BALADAS
A Luís Osório
I
MARICAS
Vocês lembram-se da Maricas,
aquela magrita de cabelos muito castanhos, quase louros, que morava defronte da
redação, lembram-se? A boa da rapariga era nossa amiga, pois não era? Sempre
benévola e complacente para as nossas balbúrdias e algazarras de todo o dia e
de toda a noite. E vocês bem sabem que tais elas eram, as nossas balbúrdias e
algazarras...
Eu, na Maricas, admirava uma
virtude rara, toda original e encantadora — a de não mostrar jamais na sua
amizade preferência por algum de nós. Dir-se-ia que era nossa irmã, ou mesmo
nossa mãe, pois que nos queria a todos por igual, a pobre Maricas de olhar azul
e brando...
Não sei se já vos disse: adivinho
o interesse com que ela vos perguntaria por mim, nos meus dias de cábula, pela
solicitude e interesse com que me perguntava por vocês, quando faziam gazeta ao
escritório.
— Então esses cábulas? então
esses marotinhos? Doente, algum?
— Na estúrdia, Maricas. Andam
todos por lá...
— Ora vejam! — fazia ela quase
escandalizada.
Ah, como eu me lembro neste
momento da vivacidade franca dos sorrisos que nos mandava, quando todos em
pinha, furando pelos ombros uns dos outros, palreiros conversávamos com ela de
janela para janela, num “tête-à-tête” que durava horas, muito familiares, muito
dados, quase que chamando-lhe por tu e ela a nós!
Como eu me lembro!
Ela tinha sempre uma resposta e
um sorriso para cada uma das mil perguntas que lhe fazíamos, e então uma grande
paciência inexaurível. Nós, os estróinas, quase que chegávamos a adorar aquela
ingenuidade singela do seu coração de vinte anos. A boa da Maricas era
adorável, toda ela bondade e paciência para os nossos distúrbios e para as
nossas algazarras de toda a hora e de todo o instante.
Mas como se familiarizou ela conosco
e nós com ela, é que me não lembra, e porventura a nenhum de vocês, acho eu. O
que é certo, rapazes, é que nós como que a considerávamos uma companheira de
redação, espécie de diretora com casa à parte e viver independente pois que se
entrávamos no escritório (parece mesmo que estou a ver aquela barafunda de
escritório!) e, assomando à janela, a não víamos na sua, dizíamos quase sem
querer, mas invariavelmente:
— Mau! falta hoje a Maricas!
Diacho! mas onde iria a Maricas?
E passados instantes debandávamos
todos, um agora, outro logo, à formiga, mal nos convencíamos de que ela passava
a tarde fora, em casa da “freira” de Quebra-Costas — dessa lembram-se vocês...
No entanto, deveis recordar-vos que ela, no dia seguinte... — coitada! —...a primeira
coisa que fazia era justificar a sua falta, «estive aqui, estive ali, fui a
umas compras com a mamã», um pouco ruborizada e confusa, como se na realidade a
sua obrigação fosse estar ali a aturar-nos. Por pouco ela nos não pedia de mãos
postas que lhe perdoássemos, a boa da rapariga.
E nós então galhofeiros,
brincalhões:
— Sem mais “aquelas”, D. Maricas!
A congregação risca-lhe a falta, ora essa!...
E ela mais confusa, fazendo girar
no dedo o seu anelzito de cobra:
— Pois sim, mas é que às vezes...
— Às vezes quê?...
«Não! ora adeus! Ninguém
desconfiava que ela estivesse zangada connosco.
Saíra, porque tinha de sair, essa é boa...»
— Pois não era verdade — perguntávamos-lhe
— que ela adorava aquela “trupe” de boêmios?
— São todos muito bons rapazes — dizia
já a sorrir. — Todos me tratam muito bem...
E quando dizia isto, o seu rosto
miudinho e muito pálido todo se iluminava de prazer e sorria de íntima
gratidão. Mas porque simpatizava ela conosco, a pobre Maricas?
Quando nos via em palestras
intermináveis, nas libações do congnac e do café, ouvia-se lá da janela um pschiu! muito sibilado.
— Que manda a D. Maricas? É
servida?
