SERMÃO DE SÃO PEDRO
Pregado em Lisboa, em S. Julião,
no ano de 1644, à venerável congregação dos
sacerdotes
Vos autem quem me esse dicitis?
S. Mateus, XVI.
CAPÍTULO I
Mui seguro está do seu valor quem
tira a sua opinião ao campo. E se é
temeridade tomar-se com muitos, com todo o mundo se tomou quem desafiou
sua fama. Na ocasião de que fala S.
Mateus (cujo é o Evangelho que hoje nos propõe a Igreja) diz que perguntou Cristo, Senhor
nosso, que diziam dele os homens: Quem dicunt homines esse Filium hominis?
Perguntou o Senhor, para que os
senhores que mandam o Mundo se não
desprezem de perguntar. Se pergunta a sabedoria divina, porque não
perguntará a ignorância humana? Mas esse é o maior argumento de ser ignorância.
Quem não pergunta, não quer saber; quem não quer saber, quer errar. Há porém
ignorantes tão altivos, que se desprezam de perguntar, ou porque presumem que
tudo sabem, ou porque se não presuma que lhes falta alguma cousa por saber.
Deus guie a nau onde estes forem os pilotos.
Não perguntou o Senhor o que era,
senão o que se dizia: Quem dicunt?
Antes de se fazerem as cousas, há-se de temer o que dirão; depois de feitas,
há-se de examinar o que dizem. Uma cousa é o acerto, outra o aplauso. A boa
opinião de que tanto depende o bom governo, não se forma do que é, senão do que
se cuida; e tanto se devem observar as obras próprias, como respeitar os
pensamentos e línguas alheias. A providência com que Deus permite a murmuração,
é porque talvez de tão má raiz se colhe o fruto da emenda. E se eu de murmurado
me posso fazer aplaudido, porque me não informarei do que se diz?
Respondendo os Discípulos à
questão, referiram os pareceres ou ditos do povo a respeito da pessoa de
Cristo. Eram do povo, claro está que haviam de ser errados: Alii Joannem Baptistam, alii autem Eliam,
alii vero Jeremiam, aut unum ex prophetis: «Uns diziam que era o Baptista,
outros que era Elias, outros que era Jeremias, ou algum dos profetas antigos».
Antigos não disse São Mateus, mas advertiu-o S. Lucas: Unus propheta de prioribus surrexit. Grande é o ódio que os homens
têm à idade em que nasceram. Não diziam que era um profeta como os antigos,
senão um deles: Unus de prioribus.
Pois assim como antigamente houve também profetas, não poderia também agora
haver um? Cuidam que não. Por melhor milagre tinham ressuscitar um dos profetas
passados, que nascer em seu tempo outro como eles. Tudo o moderno desprezam, só
o antigo veneram e acreditam. E porque a Cristo lhe não podiam negar a
sabedoria, fingiam-lhe a antiguidade. Ora desenganem-se os idólatras do tempo
passado, que também no presente pode haver homens tão grandes como os que já
foram, e ainda maiores: Cristo passava pouco dos trinta anos, e tudo o que
souberam os antigos e antiqüíssimo, era aprendido dele.
E vós, Discípulos meus (continua
o Senhor), vós que não sois povo e estudais na minha escola, quem dizeis que
sou eu?: Vos autem quem me esse dicitis?
Estas são as palavras que tomei por tema e ficam para o discurso. Respondeu a
elas, por todos, S. Pedro: Tu es Christus,
Filius Dei vivi: «Vós, Senhor, sois Cristo, Filho de Deus vivo». Aludiu
primeiramente aos deuses dos Gentios, que eram estátuas mortas. Queira Deus que
entre os Cristãos não haja também estes ídolos. Não sendo mais que umas
estátuas, querem que os adoremos como deuses. Mas além desta alusão, ainda
subiu mais alto o pensamento de S. Pedro. Cristo é Filho de Deus, e nós também
somos filhos de Deus: Dedit eis
potestatem Filios Dei fieri. Em que se distingue logo Cristo de nós? Em que
Cristo é Filho de Deus vivo, nós somos filhos de Deus morto. Cristo Filho de
Deus vivo, porque Deus, que é imortal, o gerou ab æterno; nós filhos de Deus morto, porque o mesmo Cristo, morto
nos braços da cruz, foi o que nos gerou de novo e nos deu este segundo e mais
sublime nascimento.
Não tinha S. Pedro bem acabado a
confissão da sua fé quando o Senhor lha premiou com a certa esperança da maior
dignidade. Ele disse a Cristo o que era, e Cristo disse-lhe a ele o que havia
de ser:
Et ego dico tibi, quia tu es Petrus, et super hanc petram ædificabo
ecclesiam meam: «E eu te digo, Pedro, que tu és Pedro, e sobre esta pedra
hei de fundar a minha Igreja». De tal maneira obra Deus com a sua e suma
sabedoria, que parece se emenda com a experiência. Arruinou-se-lhe a primeiro
edifício, porque o fundou em um homem de barro; para que lhe não arruíne o
segundo, funda-o em um homem de pedra. Retrata-se do que tem feito, Deus, que
não pode errar; e os homens estão tão namorados de seus erros, que antes os
vereis obstinados, que arrependidos. Dirão que é timbre este de entendimentos
angélicos, porque nenhum anjo errou que se retratasse. Eu digo que não é senão
contumácia de entendimentos diabólicos, porque nenhum anjo errou, que não fosse
demônio.
Todos os demônios do Inferno, diz
Cristo que não prevalecerão contra sua Igreja: Portæ inferi non prævalebunt adversus eam. E porque não basta
estarem as portas inimigas defendidas, se as próprias não estiverem seguras, à
fidelidade de Pedro cometeu o Senhor as chaves do seu Reino: Tibi dabo claves regni cælorum. Primeiro
lhe chamou homem de pedra e depois lhe entregou as chaves, porque as chaves do
Reino só em homens de pedra estão seguras. Os homens de barro quebram, os de
pau corrompem-se, os de vidro estalam, os de cera derretem-se; tão duro e tão
constante há de ser como uma pedra, quem houver de ter nas mãos as chaves do
Reino: Tu es Petrus, tibi dabo claves.
E qual há de ser o ofício ou o
exercício destas chaves? Fechar e abrir? Não diz isso o Senhor. As chaves que
abrem e fecham, podem abrir para dentro e fechar para fora. Por isso vemos os
tesouros tão estreitos e tão fechados para os outros, e tão largos e tão
abertos para os que têm as chaves. Que havia logo de fazer com elas S. Pedro?
Atar e desatar, diz Cristo: Quodcumque
ligaveris, erit ligatum: quodcumque solveris, erit solutum. A peste do
governo é a irresolução. Está parado
o que havia de correr, está
suspenso o que havia de voar; porque não atamos, nem desatamos. Não debalde
escolhe Cristo para o governo da sua casa um homem tão resoluto como Pedro. Se
Cristo lhe não mandara embainhar a espada, bem necessárias lhe eram as ataduras
para as feridas. Assim há de ser quem há de obrar, e não homens que nem atam,
nem desatam. Aqui pára a história do Evangelho: para passarmos ao discurso,
peçamos a graça: Ave Maria.
CAPÍTULO II
Vos autem quem me esse dicitis?
