VAE VICTORIBUS!
A Maria Lucila
— Vamos lá com Deus! fazia ele
animando-se.
Um clarão súbito de relâmpago
deslumbrou-o. Diante dele surgiu de repente a paisagem, e de repente
desapareceu, feericamente iluminada. Deitou então a correr, aterrado; mas tão
forte veio em seguida o trovão, que ele instintivamente parou e levou ao céu as
mãos aflitas, num gesto de quem implora misericórdia. Naquela iminência de
perigo as próprias árvores lhe pareciam imobilizadas pelo terror, à beira do caminho.
E através dos castanhais, o surdo rumor do vento era como a voz implorativa da
natureza, unindo-se à voz dele num longo coro de suplicas...
O José Gaio ia transido. Mas pior
ficou quando de repente, sem saber donde, alguém chamou por ele, lugubremente:
— Ó José Gaio!
O homem parou. E como perto dele
apenas enxergasse os braços da cruz negra, que era o sinal de ali terem matado
o José Tendeiro, há anos, apertou o passo e tomou por um atalho, direito à
ponte. Mas então a mesma voz tornou-lhe mais de perto:
— Ó José Gaio!
Quis fugir, mas o medo parece que
lhe tolhia as pernas. Nisto veio um relâmpago que iluminou a mil cores a
paisagem. Ele cerrou os olhos com força, nervosamente, ferido por aquele
deslumbramento que por milagre o não prostrou. E quando o trovão bramiu,
rudemente, uma imobilidade de estátua prendia o camponês à terra. Foi então que
veio de novo aquela voz, como um prolongamento do trovão:
— Ó José Gaio!
Ia avançar para ganhar a ponte.
Parecia-lhe que, uma vez transposta, galgaria a ladeira num instante. Mas
involuntariamente, cedendo a uma força violentíssima, entrou de retroceder,
cambaleando. Aquele rugir da água que logo abaixo da ponte fazia cachão, rugir
violento mas monótono, infundiu-lhe um grande pavor. Teve medo e deixou-se
retroceder... Senão quando, estacou ouvindo a mesma voz:
— Ó José Gaio!
E logo atrás da voz, com um
rastro, um intensíssimo relâmpago cor de sangue. Viu tudo vermelho, afogueado,
tudo menos aquela cruz preta de longos braços, sempre abertos e sempre firmes,
que pareciam desafiar a tempestade...
Aquela serenidade da cruz
estonteou-o. Dir-se-ia que esse nobre exemplo de altivez vinha agora humilhar
mais a sua fraqueza. Desviou os olhos e cerrou violentamente as pálpebras. Mas
em vão! que fora tão vivo o deslumbramento, e tanto lhe ferira o cérebro, que
num fundo cor de sangue, como num transparente de mágica, ele via nitidamente desenhada,
sempre firme e sempre altiva, a cruz que o estonteara. Então deram-lhe ímpetos
de fugir; uma onda de coragem parecia dilatar-lhe o peito impelindo-o.
Precisamente nesse momento, a voz tornou a chamar:
— Ó José Gaio!
Sentiu-se alquebrado, transido
até ao mais íntimo do seu ser. Um longo desfalecimento invadiu-o todo,
quebrando-lhe a última fibra de energia, como se quebra um vime seco. Aquela
paralisia atacou-lhe também o cérebro: não formava um só raciocínio nem
elaborava sequer uma ideia, a mais simples. E foi preciso um grande trovão para
todo ele tremer, abalado como a própria terra. Depois, outro relâmpago fez
reviver nele a vida do espírito; sentiu um grande pavor àquele aspecto súbito
do campo que diante dele se perdia de vista, afogueado como se estivesse todo
em chamas. Aqui, um pinhal, uma ermida além, para toda a banda Casais, surgiam
de repente, nítidos nos seus contornos, definidos maravilhosamente nas suas
atitudes. As grandes árvores despidas, sobretudo, tinham um ar fantástico,
nessa pureza nítida de recorte que traçava na luz as sinuosidades mais
delicadas dos troncos e ramarias. No meio deste cenário de mágica, a um tempo
majestoso e tétrico, o triste camponês sentia-se apavorado, jactitante e quase
inerte, ali chumbado à terra, hirto como a cruz que tinha diante. E nem um só
gesto implorativo, e nem uma só palavra de súplica lhe saía dos lábios crispados.
Porque uma vez que tentara uma palavra, o mais formidável trovão cortara-lha na
primeira sílaba. Depois, aquela voz não o largava, imperturbável e monótona:
— Ó José Gaio!
E ele, não respondendo nem
falando, pensava esconjurá-la, exorcismá-la como se fosse a voz de um duende. E
para esta evocação do sobrenatural muito concorria, como os senhores
compreendem, esse aspecto sereno da cruz negra, inabalável sob a asa agitada da
procela.
Nisto veio a chuva, em grossas
gotas a princípio, em cordas de água depois. Ela varejava-o inclemente,
impelida agora por um vento sul furioso. Não deu um passo para procurar um
abrigo, não se mexeu sequer. Como todo ele ardia em febre, aquele dilúvio era
quase um celeste benefício para a sua cabeça num vulcão. Mas quando os
relâmpagos vieram, aquela reverberação da luz nas cordas de água fez-lhe um deslumbramento
mais forte. E caiu inerte sobre o caminho lamacento por onde a água escorria
impetuosa, ao mesmo tempo que a voz do costume, sobrelevando o trovão, repetia
do lado da cruz:
— Ó José Gaio!
