SERMÃO DA GLÓRIA DE MARIA, MÃE DE
DEUS
Pregado na igreja de Nossa
Senhora da Glória, em Lisboa, no ano de
1644.
Maria optimam partem elegit. — S. Lucas, X.
CAPÍTULO I
Bem se concordam, neste dia e
neste lugar, o título da casa com o da festa e o da festa com o da casa: a casa
da Senhora da Glória e a festa da glória da Senhora. O Evangelho, que deve ser
o fundamento de tudo que se há de dizer, também eu o quisera concordar com essa
glória; mas o que dele e dela se tem dito ata agora não concorda com o meu
desejo, nem com o meu pensamento. O Evangelho diz que « escolheu Maria a melhor
parte»: Maria optimam partem elegit;
e os santos e teólogos, que mais se alargaram, aplicando essa escolha e essa
parte á glória da senhora, se alargaram, aplicando esta escolha e esta parte à
gloria da Senhora, só dizem que verdadeiramente foi a melhor; porque a glória a
que a Senhora hoje subiu e está gozando no Céu, é melhor e maior glória que a de
todos os bem-aventurados. Os bem-aventurados da Glória, ou são homens ou anjos,
e não só em cada uma destas comparações, senão em ambas, dizem que é maior a
glória de Maria que a de todos os homens e a de todos os anjos, e não
divididos, mas juntos.
Grande glória! grande,
incomparável, imensa! O Sol não só excede na luz a cada uma das estrelas, e a
cada um dos planetas, senão a todas e a todos incomparavelmente. Por isso a
Senhora neste dia se chama «escolhida como o Sol»: Quae est ista quae ascendit, electa ut Sol? O mar não só excede na
grandeza a cada uma das fontes e a cada um dos rios, senão a todas e a todos
imensamente; por isso a Senhora se chama Maria, que quer dizer mar, e só por
este nome (que não tem outra cousa no Evangelho) se lhe aplicam as palavras
dele: Maria optimam partem elegit.
Isto é, como dizia, tudo o que dizem os santos e teólogos; mas nem o Evangelho
assim entendido, nem a glória da Senhora assim declarada, nem a comparação dela
assim deduzida, concordam com o meu pensamento. O Evangelho, dizendo: optimam partem, parece-me que quer dizer
muito mais. A glória de Maria, sendo de Maria Mãe de Deus, parece-me que é
muito maior, e a comparação com os outros bem-aventurados somente, parece-me
muito estreita e quase indigna. O meu pensamento é (Deus me ajude nele!) que a
comparação de glória a glória, não se deve fazer só entre a glória de Maria com
a glória do todas as outras criaturas humanas e angélicas, senão com a glória
do mesmo Criador delas, a quem Maria criou. O texto e a palavra optimam a tudo se estende, porque sendo
superlativa, põe as cousas no sumo lugar, do qual se não exclui Deus, antes se
inclui essencialmente. Neste tão remontado sentido, pretendo provar e mostrar
hoje que, comparada a glória de Maria com a glória do mesmo Deus e fazendo da
glória de Deus e da glória de Maria duas partes, a melhor parte é a de Maria: Maria optimam partem elegit. Até não me
ouvirdes, não me condeneis. E espero que me não haveis de condenar, se a mesma
Senhora da Glória me assistir com sua graça. Ave Maria.
CAPÍTULO II
Maria optimam partem elegit. Suspensos considero todos os que me
ouvem, na expectação do assunto que propus: os curiosos com indiferença, os
devotos com alvoroço, os críticos com a censura já prevenida, e todos com
razão. É certo e de fé que, por grande e grandíssima que seja a glória de Maria
Senhora nossa, a glória de Deus é infinitamente maior, assim como ele ( que só
se compreende ) é por natureza infinito. Pois se a glória de Maria, como glória
de pura criatura, posto que criatura a mais excelente de todas, é glória
finita, e infinitamente menor que a glória de Deus; como me atrevo eu a
afirmar, e como se pode entender que, ainda em comparação da glória do mesmo
Deus, se verifiquem as palavras do Evangelho na glória de Maria, e que goze
Maria a melhor parte? Maria optimam
partem elegit?
Para inteligência desta verdade,
nas mesmas palavras do Evangelho temos outra dúvida não menos dificultosa, que
se deve averiguar primeiro. Esta, que o texto chama a melhor parte, diz o mesmo
texto que Maria a escolheu: Maria optimam
partem elegit; e também esta escolha não tem lugar nem se pode verificar na
glória da Senhora. A eleição para a glória é só de Deus: Deus é o que elegeu e
escolheu para a glória todos os bem-aventurados, que por isso se chamam
escolhidos; e ainda que entre todos os escolhidos a Senhora tenha o primeiro e
mais sublime lugar, ela também foi escolhida, e não a que escolheu. Assim o
canta a Igreja, quando canta a mesma entrada da Senhora no Céu: Elegit eam Deus et præ elegit eam, in
tabernáculo suo habitare facit eam.
Pois se Maria foi a escolhida
para a glória que tem no céu, e a escolha foi de Deus e não sua; como diz a
mesma Igreja, nas palavras que lhe aplica, que a Senhora foi a que escolheu e
elegeu esta melhor parte? Maria optimam
partem elegit?
— Na inteligência desta segunda
dúvida consiste a solução da primeira. Ora vede e com atenção.
É certo que a Senhora foi
escolhida por Deus para a glória e também é certo que a glória de Deus é
infinitamente maior que a glória da Senhora; e contudo diz o Evangelho que
Maria foi a que escolheu e que escolheu a melhor parte, uma e outra cousa com
grande mistério e energia. Diz que Maria foi a que escolheu; porque ainda que a
eleição não foi da Senhora, a grandeza de sua glória é tão imensa, que não
parece que foi a glória escolhida para ela, senão que ela foi a que a escolheu
para si. E diz que Maria escolheu a melhor parte; porque ainda que a glória de
Deus é infinitamente maior que a sua, a melhor parte que pode escolher uma mãe
é que a glória de seu Filho seja a maior. Como Maria é mãe de Deus, e Deus
Filho de Maria, mais se gloria a Senhora de que seu Filho goze esta infinidade
de glória, e de ela a gozar em seu filho, do que se a gozara em si mesma. E
daqui se segue que considerada a glória de Deus e a glória de Maria em duas
partes, porque a parte de Deus é a máxima, por isso a parte de Maria é a ótima:
Maria optimam partem elegit.