Suposto andarem tão válidas no
púlpito e tão bem recebidas do auditório as metáforas, mais por satisfazer ao
uso e gosto alheio, que por seguir o gênio e ditame próprio, determinei na
parte que me toca desta solenidade, servir ao Príncipe dos Apóstolos também
como uma metáfora. Busquei-a primeiramente entre as pedras, por ser Pedro
pedra, e ocorreu-me o diamante; busquei-a entre as árvores, e ofereceu-se-me o
cedro: busquei-a entre as aves, e levou-me os olhos a águia: busquei-a entre os
animais terrestres, e pôs-se-me diante o leão; busquei-a entre os planetas, e
todos me apontaram para o Sol; busquei-a entre os homens, e convidou-me Abraão;
busquei-a entre os anjos, e parei em Miguel. No diamante agradou-me o forte, no
cedro o incorruptível, na águia o sublime, no leão o generoso, no Sol o excesso
da luz, em Abraão o patrimônio da Fé, em Miguel o zelo da honra de Deus. E
posto que em cada um desses indivíduos, que são os mais nobres do Céu e da
Terra, e em cada uma de suas prerrogativas achei alguma parte de S. Pedro, todo
S. Pedro em nenhuma delas o pude descobrir. Desenganado pois de não achar em
todos os tesouros da natureza alguma tão perfeita, de cujas propriedades pudesse
formar as partes do meu panegírico, (que esta é a obrigação da metáfora)
despedindo-me dela e deste pensamento, recorri ao Evangelho para mudar de
assunto; e que me sucedeu? Como se o mesmo Evangelho me repreendera de buscar
fora dele o que só nele se podia achar, as mesmas palavras do tema me
descobriram e ensinaram a mais própria, a mais alta, a mais elegante e a mais
nova metáfora, que eu nem podia imaginar de S. Pedro. E qual é? Quase tenho
medo de o dizer! Não é cousa alguma criada, senão o mesmo Autor e Criador de
todas. Ou as grandezas de S. Pedro se não podem declarar por metáfora, como eu
cuidava, ou se há ou pode haver alguma metáfora de S. Pedro, é só Deus. Isto é
o que hei de pregar, e esta a nova e altíssima metáfora que hei de prosseguir.
Vamos ao Evangelho.
Vos autem quem me esse dicitis? E vós quem dizeis que sou eu?
Aquele vos autem refere esta segunda
pergunta à primeira. Na primeira tinha dito o Senhor quem dizem os homens;
nesta segunda diz: E vós, quem dizeis? De sorte que a pergunta e a questão era
a mesma, e só as pessoas diferentes. Mas também esta diferença parece
dificultosa de entender. Os Apóstolos não eram homens? Sim. Pois se Cristo na
primeira pergunta tinha dito quem dizem os homens, parece que já ficavam
incluídos nela os mesmos Apóstolos; porque os distingue logo o Senhor dos
outros homens com uma exclusiva tão manifesta como a daquele vos autem? O reparo não é menos que de
S. Jerônimo, a quem a mesma cadeira de S. Pedro tem canonizado não só pelo
maior Doutor, senão o Máximo na exposição das Escrituras Sagradas. E que
responde S. Jerônimo? Diz que distinguiu Cristo aos Apóstolos dos outros
homens, porque os Apóstolos não são homens. E se não são homens, que são? São
anjos? São arcanjos? São querubins? São serafins? Muito mais: são Deuses.
Palavras expressas do doutor Máximo: Prudens
lector, attende quod ex consequentibus, textuque sermonis Domini Apostoli
nequaquam homines, sed Dii appellantur. «Advirta o prudente leitor, que,
segundo este texto e a conseqüência destas palavras de Cristo, os Apóstolos não
são homens, nem se chamam homens, senão Deuses»: Nequaquam homines, sed Dii.
Grande dizer, e tão grande, que
não só diz tudo o que eu queria, e o meu assunto há mister, senão muito mais.
Diz tudo, porque afirma expressamente a metáfora e semelhança de Deus, quanto
ao nome, quanto à dignidade e quanto à diferença e soberanias desta divindade
superior absolutamente a todo o ser humano: Nequaquam
homines. Mas diz muito mais do que o meu assunto prometeu e há mister,
porque ele supõe a excelência desta prerrogativa como própria de S. Pedro, e
singularmente sua, e de nenhum outro, e S. Jerônimo parece que a estende a
todos os Apóstolos: Apostoli nequaquam
homines, sed dii appellantur. De onde se segue que esta extensão, posto que
em pessoas de tão alta dignidade, desfaz muito a singularidade de S. Pedro da
minha metáfora e do meu intento; porque fica sendo uma prerrogativa, senão de
todos, ao menos de muitos.
CAPÍTULO III
Vamos devagar, que o ponto o
pede. Primeiramente não nego, nem se pode negar que o texto parece que fala com
todos os Discípulos e Apóstolos, a quem o divino Mestre fazia a pergunta. Mas
eu pergunto também quem foi o que única e singularmente respondeu a ela? Claro
está que foi São Pedro: Respondit Petrus.
E porque respondeu só ele e nenhum outro? Excelentemente St.° Ambrósio: Cum interrogasset Dominus quid homines de
Filio hominis æstimarent, Petrus tacebat: ideo (inquit) non respondeo, quia non
interrogor: interrogabor, et ipse quid sentiam tum demum respondebo, quod meum
est. «Enquanto Cristo perguntou o que diziam os homens, Pedro esteve calado
sem dizer palavra» – tacebat; e porque
esteve calado Pedro e não respondeu palavra? «Porque aquela pergunta, diz ele,
não fala comigo»: Ideo non respondeo,
quia non interrogor; «porém quando eu for perguntado, então responderei e
direi o que sinto, porque a mim me pertence»: Cum interrogabor, et ipse quid sentiam respondebo, quod meum est.
Note-se muito esta última palavra, quod
meum est, na qual excluiu o mesmo S. Pedro a todos os outros Apóstolos e
confiadamente diz que a resposta daquela altíssima pergunta só era sua e só a
ele pertencia. É verdade que a palavra da pergunta: vos autem parece que compreendia a todos; mas a resposta exclui
aos demais, como encaminhada a ele por quem sabia o que só Pedro sabia e os
demais ignoravam.
Em um famoso milagre do mesmo S.
Pedro temos um extremado exemplo, com que a extensão do vos autem se limita só a ele. Entretanto S. Pedro com S. João por
uma das portas do templo de Jerusalém a orar, estava ali um pobre tolhido dos
pés desde seu nascimento, o qual lhes pediu uma esmola; disse-lhe S. Pedro: Respici in nos: «Olha para nós», e
respondendo ao que pedia o pobre; – Eu –
diz – não tenho ouro, nem prata, mas o que tenho,
isso te dou; e tomando-o pela mão «o pôs em pé inteiramente são»: Et protinus consolidatæ sunt bases ejus.
Pois se S. Pedro só havia de fazer, como fez, o milagre sem ter parte nele o
companheiro, porque não disse também — olha para mim, senão, olha para nós?: Respice in nos?
A razão fique para outro dia; o
exemplo nos serve agora, e é quanto se pode desejar adequado. De sorte que o respice in nos referiu-se a Pedro, e
mais a João; mas o milagre não o obraram Pedro e João, senão só Pedro. Pois
assim como então o respice in nos se
referiu a ambos e o obrador do milagre foi só um, assim no caso presente o vos autem referia-se a todos – Respiciebat
omnes – e a milagrosa confissão foi
só de Pedro. Só de Pedro, sem que o número ou multidão a que foi dirigida a pergunta,
impedisse a glória única e singular de quem deu a resposta: e senão, combinemos
o vos com o tu e o tibi. O vos autem foi de todos, e o tu só de
Pedro: Tu es Petrus; o vos autem de todos, e o dico só de
Pedro: dico tibi; o vos autem de todos, e o dabo só de Pedro: Tibi dabo.
CAPÍTULO IV
Assentada esta singularidade de
S. Pedro dentro na mesma diferença que distinguia a todos os Apóstolos dos
outros homens, segue-se que vejamos também singular nele a divindade, com que a
mesma diferença lhe dava por conseqüência o nome de Deuses: Nequaquam homines, sed Dii appellantur.
Em confirmação da sua conseqüência, excita questão S. Jerônimo, porque os
outros homens, por mais que quiseram encarecer as grandezas de Cristo
comparando-o às maiores personagens do Mundo, sempre contudo o fizeram homem;
pelo contrário, um só dos Apóstolos que respondeu à pergunta sem comparações
nem rodeios, disse direitamente que era Filho de Deus. E a razão de tão notável
diferença (sendo o soberano sujeito o mesmo) diz o mesmo S. Jerônimo que foi
porque cada um fala como entende, e entende como quem é. Os homens, porque
falavam e entendiam como homens, chamaram a Cristo homem; S. Pedro, porque
falava e entendia como Deus, chamou-lhe Filho de Deus: Qui de Filio hominis loquuntur, homines sunt; qui vero divinitatem
ejus intelligunt, non homines, sed Dii. Note-se muito a palavra intelligunt.
Eutímio diz o mesmo: Solus Petrus vere Chistum, et natura, et proprie Filium
Dei esse intellexit. S. Pascácio o mesmo: Beatus Petrus plusquam homo erat, qui
ultra hominem sapiebat: cumque Dei Filium in homine videret, ultra humanos
oculos vidit, et intellexit. E outra vez aqui se deve notar esta última
palavra.
