COMÉDIA DA PROVÍNCIA
A Alberto Braga
I
PRELÚDIOS DE FESTA
Esse ano, a festa da senhora das
Dores devia ser coisa de estalo. A começar pelo juiz, todos os da mesa eram de
respeito — abonados e decididos. Tanto assim, que o fogo preso, que afinal era
o melhor da festa, vinha lá de Chaves, longe que nem seiscentos diabos. Mas era
obra de jeito, acabou-se! Tinha-se dito ao homem que trouxesse coisa que representasse
uma cegonha. O homem respondera que sim, e dava mesmo a entender que traria
mais animalejos, uma bicharada, talvez um macaco, se tivesse tempo de o acabar.
— Homem de uma cana! resumiu o
juiz quando acabou de ler a carta. E correu a espalhar a notícia, orgulhoso de
que «no seu ano» a “coisa” fosse de arromba! Depois, era um despique. No ano
atrás, o José da Loja, que tinha sido o juiz, gabara-se do seu fogo, só porque
vinha lá uma peça que era um castelo a dar tiros, assim: Fff! Pum!
— Ora deixa estar que eu te
arranjo... murmurou com os seus botões o António Fagote. E sorria satisfeito,
de se lembrar que na noite do arraial todo o povo o havia de aclamar, dar-lhe
vivas pelo fogo que apresentara. Espalhou-se a novidade. Uma hora depois, na
vila, ninguém falava noutra coisa.
— Então você já sabe?
— Já sei. A cegonha.
— A cegonha e o mais: um cavalo,
um bezerro...
— O que eu quero ver é o camelo.
Feio bicho, já viu?
— Pintado. No Monteverde se me
não engano. Logo adiante do “Valente Rei Arauto Fiel”.
Enganava-se.
O escrivão da Câmara, que tinha
laracha, encontrou-se na rua com o Alves aferidor.
— Até que enfim, amigo Alves. Até
que enfim vou ter o gosto de o ver
arder.
O outro não percebeu. «Que se
explicasse...»
— Um urso, no arraial queima-se
um urso.
— Então ardemos ambos, redarguiu
embezerrado o Alves. — Também se lá queima um burro.
Às duas por três, o António
Fagote viu a casa cheia de gente. Quem não ia, mandava recado: todos queriam
saber se vinha o animalejo da sua predileção.
O homem começava a azedar-se.
Chegou mesmo a mandar fechar a porta, por dentro.
— Põe a tranca, se for preciso.
Mas então era cá da rua:
— Ó Sr. António!
E na porta as pancadas ferviam:
— Truz! truz! truz! Sr. António!
— Éna! c'um raio de diabos! — fazia
lá de dentro o homem, furioso.
— O senhor faz favor? É só uma
palavrinha.
À janela assomava então o António
Fagote, com os óculos na ponta do nariz e a carta do foguetório na mão.
— O camelo? perguntava zangado. —
O urso?! Camelos me parecem vocês, ouviram? O que o homem diz é isto.
E lia a carta, rematando:
— Uma cegonha, outros animalejos,
quem sabe lá o que serão, e talvez o macaco, se houver tempo de o acabar. E
agora, sabem que mais?... Tirava os óculos e ia-se embora, capaz de os trincar
a todos. — Irra!
E lá de si para si pensava que
era melhor ter guardado segredo. Não fosse ele burro... Mesmo porque cada um
começou logo a inventar animais, e todos é que não podiam vir. Claro! E não
vindo todos, aí tínhamos nós descontentes. E havendo descontentes, quem lucrava
era o José da Loja.
— Temos o caldo entornado!
pensava aflito o Fagote, amedrontado com aquele espectro do José da Loja, o seu
rival! De mais a mais, já lhe tinha chegado aos ouvidos que o outro agoirava
mal do negócio...
— Farófias! tinha dito o José da
Loja. Farófias!
— Pois se mo diz na cara,
arrebento-o! vociferava o Fagote, quando tal soube.
E arrebentava, que o Fagote era
homem para isso, tinha pulso. Desde rapaz que uma lenda de valentia se fizera
na sua vida: contavam-se proezas, desde uma vez que varrera uma feira, por
causa de eleições. Depois, bom olho para a caçadeira. Duma ocasião, que foi
preciso dar montaria aos ladrões, portou-se como um leão, foi ele que deu voz
de preso ao chefe da quadrilha. E como foi que lha deu? A frase ficou lendária:
— Como-te a alma se te mexes!
— E o outro não se mexeu, que ele
comia-lhe a alma! Comentavam convictos.
Como esta, muitas outras. E foi
talvez por estas proezas que a sua figura adquiriu para a velhice o jeito
desempenado que tinha. Estava com 60 anos e a sua atitude viril impressionava
ainda agora. Não era nutrido, mas era sanguíneo, tez morena, cara rapada, olhos
pequenos, uma largura de ombros que era o principal indício de força. Pescoço
curto. Mesmo a brincar, quando cerrava os punhos e arremetia com força, conhecia-se-lhe
a rijeza dos músculos naquele movimento sacudido.
— Safa! que isso aí é de ferro!
diziam os rapazes. Duma cana, hein?
Mas bom homem, de uma grande
franqueza de modos, simples e afável. Para se sair era preciso picá-lo. E uma
vez, quando era juiz ordinário, uma testemunha tanto o picou em audiência, que
ele desceu lá da cadeira, foi-se a ela e quebrou-lhe a cara. Por isso falava
sério quando prometia arrebentar o José da Loja. A mulher interveio
pacificadora:
«Que não desse ouvidos a ditos.
Deixasse o homem, que não era tão mau como o pintavam.»
— Ó mulher! cala a caixa e não me
defendas esse velhaco! redarguiu o Fagote. Do que ele é capaz sei eu.
Mas nesta ocasião, de todas as
velhacarias do José da Loja, só lhe lembrava uma: ter sido juiz o ano atrás!
Isto parecia-lhe com efeito uma
velhacaria, feita a ele que era juiz este ano.
— Pois tu que pensas? dizia ele
para a mulher. Quem me meteu a festa em casa foi ele. Ele é que se lembrou de
me escolher, como quem diz: «entrego-te a vara, sempre quero ver como te
arranjas...»
— Nome do Padre, do Filho... A
mulher benzia-se «das ideias do seu António.»
— Sejam ideias, que não sejam!
teimou o Fagote. Isto foi tal e qual, assim me Deus salve!
— Mas quem to disse, homem? Quem
foi que to disse?
— Quem mo disse? Olha! E
mostrou-lhe o dedo mínimo da mão direita. — Foi este mindinho. Não falha.
E então desabafou: «que não
pensasse o José da Loja, que o havia de levar à parede. Agora levava! A festa
há de se fazer, e festa de arromba; “nanja” como a dele que só levava seis
anjos, e não sei quantos andores, acho que meia dúzia!»
— Ó mulher, então é para que
saibas onde chega o brio de um homem! Caramba! Sendo preciso, ouves? sendo
preciso até vendia a camisa do corpo. Nem trinta sanfonas como o sanfona do
José da Loja! E espipava olhos de cólera para a mulher que remendava uns sacos,
compungida de ver assim o seu António.
E pôs-se então a renovar ordens,
recomendações que a mulher já estava farta de ouvir. «Mas com tempo é que as
coisas se pensavam, não era ao atar das sangrias!»
— Leitões se os cá não houver, manda-se
o Miguel à cata deles por esses povos à roda. Querem-se de 7 semanas, três pelo
menos.
A mulher contraveio: — «dois
seriam bastantes...»
— Mau que aí principiamos nós! — E
pôs-se a assobiar e a rufar com o pé no soalho, arreliado. — Três é que hão de
ser. Não quero cá dois, porque dois eram os do “outro”, o ano passado.