Para todos os que sois pais e
mães, não hei mister maior, nem melhor prova do que digo, que os vossos
próprios afetos e o ditame natural dos vossos corações. Dizei-me: se houvera
neste mundo uma dignidade, uma honra, uma glória maior que todas, e se pusera
na vossa eleição e na vossa escolha querê-la para vós ou para vosso filho, para
quem a havíeis de querer? __ Não há dúvida que para vosso filho. Pois isto
mesmo é o que devemos considerar na glória da Senhora. É verdade que a glória
de Deus é infinitamente maior que a de sua Mãe; mas como todo esse excesso de
glória é de seu Filho e está em seu filho, ela a possui e goza em melhor parte,
que se a gozara em si mesma. Assim entendo e suponho que o entendem todos os
que são pais e mães. Mas porque muitos dos que me ouvem não têm esta
experiência, e porque em algum coração humano, ainda que paterno ou materno,
pode estar este mesmo afeto menos bem ordenado; para glória da Senhora da
Glória, e para maior evidência de que mais gloriosa é pela glória de seu Filho
que pela sua, e que gozando nele toda essa glória, a goza na melhor parte,
ouçamos e provemos esta mesma verdade, pelo testemunho universal e concorde de
todas as letras sagradas, eclesiásticas e profanas. No primeiro lugar ouviremos
os filósofos, no segundo os Santos Padres da Igreja, no terceiro as Escrituras
divinas, e no último ao mesmo Deus na pessoa do Pai; e veremos quão conforme
foi o seu afeto com o desta Soberana Mãe, pois ambos são Pai e Mãe do mesmo
Filho.
CAPÍTULO III
Comecemos pelos filósofos. Põe em
questão Sêneca e disputa subtilìssimamente no Livro III dos cinco que intitulou
De Beneficiis, se pode um filho
vencer em algum benefício a seu pai? A razão de duvidar é porque o primeiro e
maior benefício é o ser, e havendo o pai dado o ser ao filho, o filho não pode
dar o ser a seu pai. Mas esta diferença não tem lugar no nosso caso, porque
falamos de um Pai, e de uma Filha, em. que o Pai é juntamente Pai e Filho da
mesma Mãe e a Mãe é juntamente Mãe e Filha do mesmo Pai. Abstraindo, porém
deste impossível da natureza, que os filósofos gentios não conheceram, resolve
o mesmo Sêneca que bem pode um filho vencer no maior benefício a seu pai, e o
prova com o exemplo de Eneias, o qual, por meio das lanças dos Gregos e do
incêndio e labaredas de Tróia, levando sobre seus ombros ao velho Anquises, deu
mais heròicamente a vida a seu pai do que dele a recebera . À vista deste
famoso espetáculo de valor e de piedade, não há dúvida que venceu o filho ao
pai. Mas qual foi então mais glorioso: o filho vencedor ou o pai vencido? A
este exemplo ajunta o mesmo filósofo o de Antíloco e de outros que deram a seus
pais mais ainda que o ser e a vida que lhes deviam, e conclui assim: Felices qui vicerint, felices qui vincentur:
quid autem est felicius quam sic cedere? Quando os filhos vencem aos pais e
se ostentam maiores que eles, « felizes são os que vencem e felizes os
vencidos; mas muito mais felizes os pais vencidos que os filhos vencedores,
porque não pode haver maior gosto, nem maior glória para um pai, que ver-se
vencido de seu filho.» Grande glória é do filho que vença ao pai, que lhe deu o
ser; mas muito maior glória é do mesmo pai, ver que deu o ser a um tal filho
que o vença a ele.
Isto que disse Sêneca, falando
dos benefícios, corre igualmente, e muito mais em todas as outras ações ou
grandezas, em que os pais se vêem vencidos dos filhos. Ouçamos a. outro
filósofo, que: melhor ainda que Sêneca, conheceu os afetos naturais, e não só
em mais harmonioso estilo, mas com mais profunda especulação que todos,
penetrou a anatomia do coração humano.
Faz paralelo Ovídio entre os dois
primeiros Césares, Júlio e Augusto, aquele pai, e este filho; e depois de
assentar que « a maior obra de Júlio César foi ter um tal filho como Augusto: Nec enim de Cæ saris actis ullum maius opus,
quam quod pater extitit hujus, supõe com a comum opinião de Roma, que um cometa
que na morte de Júlio César apareceu, era a alma do mesmo Júlio colocada entre
os deuses como um deles. E no meio daquela imaginada bem-aventurança, qual vos
parece que seria a maior glória de um homem que nesta vida tinha logrado todas
as que pode dar o Mundo? — Diz o mesmo Ovídio, (tão falso na suposição como
poeta, mas tão certo no discurso como filósofo) que o que fazia lá de cima.
Júlio César era olhar para seu filho Augusto, e que, « considerando as
grandezas do mesmo filho e reconhecendo e confessando que eram maiores que ar
suas, o seu maior gosto e a sua maior glória era ver-se vencido dele» : Natique videns benefacta, fatetur esse suis
maiora, et vinci gaudet ab illo.
Ah Virgem gloriosíssima, no Céu
estais verdadeiramente, como crê e adora a nossa Fé, mas nas sombras escuras e
falsas deste fabuloso pensamento, que consideração haverá que não reconheça quais
são lá os mais intensos afetos e as maiores glórias do vosso? Estais vendo e
contemplando, como em um espelho claríssimo, o infinito ser, os infinitos
atributos, a infinita e imensa majestade de vosso Unigênito Filho; conheceis e
« confessais que as suas grandezas excedem, e são também infinitamente maiores
que as vossas»: Fatetur esse suis maiora;
mas a mesma evidência de que vosso Filho vos vence e excede na glória, é a
melhor parte da mesma glória vossa, e a de que mais vós gozais e gozareis
eternamente com ele: Et vinci gaudet ab
illo.
Quem pudera imaginar que Júlio
César, vencedor de Cipião e de Pompeu __ e de tantos outros capitães famosos,
que junto a estes perdem o nome __ triunfador da África, do Egito, das Gálias e
das Espanhas e da mesma Roma; aquele enfim, de tão altivo coração que ninguém
sofreu lhe fosse superior ou igual no Mundo; quem pudera imaginar, digo, que
havia de gostar e gloriar-se de ser vencido de outro? Mas como Augusto que o
vencia era filho seu, o ser vencido dele era a sua maior vitória, este o maior
triunfo de seus triunfos, esta a maior glória de suas glórias: Et vinci gaudet ab illo.