Em suma, que toda a divindade de S. Pedro se
atribui ao entendimento com que penetrou e conheceu a do Verbo oculta debaixo
da humanidade de Cristo. E porque mais ao entendimento que a outra qualidade ou
excelência de quantas resplandeciam em um sujeito tão sublime? Porque assim
havia de ser para se poder chamar Deus com toda a propriedade. É grave questão
entre os teólogos, qual seja em Deus o último e formal constitutivo da essência
divina. E a sentença hoje mais recebida nas escolas, e mais comum, é que a
essência divina se constitui e consiste no intelectivo radical, e na mesma
intelecção, por ser este, como eles chamam, o primeiro predicado de Deus. E
como o intelectivo radical, e Intelecção divina, é a que última e formalmente
constitui a divindade e essência de Deus, para que nem esta propriedade e
correspondência faltasse à divindade de Pedro, e a metáfora com que é chamado
Deus se ornasse também com os esmaltes de tão semelhante origem, foi
conveniente à glória de tão soberana participação e semelhança, que a deidade
do mesmo Pedro se fundasse nas raízes do seu intelectivo e que a intelecção com
que entendeu e conheceu a divindade de Cristo, fosse pelo mesmo modo o
constitutivo da sua. Já não havemos mister as autoridades dos Santos Padres,
porque temos a do Eterno Padre e a do mesmo Cristo: Quia caro et sanguis non revelavit tibi, sed Pater meus, qui in cælis
est. A intelecção de Pedro não teve nada de humano, o qual se compõe de
carne e sangue; mas elevada o seu intelectivo e o seu entendimento pela
revelação do Padre a uma altíssima participação e semelhança do divino, ali se
constituiu a última formalidade da sua essência, e se conseguiu, do modo que
era possível, o nome e dignidade de Deus: Qui
divinitatem ejus intelligunt, non homines sed Dii.
CAPÍTULO V
Levado S. Pedro à divindade pela
revelação do Padre, vejamo-lo segunda vez elevado ou confirmado nela pela
eleição do Filho: Et ego dico tibi, quia
tu es Petrus, et super hanc petram ædificabo ecclesiam meam. O imperador
Nerva, como refere Plínio, elegeu por seu sucessor a Trajano, e Trajano em
agradecimento colocou a Nerva entre os deuses, e pagou-lhe a sucessão com a
divindade. Muito melhor Pedro que Trajano, e muito melhor Cristo que Nerva.
Pedro disse a Cristo: Tu es Chistus
Filius Dei vivi: e Cristo disse a Pedro: Tu es Petrus, et super hanc petram ædificabo ecclesiam meam. Pedro
na sua confissão deu a divindade a Cristo, e Cristo na sua sucessão não só deu
a Pedro a sucessão, senão também a divindade. Assim foi e assim havia de ser;
porque nem a Pedro seria digno sucessão de Cristo, nem seria digna de Cristo a
providência de sua Igreja, se Pedro fora somente homem, e não fora juntamente
Deus.
Notificou Moisés ao povo de
Israel corno tinha Deus resoluto que de ali por diante governasse um anjo, e
diz o texto sagrado que, ouvida esta nova, «todo o povo se pôs a chorar em
pranto desfeito e todos se cobriam de luto»: populus luxit, et nullus (...) indutus est cultu suo. Quem
imaginaria de tal notícia tão encontrados efeitos? Antes parece que todos se
haviam de vestir de gala e dar muitas graças a Deus por tal governador. Que
melhor ;governador se podia desejar que um anjo? Um anjo que não come, nem
veste, nem granjeia; um anjo que não tem parentes, nem criados, nem apetites;
um anjo tão sábio e tão verdadeiro, que nem pode enganar, nem ser enganado,
benévolo, afável sempre do bom rosto; enfim, um anjo? Pois se todas as outras
nações se contentam ou sofrem ser governadas por homens «e os trazem sobre a
cabeça»: Imposuisti homines super capita
nostra; que razão teve o povo de Israel para receber com lágrimas e lutos a
nova de o haver de governar um anjo? – Muito grande razão. Porque até ali quem
governava aquele povo era Deus por si mesmo; e suceder a Deus um anjo, não era
favor, senão rigor; não era benefício, senão castigo; eram sinais da majestade
divina ofendida e irada e demonstrações de que antes queria desamparar e
destruir aquele povo, que conservá-lo. Esta foi a justa razão daquelas
lágrimas; e já temos concluído que, ainda que S. Pedro fora um anjo, não seria
digno sucessor de Cristo, nem ele deixaria dignamente provida a sua Igreja, e
ela por aquela eleição e sucessão, não se devia vestir de festa, como hoje a
vemos, senão chorar e cobrir-se de lutos. Vamos agora buscar a segunda
conseqüência, e no mesmo povo a acharemos.
Vendo o povo de Israel que Moisés
depois de subir ao monte, havia quarenta dias que tardava e não aparecia,
cansados de esperar os que agora cansam, vão-se ter com Arão, pedindo-lhe «que
lhes faça um deus» Fac nobis deos, qui
nos præsedant; Moysi enim huic viro, qui nos eduxit de terra Ægypti, ignoramus
quid acciderit; «porque não sabemos (dizem) o que é feito deste homem que
nos tirou do Egipto». Deste homem disseram, palavra em que manifestamente se
implicavam e desfaziam a sua mesma petição. Pois se Moisés é homem, huic viro, porque não pedem outro homem,
mas dizem que lhes faça um Deus em seu lugar?: Fac nobis deos. A petição foi ímpia; o intento não só bárbaro, mas
sacrílego e blasfemo: porém a conseqüência não se pode negar que foi muito bem
entendida, muito bem deduzida e muito bem fundada. Moisés, ainda que era homem,
era juntamente Deus: Constitui te Deum
Pharaonis: e para suceder dignamente a um homem Deus, é necessária
conseqüência que o sucessor seja também Deus. Parece-me que sem mais explicação
Estou declarado.
Cristo Senhor nosso era
verdadeiro homem e verdadeiro Deus, como acabava de confessar S. Pedro; e se
Pedro fosse somente homem e não fosse também Deus, nem. ele seria digno
sucessor de Cristo, nem Cristo corresponderia àquela altíssima confissão com
prêmio e recompensa igual. Esta é a força daquele et ego dico tibi: Tu dizes que eu sou Deus; pois eu te digo que tu
também o serás, sucedendo em meu lugar, e tendo as minhas vezes. St.° Ambrósio:
Quia tu mi dixisti:
– Tu es
Christus, Filius Dei vivi – ego dico
tibi non sermone casso, et nullum effectum habente (quia meum dixisse fecisse
est) quia tu es Petrus et super hanc Petram ædifìcabo ecclesian meam, et tibi dabo claves regni cælorum. Assim
pagou Cristo a Pedro uma divindade com outra, dando-lhe o poder de Deus no Céu,
porque ele o tinha confessado por Filho de Deus na Terra.
De aqui se entenderá a solução de
um grande reparo de St.° Agostinho, duas vezes repetido por ele; e é que a
mesma confissão que fez S. Pedro, fez também o Demônio. Ecce modo audistis in Evangelio quod ait Petrus: Tu es Cristhus, Filius
Dei vivi: legit; et invenietis dixisse dæmones: scimus quia sis Filius Dei.
O Demônio era o mais jurado inimigo de Cristo que havia, houve, nem haverá.
Pois porque confessa a Cristo; e pelas mesmas palavras com que S. Pedro o
confessou por Filho de Deus? Porque viu quanto lhe montou a Pedro esta
confissão, diz agudamente S. Crisóstomo. O intento do Demônio foi sempre ser
como Deus: Similis ero Altissimo».
«Pedro conseguiu ser como Deus pela confissão da divindade de Cristo; pois eu
também o quero confessar, para conseguir o que ele conseguiu». Enganou-se como
cego da ambição, mas inferia bem, se não fosse quem era; e com o seu
testemunho, posto que do Inferno, confirmou o mesmo que temos dito. De sorte
que aquele soberbíssimo espírito tão ambicioso da divindade, de tal maneira
reconheceu a de Pedro, que porque antigamente não pôde ser como Deus no Céu,
agora se contenta e procura ser como Pedro na Terra.
