultra facere vineae meae, et non feci ei? Que coisa há, que eu devesse fazer-te, ó homem, ou devesse fazer por ti, que não tenha feito? De nada te era. devedor, e como se o fora, de  quanto tenho, de quanto posso, e de quanto sou, tudo empreguei e dispendi contigo. Criei-te quando  não eras, tirando-se dos abismos do não ser ao ser; dei-te um corpo formado com minhas mãos, o  mais perfeito; dei-te uma alma tirada de minhas entranhas, e feita à imagem e semelhança; ornei, e  habilitei um e outro, com as mais excelentes potências, e os mais nobres sentidos, para que fossem os  instrumentos com que me servisses e amasses; e tu, ingrato, que fizeste? Dá conta dos cuidados,  pensamentos e máquinas do teu entendimento; das lembranças e esquecimentos da tua memória; dos desejos e afeições da tua vontade. Dá conta de todos os passos de teus pés, de todas as obras de tuas  mãos, de todas as vistas dos teus olhos, de todas as atenções dos teus ouvidos, de todas as palavras de  tua língua, e de tudo mais que tu sabes, e não cabe em palavras. Depois de criado, que seria de ti, se  eu com o mesmo poder e providência te não conservara? De repente perderias o ser e tornarias ao nada donde saíste. Para tua conservação, te dei não só o necessário, senão o superabundante, e tanta  imensidade de criaturas no céu e na terra, todas sujeitas a ti, e ocupadas em teu serviço. Dei-te um  anjo, que de dia e de noite, velando e dormindo, te assistisse e guardasse, como sempre assistiu e  guardou. Agora te revelo os perigos secretos e ocultos, de que foste livre por seu meio; e tu lembra-te  dos públicos e manifestos, que experimentaste e viste. Quantos pereceram em outros muito menores?   Quantos mais moços que tu, acabaram de mortes desastradas e repentinas, sem tempo, nem lugar de  arrependimento e emenda que eu, sempre te concedi? Dá, pois, conta da vida, dá conta da saúde, dá  conta dos anos, dá conta dos dias, dá conta das horas, sendo mui poucas, e contadas as que não  empregaste em me ofender.

Até agora te referi as dívidas exteriores do poder; agora me responderás às interiores e pessoais do  amor, e do muito que fiz e padeci por ti. Por ti depois de te fazer à minha imagem e semelhança, me fiz à tua, fazendo-me homem; por ti nasci nos desamparos de um presépio; por ti fui desterrado ao  Egito; por ti vivi trinta anos sujeito à obediência de um oficial, ajudando o trabalho de suas mãos com  as minhas, e acompanhando o suor do seu rosto com o meu; por ti, e para ti, saí ao mundo a pregar o  reino do céu; por ti nas pereginações de toda a Judéia e Galiléia, sempre a pé, e muitas vezes  descalço, padeci fomes, sedes, pobrezas, sem ter lugar de descanso, nem onde reclinar a cabeça, por ti  recebi ingratidões por benefícios, ódios por amor, perseguições por boas obras; por ti suei sangue; por  ti fui preso; por ti fui afrontado; por ti esbofeteado; por ti cuspido; por ti açoitado; por ti escarnecido;  por ti coroado de espinhos; por ti, enfim, crucificado entre ladrões, aberto em quatro fontes de sangue,  atormentado e afligido de angústias e agonias mortais, e ainda depois de morto, atravessado o coração  com uma lança. De tudo isto pedi por ti perdão a Deus, e o pago que tu me deste, foi não me perdoar  tornando-me a crucificar tantas vezes, quantas gravemente pecaste, como te mandei declarar pelo meu  apóstolo: Rursum crucifigentes Filium Dei. Se as gotas de sangue que derramei por ti, tiveram conta,  nem de uma só me pudera dar boa conta, ainda que padeceras por mim mil mortes; mas os milhares e   os milhões foram das vezes que pisaste o mesmo sangue, sacrificando o infinito valor e merecimento dele, aos ídolos do teu apetite.