Mas porque neste exemplo nos não
fique o escrúpulo de ser adulação poética, posto que tão conforme ao afeto
natural, confirmemo-lo com testemunho histórico e verdadeiro, em nada menor que
passado, e porventura mais notável.
Celebra Plutarco, tão insigne
historiador como filósofo, o grande extremo com que Filipe, rei de Macedônia,
amava a seu filho Alexandre, já digno do nome de Grande em seus primeiros anos,
pela índole e generosidade real que em todos seus pensamentos, ditos e ações
resplandecia. E para prova deste extremado afeto, refere uma experiência que
nos vassalos pudera ser tão arriscada, como do rei mal recebida, se o amor de
pai a filho a não interpretara de outra sorte. Foi o caso que os Macedônios,
sem embargo da fé que deviam a Filipe, publicamente chamavam a Alexandre o rei
e a Filipe o capitão. Mas como castigaria Filipe este agravo? __ Não há ciúmes
mais impacientes, mais precipitados e mais vingativos que os que tocam no cetro
e na coroa. Apenas tem havido púrpura antiga nem moderna, que por leves suspeitas
neste gênero se não tingisse em sangue. E que sofra Filipe, aquele que tanto
tinha dilatado o império de Macedônia, que seus próprios vassalos em sua vida,
e em sua presença lhe tirem o nome de rei e o dêem a Alexandre!
Muito fora que o sofresse, mas
muito mais foi, que não só o sofria., senão que o estimava e se gloriava muito
disso. Ouvi a Plutarco: Hinc filium non
immerito Philippus dilexit, ut etiam gauderet, cum Alexandrum Macedones regem,
Philippum appellarent Ducem. Era Filipe pai e Alexandre filho, e tão fora
estava o pai de sentir que lhe antepusessem o filho, que antes o tinha por
lisonja e glória, e esse era o seu maior gosto: Ut etiam gauderet. quando lhe
tiravam a coroa para a darem a. seu filho, então se tinha Filipe por mais
coroado; quando já faziam a Alexandre herdeiro do reino, antes de lhe esperarem
pela morte, então se tinha por imortal; quando o apelidavam com menor nome,
então se tinha por maior. E quando lhe diziam que ele só era capitão, então
aceitava esta gloriosa injúria, como os vivas e aplausos da mais ilustre
vitória; porque a maior glória de um pai é ser vencido de seu filho: Et vinci gaudet ab illo.
A razão e filosofia natural deste
afeto é porque ao maior desejo, quando se consegue, segue-se naturalmente o
maior gosto; e o maior desejo que têm e devem ter os pais, é serem tais seus
filhos, que não só os igualem, mas os vençam e excedam a eles. Assim o disse ou
cantou ao Imperador Teodósio Claudiano, tão insigne na filosofia como na
poética. Descreve copiosamente as virtudes imperiais, militares e políticas com
que seu filho Honório se adiantava admiràvelmente aos anos, e não só igualava,
mas excedia a seu pai; e fazendo uma apóstrofe a Teodósio, lhe diz
confiadamente assim: Aspice nunc
quacumque micas, seu circulus austri, magne parens, gelidi seu te meruere
Triones, aspice, completur votum, jam natus adæ quat te meritis, et quod magis
est optabile, vincit: «De lá onde como estrela, de Marte ilustrais o Mundo
com vossas vitórias, ou seja no círculo do astro, ou no frio Setentrião, olhai,
felicíssimo César, para Honório vosso filho, e se como imperador tendes
conseguido o nome de Grande, chamando-vos a voz pública Teodósio o Magno, a
minha (diz Claudiano) não vos invoca com o nome de grande imperador, senão com
o de grande pai: Magne parens; e o que celebro mais entre todas as glórias de
vossa felicidade e o que tenho por mais digno do emprego de vossa vista, é que
vejais e torneis a ver: Aspice, aspice;
que chegastes a ter um filho, o qual não só vos iguala, que é o que desejam os
pais, mas que já vos excede e vence, que é o que mais devem desejar: Et quod magis est optabile, vincit» .
Notai muito as palavras: Quod magis est optabile, e aplicai-as ao
nosso caso. O que mais se deve desejar é o melhor que se pode escolher; e como
o que mais devem desejar os pais é que os filhos os vençam e os excedam, bem se
conclui que, se entre a glória de Deus e a de sua Mãe fora a escolha da mesma
Mãe, o que a Senhora havia de escolher para si é que seu Filho a excedesse e
vencesse na mesma Gloria, como verdadeiramente a excede e vence: Et quod magis est optabile, vincit.
Vence Deus incomparàvelmente a sua Mãe na glória infinita que goza, mas como
este mesmo excesso é o mais que Maria podia desejar e o melhor que devia
escolher como Mãe, por isso se diz com razão que Maria escolheu hoje a melhor
parte: Maria optimam partem elegit.
CAPÍTULO IV
Temos ouvido os filósofos, que
falam pela boca da natureza; ouçamos agora os santos padres, que falam pela da
Igreja.
São Sidônio Apolinar, bispo arvernense
e padre do V Século, escrevendo a Audaz, prefeito dos reis godos no tempo em
que dominaram Itália, promete-lhe suas orações e conclui com estas palavras: Deum posco, ut te filii consequantur, et
quod magis decet velle, transcendant: « Rogo a Deus por vós e por vossos
filhos, diz o eloquentíssimo Padre, e o que peço para eles é que vos imitem; o
que peco para vós é que vos excedam, porque vos imitem, porque isso é ~ que
eles devem fazer; que vos excedam, porque isto é o que vós deveis desejar: Et quod magis decet velle, transcendant»
.
Oh quisesse Deus que fossem hoje
tais os pais, e tal a criação dos filhos, que por uns e outros lhes pudéssemos
fazer esta oração! Mas é tanto pelo contrário que podemos chorar da nossa idade
o que o outro gentio lamentava da sua: Æ
tas parentum peior avis tulit nos nequiores, mox daturos progeniem vitiosiorem:
«Os avós foram maus, os filhos são piores, os netos serão péssimos» . Haviam-se
de prezar os pais, não só de ser bons, mas de dar tal criação aos filhos, que se
pudessem gloriar de serem eles melhores. Mas deixadas estas lamentações, que
não são para dia tão alegre, continuemos a ouvir os Santos Padres, e sejam os
dois maiores da Igreja grega e latina — Nazianzeno
e Agostinho.