E ela, levantando os olhos da
costura, com ares de formalizada:
— Mando que escrevam, que
trabalhem! Já fizeram o jornal?
O cuidado que lhe dava o jornal!
— Ora faz favor de não falar em
coisas tristes? Olhem agora que lembrança, o jornal!
Ela então, por única resposta,
dizia-nos às vezes que na semana passada o tipógrafo viera queixar-se de que
havia falta de originais, quantas vezes o garoto da imprensa viera pedir as
provas emendadas.
E por falar em provas: — a
Maricas sabia todos os sinais das emendas, todos.
— Olhe lá, Maricas, está aqui uma
letra a mais nesta palavra.
— Risco por cima, risco à margem,
e um “d” cortado; é fácil.
— Um “m” de pernas para o ar, e
esta?
— Risca-se, e um três cortado, à
margem. Está farto de o saber...
Quando via algum sentado à mesa,
a rabiscar, pedia sempre que lhe fosse mostrando as tiras, à medida que as
escrevesse, talvez porque adivinhava que isso era um estímulo. A gente
fazia-lhe então a vontade, e mal escrevia a derradeira letra pegava da tira e
dizia-lhe para a janela, acenando-lhe com o papel:
— Maricas, cá está uma, vá
contando. Veja: escrita de alto a baixo.
À terceira que se lhe mostrava,
ela saía-se de lá com um “bravo”! e recomendava, solícita, cinco minutos de
folga, enquanto se fumava um cigarro.
A Maricas era quem nos cortava as
cintas para o jornal e quem nos fazia a goma nos dias de expedição. Que ricas
cintas e que bela goma! Em paga, quando o jornal chegava da imprensa, quase
sempre nos sábados à noite, o primeiro exemplar era para ela. Como a rua era
estreita atirava-se-lhe da janela.
— Maricas, aí vai ainda
fresquinho!
— 'stá bem, obrigada. Vou ler,
até amanhã.
Corríamos todos à janela, a dar
as boas-noites à nossa amiga.
— Durma bem, ouviu?
E no dia seguinte, a Maricas
repetia a cada autor frases e frases do artigo publicado, jurava que nos
conheceria no estilo ainda que mudássemos de pseudônimo. De resto, sempre benévola:
achava tudo muito bom, «escrito com muita graça e muito bem», como ela dizia.
Nos serões que fazíamos e que por
via de regra não passavam de um interminável cavaco, dizia-se mal das mulheres,
discutiam-se escândalos, desvendavam-se segredos, tal e qual como em todas as
redações... Mas da Maricas ninguém tinha que dizer senão bem; era a
privilegiada naquelas sessões de má língua. Quase sempre a conversa degenerava
em algazarra — um que se lembrava de cantar, outro que ia pela guitarra e gemia
fados com acompanhamento de violão. E era de ver o Santos Melo, de olhos
cerrados e cabeça à banda, como cantava a sua quadra predilecta:
Sei cantigas misteriosas,
Cantigas de endoidecer,
Que os lírios dizem às rosas,
Que as rosas me vêm dizer.
Mas no meio desta inferneira
havia sempre um que recomendava silêncio.
«Com mil demônios! não viam que a
Maricas não podia pregar olho...»
Todavia... — ó suprema bondade! —...ela
nunca se queixava quando no dia seguinte nos vinha dizer até que horas durara a
estroinice, o que se tinha tocado, o que se cantara, quem tinha rido mais, e,
até, as vezes que as cadeiras tinham caído.
«Ora viam?! Não a tínhamos
deixado dormir! A Maricas que desculpasse; palavra de honra! doravante...»
Ela então acudia logo, como a
remediar uma grande desgraça:
— Não, não, eu até gosto.
Entretém-me vê-los alegres, faz-me bem, ora essa...
*****
Pois, meus amigos, a boa da
Maricas — morreu! vocês não sabiam! E morreu tísica, a desgraçada Maricas! Só
depois que o soube, é que eu comecei a pensar naquela tossezinha muito seca em
que às vezes a surpreendíamos, naquele
branco pálido das suas faces, no bistre das suas olheiras, naquela magreza
transparente das suas mãozitas de marfim...
Pobre Maricas!