Ainda em certo modo a maior dívida, a de que agora te pedirei conta é a da vocação. Reservei o saíres  à luz deste mundo para o tempo da lei da graça; chamei-te à fé antes de me poderes ouvir, antecipou-se o meu amor ao teu uso da razão, e fiz-te meu amigo pelo batismo. Com o leite e doutrina da Igreja,  te dei o verdadeiro conhecimento de mim, benefício que por meus justos juízos em quatro e cinco mil  anos não concedi a tantos, e de que ainda nos teus dias careceram muitos. Não tiveste juízo, nem  consideração, para ponderar e pasmar, de que tendo a minha justiça razões para condenar um gentio  que me não conheceu, as tivesse minha misericórdia para perdoar a um cristão, que conhecendo-me, tanto me ofendia. Perdida a graça da primeira vocação, caíste, e tornei-te a chamar, e dar a mão, para  que te levantasses; levantado tornaste a reincidir uma e tantas vezes, e eu, posto que tão repetidamente ofendido, e com tão continuadas experiências da pouca firmeza de teus propósitos, e falsidade de tuas promessas, não cessei de te oferecer de novo meus braços, e te receber sempre com eles abertos; até que infiel, rebelde, e obstinado, cerrando totalmente os ouvidos a minhas vozes, te deixaste jazer no profundo letargo da impenitência final. Dá agora conta de tantas inspirações interiores minhas, de tantos conselhos dos confessores e amigos, de tantas vozes e ameaças dos pregadores, que ou não querias ouvir, ou ouvias por curiosidade e cerimônia; e também ta pudera pedir, de eu mesmo te não chamar eficazmente na hora da morte, porque o desmereceste na vida.

Sete fontes de graça deixei na minha Igreja (que é o benefício da justificação) para que nelas se lavassem as almas de seus pecados, e com elas se regassem e crescessem nas virtudes. Em uma te facilitei em tal forma o remédio para todas as culpas, que só com as confessar te prometi o perdão, que tu não quiseste aceitar, fugindo da benignidade daquele sacramento como rigoroso, e amando mais as mesmas culpas, que estimando o perdão. Em outra te dei a comer minha carne e a beber meu sangue, e juntamente os tesouros infinitos de toda a minha divindade, em penhor da glória e bem-aventurança eterna, que foi o altíssimo fim para que te criei. Desprezaste o fim, não quiseste usar dos meios; e porque escolheste antes estar para sempre sem mim no inferno, que comigo no céu; tua é, e não minha, a sentença que logo ouvirás com os outros mal-aventurados: Ite maledicti in ignem aeternum.


CAPÍTULO XI

Aqui parou a conta das dívidas, que era a última e maior partida que só estava para as contas. E aqui  virão a parar todos os que tão descuidados vivem de as dar boas naquele dia. ó dia de ira! ó dia de furor! ó dia de vingança! ó dia de amargura! ó dia de calamidade! ó dia de miséria! ó dia estupendo! ó  dia tremendo! ó dia sobre toda a compreensão terrível! Assim lhe chamam, com horror, os clamores  dos profetas, pela estreitíssima conta que nele se nos há de pedir a todos. E se tudo passa para a vida, e nada passa para a conta; que cegueira, e que insânia é a dos que todos seus cuidados empregam no  que passa, sem memória nem cuidado do que não há de passar? Pode caber em entendimento com  juízo, maior loucura, que trabalhar de dia e de noite um homem, e cansar-se, e desvelar-se e matar-se,  pelo que passa com a vida, e há de deixar com a morte, e não ser o único cuidado e desvelo, tratar só  da que há de levar consigo, e do que só se lhe há de pedir conta? Ouçam estes loucos a Santo  Agostinho: Peccas propter pecuniam? hic dimittenda est. Peccas propter villam? hic dimittenda est.  Peccas prapter mulierem? hic dimittenda est. Et quidquid est propter quod peccas, hic dimittis, et  ipsum peccatum, quod committis, tecum portas. Pecas, homem, por amor do dinheiro? e cá há de ficar  o dinheiro. Pecas por amor da herdade? e cá há de ficar a herdade. Pecas por amor da mulher, ou tua, ou não tua? e cá há de ficar a mulher. Mas havendo de ficar cá tudo aquilo por que pecaste, o que só  hás de levar contigo é o pecado. Toda a matéria dos pecados cá há de ficar, porque passou com a vida,  e só o pecado há de ir conosco, porque não passou para a conta.