Faz duas elegantes epístolas S. Gregório
Nazianzeno, uma a Nicóbulo, famoso letrado, em nome de um seu filho, em nome do
mesmo Nicóbulo; e na primeira, pedindo o filho ao pai que lhe dê licença para
frequentar as escolas e seguir as letras, diz assim: Gratia quam posco, genitor charissime, patris est mage, quam nati:
«a graça que vos peço, pai meu, é mais para vós que para mim, e mais é vossa
que minha» . Se isto dissera o moço, que ainda não tinha mais que o desejo de
saber, não me admirara o dito; mas falando por boca dele o grande Nazianzeno,
do qual com singular elogio elogia a Igreja, que em nenhuma cousa da que
escreveu, errou; como pode ser que a glória do filho seja mais do pai que do
mesmo filho: Patris est mage quam nati?
E se esta preposição é verdadeira, segue-se dela, aplicada ao nosso intento,
que a glória de Deus é mais de Maria que do mesmo Deus, porque Deus é filho e
ela é Mãe. E porque não faça dúvida o falarmos da glória de um de outro, com a
mesma palavra explica o santo Padre nas que logo acrescenta: Glória namque patris natorum est fama,
decusque, ut rursus natis est glória fama parentum. Como pode ser logo
neste caso, ou em algum outro, que a glória do filho seja mais do pai que do
filho: Patris est mage, quam nati?
Não há dúvida que falou nesta sentença Nazianzeno como quem tão altamente
penetrava e distinguia a subtileza dos afetos humanos, entre os quais o amor
paterno, como é o mais eficaz e muito forte, é também o mais fino. Diz que a
glória do filho é glória do pai, que do mesmo filho; porque mais se gloriam os pais
de a gozarem seus filhos ou de a gozarem neles, que se a gozaram em si mesmos.
E neste sentido se pode dizer com verdade e propriedade natural que a glória de
Deus em certo medo é mais de Maria que do mesmo Deus; porque, não sendo sua,
como não é, é do filho ùnicamente seu, em quem ela mais estima, e da qual mais
se gloria que se pudera ser, ou fora sua.
Isto é o que o disse Nazianzeno
ao pai por boca do filho; vejamos agora o que diz e responde ao filho por boca
do pai: Sis sane præ stantior ipse parente:
Queres, filho, seguir-me na profissão e ser grande, como o mundo e a fama diz
que sou, na ciência e nas letras? Sou contente; mas não me contento só com
isso: o que peço a Deus é que « saias tão eminente nelas, que me faças grandes
vantagens, e sejas muito maior que teu pai: «Sis sane præ stantior ipse parente» . Assim diz Nicóbulo, ou
Nazianzeno por ele, e dá a razão tão própria no nosso caso, como se eu a dera:
«Gaudet enim genitor, cum palmam præ
ripit ipsi virtutis sua progenies: maiorque voluptas hinc oritur, quam si
reliquos præ verteret omnes: Desejo, filho, que sejas maior que eu; porque
« não há gosto para um pai, como ver que seu filho lhe leva a palma, e de se
ver assim vencido dele, se gloria muito mais que se vencera, e se avantajara a todos
quantos houve no Mundo» .
Mudai, agora o nome de Genitor em Genitrix, e entendei que falou Nazianzeno da glória de Maria no
Céu, onde tão gloriosamente se vê vencida da glória de seu Filho: Gaudet enim Genitrix, cum palmam præ ripit
virtutis sua progenies. Vê-se Maria, quando vê a Deus, infinitamente
vencida da imensidade de sua glória; mas como é glória, não de outrem, senão de
seu Filho: Sua progenies, o ver-se
vencida dele é a sua vitória e a sua palma: Cum
palmam præ ripit ipsi. Nas outras contendas a palma é do vencedor, mas
quando contende o filho com o pai ou com a mãe, a palma é do pai ou da mãe
vencida; porque a sua maior glória é ter um filho que a vença nela.
Este dia da Senhora da Glória
chama-se também da Senhora da Palma; porque, como é tradição dos que assistiram
a seu glorioso trânsito, o anjo embaixador de seu Filho, que lhe trouxe a
alegre nova, lhe meteu juntamente na mão uma palma, com a qual, como vencedora
da Morte e do Mundo, entre as aclamações e vivas de toda a corte beata, entrasse
triunfante no Céu. Subi, Senhora, subi, subi ao trono da glória que vos está
aparelhado sobre todas as jerarquias, que lá vos espera outra palma
infinitamente mais gloriosa. E que palma? Não aquela com que venceis em glória
a todos os espíritos bem-aventurados, senão aquela com que na mesma glória sois
vencida de vosso filho: Cum palmam præ
ripit ipse sua progenies. Grande glória da Senhora é, como lhe canta a
Igreja, ver-se exaltada no Céu sobre todos os coros e jerarquias dos espíritos
angélicos; grande glória que os principados e potestades que os querubins e
serafins lhe ficam muito abaixo, e que no lugar, na dignidade, na honra, na
glória excede incomparàvelmente a todos; porém o ver que neste mesmo excesso de
glória é excedida infinitamente de seu Filho; isso é o de que naquele mar
imenso de glória mais se gloria, isto é o de que naquele verdadeiro paraíso dos
deleites eternos mais a deleita: Maiorque
voluptas hinc oritur, quam si reliquos præ verteret omnes.
Mas ouçamos já a Agostinho, que mais
subtilmente ainda penetrou os efeitos e causas desta tão verdadeira, como
racional complacência. Escreve Santo Agostinho em seu nome e no de Elvídio a
Juliana, mãe da virgem Demetríade, bem celebrada nas epístolas de S. Jerônimo;
e porque esta senhora romana de nobreza consular, desprezadas as grandezas,
riquezas e pompas do Mundo, se tinha dedicado toda a Deus no estado mais
sublime da perfeição evangélica, dá o parabém Agostinho à mãe com estas
ponderosas palavras: Te volentem,
gaudentemque vincit: genere ex te, honore supra te: in qua etiam tuum esse cæ
pit, quod in te esse non potuit: «Vossa filha Demetríade, ó Juliana,
vence-vos, sim, na alteza do estado, a que a vedes sublimada; mas muito por
vossa, vontade e muito por vosso gosto vos vence»: Volentem, gaudentemque vincit; «porque é filha vossa aquela de quem
vos vedes vencida»: Genere ex te, honore
supra te. «A honra que goza é muito sobre vós, mas como a geração que tem é
de vós, também esta mesma honra é vossa; porque o que não podeis ter, nem
alcançar em vós e por vós, já o tendes e gozais nela por ser vossa filha»: In qua etiam tuum esse cæ pit, quod in te
esse non potuit. Vai por adiante Agostinho, ainda com mais profundo
pensamento: Illa carnaliter non nupsit ut
non tantum sibi, sed etiam tibi, ultra te, spiritualiter augeretur, quoniam tu
ea compensatione minor illa es, quod ita nupsisti, ut nasceretur: «Demetríade,
vossa filha, é maior que vós, e vós menor que ela; mas se ela vos excedeu a vós
no que tem de maior, não vos excedeu só para si, senão também para vós; porque
esse excesso se compensa com nascer de vós: Non
tantum sibi, sed etiam tibi, ultra te, ea compensatione ut nasceretur.