Cobarde, sujo como um sapo,
encharcado até aos ossos, como caiu assim ficou — de borco. Depois, quando
abriu os olhos, na larga poça onde quase tinha a cara, via refletir-se a cruz,
a cada relâmpago. Ela lá estava no seu posto, altiva, serena, intemerata, reta
como um exemplo... E pois que parara o dilúvio, dos seus braços abertos as
gotas da chuva caíam, vermelhas à luz, como grossas lágrimas de sangue...
Cobarde! Nenhuma comparação pode
dar ideia do estado de prostração desse miserável, reduzido pelo terror a uma
quase inação de besta morta. Dir-se-ia um imundo trapo ali caído, abandonado
ali na lama ignóbil de um caminho, à espera da enxurrada que o levasse... Era
abjeto!... E enquanto esse animal assim jazia, atordoado, como boi que uma
malhoada prostrou, ao fundo do horizonte, para sul, o encastelamento fantástico
das grandes nuvens plúmbeas, listradas de negro e roxo, metralhando com fúria o
largo espaço, aos quatro ventos, era tudo quanto o nosso espírito pode conceber
de mais grandioso e de mais sublime, épico e trágico a um tempo, soberbo,
majestoso, imponente.
Mas a voz sempre a ouvia, por
cima do vento e por cima dos trovões, aquela voz:
— Ó José Gaio!
Assim largo tempo, horas talvez.
O torpor do frio agravava-lhe o outro, o do medo. Parecia colado à lama, preso
ao caminho como se fosse uma rocha. No entanto, a espaços, tinha a compreensão
clara da sua posição e do seu estado. E então uma raiva súbita galvanizava-o:
queria erguer-se, fugir, desaparecer — erguer-se como aquela cruz, fugir como aquele
vento, desaparecer como esses relâmpagos, que nem deixam rastro na treva...
Tais rebates de coragem eram,
porém, efêmeros, impotentes para lhe provocarem um movimento. Aquele diabo
tinha de morrer ali, miseravelmente, ignobilmente, como um cão a que houvessem
amputado as quatro pernas. E esta ideia, que o instinto de viver lhe sugeriu, apavorou-o
ainda mais que a própria tempestade. Morrer ali! Mas que dúvida, se ninguém lhe
vinha acudir, se não passava por ali vivalma, a tais desoras! Era horrível! No
meio de um caminho, numa noite medonha de tempestade, ao pé daquela cruz negra
de longos braços hirtos — morrer ali!... Eram então já por ele as lágrimas que
essa cruz parecia chorar?...
Estava nisto, quando num silêncio
de acaso ouviu passos à distância. Vinha gente. Quem quer que era tinha de
passar por ali, de tropeçar nele, talvez. Subitamente, sentiu-se reviver.
Estava salvo. Em breve estaria de pé, — de pé como essa cruz que um relâmpago
muito vivo acabava de lhe mostrar... No entanto, a voz é que se não importava:
— Ó José Gaio!
Mas os passos vinham-se chegando;
e então, como se receasse que o calcassem, reuniu num supremo esforço as
máximas energias, e rebolou-se para um lado, até ficar detrás dumas urzes.
Coisa notável foi, senhores, que esse miserável em vez de gritar calou-se, e
todo se recolheu numa absoluta quietação, com medo que o surpreendessem... E quem
quer que era passou, cabeça nua, diante da cruz gotejante... Aos ouvidos do
miserável chegou um como murmúrio de prece... Não ia só a rezar; ia também
chorando, aquele homem...
...Quem seria?
Um clarão branco de relâmpago fez
irromper da treva, lívido como um espectro, o filho do José Tendeiro...
O desgraçado ia a chorar pelo
pai, ali assassinado havia anos, por uma noite como aquela...
Passou, ladeira abaixo, na direção
da velha ponte. Só aquele cobarde não se mexeu, prostrado sobre as urzes, quase
arrumado à cruz.
E assim esteve horas e horas, até
que, noite velha, cessou a tempestade, perdida num murmúrio longínquo, lá na
extrema fímbria do horizonte... Quando a lua rompeu, lívida num céu de anil,
nem a grande sombra da cruz, incidindo sobre aquele corpo, como um beijo ou uma
bênção, logrou reanimá-lo. Tinha morrido, o estafermo!
Ao outro dia, está claro, foram
lá os da justiça. O velho abade foi depois, buscar o corpo. Os médicos nem lhe
tinham mexido.
— Sangue pelos olhos, sangue pela
boca, sangue pelo nariz, uma congestão muito linda — dissera um a rir.
— E muito mal empregada — fizera
o outro do lado, indiferente.
Mas quando os da maca disseram a
um tempo — Upa! — esse bom velho do abade caiu de joelhos diante da cruz,
numa convulsão agudíssima de choro. E elevando ao céu as mãos mirradas — ao céu
que um divino azul fazia diáfano — ele exclamou, soluçando:
— Senhor! Senhor! a vossa justiça
é tremenda, como é infinita a vossa misericórdia!
...Segredo de confissão... — mas
o abade bem sabia quem tinha ali matado o José Tendeiro...
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Nota:
Trindade Coelho: "Os Meus Amores" (1891)
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