A esta razão, a mulher calou-se.
O António Fagote gostou do silêncio da mulher, que o lisonjeava nos seus
despeitos contra o “outro”.
— Agora não fanfas tu... insistiu
ele, risonho. É assim mesmo que eu gosto. Sinal é que tens vergonha. A “outra”
também não é mais que a ti.
A “outra” era a mulher do José da
Loja, está visto.
— Nem mais, nem tanto, emendou a
Luísa Fagote, abespinhada.
— Isso mesmo! abundou o juiz da
festa. Não me lembrava agora que antes de casarem...
— E olha que depois de casada...
insinuou a Sra. Luísa, de venta no ar, enfiando a agulha. Cala-te boca.
Façamos de conta que a boca se
calou, com efeito. Que não se calou. Mas neste particular, o resto do diálogo convém
que se omita, mesmo porque afinal nem eu nem os senhores queremos mal à mulher
do José da Loja. Há de perdoar-me o António Fagote, mas nisto não lhe faço a vontade.
O pudor acima de tudo! E ademais ele bem sabe que eu sou conhecido da mulher.
Adiante. Basta que lhes diga que por uma associação lógica de ideias a conversa
veio parar em vitelas...
— É preciso vermos como há de ser
isso da vitela, disse o António Fagote. Sem vitela é que se não faz nada. Uma
perna sempre se gasta.
Combinaram falar com tempo ao
Manuel Cortador, segurar esse negócio. De mais a mais sabia-se que o pregador
dava o cavaco por um bom pedaço de vitela assada.
— O pregador é que arrasta aí
muita gente, observou a Sra. Luísa. Para um bocado de sentimento não há como
ele. Quando foi das missões, o que ele dizia daquele púlpito abaixo! É quanto
se pode!
— A mim o devem, se cá vem! — disse
orgulhoso o Fagote. Que o homem não queria vir, desculpava-se com a saúde: que
tinha de ir a umas caldas, e 14 léguas a cavalo por estas canículas eram de
acabar com ele.
— Isso desaba aí o poder do
mundo! Em se sabendo que é o missionário...
Estavam nisto, quando bateram à
porta. O Fagote foi ver à janela.
— Bem, muito obrigado. E a
senhora mestra? Estimo, estimo.
Era a criada da mestra régia,
foram abrir.
— A senhor mestra manda muitos
recadinhos, saber como está a Sra. Luísa, e este bilhetinho para o Sr. Antônio.
Entraram todos na saleta. Como
era já tarde, o António Fagote foi acender uma luz.
«Que conversassem, enquanto ele
via se tinha resposta.»
— Muito calor, começou a Sra. Luísa.
— E então a casa da Sra. mestra
que é mesmo um forno, disse por demais a criada.
E antes que a conversa pegasse,
avisou a Sra. Luísa, ao ouvido, de que lhe queria uma palavrinha.
Foram para uma varanda que havia
nas traseiras. A tarde descaía, numa serenidade calma. Sentaram-se uma junto da
outra, muito familiares.
— Está-se aqui bem! exclamou
consolada a Sra. Luísa.
— Está. E então bonitas vistas.
Mas o que eu queria dizer era pedir-lhe um favor, disse atrapalhada a criada.
— Se estiver na minha mão...
A outra começou: «A Sra. Luísa estava ao fato do que se dizia dela com
o criado do inglês. Decerto estava ao fato. Mas era mentira. Jurava-lhe pelo
que havia de mais sagrado que era redonda mentira.» — Estamos para casar! é o
que estamos! «Ele já mandara vir os papéis lá da terra, não podiam tardar». — Está
claro que eu tenho afeição ao rapaz...
— Ele esteve aí doente uma
temporada, interveio a Sra. Luísa, para dizer
alguma coisa.
— Esteve. Umas quartãs que o iam
arrebanhando. Mas é aí que eu quero chegar.
— Que experimente o limão azedo,
aconselhou a Sra. Luísa. É milagroso nas
quartãs. Não se aflija, que isso não há de ser nada.—E dispunha-se a consolar a
rapariga, a dizer-lhe tudo o que sabia de bom para matar quartãs, pensando que
era o que ela queria, afinal.
— Não senhora. O rapaz está
melhor. Caso é que não recaia. Mas é por via disso que eu lhe quero pedir um
favor.
Chegou para ela o banco de
cortiça e confidenciou:
— Já o andam a desinquietar para
ir com os mais furtar a bandeira, qualquer noite. E ele vai, prometeu que sim.
Mas veja, naquele estado! inda não há nada que saiu da cama.
— Pelos modos, os rapazes vão
este ano longe pelo pau, disse com pompa a Sra. Luísa. — Muito longe!
— Ouvi que à Ribeira Velha, ao
lameiro do Canelas. E logo com quem eles se vão meter, o Canelas! Se desconfia,
vai-se para lá de clavina e faz alguma desgraça. Mais ele, que é atrevido!
Cautelosa, a mulher do juiz
redarguiu que lá onde eles iam pelo pau é que ela não sabia.
— A outra noite é que para aí
estiveram a combinar, o meu António mais os mordomos. Não ouvi.
— Pois é lá! exclamou a criada.
Mas o que eu queria, Sra. Luísa, é que o
seu marido me não deixasse ir o rapaz na malta, — suplicou aflita a rapariga.
— Lá isso, esteja descansada, não
vai! prometeu com grande autoridade a Sra. Luísa. — Digo-lhe eu que não vai. E se não
quer mais nada...
— Era só isto, muito agradecida à
senhora.
Nesse momento entrava o Fagote,
em mangas de camisa, os óculos para a testa.
— Ora pois então aqui vai a
resposta. Má letra, a Sra. mestra que desculpe. Mas enfim que leia como puder.
— Então muita maçada com a festa?
inquiriu solícita a rapariga.
— Muita. Faz lá ideia? Maçada e
despesa. Olhe que se faz despesa. Todos os dias são precisas coisas, mais isto,
mais aquilo. Aí está que já hoje mandei pedir para o Porto uma palheta para o
clarinete do Alves.
— Chh! fez admirada a rapariga.
— Pois é verdade. Fora o mais!
fora o mais! Nicas! E depois de uma pausa: — Só com o que se gasta no jantar, e
é verdade que há muita coisa de casa, mas só com o que se gasta no jantar, a
bem dizer que se fazia uma horta, além no prado.
— Muita gente... disse a
rapariga.
— Muita! e depois de certa
aquela... À mesa talvez vinte e quatro pessoas...
A rapariga benzeu-se!
— Vinte e quatro, p'ra mais que
não p'ra menos, insistiu o António Fagote. — Olhe: o pregador...
— Isso dizem que é coisa asseada!
interrompeu a rapariga.
— É. Não o há melhor.
Missionário... — explicou o juiz. Pois o pregador, um; com mais quatro padres,
cinco; com quatro músicos, nove; o compadre, os pequenos, dois, doze.
— A comadre não vem! que pena!
fez do lado a Sra. Luísa.
— Não. O compadre e os pequenos
já disse. Doze. O Morgado da Fonte e o António Capador, catorze. O Teles, é
verdade, Teles escrivão, quinze. (“Pausa”). Com mais alguém que venha, vinte e
quatro. Pode-se contar com mais de vinte e quatro pessoas à mesa. — E a rir-se:
Mas há de sobrar muita coisa, graças a Deus... E depois os pobres?
— Isso então é uma praga!
exclamou a Sra. Luísa. Até parece que vêm do chão assim... E colocava em pinha
os dedos todos das mãos ambas. Assim...
Mas fazia-se tarde, a rapariga
despediu-se. — «Adeusinho! o que havia de estimar é que tudo corresse como
desejavam.» — E se for preciso qualquer coisa... ofereceu-se. As minhas fracas
posses...