Haverá três meses que ela me
desapareceu da sua janela, onde continuei a vê-la depois que o jornal acabou.
Eu sabia lá para onde ela tinha ido?!...
Mal diria eu que estavas no
cemitério, tão longe e tão só! porventura na vala comum, sem umas folhas de
rosa sobre a tua sepultura humilde, — onde neste instante cai chuva e chuva!
Ainda se as noites fossem todas de luar... Minha triste amiga! como eu agora
relembro cheio de mágoa a tua frase de infinita bondade e de infinita
resignação:
—...«Entretém-me vê-los alegres,
até me faz bem»...
Compreendo agora tudo: vivias da
nossa alegria, já que a tua alma era triste... Mas porque foi que nos não
disseste, pobrezinha! que nessa frase singela ia a revelação do pressentimento
que tinhas da tua morte prematura?! Triste criança que nós não mais veremos!
*****
Olha, Maricas, escrevi quatro
tiras. Já me não dizes— “bravo”! — ora não?...
*****
...Bom Deus! bom Deus! para que a
terra produza diamantes, e dela rebentem flores, são talvez precisos estes
corpos a avigorar-lhe as seivas...
II
PARA A ESCOLA
No velho casarão do convento é
que era a aula. Aula de primeiras letras. A porta lá estava, amarela com fortes
pinceladas vermelhas, ao cima da grande escadaria de pedra, tão suave que era
um regalo subi-la. Obra de frades, os senhores calculam... Já tinha principiado
a aula quando a Helena entrou comigo pela mão. Fez-se um silêncio nas bancadas,
onde os rapazes mastigavam as suas lições e a sua tabuada, num ritmo cadenciado
e monótono, cantarolando. E ouviu-se então a voz da Helena dizer para o senhor
professor, um de óculos e cara rapada, falripas brancas por baixo do lenço
vermelho, atado em nó sobre a testa:
— Muito bons-dias. Lá de casa
mandam dizer que aqui está a encomendinha.
Oh! oh! a encomendinha era eu,
que ia pela primeira vez à escola. Ali estava a encomendinha!
— Está bem, que fica entregue. E
lá em casa como vão?
E enquanto o velho professor me
tomava sobre os joelhos, a Helena enfiava-me no braço o cordão da saquinha
vermelha, com borlas, onde ia metido nem eu sabia o quê. Meu pai é que lá
sabia... E ali estava eu entre os joelhos do senhor professor, com o bonnet numa das mãos e a saquinha
vermelha na outra, muito comprometido. A Helena, que sorria contrafeita,
baixou-se para me dar um beijo, e disse-me adeus.
— Adeus, Josezinho, logo venho cá
pelo menino.
Choraminguei, quis sair na
companhia dela.
— Não, agora o menino fica — disse-me
a Helena. — Isto aqui é a escola, é onde se aprende a ler. — E agachando-se,
diante de mim: — Olhe tanto menino, vê?
— Mas fica tu também — disse-lhe
eu então.
Nas bancadas houve hilaridade
geral. O mestre teve de intervir, iracundo:
— Caluda, sua canalha! Não vêem
que está gente de fora? Caluda, que vai tudo raso com bolaria!
Foi então que reparei em toda
aquela rapaziada. Ah, eles eram todos meus conhecidos! Vivam lá vocês! E
estavam todos alegres, pelos modos. Reanimei-me. Então já eu podia ficar,
estavam ali os meus amigalhotes, cheguei mesmo a rir das caretas que me faziam
alguns, o Estevão principalmente.
— Isto é preciso muita paciência,
senhora Helena, muita soma de paciência. Um mestre precisa de ser um santo. — (Pausa.
Olho duro sobre as bancadas.) — Mas está bem, diga lá que a encomendinha cá
fica. Em boa hora entrasse...
— Entrou, ele há de estudar. Ora
há de, Josezinho?
Das bancadas alguns acenavam-me
que não, arregalando muito os olhos.
— É verdade, — insistiu por sua
vez o professor — o menino há de estudar as suas lições, não é assim?
— Diga, sim senhor — ensinou-me
então a Helena.—Hei de estudar muito e ser sossegadinho na aula, diga. — E a
meia voz para o professor: — isto em casa é o vivo mafarrico; faz lá ideia?