Em uma só cousa não vem própria a
semelhança, porque Maria pode ser Mãe como Juliana e Virgem juntamente como
Demetríade; mas em tudo o mais especulou e ponderou a agudeza de Agostinho,
quanto se pode dizer no nosso caso.
Te volentem, gaudentemque vincit. «Venceu-nos vosso Filho na
glória, Virgem Mãe, mas muito por vossa vontade e por vosso gosto» ; porque «
esse mesmo excesso de glória por ser sua, é o que mais quereis e de que mais
vos gozais»: Genere ex te, honore supra
te. A sua honra, a sua grandeza, a sua majestade, a sua glória imensa e
infinita, é muito sobre vós, porque ele é Deus, e vós criatura: Honore supra te; mas a geração desse
mesmo Deus, que é tanto sobre vós, é de vós: Genere ex te. E que se segue de aqui? Segue-se que « tendes o que
não podíeis ter, e que toda a glória sua, começa também a ser vossa»: Etiam tuum esse cæ piet, quod in te esse non
potuit. Vós não podíeis ser Deus, mas como Deus pode fazer que fôsseis sua
Mãe, tudo o que não podíeis ter em vós, tendes nele. Ele é maior que vós, e vós
menor: Minor est: mas tudo o que tem
de maior, (que é tudo) «não só o tem para si senão também para vós»: Non tantum sibi, sed tibi, ultra te.
Oh quem pudera declarar
dignamente a união destes termos, ultra
te et tibi! Enquanto a glória de Deus é infinita e imensa, estende-se muito
«além de vós»: Ultra te; mas em quanto é glória de vosso Filho, toda se contrai
e reflete a vós: Tibi. Para os raios
do sol fazerem reflexão, é necessário que tenham limite onde parem; mas a
glória da Divindade de vosso Filho, que não tem nem pode ter limite, por isso
se limitou à Humanidade que recebeu de vós, para refletir sobre vós, nascendo
de vós: Ea compensatione, ut nasceretur.
E chama-se este nascer de vós compensação ou recompensa com que Deus vos
compensou toda a grandeza e glória, que tem mais que vós; porque, nascendo de
vós, é vosso verdadeiro Filho; e sendo toda essa glória de vosso Filho, também
é vossa, e vossa naquela parte onde a tendes por melhor: Optimam partem elegit.
CAPÍTULO V
Parece que não podia falar mais
concordemente ao nosso intento, nem a filosofia dos Gentios, nem a teologia dos
Santos Padres. Vejamos agora o que dizem as Escrituras Sagradas.
O primeiro exemplo que elas nos
oferecem, é o famoso do Barcelay. No tempo em que Absalão se rebelou contra
David, (que tão mal pagam os filhos a seus pais o amor que lhes devem) um dos
senhores que seguiram as partes do rei foi este Barcelay, o qual o assistiu
sempre tão liberal e poderosamente, que ele só, como refere o texto, lhe
sustentava os arraiais. Restituído pois David à coroa e lembrado deste serviço
ou gentileza, de que outros príncipes se esquecem com a mudança da fortuna,
qui-lo ter junto a si na corte e fazer-lhe a mercê e honra que sua fidelidade
merecia; e para o vencer na liberalidade ou não ser vencido dele, disse-lhe que
ele mesmo se despachasse, porque « tudo quanto quisesse lhe concederia»: Quidquid tibi placuerit, quod petieris a me,
impetrabis. Generoso rei! Venturoso vassalo! Mas para quem vos parece que
quereria toda esta ventura? Era Barcelay pai, tinha um filho que se chamava
Caimam, escusou-se de aceitar o lugar e mercê que o rei lhe oferecia, e o que
só lhe pediu foi que a fizesse a seu filho: Est
servus tuus Caimam, ipse vadat tecum, et fac ei quidquid tibi bonum videtur.
Dirão os que têm lido esta
história, que se escusou Barcelay porque se via carregado de anos, como ele
mesmo disse; mas isso só foi um desvio e modo de não aceitar cortesmente, e não
é razão que satisfaça, pois vemos tantas velhices decrépitas, tão enfeitiçadas
das paredes de palácio, que, tropeçando nas escadas, sem vista e sem
respiração, as sobem todos os dias, bem esquecidos dos que lhes restam de vida.
E quando Barcelay não fosse tocado deste contágio, ao menos podia dividir a
mercê entre si e o filho, e aparecerem ambos na corte, como vemos muitos
títulos com duas caras (a modo do Deu), uma com muitas cãs e outra sem barba.
Mas a verdadeira razão por que este honrado pai não aceitou a mercê do rei para
si e a pediu para seu filho, nem a dividiu entre ambos, podendo, pois estava na
sua eleição, foi (como dizem literalmente Lira e Abulense) porque era pai, e
entendeu que tanto lograva aquela honra em seu filho, como em si mesmo, porque
nele era mais sua, como acima disse S. Gregório Nazianzeno. E porque o santo
não deu a razão da sua sentença, nós a daremos e provaremos agora como outro
mais notável exemplo da. Escritura.
Quando Abraão sacrificou seu
filho Isaac, é cousa mui notável e mui notada que, sendo Isaac a vítima do
sacrifício, os louvores desta ação e desta obediência, todos se dêem a Abraão e
não a Isaac. Isaac, não se ofereceu com grande prontidão ao sacrifício? Não se
deixou atar? Não se inclinou sobre o altar e se lançou sobre a lenha? Não viu
sem horror desembainhar a espada? Não aguardou sem resistência o golpe? Que
mais fez logo Abraão, para que a obediência de Isaac se passe em silêncio e a
de Abraão se estime, se louve, se encareça com tanto excesso? Nenhuma diferença
houve no caso, senão ser Abraão pai e Isaac filho. Amava Abraão mais a vida de
Isaac que a sua, e vivia mais nela que Em si mesmo; e posto que ambos
sacrificaram a vida e a mesma vida, o sacrifício de Abraão foi maior e mais
heróico que o de Isaac, porque se Isaac sacrificou a sua vida, Abraão
sacrificou a vida que era mais que sua, porque era de seu filho.