— Obrigada. Não faltarão
ocasiões. Muitos recadinhos à senhora mestra...
— E que hei de estimar que o mano
chegue de saúde, concluiu o António Fagote.
E então explicou à mulher:
«Aquele bilhete da mestra era a mandar-lhe perguntar se sempre era certo vir o
macaco de fogo».
— Diz que o irmão, o brasileiro,
assim que souber que há macaco de fogo no arraial, não tem mão em si que não
venha. E Deus o queira, porque o ponho ao pálio. Como três e dois serem cinco.
A senhora Luísa quis saber a
resposta que lhe mandara.
— Disse-lhe que sim. Pois?! O que
eu quero cá é o brasileiro. Sempre é homem que sabe dar o merecimento às
coisas... Mas o diabo agora é o macaco! ponderou muito apreensivo. Está para aí
meio mundo à espera do macaco...
A senhora Luísa quedou-se
pensativa, absorta no seu receio de que o bicho não viesse.
— Tate! fez o António Fagote,
batendo uma palmada rija na testa. — Dá cá daí a minha véstia. Manda-se uma
«parte» ao homem.
— Também pode ser, concordou a
senhora Luísa. Mas hoje é que não, aquilo já está fechado, o fio.
— Vai amanhã. «Agradeço favores.
Traga macaco sem falta». Isto. Talvez acrescente: «Não se olha a dinheiro». Mas
é que acrescento, por via das dúvidas.
Então, a senhora Luísa
confidenciou quase ao ouvido do homem:
— Ouves? já se não pode ir ao
lameiro do Canelas pelo pau.
— Hã? qual pau?
— O da bandeira. Todo o mundo já
o sabe.
Ele riu-se.
— Todo o mundo, hein? Melhor! Oh!
oh! todo o mundo!...
E como ela ficasse estupefata.
— Nunca ouviste dizer que se põe
o ramo numa porta e que se vende o vinho noutra?
— Ah!...
— Mas são verdes. Pois aí é que
vai a história, e cantarolou, satisfeito:
O ladrão do negro melro
Onde foi fazer o ninho
*****
Mas o melhor do caso foi no dia
seguinte, quando logo de manhãzinha o António Fagote sentiu bater à porta, de
rijo.
— Vai lá ver o que será, ó Luísa!
— disse da cama o Fagote sobressaltado.
Não tardou nada que o José Manco
lhe entrasse de rompante pelo quarto.
— Vista-se, homem! Ande daí
depressa! Vista-se.
— Há novidade? perguntou logo o
Fagote, sobressaltado.
— Vista-se! com dez milhões de
diabos! Insistiu o outro.
— Hom'essa! fez espantado o
Fagote. Alguém à morte?
— Pior do que isso! resumiu o
José Manco.
— Pior do que isso, então não
sei...
— Não tardará que o saiba.
Avie-se, que eu cá o espero na rua.
O António Fagote vestiu-se à toa,
aparvalhado. Foi já na rua que acabou de enfiar a jaqueta. As correias dos
sapatos iam de rastos, não levava chapéu.
— Pronto! cá estou!
— Venha comigo, avie-se. Abotoe
as calças, se faz favor.
E rodaram rua acima.
— Diabo! mas então...? ia
perguntando o Fagote.
— Aguarde, que já vai saber. Não
tarda.
De quatro escanchadas foram dar
ao adro da igreja.
— Roubaram Nosso Pai, aposto?!
— Pior! redarguiu o outro. Pior!
Alto aí! Ora arregale-me esses olhos e veja vossemecê isto, esta porcaria!
E tragicamente, o José Manco
apontou para meia folha de papel, pregada na torre com miolo de pão centeio
mastigado. Era um pasquim! Vários desenhos de animais, sobressaindo um burro de
grandes orelhas, aos coices. E no fundo, em grandes caracteres, isto: — “Farófia”!
Por um pouco, António Fagote, de
mãos atrás das costas, amarasmou-se, com os olhos fitos no papel.
E quando o outro pensava que ele
ia romper desaustinadamente numa escamação, aos lábios do António Fagote
aflorou apenas um sorriso.
— Hum! resmungou. Bem sei...
— Não tem que saber, — fez o
outro.
— O patife do José da Loja...
— Pois está visto.
— Bem, levará quatro lambadas,
epilogou com grande sossego o Fagote. — Arranque lá isso, e venha você daí, se
quer ver.
O José Manco não queria ver,
fazia ideia. Mas opinou prudentemente que era melhor botar o patife ao
desprezo.
— Pois sim, disse o António Fagote,
dobrando em quatro o papel e metendo-o na algibeira de dentro. — Pois sim!
Mas o outro que o conhecia,
insistiu no pedido, com certos argumentos arrancados do código penal. «Que não
fosse agora pagar por bom semelhante estafermo. Como mordomo, também era com
ele a ofensa, com ele José Manco. Mas fazia de conta... Como o outro que diz,
vozes de burro não chegam ao céu».
— Bem, levará só uma lambada,
atendendo a que mais ninguém viu isto, disse num grande ar de condescendência o
Fagote. — E você vá lá regar a horta.
Foi-se dali direito à casa do
José da Loja. Estava ainda fechada. Pôs-se à coca, de longe, com a ira muito
exulcerada pela arrelia daquela demora.
— Grande cão! grande cão!
monologava.
Até que enfim reparou que a porta
se abria. Era o rendeiro em pessoa, de casaco de lona e chinelos de trança,
muito fresco. Não deu pelo António Fagote senão quando se viu ao pé dele, cara
a cara entre o balcão e a porta.
— Ó Sr. José.
— Dirá.
— Venho aqui saber de um caso.
Tirou do bolso o papel, desdobrou-o,
devagar, e depois de lho pôr ao pé da cara:
— Foi o Sr. José que fez isto?
O outro olhou-o, atônito.
— Sim! se foi o Sr. José que fez
isto?
— Nada, eu não senhor.
— Jura pela boa sorte dos seus
filhos?
Aqui, o tendeiro entupiu,
desconfiado.
— Jura pela boa sorte dos seus
filhos? repetiu mais de rijo o Fagote.
O José da Loja, moita! Então o
juiz explicou-lhe:
— É porque se jura, muito bem. Se
não jura o caso é outro.
— É outro, que outro?! — disse
arrogante o José da Loja, num ímpeto, barriga panda sob o casacório de lona.
— Isto! — E foi-lhe uma bofetada
para a cara. — E muito caladinho, que eu também não digo nada. Agora o papel,
olhe! Fê-lo em pedaços, e atirou-lhe com eles à cara aparvalhada.
Saiu dali e foi “matar o bicho”,
tranquilamente, como quem vem de cumprir uma obra de misericórdia.
*****
Na véspera da festa, um sábado às
10 horas da manhã, o fogueteiro passava enfim num deslado da vila direito à
capela da Senhora das Dores. Largou um foguete, que estrondeou no ar,
galhardamente.
— O fogueteiro! chegou o
fogueteiro!
Por toda a vila passou um longo frêmito
de entusiasmo quando se ouviu o foguete. Desabituados, os cães ladravam, em
correria doida pelas ruas. O rapazio levantou-se em algazarra, e correu ao
encontro do fogueteiro, a admirá-lo, a oferecer-se. Na labuta viva das casas
renovavam-se ordens já dadas. Aquele foguete era a bem dizer o primeiro ruído
da festa, não havia tempo a perder. De casa dos mordomos saíam esbaforidas as
criadas, com ordem de se informarem do que precisaria «o Sr. fogueteiro».
Alguns mais previdentes mandaram almoço, e que dissesse o que queria para o
jantar.