Ele riu, já sabia; as crianças
são todas assim, enquanto estão no mimo das mães. Mas uma vez metidas na
escola, as coisas mudavam um pouco. E piscando o olho, designou a palmatória. A
Helena ficou transida.
— Faz milagres, Sra. Helena.
Digam lá o que disserem, olhe que faz milagres.
Eu tinha percebido. Começava de
novo a “embezerrar”, com vontade de sair quando a Helena saísse. Aquilo sabia
eu para que servia, a palmatória...
— Mas para o nosso Zezito não há de
ser precisa, ora não?
— Diga assim: não senhor, porque
eu hei de cumprir com as minhas obrigações, diga.
— Ora aí é que está — atalhou o
professor. — Vê, Sra. Helena? Aqui já os pequenos têm a sua obrigaçãozinha, os
seus deveres a cumprir, as suas coisas...
— Sim senhor, sim, enquanto que
em casa...
— Em casa é o que nós sabemos.
Tudo são mimos, meu menino isto, meu menino aquilo. Vão assim criados à lei da
natureza, sabe vossemecê? É mau isso, péssimo! Porque é que os rapazes são
todos teimosos? — E bateu num «Monteverde» pousado sobre a mesa, dizendo: — Olhe,
aqui está neste livro: «de pequenino...
—...é que se torce o pepino» — concluiu
rápida a Helena, orgulhosa de saber o que estava no livro, coitada!
— Nem mais. A modos que isto faz
rir. Um pepino é uma coisa que se cria na horta...
Risota dos rapazes!
— Ora vê isto, Sra. Helena? vê
estes brutinhos? — E com entono, de palmatória alta, fazendo-se carrancudo:
— Caluda, seus fedelhos! Caluda,
porque se peço licença à Sra. Helena, começo numa ponta e levo tudo a eito,
corro tudo a bolos, tudo, mas o que se chama tudo!
E fitou-os altivo, sereno, minaz.
Sob aquela ameaça, os rapazes ficaram transidos, cabisbaixos, olhos pregados
nos livros. É verdade que ele podia pedir licença à Sra. Helena, e mesmo diante
dela “cascar” de rijo... Uma sombra de terror passou por toda a sala,
sossegaram; até o Estêvão deixou de me fazer caretas.
— É o que vê, Sra. Helena — disse
então vitorioso, a sorrir-se, o bom do professor. — É o que vê! Um mestre sem
palmatória é um artista sem ferramenta, não faz nada. “Santa Luzia” milagrosa!
Aqui onde a vê tem feito muitos doutores.
— Essa? — perguntou ingenuamente
a Helena, disposta a venerar aquele pedaço de pau de buxo, se na verdade ele
tivesse feito muitos doutores.
— Não, mulher, se não foi esta,
outras como esta, essa é boa! Isso não faz ao caso.
Pela resposta bem se vê que foi
indiscreta a pergunta da pobre Helena. Também ele, velho naquele ofício, muitas
vezes investigara com mágoa o motivo por que a sua palmatória não fazia um
único doutor... Morreria sem ter essa «glória,» decerto! Forte martírio que a
Helena veio recordar-lhe!...
Houve uma interrupção, um rapaz
que se levantou e de braço no ar pedia para ir lá fora.
— Licéte!
— foi como ele disse, arremedando o latim licet.
Outros havia que diziam, por troça, Aniceto!
— Ora já a mim me admirava, — tornou-lhe
o professor. — Se tu não havias de pedir para ir lá fora, tu... — E ficou-se a fitá-lo,
meneando pausadamente a cabeça. — Ora vá você lá fora.
O rapaz saiu apressado, com
grande estrupido de pés.
— Olá? — chamou zangado o Sr.
professor.
O outro assomou à porta,
contrafeito.
— Para a outra vez faz-se menos
barulho com esses pés, ouviu? Não sei se percebes... Ora já que tem tanta
pressa, eu não tenho nenhuma; faça favor de esperar um pouco.
Pôs-se então a correr a vista
pelas bancadas, resmungando:
— Tu não... tu não... tu não...
Tu, olá, venha cá!
Levantaram-se uns poucos, foi um
barulho.