Até aqui está dito e bem dito;
mas eu passo avante e noto o que, a meu ver, é digno ainda de maior reparo:
Premiou Deus esta famosa ação de Abraão, e como a premiou, e em quem? Não a
premiou no mesmo Abraão, senão em Isaac: Quia
fecist rem hanc, benedicentur in semine tuo omnes gentes: in Isaac vocabitur
tibi semem. Pois se a ação do sacrifício foi celebrada em Abraão e não em
Isaac, porque foi premiada em Isaac e não em Abraão? __ Por isso mesmo. A ação
foi celebrada em Abraão e não em Isaac, porque Isaac sacrificou a sua vida e
Abraão sacrificou a vida que estimava mais que a sua, porque era de seu filho;
e da mesma maneira foi premiada em Isaac e não em Abraão, para que o prêmio,
sendo de seu filho, fosse também mais estimado dele do que se fora seu. A vida
que sacrificastes era mais que vossa, porque era de vosso filho? Pois seja o
prêmio também de vosso filho, para que seja mais que vosso. E como os pais
estimam mais os bens dos filhos que os seus próprios, e os logram e gozam mais
neles que em si mesmos, vede se escolheria ou quereria a Senhora a imensa
glória de seu Filho antes para ele que para si, se a terá por sua e mais que
sua, e se as mesmas vantagens de glória, em que infinitamente se vê excedida.,
serão as que mais gloriosa a fazem e de que mais se gloria!
O mesmo Filho de Maria, por ser
Filho seu, se chama também Filho de David; e na história do mesmo David nos dá
a Escritura Sagrada o maior e mais universal testemunho, que para prova desta
verdade, se pode desejar nem ainda inventar. Chegado David ao fim da vida, quis
nomear sucessor do reino, e mandou ungir a seu filho Salomão por rei. Deu esta
ordem a Banaias, capitão dos guardas da pessoa real, o qual lhe beijou a mão
pela eleição, que não era pouco controversa, e o cumprimento com que falou ao
rei, foi este: Quomodo fuit Dominus cum
Domino meo rege, sic sit cum Salomone, et sublimius faciat solium ejus a solio
Domini mei regis David: «Assim como Deus assistiu sempre e favoreceu a
Vossa Majestade, assim assista e favoreça o reinado de Salomão, e sublime e
exalte o seu trono muito mais que o trono de Vossa Majestade» . Executou-se
prontamente a ordem, ungiram a Salomão no monte Gion com todas as cerimônias
que então se usavam em semelhante celebridade; entrou o novo rei por Jerusalém
a cavalo, com trombetas e atabales diante, entre vivas e aclamações de todo o
povo e exército; vieram todos os príncipes e ministros maiores dos doze tribos
congratular-se com David, e as palavras com que lhe deram o parabém, foram
outra vez as mesmas: Amplificet Deus
nomen Salomonis super nomen tuum, et magnificet thronum ejus super thronum tuum:
«Seja maior o maior o nome de Salomão, Senhor, que o vosso nome, e mais alto e
glorioso o seu trono, do que foi o vosso.
O que me admira sobretudo neste
caso, é que todos dissessem a mesma cousa. Estas são as ocasiões em que a discrição,
o engenho e a cortesania dos que dão o parabém aos reis, se esmera em buscar
cada um novos modos de congratulação, novos motivos de alegria, e ainda novos
conceitos de lisonja, e mais os que fazem a fala em nome dos seus tribunais ou
repúblicas. Como logo em tantos tribos, tantos ministros, tantos príncipes e
senhores, (que, como diz o texto, vieram todos) não houve quem falasse por
outro estilo, nem dissesse outra cousa a David, senão que Deus fizesse a seu
filho maior que ele e sublimasse e exaltasse o trono de Salomão, mais que o seu
trono? Isto disseram todos. porque a um rei tão famoso e glorioso corno David,
nenhuma outra felicidade nem glória lhe restava para desejar, senão que tivesse
um filho que em tudo se lhe avantajasse e o excedesse, e que o trono do mesmo
filho fosse muito mais levantado e sublimado que o seu. A David, em quanto
David, bastava-lhe por glória ter sido David; mas em quanto pai, não lhe
bastava. Ainda lhe restava outra maior glória que desejar, e esta era ter um
tal filho, que na majestade, na grandeza, na glória e no mesmo trono, o
vencesse e excedesse muito: Et magnificet
thronum ejus super thronum tuum.
Dois tronos há no Céu mais
sublimes que todos: o de Deus e o de sua Mãe; o de Deus infinitamente mais alto
que o de sua Mãe, e o de sua Mãe infinitamente mais alto que o de todas as
criaturas. Mas a maior glória. de Maria, não consiste em que o seu trono exceda
o de todas as jerarquias criadas, senão em ter um Filho cujo trono exceda
infinitamemte o. Este é o parabém que no Céu lhe estão dando hoje e lhe darão
por toda a, eternidade todos os espíritos bem-aventurados, sem haver em todos
os coros de homens e anjos quem diga nem possa. dizer outra cousa, senão: Thronus ejus super thronum tuum. Vence
Maria no Céu a. todas as Virgens, na glória que se deve à pureza.; a todos os
confessores, na que se deve à humildade; a todos os mártires, na que se deve à
paciência; todos os apóstolos, patriarcas e profetas, na que se deve à Fé, à
Religião, ao zelo e culto da honra de Deus. Mas assim os confessores como as
virgens, assim os mártires como os apóstolos, assim os patriarcas como os
profetas, deixadas todas essas prerrogativas em que gloriosamente se vêem
vencidos, os louvores e euges eternos
com que exaltam a Gloriosíssima Mãe, é ser inferior o seu trono ao de seu
Filho: Thronus ejus super thronum tuum.