CAPÍTULO VI
Estabelecida tão amplamente a
divindade de S. Pedro, vejamos com igual admiração quão divina e endeusadamente
a pratica e usa dela. Quantos grandes há neste Mundo, que não sabem ser o que
são? Depois de lhes dar o que lhes deu, parece que se arrependeu a fortuna do
que lhes tinha dado. O rico é avarento, e não sabe usar da riqueza; o sábio é
imprudente, e não sabe usar da sabedoria; o valente é temerário, e não sabe
usar do valor; e até os que têm as coroas na cabeça e os cetros na mão, não têm
cabeça nem mãos para saber reinar. Não assim Pedro, em tudo igual a si mesmo.
Pondera S. Pedro Damião alta e
profundamente quanto pode admirar e apenas compreender o juízo humano aquela
imensa e inaudita comissão de Cristo a S. Pedro: Quodcumque ligaveris super terram, erit ligatum et in cælis; et
quodcumque solveris super terram, erit solutam et in cælis. E diz assim
elegantemente: Adest Petrus, et ad ejus arbitrium orbis universus solvitur et
ligatur. Et præcedit Petri sententia sententiam Redemptoris, quia non quod
Christus, hoc ligat Petrus, sed quod Petrus, hoc ligat Chryistus. Quid est quod
angelorum et hominum agminibus exclusis, solus Petrus in consortium dïvinæ
majestatis, et cum Domino residet præsidente? Consilium special e Petri et Dei,
ubi mortalem hominem Deo copulat et counit. Até aqui o eloquentíssimo
cardeal, depois de renunciar a púrpura. Eu o explico e comento: Aparece Pedro,
e ao arbítrio do seu império todo o Mundo é ou não é o que ele quer que seja ou
não seja: se liberta, todo livre; se ata, todo atado e preso. Deus está no Céu
e na Terra, quando manda o Céu e a Terra; Pedro, estando na Terra, manda a
Terra e mais o Céu. Se da Terra chovesse para cima, como descreve Lactâncio dos
antípodas, não seria grande maravilha? Pois isto é o que passa no governo de
Pedro; não descem os decretos do Céu para a Terra, mas sobem da Terra para o
Céu. Pedro é o que manda, e Deus o que se conforma. Conforma-se com o
entendimento, conforma-se com o poder. O que entende, o que quer, o que ordena
e manda Pedro, isso entende Deus, isso quer Deus, isso ordena e manda Deus. E
por que razão, quando Deus despacha no seu tribunal supremo, todos os espíritos
angélicos assistem em pé, e só Pedro preside assentado? __ Porque o tribunal de
Deus, e o tribunal de Pedro não são dois, senão um só e o mesmo.
O primeiro ato judicial que
exercitou S. Pedro, foi no caso de Ananias. Eram naquele tempo da primitiva
Igreja as fazendas e bens temporais dos cristãos comuns a todos: e contra esta
Lei ou voto, vendeu Ananias uma herdade e ocultou parte do preço; manda-o
chamar à sua presença S. Pedro; e que é o que fez e o que disse? O que só podia
dizer e fazer Deus. O que disse foi: Non
es mentitus hominibus, sed Deo:« sabe, Ananias, que no que encobriste não
mentiste aos homens, senão a Deus.» Vede se tratava como Deus quem assim
falava.. O que fez foi ainda mais divino, mais admirável: e de maior terror.
«Ouvindo aquelas palavras, caiu morto Ananias aos pés de Pedro»: Audiens autem hæc Ananias, expiravit.
Descrevendo Isaías a justiça de Cristo, diz que só com o espírito de sua boca
matará o ímpio: Et spiritu labiorum
suorum interficiet impium. E nisto mostrou o Profeta que o mesmo que havia
de ser o Redentor, era o Deus que tinha sido o Criador. O modo com que Deus,
quando criou o primeiro homem, lhe deu vida, foi inspirar-lhe no rosto com o
espírito de sua boca: Inspiravit in
faciem ejus spiraculum vitæ , et factus est homo in animam viventem. Pois
assim como só com o espírito de sua boca deu a primeira vida, assim com o mesmo
espírito, sem outro instrumento, diz Isaías que Cristo dará a morte ao ímpio.
Isto é, nem mais nem menos, o que fez S. Pedro. Nem mandou matar a Ananias, nem
lhe disse que morresse, e só com lhe tocar nos ouvidos o espírito de sua boca,
caiu morto. Mas tal execução como esta, posto que de poder tão divino, nunca a
fez Cristo. Como diz logo o Profeta que com o espírito de sua boca havia de
matar o ímpio? É profecia que ainda está por cumprir, e diz S. Paulo que se
cumprirá quando Cristo, no fim do Mundo, com o espírito só de sua boca matará o
Anticristo. Tunc revelabitur ille
iniquus, quem Dominus Jesus interficiet spiritu oris sui et destruet
illustratione adventus sui. Esta será a última execução de justiça de
Cristo e tal foi a primeira de Pedro.
Mas assim como Deus é muito mais
largo nas mercês sem comparação que nos rigores, assim mostrou também S. Pedro
esta divina condição no poder da sua divindade. Por uma vida que tirou, deu
infinitas vidas; e para maior maravilha com muito menor instrumento, Concorriam
os enfermos de toda a parte, punham-se em compridíssimas fileiras nas ruas por
onde Pedro havia de passar, e todos a quem tocava a sua sombra se levantavam
subitamente sãos. Não é muito menor instrumento a sombra, que o espírito da
boca? Pois esta só bastava para dar vida, e tantas vidas. Assim parece que se
competiram estes dois instrumentos em Pedro, como já se tinham competido em
Deus, ficando a sombra com infinita glória vencedora. Que fez Deus com o
espírito da boca? __ Deu o ser e a vida ao primeiro Adão: Inspiravit in faciem ejus spiraculum vitæ. E que fez o mesmo Deus
com a virtude da sua sombra? __ Deu o ser e a vida ao segundo Adão, que é
Cristo: Virtus Altissimi obumbrabit tibi,
ideoque et quod nascetur ex te sanctum, vocabitur Filius Dei. Ó Deus, ó
Pedro! Em tudo quis Deus que a divindade de Pedro fosse semelhante à sua.
CAPÍTULO VII
Só parece que lhe falta ainda uma
semelhança divina, que é a pessoal. Em Deus e na divina essência há três
pessoas. E foi S. Pedro também semelhante a alguma delas? Também, mas não a
alguma somente, senão a todas três, semelhante a Deus Padre, semelhante a Deus
Filho, semelhante a Deus Espírito Santo.
Quanto à semelhança de Deus
Padre, não pode ser maior. Quando Cristo, Senhor nosso, se fez batizar no
Jordão, abriram-se os Céus, e de lá se ouviu a voz do Eterno Padre, que disse: Hic est Filius meus dilectus, in quo mihi
complacui. «Este é o meu Filho muito amado, no qual muito me agradei.» No
monte da Transfiguração apareceu sobre ele uma nuvem resplandecente, de dentro
da qual se ouviu segunda vez a voz do mesmo Padre, tornando a declarar por
Filho seu a Cristo, não com outras, senão com as mesmas palavras. Isto fez e
disse o Eterno Padre; e não é isto o mesmo que fez S. Pedro, quando disse: Tu es Christus Filius Dei vivi? __ O
mesmo. De sorte que este pregão e esta declaração da divindade de seu Filho
quis o Eterno Padre que saísse da sua boca e da boca de Pedro. Por isso o mesmo
Padre foi o que lhes revelou o mistério a todos os outros Apóstolos escondidos.
E em que consistiu aqui o fino e o sublime deste tão singular favor? Consistiu em
que, assim como o Padre tinha dado a seu Filho a divindade por geração, assim
tomasse por companheiro a Pedro para ambos lha darem por manifestação. No
Apocalipse viu S.João a Cristo em figura de cordeiro, e logo ouviu que toda a
corte do Céu o aclamava a uma voz por «digno de receber a divindade»: Dignus est agnus, qui occisus est, accipere
virtutem et divinitatem. Pois o mesmo cordeiro Cristo não tinha recebido de
seu Pai a divindade, e o ser divino desde o princípio sem princípio da
eternidade? Sim, a tinha recebido por geração; mas agora a tornava a receber
por manifestação. Por geração foi concebido o Verbo no entendimento e conceito
do Padre; por manifestação era de novo concebido no entendimento e conceito de
todo o Mundo: Non in se, sed in mente et ore
hominum, dizem com S. Tomás todos os intérpretes. E neste segundo modo de
conceição e de geração, quis o Eterno Padre que fosse seu Filho tão Filho de
Pedro, como era seu: Hic est Filius meus
dilectus: Tu es Christus, Filius Dei vivi.