Parece-me, que para desenganar a quem tem fé, basta a evidência destes pontos. O que só quisera  alcançar de Deus, e pedir aos que me ouvirem, é que tomem este desengano enquanto vivem neste  mundo, e não o guardem para o inferno. Descreve o Espírito Santo no livro da Sabedoria, uma prática  que tiveram entre si no inferno os que lá foram, depois de ter gastado a vida em tudo o que passa com  a mesma vida; e o que falavam, era desta maneira: Ergo erravimus a via veritatis, et sol intelligentiae  non est ortus nobis. O certo é (diziam) que erramos o caminho, e que andávamos às escuras, e que em  tantos dias quantos vivemos, nunca nos amanheceu a luz do sol. Quid nobis profuit superbia: que nos  aproveitaram a soberba, e glória vã das honras do mundo? Divitiarum jactantia quid contulít nobis: de  que nos serviu a jactância das riquezas? E os gostos, delícias e passatempos em que elas se  consomem, de que nos aproveitaram? Todas essas coisas passaram como a sombra: Transierunt  omnia illa tanquam umbra. Todas passaram como o correio, que sempre caminha, e não pára: Tanquam nuntius percurrens. Todas passaram como a nau que vai cortando as ondas, e depois que  passou, se lhe não acha rasto: Et tanquam navis, quoe pertransit fluctuantem aquam; cujus, cum praeterierit, non est vestigium invenire. Todos passaram como a ave, que voando e batendo o leve  vento, que corta, nem sinal deixa do seu caminho: Aut tanquam avis quoe transvolat in aere verberans  levem ventum, et nullum signum invenitur itineris illius. Todas passaram como a seta despedida do  arco ao lugar destinado, que dividindo o ar, o qual logo se cerra e une, não se pode conhecer por onde passou: Aut tanquam saggitta emissa in locum destinatum, divisus aere in se reclusus est, ut ignoretur  transitus ilIíus. Agora, agora, conhecem bem no inferno, e não acham comparação, com que bastantemente declarar a suma velocidade com que todas as coisas passam, e com a mesma pressa (dizem) passamos nós, porque apenas nascidos logo deixamos de ser, e sem deixar sinal algum de virtude, em nossos próprios vícios nos consumimos: Sic et nos nati continua desivimus esse: et virtutis quidem nullum signum voluimus ostendere: in malignitate autem nostra consumpti sumus. Isto conferiam entre si naquela triste e tarde desenganada conversação os miseráveis condenados, os  quais para maior dor, levantando os olhos ao céu, e vendo lá gloriosos e triunfantes os que trataram  mais da estreiteza da conta, que da largueza da vida: Paenitentiam agentes, et proe angustia spiritus gementes ; com vozes que lhes saíam do interior angustiado, e com arrependimento e gemidos, que já não aproveitavam , dicentes infra se, diziam entre si e consigo: que é o que diziam? Hi sunt quos  habuimus aliquando in derisum, et in similitudinem impraperii. Aqueles são os de que nós  zombávamos, rindo-nos dos seus escrúpulos de consciência, e das penitências e rigores com que mortificavam seus corpos, quando nós só tratávamos de regalar os nossos, e satisfazer nossos apetites;  e agora vemos que eles foram os prudentes e sisudos, e nós os loucos e insensatos, pois eles, pondo os  olhos no fim e no prêmio de que nós não fizemos caso, estão gozando da glória entre os santos, coma  nós padecendo as penas entre os condenados: Nos insensati vitam illorum cestimabamus insaniam, et  finem illorum sine hanare: ecce quomodo computati sunt inter filios Dei, et inter santos sor illorum est. Tais são as coisas que disseram, conclui o Espírito Santo, e tais os discursos que fizeram no inferno os maus quando lá se viram. Talia dixerunt in inferno hi qui peccaverunt. Vejamos agora, e consideremos bem, o que por misericórdia de Deus ainda temos tempo e vida, se é melhor aproveitar deste desengano neste mundo, ou guardá-lo para o inferno, e se folgaremos no dia da conta de ter  imitado os prudentes, que eternamente hão de gozar a vista de Deus no céu, ou acompanhar as insensatos, que hão de padecer as penas do inferno por toda a eternidade?


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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão da Primeira Dominga do Advento" (1655)

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