Vence Maria a todos os, anjos e arcanjos, a todos os principados e potestades,
a todos os querubins e serafins, na virtude, no poder, na ciência, no amor, na
graça, na glória. Mas todos estes espíritos angélicos, passando em silêncio os
outros dons sobrenaturais que tocam a cada urna das jerarquias, em que veneram
e reconhecem a soberana superioridade com que a Senhora, como rainha de todas,
incomparàvelmente as excede; todos, como tão discretos e entendidos o que só
dizem e sabem dizer; o que sobre tudo admiram e apregoam, é: Thronus ejus super thronum tuum. Assim
que, homens e anjos, unidos no mesmo conceito e enlevados no mesmo pensamento,
o que cantam, o que louvam, o que celebram, prostrados diante do trono da
segunda Majestade da Glória, e os vivas que lhe dão concordemente, é ser Mãe de
um Filho que, excedendo ela a todos em tão sublime grau na mesma glória, ele a
vence e excede infinitamente. E isto é o que, divididos em dois coros de
inumeráveis vozes e unidos em urna só voz, aplaudem, aclamam, festejam, e tudo
o mais calam, conformando-se nesta eleição com a parte da mesma glória que a
Senhora elegeu por melhor: Optimam
partem. elegit.
CAPÍTULO VI
E porque a preferência desta
eleição não fique só no juízo dos entendimentos criados, subamos aos arcanos do
entendimento divino, e vejamos como o Eterno Pai, em tudo o que teve liberdade
para eleger e escolher, também escolheu esta parte e a teve por melhor.
Para inteligência. deste ponto
havemos de supor que tudo quanto tem e goza, o Filho de Deus o recebeu de seu
Padre, mas por diferente modo. O que pertence à natureza e atributos divinos
recebeu o Verbo Eterno do Eterno Padre, não por eleição e vontade livre do
mesmo Padre, senão natural e necessàriamente. E a razão é porque a geração do
Divino Verbo procede por ato do entendimento,antecedente a todo ato da vontade.
sem o qual não há eleição. É verdade que, ainda que a geração do Verbo não
procede por vontade nem é voluntária, nem por isso é involuntária ou contra
vontade. E daqui se ficará entendendo a energia e propriedade daquelas
dificultosas palavras de S. Paulo, onde diz: que a igualdade que o Filho tem
com o Padre na natureza e atributos divinos, não foi furto, nem o mesmo Verbo o
reputou por tal: Non rapinam arbitratus
est esse se æ qualem Deo. E porque declarou S. Paulo o modo da geração do
Verbo pela semelhança ou metáfora do furto, dizendo que não foi furto, nem como
furtado ou roubado o que recebeu do Padre? __Divinamente, por certo, e não se
podia declarar melhor. O furto é aquilo que se toma ou se retém e possui,
invito domino __ « contra vontade de seu dono. E a Divindade que o Verbo
recebeu do Padre, ainda que da parte do mesmo Padre não fosse voluntária,
contudo não foi invita; não foi voluntária, sim, mas não foi contra vontade. E
como o Padre não foi invito na geração do Verbo e na comunicação da sua
Divindade (posto que fosse necessária e não livre, por isso a igualdade que o
Verbo tem com ele, é verdadeiramente sua e não roubada: Non rapinam arbitratus est esse se æ qualem Deo.
Até aqui o que o Filho recebeu do
Padre necessariamente, e sem eleição sua. E que é o que recebeu por vontade livre e por verdadeira e própria
eleição? __ O que logo se segue e acrescentou o mesmo S. Paulo: Sed
semetipsum exinanivit, formam servi accipiens, in similitudinem hominum factus,
et habitu inventus ut homo, propter quod
et Deus exaltavit illum et donavit illi nomen, quod est super omne nomen: Recebeu o Filho do Padre; por
verdadeira e própria eleição, o ofício e dignidade de Redentor do gênero humano, « fazendo-se
juntamente homem, e com esta nova e inefável dignidade recebeu um nome sobre todo nome» , que é o
nome: de Jesus, mais sublime e mais venerável, pelo que é e pelo que significa, que o mesmo nome
de Deus: Ut in nomine Jesus omne genu
flectatur. Recebeu a potestade
judiciária que o Padre demitiu de si, «competindo ao Filho privativamente
o juízo universal e particular de vivos
e mortos»: Pater non judicat quemquam,
sed omne judicium dedit filio.
Recebeu o primeiro trono entre as três Pessoas da Santíssima Trindade,
assentando-se à mão direita do mesmo
Padre: Dixit Dominus Domino meo: sede a
dextris meis. Tudo isto, e o que
disto se segue, com imensa exaltação e glória recebeu o Filho de seu de
seu Eterno Padre, por vontade livre e
própria eleição.
Mas se toda esta nova exaltação e
toda esta nova glória não era devida à Pessoa do Filho por força ou direito da
geração eterna, em que somente era igual ao Padre na natureza e atributos
divinos, e a eleição livre de dar ou tomar a mesma exaltação e glória estava e
dependia da vontade do mesmo Padre,
porque a não tomou para si? Assim como encarnou a Pessoa do Filho, assim pudera
encarnar a Pessoa do Padre; e no tal
caso a nova dignidade de Redentor, o nome sobre todo o nome, a maior veneração e adoração de homens e anjos, e
todas as outras prerrogativas e glórias que pelo mistério da Encarnação e Redenção sobrevieram e
acresceram ao Filho, não haviam de ser do Filho, senão do mesmo Padre. Pois se a eleição voluntária e
livre de tudo isso estava na mão do Padre e podia tomar para si toda essa exaltação e glória; porque;
a quis antes para a Pessoa do Filho? Por nenhuma outra razão, senão porque era Filho e ele Pai: Ego autem constitutus sum rex ab eo super
Sion montem sanctum ejus. Dominus dixit
ad me: Filius meus es tu. Assim como o Eterno Padre, para encarecer o amor que tinha aos homens, não se nos deu a
si, senão a seu Filho: Sic Deus dilexit
mundum, ut Filium suum Unigenitum daret;
assim para manifestar o amor que tinha ao mesmo Filho, não tomou para si estas novas glórias, senão que todas
as quis para ele e lhas deu a ele, entendendo que, quando fossem de seu Filho, então eram mais suas, e
que mais e melhor as gozava nele que em si mesmo.
E que Filho é este, Virgem
Gloriosíssima, senão o mesmo Filho vosso, Filho Unigênito do Eterno Padre e Filho Unigênito de Maria? E se o
Eterno Padre, em tudo o que pode ter eleição própria., escolheu os excessos de sua glória para seu
Filho, essa mesma glória, que ele goza em si e vós nele, em que infinitamente vos vedes excedida, quem
pode duvidar, se tem inteiro juízo, que seria também vossa a mesma eleição? Toda a Igreja
Triunfante no Céu e toda a Militante na Terra, reconhece e confessa que entre todas as puras criaturas,
ou sobre todas elas, nenhuma há mais parecida a Deus Padre, que aquela singularíssima Senhora, que
ele criou e predestinou ab æ terno
para Mãe do seu Unigênito Filho; porque
era justo que o Pai e a Mãe de quem ele recebeu as duas naturezas de que inefàvelmente é composto, fossem, quanto era
possível, em tudo semelhantes. E se o amor do Pai, por ser amor de Pai, e Pai sem Mãe, escolheu para
seu Filho e não para si as glórias que cabiam na sua eleição, não há dúvida que o amor da Mãe, e
Mãe sem Pai, escolheria para o mesmo Filho também, e não para si, toda a glória infinita que ele
goza. E esta é a eleição que teria por melhor: Maria optimam partem elegit.