A semelhança da Pessoa de Deus
Filho também o mesmo Filho lha deu. E quando? Quando lhe deu o nome de pedra.
Cristo teve o nome de Pedra desde o tempo em que os filhos de Israel «bebiam
daquela pedra que os seguia», como declarou S. Paulo: Bibebant de consequente eos petra, petra autem erat Chistus. E como
Cristo era pedra e deu o nome de pedra a Pedro, como a semelhança e dignidade
do seu nome o admitiu em quanto segunda Pessoa da Santíssima Trindade ao
consórcio e companhia, isto é, a lhe ser companheiro nela. S. Leão Papa: In consortium individuæ trinitatis
assumptum id quod ipse erat, nominari voluit. E S. Máximo acrescenta que
não foi só favor e graça, senão merecimento: Recte onsortium meretur nominis, qui consortium meretur et operis.
Disse operis, e pudera com a mesma e
maior propriedade dizer oneris; porque, quando Cristo o fez pedra fundamental
da sua Igreja, todo o peso dela lhe carregou sobre os ombros. Isto é o que pesa
aquele super hanc petram. Outro peso
foi o que o mesmo Cristo tomou sobre si, quando se sujeitou a pagar o tributo
de César; mas também neste igualou a Pedro consigo, e quis que fossem
companheiros e meeiros na paga do mesmo tributo: Da eis pro me, et te.
Nota aqui Abulense e os outros
expositores literais, que S. Pedro não tinha obrigação de pagar aquele tributo,
porque não era cabeça da família. E porque outros sentem o contrário, eu o tiro
com evidência do texto; porque os cobradores do mesmo tributo só disseram a S.
Pedro: Magister vester non solvit
didrachma. Pois se S. Pedro não tinha obrigação de pagar o tributo, nem a
ele lho pediam, porque lhe manda o Senhor que pague? Porque ele o pagava; e
quis honrar a Pedro com o igualar com sua própria Pessoa. O honoris excellentia! __ exclama S. Crisóstomo. Desta mesma
igualdade tão familiar e repetida se pode também admitir sem escrúpulo um
pensamento com que Lirano interpreta o de S. Pedro, quando disse no Tabor: Faciamus hic tria tabernacula, tibi
unum. Moysi unum, et Eliæ unum. E porque não o tratou também Pedro de
tabernáculo para si e para os dois companheiros? «Porque supôs que os dois
morariam com Moisés e Elias, e ele com Cristo»: Non loquitur de tabernaculo faciendo pro se et sociis suis, quia
volebat cum Chisto esse in suo
tabernaculo, et socii sui cum aliis duobus. Vede se pode imaginar maior e
mais familiar igualdade entre Pedro e a segunda Pessoa da Trindade, se hão de
nomear ambos com o mesmo nome, se hão de pagar ambos o mesmo tributo, se hão de
morar ambos no mesmo tabernáculo!
Com o Espírito Santo, que é a
terceira Pessoa, não temos menos sublimada ou endeusada a divindade de S.
Pedro. Tão iguais são ou tão parecidas, a
processão do Espírito Santo e promoção de Pedro, a personalidade de um e
a dignidade ou majestade do outro, que ambas manam das mesmas fontes e ambas
trazem o ser, em Pedro, das mesmas causas, e no Espírito Santo, que não pode
ter causa, dos mesmos princípios. Como procede o Espírito Santo? A Fé o diz e a
Igreja o canta: Qui ex Patre, Filioque
procedit: « Procede o Espírito Santo do Padre e procede do Filho». O Padre
é um princípio parcial; o Filho outro princípio também parcial; e destes dois
princípios parciais se compõem o princípio total, do qual, produzido ou
espirado, procede o Espírito Santo. E a promoção de S. Pedro à dignidade ou
divindade que temos visto, como procedeu? Com a mesma verdade podemos, havemos
de dizer, e com nenhuma se pode negar, que procedeu do mesmo Padre e do mesmo
Filho: do Padre, revelando: Quia Pater,
revelavit tibi: e do Filho, dizendo: Et
ego dico tibi: do Padre, que foi o primeiro que o elevou; do Filho, que foi
o segundo que o declarou; e de cada um como princípio ou causa parcial; e de
ambos como causa total que o constituiu ou constituíram na dignidade. Não pára
aqui a semelhança. Em Pedro concorreram para a dignidade dois atos, um do
entendimento, outro da vontade e do amor: o do entendimento, quando perguntados
todos, ele só disse: Tu, es Chistus
Filius Dei vivi; o da vontade e do amor, quando perguntado só: Diligis me plus his? ele respondeu: Tu scis Domine qua amo te. Vede agora como
estes dois atos foram uma admirável representação do ato de entendimento, que
precede no Padre quando gera o Filho, e do ato de vontade e amor entre o Padre
e o Filho, pelo qual procede o Espírito Santo.
É grave questão entre os teólogos
se no ato do entendimento, com que o Padre gera o Filho, se conhece e
compreende também o Espírito Santo? E se resolve comumente que sim. Mas esta
resolução tem uma grande réplica, porque naquela prioridade, que não é de
tempo, nem de natureza, senão de origem, ainda não há nem se pode considerar
vontade, e por conseqüência, nem Espírito Santo, que procede por ato da mesma
vontade. Como se pode logo compreender o Espírito Santo no ato precedente do
entendimento, que é antes de ele ser? Os que respondem mais fácil e inteligivelmente
dizem, como refere Soares: Patrem in eo
signo non agnoscere Spiritum Sanctum, ut productum sed ut producendum, nec ut
existentem, sed ut futurum. «Que o Eterno Padre, quando gera o Filho, não
conhece o Espírito Santo como Pessoa já produzida, senão que se há de produzir,
nem como já existente, senão futura». De sorte que a personalidade do Espírito
Santo, no ato do entendimento do Padre, é ainda futura, e não existente. E essa
existência quando a há de ter? Quando ao ato do entendimento se seguir a
vontade, e pela mesma vontade o ato do amor.
Comparai-me agora a dignidade de
Pedro com a personalidade do Espírito Santo. O ato do entendimento em Pedro foi
quando disse: Tu es Christus Filius Dei
vivi: e assim com a personalidade do Espírito Santo no ato do entendimento
só era futura e não existente, assim também a dignidade de Pedro, não
existente, senão futura: Super hanc
petram ædificabo ecclesiam meam, et tibi dabo claves regni cælorum. Não diz
ædifico, senão ædificabo, nem diz do, senão diabo, tudo de futuro. E a existência
deste futuro quando há de ser? Como a do Espírito Santo: depois do ato da
vontade e do amor recíproco: Diligis me
plus his? Tu scis Domine quia amo te. Depois deste ato de amor recíproco, e
não uma, senão três vezes repetido, então lhe deu e conferiu o Senhor a
investidura da dignidade que lhe tinha prometido: Pasce oves meas, pasce agnos meos.
Provido assim o governo da
Igreja, se partiu Cristo para o Céu, donde prometeu mais que viria «o Espírito
Santo mandado pelo Padre em seu nome, não do Padre, senão do mesmo Cristo: Paraclitus autem quem mittet Pater in nomine
meo. E que quer dizer in nomine meo? – Quer dizer – em meu lugar e com as minhas vezes. Eutímio: In nomine meo, id est, ut hic me referat, et meis fungatur vicibus.