— Canalha! — gritou-lhes então,
batendo o pé. — Corja de atrevidos! Sentados, já!
Grande silêncio nas bancadas. Um
perguntou de lá, humilde, se era ele, apontando para o peito.
— Sim, és tu, pra que queres os
olhos? Avance e perfile-se.
Mediu-o de alto a baixo. Depois:
— Isso mesmo. Essa mão no bolso é
que não é do “regulamento”, fora com ela. Agora, sim senhor. Ora vês além
aquele sujeito? o tal das pressas?...
— Vejo, sim senhor.
— Bem sei que vês, se o não
vissem é porque eras cego; que tal está o palerma? Ora acompanhe-o, já sabe pra
quê. E sempre quero ver se tenho de vos ir lá buscar pelas orelhas.
Saíram. Mal tinham salvado a
porta, gritou-lhes o Sr. professor:
— Olá?
Eles assomaram, outra vez,
atrapalhados.
— Então, seus cabeças de avelã,
torres de vento, então não falta nada?
Os dois puseram-se a coçar a
cabeça, muito comprometidos. Faltava com efeito alguma coisa...
— Então é aí?
Eles avançaram até ao meio da
sala, tropeçando um no outro.
— Ora passa por esta vez, em
atenção a estar aqui a Sra. Helena. — E enrugando o sobrolho, comandou em tom
marcial: — Ordinário! marche!
Faltava aquilo. Em obediência aos
seus velhos hábitos de militar, dava o Sr. professor aquela voz, sempre que
mandava algum aluno cumprir ordens suas:
— Ordinário! marche!
Sentou-me então no joelho e
perguntou:
— Olha lá, Josezinho, tu queres
ser militar, queres? Assim como o Sr. capitão do destacamento, que lá está
aboletado em casa, queres?
— Corneta, mais queria ser
corneta. Ou então como o Sr. prior, dizer missas.
Riram-se. Quem sabia lá o que
dali sairia? Mas o Sr. professor fez notar que era bom que os pequenos tivessem
já assim uma tendência qualquer. E pôs-se a puxar-me o nariz, a dar-me
palmadinhas nas bochechas.
— Corneta ou prior, hein? Pois
isso é que é preciso escolher. — E para a Helena: — Pois olhe que os tenho
conhecido, Sra. Helena, que respondem a pés juntos que não querem ser nada. Mau
sinal, péssimo, Sra. Helena! Quando eles assim dizem, de ordinário assim fazem,
depois. Nunca são gente. — E virando-se para mim: — Mas então, Josezinho, em
que ficamos? Corneta ou prior?
Preferia ser prior. Sempre me
parecia melhor, mais bonito, especialmente em dias de festa, com aquela capa
toda doirada...
— Muito bem, escolheste bem.
«Telha de igreja”...
—...sempre goteja» — concluiu a
Helena que ainda hoje é forte em adágios.
O bom do professor tinha
finalmente chegado onde queria.
— Prior, então! Está muito bem,
seu reverendo. Pois olha, Josezinho, para ser prior é preciso estudar, saber
ler no missal, ora é?
— É.
— Ah!... Não é assim que se diz.
É, sim senhor — emendou a Helena.
O Sr. professor teve um gesto de
indulgência.
— Mas tu não sabes ainda, ora
não?
— Não senhor.
Ele então, fingindo uma grande
surpresa, perguntou se o que eu trazia na saca era um livro.
— Querem ver que é um livro?...
— Diga — ensinou a Helena — é o
meu livro para aprender a ler. Mostre-o lá ao Sr. professor, tome.
Houve na sala um murmúrio, ao
verem a capinha verde, toda lustrosa, do meu livro.
— Muito bem! muito bem! — aplaudiu
o Sr. professor. — Mas este livro é mesmo para aprender a prior... O menino já
tinha dito lá em casa que queria ser prior, ora já?
Fiz que sim com a cabeça. Era
verdade aquilo; mas como é que ele o sabia?
— Bem se vê por este livro. É
livro para prior. Queres então principiar, não queres?
— Quero, sim senhor, — ensinou
ainda a Helena e eu repeti. — O que eu quero é dizer missa quanto mais cedo
melhor, diga.
— Primeiro do que aqueles? — perguntou
voltando-me para as bancadas.