Solenemente, o juiz da festa
atravessou quase a correr a vila, perguntando a todo o mundo se o que estoirara
tinha sido efectivamente um foguete.
— Foi foguete! pois que dúvida!
diziam-lhe radiantes. Prometia, sim senhor! prometia! Se fossem todos assim...
Caramba! que estoiro! Pum!
— Pra que saibam! clamava o
António Fagote. E então isto? e punha-se a girar de volta com o braço — o que é
fogo do chão? — Mas tinha-se visto em calças pardas para que o homem não
faltasse. Complicações! Pelos modos tinham-no convidado para outra festa, com
mais bagalhoça, está claro. O caso tinha estado sério!
Mentia.
— Hein? mas não o enganavam?
— Qual! era o fogueteiro sem
tirar nem pôr. Lá ia ele a atravessar as eiras, com duas bestas carregadas.
Caramba! duas cargas de fogo!
O juiz botou a fugir. Quando
passou pela porta do abade, gritou cá da rua:
— Senhor abade! ó senhor abade!
— Que é lá?
— Chegue à janela, faz favor?
— Mas está muito sol, entre você,
se quer.
— Só duas palavras:
O abade, um rapaz novo, assomou à
janela.
— Que é?
— Chegou o homem!
— O homem! que homem?
— O fogueteiro, quem há de ser?
— Ah, sim, disse o abade a
rir-se, velhaco. E você vai ter com ele?
— De cara.
— Faz-me então um favor?
— Dirá.
— Dê-lhe recados meus.
E retirou-se da janela, a rir,
enquanto o António Fagote prosseguia no seu caminho, esbaforido, espalhafatoso,
perguntando a toda a gente se aquilo tinha sido o fogueteiro.
— Grande homem! com seiscentos
diabos!
Quando chegou ao adro estava tudo
cheio de rapazes, em redor dos dois machos carregados. O Fagote cuidou morrer
de contente. Foi-se ao fogueteiro, com fúria.
— Esses ossos! e abraçou-o
arrebatado, enternecido, chamando-lhe «seu amigo, seu grande amigo».
— Rapazes! gritou ele então. E
tirou o chapéu da cabeça, muito solene. — Viva o senhor fogueteiro!
— Viva!
...Isso não juro, porque não
reparei. Mas estou em dizer aos senhores que o António Fagote — chorou!...
II
TIPOS DA TERRA
Desembocaram num largo. Era o
ponto mais central da terra, — «a praça.» — Aqui e ali, ao acaso, algumas
árvores enfezadas, quase tudo olmos brancos, vegetavam a medo, com os troncos
protegidos por velhas grades de madeira, desmanteladas. Era um terreiro vasto,
muito chato, com casas em volta, — o que na vila havia de melhor em
construções. Ficava ao meio o pelourinho, exótico, mutilado, de uma pedra
grosseira e muito negra. Era uma alta coluna de oito faces, com o seu anel de ferro
ao meio, e uma argola pendente do anel. A coluna, que se eleva sobre um
pedestal de três degraus, em hexágono, terminava ao alto num grande “X” de
pedra deitado horizontalmente. Um espigão de ferro, de três gumes como os
floretes de esgrima, irrompia hostilmente do meio do “X”, perfurando o espaço.
Em volta, a casaria era triste, sem estilo, sem gosto, sem cal. Algumas “pedras
de armas” em velhas paredes decrépitas, desequilibradas, hidrópicas, atestavam
aristocracias remotas, agora de todo extintas. Ao alto, dominando a negrura chamuscada
dos telhados, o velho castelo, romano de origem, fazia tristeza com as suas
ameias derrocadas, e as grossas paredes em ruínas. Ao lado do castelo erguia-se
destacadamente a velha torre do relógio, de uma arquitectura primitiva. Tinham
dado onze horas, mas eram apenas as sete: aquele — «estafermo» — é que não
andava nunca direito. De dia ninguém o entendia, com o seu ponteiro de ferro
girando num mostrador sem letras, de uma pedra azulada. De noite fartava-se de
badalar, alvoroçando a povoação como se fosse a fogo, ora atrasado ora
adiantado, dando meia-noite quando eram quatro da tarde, e meio-dia mal
despontava o sol.
Eram as sete. Àquela hora é que
os — «figuros» — da terra, quase tudo empregados públicos, vinham para o largo,
à fresca. Alguns passeavam, — seu fraque, sua bengala de cana com castão,
chapelinho à banda, sapato branco um ou outro. Nas escadas do pelourinho,
sentados, outros do mesmo feitio cavaqueavam, — coletes desabotoados, perna cruzada, chapéu para a nuca, às três
pancadas. Um de pêra comprida, no degrau superior, contava facécias. Os outros
riam alarvemente, chamavam-lhe intrujão. Algumas — «madamas» — pelas janelas em
volta, nostálgicas, anafadas, de claro. À porta do estanco, em cima, havia outra
roda, — uns de pé, outros sentados em caixas, alguns montando cadeiras de
pinho. Era a—“roda mais forte”, — quase tudo maiores burocratas: — o Melo da
Administração, o Antunes da Câmara, o Escrivão de Fazenda, o Rodrigues do Real
de Água. E outros. À porta, perfilado e muito cerimonioso, o dono do estanco,
alto, esguio, flexível, com a sua cara rapada e o seu chinó castanho, eriçado e
velho. Era de maneiras feminis, uma falinha melíflua, cantante, viva, muito
desempenado quando andava, saracoteando-se todo, em biquinhos de pés como se
fosse levantar voo. Chamavam-lhe Ernestinho. Não se podia falar diante dele num
rato morto, numa carocha. Aquilo «fazia-lhe nervoso», enojava-o, ficava-se a
cuspinhar meia hora, dizendo constantemente:
— Ai Jesus! ai Jesus! Caticha!
Nossa Senhora do Carmo! Nem sei como não lanço fora.»
E se riam, ele exasperava-se: não
compreendia como pudessem falar em tais coisas... De resto, bom sujeito,
finório para o seu negócio, — um poucochinho beato, — diziam-lhe.
— Meu proveito. Não que eu não
quero a minha alma nas penas do inferno, a arder. Leiam a “Missão Abreviada”,
leiam esse rico livro.
E as palavras saíam-lhe a correr,
espremidas nos seus lábios delgados, um poucochinho sibiladas nos “ss”.
— Cigarros, Ernestinho, um vintém
deles. Querem-se dos de Lima, desses fortes.
Declarou que também havia dos
«especiais.» Algum senhor queria? Tinham chegado três maços, pra ver. Oito por
um vintém.
— Pois guarde-os! — disseram
alguns, horrorizados com a ideia de dar um vintém por oito cigarros. — Guarde-os!
«O senhor engenheiro, quando
vinha à vila, perguntava-lhe sempre por eles. Dos de Lima nem o cheiro, não
gostava.»
— Olha o figurão! — disseram a
rir. Por esse mundo fora sempre há muito idiota! forte cavalgadura!
O Ernestinho veio com os
cigarros, em feixe nas pontinhas dos dedos. À porta, antes de os entregar
contou-os de novo. Doze. Estavam certos.
— O senhor Ernesto, se faz favor,
ponha isto lá no caderno, ao pé dos outros.
Ernestinho foi para dentro,
contrafeito, fazer o apontamento. Houve um silêncio oprimido, o dos cigarros
tossiu para o quebrar, ao mesmo tempo que num gesto acanhado, receoso, fazia
menção de oferecer: — «alguém era servido?»
Dentro do balcão, ao pé das
garrafas com licor, e das botijas de genebra, Ernestinho somava a conta. Era já
taluda. — «E vão dois e dois quatro e dois seis, seiscentos e vinte! Sabe Deus
quando os receberia!» — E suspirava, arrumando os maços encetados, sob o olhar tranquilo
e indiferente do Santo Antoninho que lá estava em cima, ao alto das estantes
quase vazias, no seu nicho feito de um caixote forrado a verde, com flores
artificiais muito sujas e duas velinhas dos lados. Mas resignava-se, que não
tinha outro remédio. Eram os ossos do ofício...