Eusébio Emisseno: Mea vice et meo nomine magnus consolator et doctor
sapientissimus dabitur vobis. Aqui tornou Cristo a igualar a Pedro com o
Espírito Santo, como o tinha igualado consigo, dando as suas vezes e fazendo
seu vigário a terceira Pessoa da Trindade e juntamente a Pedro. Pedro, vigário
de Cristo deixado na Terra: o Espírito Santo, vigário de Cristo mandado do Céu;
Pedro, vigário visível: o Espírito
Santo, vigário invisível; o Espírito Santo, verdadeiro vigário e verdadeiro
Deus: Pedro verdadeiro vigário e verdadeiramente como Deus: Admire-se a igualdade deste poder e a majestade soberana
de Pedro no primeiro seu decreto, e
pasmem os que ouvirem o proêmio do primeiro concílio: Visum est Spiritui Sancto et nobis. Pedro foi o que congregou o
concílio; Pedro o que falou em primeiro lugar,
calando todos, como diz S. Lucas; Pedro a quem depois de falar seguiram
os demais Apóstolos; e Pedro que em nome
do Espírito Santo e seu assinou e mandou
publicar o decreto. Quando S. João, no princípio do seu Apocalypse,
escreveu às igrejas da Ásia, as
epístolas eram de: Joannes septem
ecclesiis, quæ sunt in Asia; mas
quem no fim as assinava cada um por si, era o Espírito Santo: Qui habet aurem, audiat quid spiritus dicat ecclesiis.
Porém quando Pedro decreta, não só assina os
decretos o Espírito Santo, senão também Pedro: Visum est Spiritui Sancto, et nobis.
CAPÍTULO VIII
Já parece que deve estar
satisfeita a nossa metáfora e a divindade de S.
Pedro com ser semelhante a Deus Padre, semelhante a Deus Filho,
semelhante a Deus Espírito Santo, e por
conseqüência a toda a Santíssima Trindade, que foi a soberania universal da assunção de S. Pedro,
como acima disse S. Leão Papa e eu
deixei passar sem ponderação, porque este era o seu próprio lugar, e a
chave mais que dourada com que se havia
de fechar este discurso: In consortium
individuæ Trinitatis assumptum.
Agora pergunto se tem mais para onde subir a nossa metáfora, e a semelhança da divindade de S.
Pedro com Deus? Respondo que a
semelhança, não, mas a divindade, sim. Porque subiu a divindade de Pedro
(não digo a tal alteza, porque a não
pode haver mais alta que Deus) mas a tal
singularidade de divina, que em Deus a não há, nem pode haver
semelhante. Em Deus, e na Santíssima
Trindade não pode haver outra pessoa., e S. Pedro foi a quarta pessoa da Santíssima Trindade. Vede
como, e não tenhais medo de alguma
heresia.
Quando S. Pedro acabou de fazer a
sua confissão, disse-lhe o mesmo Cristo
assim exaltado: Beatus es, Simon
Barjona: Bem-aventurado és, Simão Barjona. Era este o apelido humilde de Pedro, e que
cheirava ainda ao breu da barca; e têm para
si alguns expositores, quis o Senhor lembrar-lhe nesta ocasião a baixeza
do seu nascimento, para que a dignidade,
a que logo o havia de levantar, o não
desvanecesse. Mas eu não me posso persuadir que, quando S. Pedro acabava
de honrar a Cristo por seu Pai, com o
nome de Filho de Deus vivo, o Senhor lhe
respondesse com o que tanto lhe tocava no vivo, como ouvir em público
a indignidade do seu. E o que em tal
caso não faria nenhum homem de bem, não
havemos de crer que o fizesse o bem dos homens. Qual foi logo a razão
daquele nome ou sobrenome, e em resposta
do que Pedro tinha dito? Barjona na língua
hebréia ou siríaca que naquele tempo era a vulgar, significa filius columbæ, filho da pomba; e
dizem comumente os Santos Padres que aludiu o Senhor à pomba, em cuja figura desceu o Espírito Santo no batismo
sobre o mesmo Cristo. Como se dissera o
divino Mestre com resposta muito digna da sua grandeza:__ «Tu, Pedro, dizes que eu sou Filho do Eterno Padre? Pois
eu te digo que tu és filho do Espírito
Santo». Assim o diz S. Jerônimo, Santo Hilário, Eusébio Emisseno, a Glossa,
e com palavras mais expressas que todos
o venerável Beda: Justa laude
confessorem suum Dominus remunerat, cum
eum Sancti Spiritus filium esse attestatur, a quo ipse filius Dei asseveratur.
Suposto, pois, que S. Pedro é
filho do Espírito Santo, já parece que não está
muito longe de ser a quarta Pessoa da Santíssima Trindade. Porque, se o
Verbo, por ser Filho do Padre, é a
segunda pessoa, Pedro, por ser filho do Espírito Santo, porque não será a quarta? Bem se segue a
conseqüência, e assim havia de ser, se
fosse possível. Mas porque era impossível na realidade, foi filho do
Espírito Santo e quarta pessoa da
Trindade por semelhança e não na realidade, que esse é o meu assunto e a propriedade da minha metáfora. As
Pessoas divinas só se podem multiplicar
ou por entendimento ou por vontade: por entendimento, já estava infinitamente multiplicada a segunda Pessoa
no Filho; por vontade, já estava
infinitamente multiplicada a terceira Pessoa no Espírito Santo; donde se
segue que só as Pessoas do Padre e do
Filho são fecundas e a do Espírito Santo não. Mas não se segue de aqui que seja menor a perfeição
do Espírito Santo que a do Padre e do
Filho, porque tanta perfeição é não poder o impossível, como poder o
possível. Para que entendam os todo-poderosos
do Mundo, que se devem contentar com poder o
que podem, e não querer mais. E porque a Pessoa do Espírito Santo não
era fecunda ab æterno, por isso se lhe supriu a fecundidade em tempo na pessoa
de Pedro, não quanto à realidade, senão
quanto à semelhança: Barjona, filius columbæ; Barjona, filius Spiritus Sancti.
Vamos ao princípio do Mundo, e
acharemos esta fecundidade do Espírito
Santo admiravelmente retratada. Onde a Vulgata diz: Spiritus Domini ferebatur super
aquasfecundabat, lê o original hebreu: Spiritus Domini fæcundabat aquas; que «o Espírito Santo fecundava as águas». E por que
razão comunicava o Espírito Santo a sua
fecundidade mais ao elemento da água que a nenhum dos outros? Não desceu do Céu no dia de Pentecostes «em forma de
ar»?: Tanquam advenientis Spiritus vehementis? Não apareceu sobre os Apóstolos
«em forma de fogo»?: Dispertitæ linguæ tanquam ignis? E depois de descer
e aparecer; não «encheu a terra toda»?:
Spiritus Domini replevit orbem terrarum? Por que razão pois as
influências da sua fecundidade as
comunica só ao elemento da água, que naquela mesma ocasião se chamou mar?: Congregationes aquarum appellavit maria? Porque do mar lhe
havia de nascer ao Espírito Santo aquele
filho, que já de então estava prevendo que com
o nome de Simão Barjona andava navegando e remando no mar de Tiberíades:
Mal cuidei eu que achasse autor ao
pensamento; mas assim o tinha escrito há muitos
séculos entre os Santos Padres um de tanta autoridade, como sabedoria: Congregentur
aquæ, diz Anastácio Sinaita, Petrus
enim jam crucem, tanquam remum intingit
in mari mundano. Fecundou o Espírito Santo as águas do mar, porque no mar havia Pedro de meter primeiro o remo e
como pescador, e depois, trocado o remo
com o lenho da cruz, havia de navegar e sujeitar com ela, como sucessor de Cristo; o Oceano do Mundo. Assim imitou o
Espírito Santo a fecundidade da primeira
e segunda Pessoa, assim foi filho da mesma fecundidade S. Pedro, Filius Spiritus Sancti, e assim, do modo que era
possível, acresceu à Santíssima Trindade uma
quarta pessoa por semelhança, e não na realidade.
E porque não faltasse a esta
quarta pessoa a semelhança divina das outras
três, assim como o Padre e o Filho e o Espírito Santo entendem com um
só entendimento e querem com uma só
vontade, e obram com um só poder, também à
pessoa de Pedro, como se fosse a quarta, lhe não faltou esta divina
propriedade, por isso chamada indivídua. Assim concedem S. Leão e S.