Assim o entendeu da mesma Mãe o
mesmo Pai; e o provou maravilhosamente o juízo e amor da mesma Senhora para com seu Filho, onde a
eleição foi pròpriamente sua. Quando o Eterno Padre quis dar Mãe a seu Unigênito, foi com tal
miramento e atenção à grandeza e majestade da que sublimava a tão estreito e soberano parentesco, que não
só quis que fosse sua, isto é, do mesmo Pai, a eleição da Mãe, senão que também fosse da Mãe a eleição
do Filho. Bem pudera o Eterno Padre formar a
Humanidade de seu Filho nas entranhas puríssimas da Virgem Maria, sem consentimento
nem ainda conhecimento da mesma Virgem,
assim como formou a Eva da costa de Adão, não acordado e estando em si, senão dormindo. Mas para que o
Filho que havia de ser seu, posto que era Deus, não só fosse seu, senão da sua eleição, por isso
(como diz S. Tomás) lhe destinou antes por embaixador um dos maiores príncipes da sua corte, o qual de
sua parte lhe pedisse o sim e negociasse e alcançasse o consentimento, e o aceitasse em seu nome.
Este foi, como lhe chamou São Paulo, o maior negócio que nunca houve nem haverá entre o Céu e a
Terra, dificultado primeiro pela Senhora, e depois persuadido e concluído por S. Gabriel. Mas
quais foram as razões e os motivos de que usou o anjo para o persuadir e
concluir? __ É caso digno de admiração, e que singularmente prova da parte
de Deus, do anjo e da, mesma Virgem,
qual é na sua eleição a melhor parte.
Repara Maria na embaixada, insta
o célebre embaixador, e as promessas que alegou para conseguir o consentimento, foram estas: Ecce concipies et paries Filium, et vocabis
nomem ejus Jesum; hic erit magnus, et
Filius Altissimi vocabitur; dabit illi Dominus Deus sedem David patris ejus, et
regnabit, in domo Jacob, et regni ejus
non erit finis: «O filho de que sereis Mãe, terá por nome Jesus, que quer dizer, o Redentor do Mundo; este será grande,
chamar-se-á Filho de Deus, dar-lhe-á o mesmo Deus o trono de David seu pai; reinará em toda a
casa de Jacob; e seu reino e império não terá fim» .
Não sei se advertis no que diz o
anjo e no que não diz; no que promete e no que não promete. Tudo o que promete, são grandezas, altezas e glórias
do Filho; e da Mãe, com quem fala, nenhuma cousa diz; e à mesma a quem pretende persuadir nada lhe
promete. Não pudera Gabriel dizer à Senhora com a mesma verdade, que ela seria a florescente
vara de Jessé; que nela ressuscitaria o cetro de David; que a sua casa se levantaria, e estenderia
mais que a de Jacob; que seria rainha sua e de todas as jerarquias dos anjos, Senhora dos homens,
Imperatriz de todo o criado; e que esta majestade e grandeza também a lograria sem fim? __Tudo
isto, e muito mais, podia e sabia dizer o anjo. Pois porque diz e promete só o que há de ser o
Filho, e não diz nem promete o que há de ser a Mãe? Porque falou como anjo, conforme a sua ciência;
e como embaixador, conforme as suas instruções;
por isso, nem ele diz, nem Deus lhe manda dizer senão o que há de ser
seu Filho; porque nas matérias onde
Maria tem a eleição livre, o que mais pesa no seu juízo e o que mais move e
enche o seu afeto, são as grandezas e
glórias de seu Filho e não as suas. As de seu Filho, e não as suas, porque as
tem mais por suas, sendo de seu Filho;
as de seu Filho e não as suas, porque as estima mais nele e as goza mais nele que em si mesma.
Isto é o que, segundo o
conhecimento de Deus, e o do anjo, e o seu, elegeu Maria, na terra; e isto é
o que na presença de Deus, dos anjos e
de todas os bem-aventurados tem por melhor no Céu: Maria optimam partem elegit.
CAPÍTULO VII
E nós, Senhora, que, como filhos
de Eva, ainda gememos neste desterro, e como filhos, posto que indignos, vossos, esperamos subir convosco e
por vós a essa bem-aventurança pátria, o que só nos resta depois desta consideração de vossa
glória, é dar-vos o parabém dela. Parabém vos seja a eleição, que, ainda que não foi nem podia ser vossa, na
predestinação com que fostes escolhida para a glória de Mãe de Deus, foi vossa no consentimento
voluntário e livre que se vos pediu e destes para o ser. Parabém vos seja a parte que compreende
aquele todo incompreensível de glória, que só pode abarcar e abraçar o ser imenso, e conter dentro em si
o infinito, que vós também com maior capacidade que a do Céu tivestes dentro em vós. Parabém vos
seja finalmente a melhoria, por melhor vos está como Mãe, que toda essa imensidade e infinidade de
glória seja de vosso Filho, e melhor a gozais por este modo, segundo as leis do perfeito amor, que
se a gozáreis em vós mesma. E assim como vos damos o parabém e nos alegramos com todo o afecto de
nossos corações, de que a estejais gozando e hajais de gozar por toda a eternidade; assim vos
pedimos, humildemente postados ao trono de vossa gloriosíssima Majestade, que, como Senhora da
Glória e liberalíssima dispensadora de todas as graças de vosso benditíssimo filho, alcançadas e
merecidas pelo sangue preciosíssimo que de vós recebeu, nos comuniqueis, aumenteis e conserveis até o
último dia, em que passarmos, como vós hoje, desta vida àquela graça que nos é necessária para
vos louvarmos eternamente na Glória.
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Nota:
Padre Antônio Vieira: Sermão da Glória de Maria, Mãe de Deus (1644)
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Nota:
Padre Antônio Vieira: Sermão da Glória de Maria, Mãe de Deus (1644)
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