Cá fora tinham dado fé,
acotovelavam-se chamando asno ao Ernestinho, — um pulha a quem ajudavam a
viver... Se hoje não há dinheiro, há-o amanhã, essa é boa! E pagava-se, com os
diabos! E pagava-se. Mas não senhor! aquela besta mostrava sempre má cara, o alarve!
A culpa tinham-na eles, afinal que o procuravam, que o preferiam. Tomaram os
outros ter aquela freguesia...
O dos cigarros fiados anuía,
assobiando baixo o “Água leva o regadinho”. Por fim levantou-se, lentamente,
com um ar de enfado, um sorrisinho de despeito nos lábios, encolhendo os
ombros.
— Estender as pernas, — disse.
Quem vem daí?
Todos ficavam, era uma estopada
andar pra trás pra diante, naquela sensaboria da praça.
— Até logo. Você aparece no “sítio”,
à noite?
— Apareço, vou à desforra.
E cumprimentando em roda:
— Meus caros! Muito boa tarde,
Sr. Ernesto.
Foi-se, puxando para baixo as
pernas da calça, alisando as joelheiras.
— Que tal está o asno, hein?
Quer, ainda por cima, que o Ernestinho lhe
diga “bem-haja”...
Era um parvo. — Era um tolo. — Tinha
dívidas nos outros estancos. — Em toda a parte. — Lá em casa a família passava
fomes. — Um batoteiro de marca.
Houve agitação, alguns puseram-se
de pé, outros mudaram de lugares. Ia a passar um grande carro de palha chiando
muito. Ernestinho chegava-se de novo, muito ronceiro, roendo as unhas.
— Com que então... “ponha lá ao
pé dos outros”? — disseram-lhe, para o lisonjear nos seus despeitos. — Bem bom
freguês!
Ele encolheu os ombros e cerrou
os olhos, beatificamente, num gesto de mártir resignado. E não disse palavra — pra
falar daquele tinha de falar também deles...
Mandaram vir limonadas, — três
limonadas!
— Aí vão trinta réis!
Diabo! era preciso animar aquilo.
Assim não tinha jeito. E puseram-se a falar do tempo, das moscas, daqueles
idiotas que andavam na praça a dar-se ares. Ensoberbecia-os a ideia de que iam
tomar três limonadas, — e sentiam-se felizes, alegres, um tanto estroinas.
O Ernestinho deu dois passos fora
da porta, e chamou para a varanda, onde grandes manjericões floriam:
— Ó Emília! Emilinha!
A mulher assomou, gorducha, muito
mole.
— Três limonadas, ouves? Três
limonadinhas, depressa.
As conversas animavam-se. Pois
senhores! havia de ser difícil encontrar uma coleção de asnos assim. Falavam
dos que passeavam na praça, aos grupos. — Deus os faz, Deus os ajunta. O
palerma do Fernandinho dera-lhe agora para cantar. Lá andava ele. Volta meia
volta,
“Vai alta a lua na mansão da
morte”
com umas tremuras na voz, que
eram mesmo de o esbofetear. Estava antipático, aborrecido, desde que andava de
namoro com a Marques. Só tinha uma coisa boa — a caligrafia. — Um talhe de
letra bonito, — confessavam. — E as calças, hein? reparem vocês naquelas calças,
vai flamante. Casualmente, Fernandinho olhou de longe para os do estanco,
disse-lhes “adeus” com a mão, afável. Corresponderam todos, muito risonhos, mas
a chamar-lhe nomes por entre os dentes: — idiota, palerma, pechisbeque...
Sozinho, numa lentidão moribunda,
olhos nas botas, olhos no céu, o Teles escrivão passava ao largo, ruminando
alguma poesia. Às vezes quedava-se extático, suspenso, o polegar esquerdo entre
os dentes, um olho cerrado fortemente, a meditar. Vinha um gesto e punha-se de
novo em marcha, contrafeito.
— Ó senhores! mas não me dirão em
que anda a parafusar o Teles, aquele telhudo?
E isto: — e pôs-se a imitar o escrivão.
Riram. O Melo imitava-o bem, o
alma do diabo, no andar especialmente.
Mas aquilo era um logogrifo. Há
uma semana às turras a um logogrifo em acróstico.
— Isso é o Teles! — fez um que
vinha da praça. — Aquilo é um intrujão. Na rua não é que se adivinham
logogrifos. Ó Ernestinho, você ainda tem daquilo que “ferve”?
O Ernestinho deixou descair o
lábio, não percebia...
— Homem! daquilo que vinha numas
garrafórias escuras, compridotas...
— Quer dizer gasosas. Uma rolha
segura com guitas...
— Ora é isso mesmo, nem mais.
— Bem sei.
Mas não tinha já. Nem mesmo
queria mais, p'ra quê? Achavam caro um tostão...
— Eram aos três para beber uma
garrafa...
— Pudera! Por um pataco, trinta réis
levando o açúcar, fazia o “Ervas” uma soda, — objetaram alguns. Ponha lá que em
gosto é a mesma coisa.
— E aquela porcaria, ó
Ernestinho, e aquela porcaria amarela que sujava tudo de escuma?
Alguns cuspiram, disseram ao
Alves que se calasse, que vomitavam, com seiscentos diabos!
— Cerveja! — disse o Ernestinho —
cerveja! uma coisa que lá pra baixo toda a gente bebe por gosto, as senhoras
mesmo.
E com um sorriso de desdém,
exclamou:
— O que é ser do calcanhar do
mundo! Em nome do Padre, e do Filho...
Mas na praça um grupo altercava.
Ouviu-se distintamente a palavra — «pulha» — pronunciada com força. Saíram em
tropel, ficaram só três. — O que pagava as limonadas exultou: — Homem! nem de
propósito! Ficava exatamente quem ele queria, estava mesmo a ver que aquela súcia
lhe chupava o refresco:
— Tó Ruça! já lá vai esse tempo.
Precisamente, a senhora Emília
chegava, com os copos numa bandeja: — Que provassem, diriam se precisava mais
açúcar. Mas parecia-lhe que devia estar bom...
Beberam de um trago, estava ótima.
A senhora Emília tinha dedo para aquelas coisas.
— Obrigado, ó Melo!
— Obrigado, ó menino!
E os dois saíram de rompante,
chamando “pato” ao Melo, rindo-se dele e limpando os beiços.
Quando o Melo ia sair, — a ver o
que ia na praça, — o Ernestinho, muito cortês, objectou-lhe que faltavam trinta
réis: — Se ali não tinha, depois. Isso era o mesmo...
— Mas trinta réis?!... De que são
os trinta réis? — perguntou desconfiado o Melo.
— Do açúcar, foi do refinado, — explicou
o Ernestinho. O mascavado acabou-se. Amanhã ou depois já devo ter mais. O
senhor Melo desculpe.
Não tinha que desculpar; somente
notava que aquelas coisas diziam-se no princípio. — E saiu sem dar mais
palavra, furioso: — Uma ladroeira! Três vinténs não valiam os dois que lhe
tinham chupado o refresco...
Na praça tinha cessado a
altercação, os grupos, reunidos, formavam uma grande roda, comentava-se. O Melo
quis informar-se: — que lhe contassem — «o escândalo».
Ora! não fora nada: o Veiga que
se tinha lembrado que as correspondências na “Voz do Distrito” eram escritas
pelo Albano. Disse-lho na cara. O Albano negou, deu a palavra de honra. O Veiga
que é casmurro, teimou: — que não acreditava, ainda assim! — Vai o outro chama-lhe
pulha, iam-se pegando. Ora aí está!