Máximo à dignidade ou divindade de Pedro
a prerrogativa, que eles chamam consortium
Trinitatis; e assim a declara,
comentando os mesmos santos, o doutíssimo Daza, da nossa Companhia, sujeito em quem a antecipada morte roubou à
Teologia e à Escritura um dos mais
sólidos e excelentes intérpretes. As suas palavras são estas: Nempe suas (Pedro) impertiendo
vices, et quæ Dei sunt communicando: ut eadem sit ipsi cum Trinitate mens ad ea quæ definit, eadem voluntas ad
illa, quæ jubet, eadem potentia ad ea
quæ facit. Forte e elegantemente. De maneira que, «enquanto Pedro
tem as vezes de Cristo, no Padre, no
Filho, no Espírito Santo, em Pedro há um só e o mesmo entendimento, uma só e a mesma vontade, uma
só e a mesma potência. Um só e o mesmo
entendimento, porque o que entende Deus, entende Pedro nas matérias que define; uma só e a mesma vontade, porque o
que quer Deus, quer Pedro nos cânones
que estabelece; uma só e a mesma potência, porque o que pode Deus pode Pedro nas maravilhas que obra». Tudo
isto quer dizer em Pedro e só em Pedro
aquele vos autem: Vos non homines, sed Dii.
CAPÍTULO IX
Tão alta (muito Reverendos
Senhores) tão alta, tão sublime e tão
verdadeiramente divina é a suprema dignidade, debaixo de cujo nome e
proteção se uniu, se conserva e floresce
esta tão venerável como religiosa Congregação dos Clérigos de S. Pedro! E quando considero a
todos os congregados dela segregados,
como diz S. Paulo, e distintos dos outros homens pela impressão do
caráter sacerdotal, não sei o que mais
devo venerar neles, se o que Cristo disse a S. Pedro, se o que S. Pedro disse a Cristo.
E senão, perguntemos de cada um
dos sacerdotes da Lei da Graça o que o
mesmo Senhor perguntou de si: Quem
dicunt homines? Quem dizem os homens?
Porventura dizem Alli Joannem Baptistam? Pouco sabem, se isso dizem. O
grande serafim da Terra, S. Francisco,
dizia, como refere S. Boaventura, que, se
encontrasse em uma rua a S. João Baptista, e a um pobre sacerdote o
menos autorizado e respeitado nos olhos
do Mundo, primeiro havia de fazer reverência ao
sacerdote que ao mesmo Baptista. S. Martinho (aquele que, sendo
ainda catecúmeno e soldado, com a metade
da capa vestiu a Cristo) estando à mesa com
o Imperador Máximo, quando o copeiro-mor lhe levou a taça, disse o
Imperador que a desse a Martinho,
esperando recebê-la da sua mão; e que fez o animoso e justo prelado, que bem conhecia a sua dignidade? Sem
cumprimento algum ao imperador, bebeu
ele, e logo deu a taça a um presbítero que o acompanhava, para que bebesse, antepondo a coroa aberta de um
simples sacerdote à cerrada do mesmo
Imperador. Isto é o que respondem sem injúria do Céu nem da Terra, aqueles dois oráculos da Lei da Graça,
Francisco e Martinho.
Passemos aos da Lei da Natureza e
da Lei Escrita: Quem dicunt homines? Os da Lei da Natureza o mais que podem dizer,
é ser o sacerdote cristão como
Melquisedec: Sacerdos Dei Altissimi, o qual «oferecia a Deus pão e
vinho»: Panem et vinum offerens. Mas isto é comparar a
sombra com a luz e a semelhança com a
verdade. O pão que oferecia Melquisedec, era assim como o que se colhe
na eira, e o vinho assim como o que se
espreme no lagar; porém o pão e vinho que os nossos sacerdotes oferecem, posto que debaixo dos
mesmos acidentes, é tão transubstanciado
no corpo do Cristo e vinho transubstanciado no seu próprio sangue: frutos que não conheceu a natureza, e
palavra que foi necessário à Teologia
inventá-la de novo. Os da Lei Escrita dirão que o nosso sacerdócio é como o de Arão, e cuidarão que o louvam muito; mas
eu quando menos quisera que olhassem
para a pureza e limpeza dos nossos altares, dos quais já disse o mesmo Deus a um dos profetas daquele tempo,
dando-lhe em rosto com a perfeição e
asseio dos nossos sacrifícios: In
omni loco offertur nomini meo ablatio munda. Os sacerdotes da Lei Velha com as mãos tintas em
sangue bruto, quando as vítimas eram as
mais mimosas, sacrificavam bezerros e cordeiros: e os nossos com as mãos puras, como diz S. Paulo, sacrificam a
Deus o diviníssimo holocausto de seu
próprio filho, tão infinito, tão imenso, tão onipotente e tão Deus como
ele.
Isto é o que dicunt homines. E vos autem
seja dos anjos e respondam eles. Que
dirão os anjos? Dirão que os mais altos querubins e serafins do Empíreo,
se foram capazes de inveja, nenhuma
dignidade invejariam senão a do homem
sacerdote. No sacrossanto sacrifício da missa, o sacerdote é o
sacrificante e os anjos os ministros que
o assistem, e talvez o servem, como os que nós chamamos ajudantes, e quando estes se divertem, suprem
os seus descuidos. Assim sucedeu a S.
Gregório Papa, celebrando na igreja de Santa Maria Maior em dia de Páscoa. Quando disse: Pax Domini sit semper vobiscum, descuidou-se o ajudante de responder, e responderam os anjos que
assistiam: Et cum Spiritu tuo. De
aqui teve origem um uso ou rito notável
da igreja romana, e é que, quando o sumo pontífice na missa de dia de páscoa diz as mesmas
palavras: Pax Domini sit semper vobiscum,
o coro se cala e não responde,
conservando-se neste silêncio a memória do que
supriram as vozes dos anjos em dia semelhante.
Mas nesta mesma vigilância tão
reverente, tão devota e tão obsequiosa, com que os espíritos angélicos assistem
ao sacerdote celebrante; haverá algum da suprema jerarquia que se atreva a
tocar a hóstia que ele consagra nas suas mãos, e tantas vezes torna a tomar
nelas no mesmo sacrifício? Por nenhum modo. Não se estendem a tanto os privilégios dos anjos.
Quando Deus mandou de comer a Daniel no
lago dos leões, o Profeta levava o pão e o Anjo levava o Profeta pelos
cabelos. Pois não seria mais fácil que o
pão o levasse o anjo? __ Mais fácil, sim, mas não lhe era lícito. O pão em profício era figura do
que se havia de consagrar nos nossos
altares. O Profeta, como diz S. Jerônimo, era da tribo sacerdotal de
Levi: e tocar aquele sagrado pão só é
lícito aos sacerdotes, e de nenhum modo aos anjos. Mas vejo que os mesmos sacerdotes me estão
argüindo com um texto em contrário, e o
mais sagrado cânon de todos os da Igreja. Depois da consagração do corpo
e sangue santíssimo, todos fazemos a
Deus esta oração: Jube hæc perferri per
manus sancti angeli tui in sublime
altare tuun. Logo, se o nosso sacrifício se há de levar ao Céu per
manus sancti angeli tui, bem podem as mãos dos anjos fazer o que fazem as nossas. Absit (responde Teófilo, o mais diligente escrutador das realidades
deste mistério). Absit, ut precatio illa intelligatur de victimæ nostræ reali
apportatione, sed intelligenda est
metaphorice, ad cum modum quo angelus ait se obtulisse orationem Tobiæ Deo. De sorte que aquela oração
«não se há de nem pode entender de que
os anjos realmente levem o nosso sacrifício ao Céu, senão metaforicamente,
assim como o anjo de Tobias diz que
ofereceu a Deus as suas orações». E a razão é
manifesta; porque se o anjo levasse a nossa hóstia ao Céu, ficaria
imperfeito o sacrifício, que não só
consiste na consagração e oblação, senão também na consunção: e então perfeitamente se consuma,
quando a vítima consagrada morre, ou
deixa de existir, que é quando pela indisposição das espécies deixa o corpo
de Cristo de estar debaixo delas. Assim
que isto é o que diz, e só pode dizer a
confissão dos anjos.
CAPÍTULO X
Ouvidos pois os homens e os
anjos, quem resta para ouvir, senão unicamente
o mesmo Deus? Ouçamos, pois, muito Reverendos Padres, a Deus, e
veremos como diz desta venerável congregação,
o que S. Jerônimo disse dos Apóstolos, que
já então eram a Congregação de S. Pedro: Vos autem nom homines, sed Dii.