Então fui eu mesmo que respondi: —
«Sim senhor!» — contente com a lembrança de vir a dizer missa, e de a vir a
dizer primeiro do que todos aqueles. Até podia acontecer que o Estevão das
caretas me ajudasse a alguma...
— Ora então está muito bem,
estamos entendidos. — E com intenção, ferindo muito as palavras, para mas
gravar no espírito: — A primeira coisa que é precisa para prior é saber bem
isto, vês? — E punha-me diante dos olhos o livro aberto na primeira página. — Isto
aqui é já missa, chama-se o “a b c”, e é aquilo que os priores dizem quando vão
para o altar.
— Ito? — inquiri curioso, furando a página com o dedo.
— Sim, isto. E amanha já me hás de
trazer sabido daqui até ali. Hein? valeu?
— Diga que sim, menino, diga.
Valeu, sim senhor.
Eram as seis primeiras letras,
ainda me lembro bem. A minha primeira lição!
“A B C D E F”!
A minha primeira lição!
— Ora sabe vossemecê o que isto
é, Sra. Helena? isto que eu tenho estado a fazer?
— Sim senhor, sei... é assim...
como quem diz... é...
— Não sabe, não admira, — disse
complacente o Sr. professor. — Puxar o gosto, Sra. Helena, puxar o gosto é que
isto é. Nem todos os mestres o fazem, todos o deviam fazer. O pequeno, assim,
até já vai estudar com mais gosto, digo-lho eu; olé se vai!
«Mas ele não a queria demorar
mais, tinha lá em casa as suas obrigações, as suas voltas, e deviam ser horas.»
— Pois isso é verdade, Sr.
professor; mas não sei que é, custa-me a separar do menino... — disse a boa da
Helena, quase a chorar.
— Foi ama, deu-lhe o seu leite, aí
é que está a coisa. Pois tenha paciência. Aprender é tão preciso como mamar — concluiu
numa prosa que é mesmo poesia.
— Pois é preciso, é!...
E a pobre Helena beijou-me, para
se ir embora. Quando me beijou, senti na minha cara as lágrimas daquela boa amiga.
Retirava-se, deixando-me ainda sobre o joelho do meu velho professor, quando
este a chamou:
— Sra. Helena!
— Meu senhor! — respondeu,
levando aos olhos o avental.
— Já agora, espere mais um
instante.
Percorreu com a vista,
minuciosamente, as bancadas todas da aula.
Depois, intimou:
— Tu, Francisco, olá, chega
acima. E tu do lado, como te chamas, abaixo um pouco. — E virando-se para a
pobre mulher lacrimosa: — Ora é ali, Sra. Helena, ali é que é o lugar do
pequeno. Leve-o lá, ande, que lhe não deve pesar.
E dos braços do meu professor
passei para os braços da ama. Novo beijo, lágrimas mais quentes, e saiu a boa
da Helena, deixando-me no meu lugar... — o meu primeiro posto na arriscada
milícia das letras...
Depois, só vi isto: o mestre a
sorrir-se para a porta e a conversar por acenos com a pessoa que estava de
fora. Pequeno como era, percebi, no entanto. O mestre vinha a dizer na sua
mímica:
— Bolos?... Não?!... Perdoe a
Sra. Helena, mas isso, quando forem precisos... Pois sim... lá isso sim... pequeninos...
Han? mesmo com a mão?... Está bem... Descanse... Mesmo com a mão...
E ela devia sorrir por entre
lágrimas, porque foi também por entre lágrimas que o bom velho se sorriu,
dizendo adeus...
*****
...Helena, minha boa amiga! Acabo
de chegar ao fim da viagem que principiei nesse dia. Não volto mais à escola!
Venho hoje restituir-te, querida amiga, aquele beijo — dulcíssimo beijo aquele!
— que tu então me deste. E afinal não fui prior, ora vê!... Mas ainda bem. Se o
fosse, acho que parecia mal beijar-te, minha boa e santa amiga! Pois ainda bem que
não fui prior, ainda bem... Não é verdade, Helena?
Em Coimbra, no dia do meu ato de
formatura.
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Nota:
Trindade Coelho: "Os Meus Amores" (1891)
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