— Mas afinal, quem diabo escreve
aquilo? — quis saber o Melo. Aquilo Há de ser escrito por alguém, está claro.
Dez réis pela novidade! Que havia
de ser escrito por alguém sabiam eles...
— Quem, então?
Divergiam as opiniões. Podia ser
Fulano, podia ser Beltrano. Um ou outro dava a sua palavra de honra que também
não era ele, jurava-o. Houve um que se lembrou se aquilo seria do padre
Mendonça.
— Qual! Do padre Mendonça não é.
Fazia coisa melhor, se se metesse nisso. Olha o padre Mendonça, o da “gibreira”
de Braga...
Mas o da ideia insistiu,
renitente: — havia ali suas coisas que o faziam lembrar, certas facécias, como
a de chamar “Frei Asneira” ao Reitor e “Cabeça de Comarca” ao Felisberto.
— Pois se é ele, que se regale,
pode limpar as mãos à parede. Mente como um alarve, mente da primeira linha até
à última! — disse firmemente o verdadeiro autor das correspondências. Olhem o
que ele diz do juiz de direito, só calúnias! O juiz! um homem teso! Tem lá o
seu fraco pelas saias, mas isso, que diabo! isso não é defeito.
De resto, eram todos acordes em
que as correspondências eram uma infâmia. O que se chama uma infâmia pegada.
Mexericos e mais nada, uma coisa de soalheiro. E depois, o dizer-se lá que
entre os rapazes não havia duas amizades leais, que era tudo uma impostura...
Houve um silêncio significativo,
talvez de aprovação.
— Só de pulha! — rematou, por fim
o Nunes da Fazenda, o tal que escrevia as correspondências com o pseudónimo de
“Aramis”. Vejam vocês aquelas galegadas ao comendador. Aquilo chama-se lá fazer
política?! Discuta-se o homem como presidente da Câmara, sim senhor, discuta-se
o homem público, o funcionário; mas deixe-se-lhe em paz a “marreca”, os fundilhos
das calças; ninguém quer saber se os criados lhe param em casa ou se não. E
depois, aquelas alusões à família, aquelas piadas à D. Engrácia, pobre velha...
— A quem? — interrogaram uns
poucos. À Dona quê?
— À D. Engrácia, está bem de ver.
Aquela beata que fazia peúgas de lã aos missionários é ela. Presumo eu que é
ela — fazia o Nunes das correspondências com um grande ar de suposição. Eu cá
foi para onde deitei.
Os outros não. E como o das
correspondências tinha prometido explorar a crônica beata, aguardariam mais
informações. Supunham, no entanto, ser com a D. Joana, a do — «chá de
erva-cidreira.» — Outra canalhice! A D. Joana, para festejar os anos da filha,
convidara tudo, “lazarões e Penicheiros”, não fizera política. Depois foi
aquela tareia que se viu: — que o chá era erva-cidreira, que tinham bolor os
doces de ovos, que ela parecia a Quaresma e a filha o Entrudo. Ora isto não se
diz, a pobre mulher doeu-se. Citavam-se de cor frases inteiras da correspondência.
Por exemplo: — A deusa da festa dizem
que recebeu telegramas de... amor. — Uma facécia de mau gosto aludindo ao
Proença telegrafista. Depois do que por aí se diz, é forte... Que afinal, quem sabe
lá? Entre os dois que diabo pode haver? Namoro?
No grupo alguns tossiram forte,
rindo. O Nunes interveio:
— Não senhores! Isto agora alto
lá. A Amélia é uma rapariga séria...
Riram às gargalhadas, foi um
barulho com a tosse.
— Quando digo uma rapariga séria...
Mau! Acomodem-se lá com o “banzé”, vocês deixem falar, — tornou o Nunes,
formalizado. Quando digo uma rapariga séria, quero dizer... sim... quero
dizer... — e procurava a frase, entalado, — por exemplo, que ela não é capaz de
receber ninguém, alta noite, lá pelos quintais, como o tal das correspondências
quer fazer suspeitar.
Iam replicar-lhe, mas ele
atalhou:
— Chama-se àquilo ser canalha às
direitas, arre! Isto agora é falar franco.
Saltaram-lhe:
— E você jura, ó Nunes? você jura?
— perguntou, com gesto perfurante, o Alves dos Pesos e Medidas.
Não... isso agora...Jurar, não
jurava, mas, c'os diabos! pelo que se via, pelo que se podia julgar...
— Léria! — disseram todos.
O Nunes parece que estava com os
beiços com que mamara. Com que então, para ele era tudo uma récua de “santas”?
Desenganasse-se, que era tudo uma canalha, uma corja de sonsas. Que diabo de
ingenuidade!
O Nunes observou modesto, quase
agradecido:
— Ingenuidade, eu te digo... Não
é bem isso... O que sou é prudente. Desconto sempre noventa por cento àquilo
que vocês dizem, aí é que está...
— Vocês é um modo de falar, — emendaram
alguns.
— Vocês, digo eu, vocês... quando
escrevem correspondências, — explicou sofisticamente o Nunes.
Calaram-se, disfarçaram. Próximo
deles, a Amélia toda de verde, com guarnições de fita preta, caminhava ao lado
da mãe, solenemente. Tiraram todos o chapéu, cortejando risonhos, respeitosos.
O Nunes foi cumprimentá-las, submisso.
— Dar o seu passeio, não é
verdade? — E apertando-lhes a mão: — Vosselência como passou? A senhora D.
Amélia? Obrigadíssimo. Assim... assim...
Então? que diziam àquele calor?
— Abafava-se, ali pelas duas. Que
forno!
— O Brasil tal e qual — reforçou
o Nunes.
Mas que fora feito, que as não
tornara a ver desde os anos? Uma noite de truz, aquilo sim!
— Olhe, senhora D. Amélia, a
flauta... a flauta é que nem por isso, foi pena! O Abelzito andava constipado.
A D. Amélia explicou. A mãe
ficara doente, já não era para aquelas noitadas. — E em voz mais baixa, quase
dolente:
— Depois, veio a “Voz do Distrito”,
aquilo chocou-a muito.
— Não há tal! — fez a mãe.
Meteu-se-te isso na cabeça. Deixe-a falar, senhor Nunes.
E por pouco que não chorava ao
dizer isto.
O Nunes afectou um sentimento
profundo: — Era melhor não falar nisso, não pensar em tal; todos as conheciam,
todos lhes faziam justiça. Tinham acabado de falar na tal correspondência,
agora mesmo. Uma garotada! — resumiu o Nunes. — E em tom confidencial:
— Anda-se na pista do garoto. Ele
há de aparecer. E depois... e depois... Muito boa tarde, minhas senhoras! O que
for soará. É preciso dar um exemplo, — concluiu terminantemente. Uma severa
lição!
Despediram-se, elas agradeceram
ao Nunes — «a parte que tomava no seu desgosto.» — E seguiram cumprimentando para
as janelas, perguntando se vinham daí, um bocadinho até à capela, espairecer.
As Silvas pediram que subissem.
Um bocadinho só. Ficava muito bem aquele vestido à Amélia.
Não podiam subir, talvez à volta.
— Pois sim, hás de ver o meu
bordado a missanga. O papagaio está quase pronto, que trabalhão!
Estava na dúvida se lhe poria o
bico assim, de gancho. Não gostava. O risco era do Fernandinho. Já lhes fizera
outro, talvez mais bonito. Coisas de anjinhos:
— Verás.