Deuses lhes chamou S. Jerônimo, e por mais autêntica boca que é a de
David, lhe dá Deus o mesmo nome. E o
mesmo Deus, cujo dizer é fazer, afirma que ele é o que o disse: Ego dixi, Dii estis, et filii excelsi omnes. Deuses chama , e
filhos de Deus aos sacerdotes, e não em
sentido alegórico, senão literal, porque literalmente fala o profeta dos ministros da Igreja,
segundo a frase daquele tempo: Deus
stetit in synagoga Deorum: e Cristo,
melhor intérprete, literalmente o alega no capítulo X de S.João, que todo é dos pastores e suas
ovelhas, que são os eclesiásticos com o
poder e poderes do sacerdócio. Suposto pois que Deus lhes chama Deuses e
filhos de Deus, Dii estis, et filii excelsi, com razão perguntará alguma
curiosidade douta, em qual das duas
partes desta proposição disse Deus mais: se quando chama aos sacerdotes Deuses, ou quando lhes chama
filhos de Deus? Eu digo que quando lhes
chama filhos de Deus; porque na primeira parte alude ao poder da
jurisdição e na segunda ao poder da
ordem. Quando Cristo, Senhor nosso, disse ao paralítico: Remittuntur
tibi peccata tua, murmuraram todos da proposição, dizendo: Quis potest
dimittere peccata, nisi solus Deus? Negavam mal este poder a Cristo,
mas supunham bem em dizer que só Deus
pode perdoar pecados. E este é o poder dos
sacerdotes enquanto Deuses: Quorum
remiseritis peccata, remittuntur eis. E digo enquanto Deuses, porque o poder de perdoar
pecados não só é próprio e unicamente de
Deus, senão o maior e o máximo em que ele manifesta e ostenta toda a grandeza do seu poder: Deus qui omnipotentiam tuam parcendo
maxime, et miserando manifestas. Mas
com este poder de Deus merecer o nome e significação de máximo, o de Filho de Deus ainda significa
mais. E porquê? __ porque mais é no
Filho de Deus o poder de consagrar seu corpo, que em Deus o de perdoar
pecados. Ouvi a razão.
O perdoar pecados consiste
formalmente em Deus ceder do jus e direito que
sua justiça tem para os castigar, que é ato superior da sua
misericórdia, parcendo maxime, et miserando: e como neste ato
vence a misericórdia divina a justiça divina,
também Deus se vence a si mesmo, que é «a maior vitória, a maior façanha
do seu poder»: Omnipotentiam tuam maxime manifestas. Porém a do Filho de Deus em
se consagrar ainda é maior, porque mais
é poder-se fazer a si mesmo, que poder-se
vencer; e isto é o que pode, e o que fez o Filho de Deus, sumo e eterno
sacerdote, quando se consagrou no
sacramento, porque realmente se tornou a fazer e reproduzir a si mesmo. Mas não parou aqui sua
onipotência e liberalidade, senão que
este mesmo poder de o reproduzirem e fazerem a ele, comunicou aos sacerdotes, quando lhes disse: Hoc facite in meam commemorationem:
«Isto mesmo que eu fiz, fazei vós».
Expressamente S. Germano, venerado e alegado neste mesmo ponto pelos Padres gregos: Ipse dixit: hoc est corpus meum, hic est
sanguis meus; ipse et apostolis jussit,
et per illos universæ ecclesiæ hoc facere: hoc enim (ait) facite in meam commemorationem. Non sane id facere jussisset, nisi vim, hoc est, potestatem inducturus fuisset, ut id
facere liceret. Ó
poder quase incompreensível, e que só se
pode admirar com o nome de estupendíssimo! Nos seis dias da criação, criou Deus com seis
palavras todo este Mundo, e o sacerdote
com quatro palavras faz mais todos os dias, que se criara mil mundos.
Declaremos bem este poder mal
entendido, para que todos o entendam e pasmem.
O lume da Igreja, St. Agostinho, exclama assim: O veneranda sacerdotum dignitas!
in quorum manibus Dei Filius velut in utero virginis incarnatur!: «Ó
dignidade veneranda dos sacerdotes, em
cujas mãos o Filho de Deus, como no ventre sacratíssimo da Virgem Maria, torna outra vez
a encarnar!» Em que consistiu a encarnação
do Verbo Eterno? Consistiu na produção do corpo e alma de Cristo e na produção da união hipostática, com que a
sagrada humanidade se uniu à subsistência
do Verbo. E tudo isto faz o sacerdote com as palavras da consagração, produzindo outra vez, ou reproduzindo todo o
mesmo Cristo. Na mesma conformidade
falam S. João Crisóstomo, S. Gregório Papa, S. Pedro Damião, e o antiquíssimo Teodoro Ancirano, famoso no
Concílio Efesino. Mas porque cuidam alguns
que semelhantes questões são mais debatidas e examinadas pelos teólogos modernos, quero também alegar as palavras de
dois bem conhecidos na nossa idade. O P.
Teófilo Rainaudo, tão perseguidor de opiniões, ou devoções pouco Sólidas, como se vê nos seus eruditíssimos
livros contra Anomala pietatis, diz o que se segue: Sacerdos
Christum sub accidentibus ponit, esse sacramentale illi conferendo per veram Christi productionem
substantialem. E mais a baixo:
Christus non producitur absque unione ad
verbum, quia non est purus homo, sed suppositum ejus est Persona Filii: itaque in sacrificio
Deus in manibus sacerdotum incarnatur. E noutro lugar: Quim etiam sacerdotis potestas extenditur ad efficiendam unionem hypostaticam, et transubstantionem panis, et
vini. Não romanceio as palavras, porque
são expressamente tudo o que tenho dito. E o P. Eusébio Neriemberg, varão de tanto espírito, erudição e letras, cujos
livros todos trazem nas mãos, fazendo a mesma
comparação, que eu já toquei, entre a criação do Mundo e consagração do corpo de Cristo, discorre e infere desta
maneira: Mundum, et ea quæ in mundo sunt,
produxit potentia Patris: sacerdotis
vero potentia producit Filium Dei in sacramentum, et sacrificium, quo admirabilior potestas est
sacerdotis transubstantiatione Filium Dei, quam creatione res perituras Dei Patris
producentis. Quer dizer: «A potência do Eterno Padre produziu o Mundo, e tudo o que há
no mundo; a potência do sacerdote produz
o Filho de Deus em sacramento e sacrifício; donde se segue que o poder do sacerdote, na transubstanciação do
Filho de Deus, é muito mais admirável que
a potência do Eterno Padre na criação de todas as cousas do Mundo, que hão de acabar com ele.»
CAPÍTULO XI
Esta é, muito Reverendos Padres,
a dignidade ou divindade do vos autem,
participada de seu divino protector S.
Pedro a esta sua Congregação, tão digna de ser sua. E que se segue daqui, ou qual é a
obrigação dos congregados? Se eu tivera
as cãs que me faltam, alguma palavra lhes pudera dizer tão importante à veneração alheia, como à decência própria. Mas
porque eu, posto que tão indignamente,
tenho o mesmo caráter do sacerdócio, a mim e a todos os sacerdotes só apontarei uma advertência da
Escritura Sagrada, que todos devemos ouvir
temendo e tremendo. A advertência é que correspondamos de tal maneira às obrigações desta altíssima dignidade, que se
não arrependa Deus de nô-la ter dado.
Falando David do sacerdócio de
Cristo, diz: Juravit Dominus, et non
pænitebit eum, tu es sacerdos in æternum:
«Jurou Deus, e não se arrependerá» de dar o eterno sacerdócio a seu Filho. Reparemos muito
naquele et non pænitebit eum. Pois de dar o sacerdócio a seu Filho por natureza
impecável, e tão santo e tão Deus como
ele, se podia Deus arrepender?! __ Sim. Porque esse sacerdócio não só o havia Cristo de conservar em si, mas também o
havia de comunicar, como comunicou aos
homens: e aqui estava o perigo. Por isso o jurou, para que não se arrependesse: Juravit Dominus, et nom pænitebit eum. Ó que desgraça tão horrenda e tremenda, se Deus se arrependesse! E maior
desgraça ainda, se eu e algum outro tão
indigno como eu desse motivos bastantes a este arrependimento! Neste caso (que Deus não permita) aquele caráter que é
tão imortal como a mesma alma, se iria
perpetuar com ela em outra eternidade, que não é a do Céu e da Glória. Quam mihi,
etc.
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão de São Pedro"
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão de São Pedro"
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