Os grupos tinham-se reunido em
volta do Pelourinho. Passava gente que vinha do trabalho, da labuta áspera da
eira, — homens com malhos, e mulheres de cestas à cabeça. A tarde descaía numa
serenidade calma. No degrau de cima, o Paula, oficial da administração, com
fama de tipo de chalaça, cantava em surdina umas cantigas de caserna, obscenas,
zaranzando na barriga como se fosse uma guitarra. De volta, os outros formavam
roda. Todos riam, pediam bis.
— Tu hás de conhecer isto, ó
Chico, — dizia o Paula para o Francisco Maria, um cabo que estava de licença.
Tu hás de conhecer isto.
O administrador do concelho, um
pobre diabo desmazeladão e filósofo, afirmava que lhe lembrava Coimbra, a
pândega das vielas. Ao Paula valia-lhe a prenda, palavra de honra que lhe valia
a prenda, senão já o tinha demitido, às vezes que lhe entrava borracho pela
repartição. E pedia a rir, boçalmente:
— Ó Paula, aquela do “bate-bate”,
canta lá.
E trauteava as primeiras notas,
castanholando com os dedos. — Se era preciso, o Fernandinho ia pelo violão.
— É verdade, você que fez hoje
que não me apareceu na repartição, ó Fernando?
— Dormi, está claro. Ao senhor
doutor acontece-lhe o mesmo às vezes. Olhem que pergunta!
Mas o Paula tinha-se calado,
bocejava.
— Então, ó Paula... — suplicava o
administrador.
— Está fechado o realejo...
Depois.
Quem lhe dera que fossem as nove
para irem até ao «sítio». Ou perder ou ganhar; tinha ali seis tostões que eram
para um “mico”.
— Mas eu não lhe dizia, Sr.
doutor? eu não lhe dizia ontem que a “dama” se negava? Eu estava mesmo a ver aquilo...
Bem feito! «gramou» um entalão que se consolou.
— Quatro coroas. — Na véspera
tinha ganho um quartinho.
Nesse momento passava o juiz,
sozinho como sempre. Todos tiraram o chapéu, ele passou gravemente, cortejando.
— Quem eu te quero à perna é o “Aramis”...
— rosnou o Teles escrivão que embirrava com o juiz desde que o suspendera uma
vez. — E ainda ele não sabe tudo... — insinuava perfidamente.
— Pois o resto diga-lho você,
diga-lho no “Almanaque de Lembranças”, em verso — fez de um lado o Rodrigues do
Real d’água.
O Teles, com famas de literato,
redarguiu que não dava confiança a analfabetos.
— E eu a brutos, sabe você?
Mau! que eles lá começavam.
Oficiais do mesmo ofício... Ó senhores, lá porque ambos faziam versos não se
seguia que devessem embirrar um com o outro. Pelo contrário.
O Teles, furioso, disse que não
embirrava com o outro, que nem lhe dava essa importância, essa honra.
O Rodrigues ia saltar-lhe,
tiveram mão nele. Mas jurou que doutra vez seria, que fizesse de conta que já
lá tinha na cara quatro bofetadas tesas.
— Tesas, hein? olá! quatro
bofetadas tesas.
Havia de dar-lhas, tão certo como
dois e dois serem quatro, só para ter o gosto de dizer depois, num comunicado,
que desafrontara as letras portuguesas, — ele, o Rodrigues, ele, um simples
fiscal do Real d’Água.
Aquilo fez surpresa,
convidaram-no a explicar-se.
— Não senhores! dizia colérico o
Rodrigues, com grandes gestos. — Bem sei que não valho nada. Escrevi, é verdade
que escrevi; faço ainda o meu verso quando me dá na cabeça. Uma rapaziada!
Estão maus? Concordo. Mas não há de ser aquele “négalhé” que o há de dizer. Não
o julgo habilitado. Lá porque tem soletrado dois romances, não se segue. Mas o que
mando para público sim, o que entrego aos prelos — é meu! — E batia no peito
com a larga mão espalmada, furioso, numas raivas, de orgulho triunfante. — Não
roubo! nunca roubarei! — afirmou mais alto o Rodrigues, para que o Teles que se
ia retirando, no meio de dois amigos, conciliadores, o ouvisse. — Repito: não
roubo, não faço como ele! — E as palavras saíam-lhe salivadas, violentas, por
entre os lábios espumantes, atiradas ao Teles como pedradas.
Os outros escutavam agora com
interesse. Estavam a dar razão ao Rodrigues, instintivamente, sem compreender
bem o que ele queria dizer.
— As provas... — e meteu a mão no
bolso do seu casaco de lona, com ímpeto: — as provas, vê-las aqui estão!
Mostrou no ar a brochura verde do
“Almanaque de Lembranças”. — Era do ano que vem, tinha-lhe chegado hoje. Ali
estava o Peres do correio que lho tinha entregado ele mesmo.
— Sou testemunha — confirmou do
lado não sei quem.
O Rodrigues, então, afirmou que
era preciso historiar, contaria a coisa em duas palavras. O Sr. Teles, o
borra-botas do Sr. Teles, lembrara-se um dia de ser escritor, de ser poeta. O
alarve! Todos os anos — zás! versalhada para o “Lembranças”...
— Era colaborador — disse o
Antunes da Câmara que admirava o talento de Teles. — Era colaborador.
— Era quê? — interrogou logo o
Rodrigues, de mão atrás da orelha. — Maçador, maçador é que ele era. Nunca lhe
admitiram as asneiras, se me faz favor, nunca! Na “correspondência”
troçavam-no, chegaram a dizer-lhe que podia fazer fortuna pelas tombas, que o
não chamava Deus para as letras. Aquele “Serei ousado”? é ele, sei que é ele.
Nunca o admitiram.
— Lembro-lhe a “Flor do Campo”,
Sr. Rodrigues, lembro-lhe esses versos — insistiu o Antunes.
O Rodrigues teve um risinho
feroz, fitando o Escrivão da Câmara. Não lhe respondeu. Subiu os três degraus
do “pelourinho”, pausadamente, com pompa, e chamou a atenção dos amigos. Ia
ler. Abriu o “Almanaque de Lembranças”, onde trazia um papel, e rompeu: — «Indignidade».
— Em letras bem graúdas, queiram
inspecionar.
E colou ao peito o “Almanaque”,
voltando para fora na página onde o seu dedo reboludo apontava a terrível
palavra, escrita ao alto em epígrafe.
Houve um sussurro, alguns pediram
silêncio. O Rodrigues que lesse.
«Os versos intitulados “Flor do
Campo”, que viram a luz no “Almanaque de Lembranças” do ano extinto, foram-nos
remetidos pelo Sr. José Maria Teles, escrivão.»
— Copiados por mim, uma letra
floreada — esclareceu o Fernandinho.—Ele depois assinou — e fez no ar, com o
dedo, o traço complicado da firma complicada do Teles.
Pediram silêncio outra vez. O
Rodrigues continuou:
«Publicamo-los na convicção de
que eram da lavra daquele senhor, pois que ele os assinava.»
— E então? — perguntaram uns
poucos, sem compreender ainda.
— «Pura ilusão!» — continuou
solenemente o Rodrigues. — «Escreve-nos o mimoso e assaz conhecido poeta Sr. Alfredo
Mendonça, dizendo que os versos lhe pertencem, e que o Sr. Teles os roubara
(sic) do seu volume “Lira Matutina”.»
Foi uma estupefação! O Rodrigues
prosseguiu mais alto, fugindo aos comentários:
«Averiguámos, e disso enfim nos
convencemos. Os leitores avaliarão a probidade do Sr. Teles, a quem mais de uma
vez tínhamos fechado a nossa porta por incapaz. Hoje damos-lhe com ela na cara —
por indigno.»
E o Rodrigues fechou o livro com
estrondo, como os outros fechariam a porta na cara do Teles escrivão; tomou
praça fora, o livro debaixo do braço, e foi-se para o estanco do Ernestinho,
altivo, solene, — vingado!
Os da roda seguiram-no
silenciosos, corridos de vergonha, desnorteados, porque além de sempre terem
julgado o Teles muito superior ao Rodrigues — e o Rodrigues bem o sabia, olha
ele!... — tinham dado uma sorte de mil demônios, agora é que eles viam!
distribuindo no teatro, por ocasião da festa de Santa Barbara, a “Flor do Campo”
que eles tinham mandado imprimir avulso — para lisonjear o Teles que tivera o trabalho
de os ensaiar no “Santo Antônio”. Hein? quem diabo havia de dizer que aqueles
papelinhos de cor, uns verdes, outros amarelos, chovendo sobre a plateia entre
o segundo e o terceiro ato, e quase disputados a murro, num alvoroço de seiscentos
diabos, encerravam uma insídia, — um logro à boa-fé, à credulidade ingênua de
toda a comarca!
E relembravam episódios,
particularidades quase extintas: o Fernandinho vestido da menino do coro,
batina vermelha e roquete de rendas, cobrindo-se de teias de aranha lá pelo
forro do teatro, de gatinhas e com um «toco» de vela na mão, aos tropeções, só
para ter o gosto de ser ele a despejar do “óculo” aquela papelada; o Melo da
administração, vestido de Frei António, sandálias e grande chinó de calva
redonda, feita de uma bexiga de porco, com o Teles em triunfo por entre os bastidores,
seguido pela turbamulta dos companheiros, em hábitos de frade e fardetas de
galuchos, dando vivas ao “poeta”! ao grande Teles, ensaiador da rapaziada!
Que desastre! Afinal tinha-lhes
saído um intrujão! E quase se regalavam da sorte que tinham dado, pelo prazer
que sentiam de o ver agora humilhado, corrido, esbofeteado pelo ridículo. Bem
feito!
O Antunes da Câmara, sobretudo,
estava furioso. Fora ele o da lembrança de se mandar imprimir a versalhada.
Escrevera para Coimbra ao Manuel Caetano, ao Manuel Caetano da Silva, Praça
Velha nº 11, que mandava os impressos para a Câmara, e pedira-lhe aquilo como
especial favor. O homem — pronto. Duzentos exemplares, quinze tostões. Quinze tostões
que se tinha combinado dividir por todos, contas do Porto, mas que desembolsara
ele só, afinal. Bem feito! ninguém o mandava ser burro. Arre! cavalgadura!
E dava patadas no chão, cada vez
mais furioso, apopléctico.
— Mas a bem dizer, tudo isso é nada!
— continuou comovido o Antunes.—Ó senhores! e a figura que eu fiz... sim, a
figura que eu fiz naquele intervalo do drama para a farsa?...
Todos desataram a rir, tinha sido
fresca... Ele sempre acontece cada uma! E relembravam: — levantara-se o pano quando
os ouvintes menos o esperavam. Os que tinham sabido lá fora, às doceiras,
voltaram apressadamente com os cartuchos na mão, ensacando os rebuçados. Ia um reboliço
pela plateia. Na «galeria dos camarotes» para onde só iam senhoras, gente fina,
começavam a aparecer caras barbadas de sujeitos que iam saber «que tal»,
perguntar se ia uma pinguinha de licor, um docinho. Em cima, na galeria alta,
criadas e raparigas do povo, debruçadas no parapeito, apontavam para o palco,
de olhar atônito.
— Ele que dianho é? — perguntavam.
De baixo, da plateia, todos
faziam “chut”! voltados lá para cima:
— Caluda, sua gentalha!
No palco estavam todos
perfilados, trajando como na peça. O Freitas da recebedoria com o seu fato de
Marco Aurélio; o Paula de cardeal, báculo em punho e a cara metida numa
estriga; o Fernandinho de menino de coro, todo lépido; a Ana Pisca muito
acanhada no seu fatinho de Olívia; a
Margarida que tinha feito de anjo no quadro final da “Glória”, em que ela
subira num cesto vindimo à «região sidérea dos astros»; o pai de Santo António,
em ceroulas e de saia branca pelo pescoço, lívido como saíra do túmulo; aquela
canalha da tropa — todos enfim!
Nisto, entra pelo fundo o Teles
todo de preto, no meio do Melo vestido de Santo António e do Proença telegrafista
que fazia de Frei Inácio. Avançaram. Em baixo, o Felisberto mandou tocar o Hino
da Carta à meia dúzia de músicos que não entravam na peça. O hino rompeu com grande
estampido de pratos, numa cadência fúnebre. No palco, tudo imóvel. Ninguém
sabia o que era aquilo, não estava no cartaz. Esquecimento do Fernandinho,
talvez... pensavam.
Mas ao acabar o hino, o Antunes
da Câmara, com farda de centurião, durindana e botas de água, irrompe furioso
do buraco do ponto e prega um discurso na bochecha extática do Teles:
«Não era ele o mais competente,
de certo, o mais... etc. Mas tinham-no encarregado, obedecia... e tal. Só
sentia não ter frases, oratória, porque enfim estava falando a um poeta... — colaborador
do “Almanaque de Lembranças” para Portugal e Brasil — acrescentou voltado para
o público, esclarecendo. Enfim, finalmente... vinha para aquilo: dar-lhe um
abraço em nome de todos... — e abraçou-o comovido, enquanto os espectadores berravam
“apoiados”, dando palmas — «... e para isto» — acrescentou fazendo com a mão
que se calassem, que se calassem depressa.
Houve um sussurro de aplauso, dos
camarotes crianças gritavam — «ó Emilinha!» Era com efeito a Emilinha, a filha
do Alves dos Pesos e Medidas, que saía também do buraco do ponto, vestida de
anjo, tules verdes e muita lantejoula a brilhar.
Ficou-se a olhar a plateia,
imóvel, muito fria, ensaiada, enquanto o Felisberto preludiava na flauta. Em
certa altura, num requebro doce da «melodia», ele fez-lhe com a cabeça «que
entrasse», e a Emilinha rompeu nuns guinchos, cantando a “Flor do Campo”, com música da “Muchagateira” original
do Peres do correio.
O Teles sorria, entre glorioso e
modesto, falando a Santo António e a Frei Inácio: — Era de mais, era de mais,
ele não merecia... — Ora essa! pareciam dizer-lhe os outros — seríamos ingratos
se...
A «cantoria» acabou, o teatro
parecia desabar com palmas, tudo berrava, um ou outro cão latia. Se não quando,
os do palco desataram a rir, cosendo-se uns aos outros, fingindo um grande medo
de que as bambolinas do teto desabassem.
Todos olhavam, curiosos. E
naquela expectação viram de repente descer do alto, sobre o palco, agarrado a
uma corda, o Freixedas da Mercearia vestido de Lusbel, rubro e com chavelhos.
Cuidaram de estoirar a rir. Da boca muito inchada saíam-lhe faúlhas, do algodão
a arder que lá trazia dentro. Fazia caretas horrendas, arremedando Satanás nos
ímpetos da cólera. O pano começou a descer, oblíquo, esfarrapado de uma banda.
O Freixedas, suspenso, atirou fora o algodão e gritou, furibundo:
— Alto! suas bestas! Inda não!...
Voltou-se de costas para o
público, e um letreiro que trazia de ombro a ombro dizia em carateres amarelos —
C'est fini! O pano desceu então,
estabalhoadamente. Os espectadores olharam uns para os outros, não tinham
percebido... Foi nesse momento que o Sr. Antoninho, que tinha estudado em
Braga, traduziu de um camarote, em voz alta:
— “É findo”!
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Nota:
Trindade Coelho: "Os Meus Amores" (1891)
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