TRAGÉDIA RÚSTICA
“Madrugada de segunda-feira de
Entrudo, tapada dos Nobres, Alentejo, à porta do José Grilo.”
Truz! truz! truz!
Os de casa acordaram,
sobressaltados.
— Schiu! nem pio! — fez o José
Grilo para a mulher. — Moita!
— Truz! truz! truz!
Do seu cubículo, a Ana, filha do
José Grilo, pôs-se a chamar pelo pai. — Bem ouvia, que deixasse bater. Algum
bruto que se queria divertir...
Mas logo outra vez na porta:
— Truz! truz!
— Arre que é bruto! vá bater ao
inferno, quem é! gritou de dentro o José Grilo, zangado. E pois que se pôs à
coca, de orelha fita, olhos cravados na telha-vã do casebre, sentiu
distintamente os passos de alguém que fugia.
— Eu não te disse? aquilo foi
bruto que se quis divertir — explicou ele para a mulher.
Mas palavras não eram ditas,
pareceu-lhe ouvir o vagir de um cachorrinho, mesmo rente à porta. Veio-lhe logo
à ideia que lhe tinham vindo pôr zorro...
— Ó mulher, queres tu ver que há
novidade?
De um pulo saltou da cama,
embrulhou-se na manta e abriu a porta do casebre.
— Ele que demônio de embrulho...?
Pegou-lhe com muito jeito. Era
efetivamente uma criança, envolta em dois trapinhos muito velhos.
— Coitadinho! fez o ganhão
achegando ao peito a criancinha.
— Grandes cadelas! — E pôs-se
logo a fazer uma algazarra, alarmando a gente da casa.
— Andem! a pé! levantem-se! está
aqui este inocentinho que vem dar os Bons-dias à gente!
Correu a filha, veio a mulher.
Mas ao tempo, já o bom do José Grilo metera a criança na cama, visto que a
pobrezinha estava gelada...
— Ele quem diabo há por aí que
tenha leite? A filha do Antônio das Varedas, é verdade, a Brites que lhe morreu
o cachopo.
Despediu imediatamente a filha, a
Ana, à procura da Brites que chegasse o peito ao inocentinho. E da porta,
gritando para a rapariga que ia correndo:
— Que se não demore, ouves? que
se lhe paga aquilo que for.
Mas a mulher do José Grilo, a
senhora Joana, de pé no meio da casa, a saia amarela deitada pela cabeça, de
braços cruzados, muito embezerrada, permanecia sem dizer palavra.
— Ó mulher, nada de aflições, é
tal e qual como se fosse nosso, faz de conta... — observou-lhe logo o José
Grilo que percebia o ar taciturno da fêmea.
Ela só redarguiu que “nosso” era
um modo de falar. Seria dele, mais de qualquer desavergonhada...
O José Grilo, que estava a enfiar
as calças, parou no serviço e pregou-lhe uma gargalhada.
— Ajeita-me o pequeno, ouves? Vê
lá que talvez esteja molhado. E deixa-te de cantigas, que hoje é dia de
Entrudo.
A mulher ia reguingar; mas ele,
pegando-lhe de um braço, levou-a ao pé da criança, afirmando-lhe às risadas que sim, que o pequeno era filho dele.
— O pequeno?... mas é que pode
ser cachopa — disse o José Grilo para a mulher. — E certificando-se: — Nada! é
rapaz.
Seguiu-se uma altercação. A
senhora Joana, a chorar, ia jurando pela sua salvação que «o crianço» era filho
do seu homem.
— Ai Jesus que estou perdida!
chamava ela muito cômica, braços no ar, o balandrau da saia amarela enfiado
pelo pescoço num jeito de sobrepeliz. — Má hora em que me eu casei! ai Jesus
que vai ser de mim!
— Olha que é rapaz, ouves? anda
cá ver que é rapaz — disse-lhe de lá o José Grilo, muito fleumático, debruçado
sobre a criança.
Mas como visse que a mulher
continuava num estardalhaço, muito aflita, desaustinada pelos cantos da casa, o
José Grilo virou-se para ela e disse-lhe muito solene:
— Pois assim me Deus salve como
não é meu o rapaz.
Ao ouvir assim falar o seu José,
a senhora Joana voltou-se logo para ele, olhos esbugalhados, muito suspensa.
— Juras pelas cinco chagas, ó homem?
— Juro pelas cinco chagas.
— Assim te Deus dê saúde, ó José?
— Assim me Deus dê saúde.
— Preto sejas tu como o teu
chapéu?
— Preto seja eu como o meu
chapéu.
A senhora Joana botou-se logo a
correr para um canto da casa, e abrindo a arca de pinho, do bragal, entrou aos
beijos a uma Nossa Senhora da Conceição, pegada na face interna da tampa, com
bocadinhos de hóstia.
Depois desabafou, muito aliviada:
— Ai!
O José Grilo pôs-se a rir. — «O demônio
da Joana, com ciúmes!»
— Mas ciúmes de quê, ó mulher?
não farás favor de me dizer de que diabo tens tu ciúmes? — perguntava muito
casto o amigo José Grilo, sereníssimo diante da mulher desconfiada.
A outra, muito delambida,
redarguiu com ironia — «que o seu homem era um santinho...» — O José Grilo ia
defender-se. Mas ela, atalhando logo, reguingou de alto:
— Sabes tu que mais? estafermos é
o que mais há. Olha a cadela que enjeitou este...
Aqui, fez uma suspensão; depois
perguntou, muito lampeira:
— Mas quem seria a grande cadela?
Pôs-se então a mirar muito o
pequeno, a ver se lhe dava ares de alguém, murmurando frases de ódio,
moralistas:
— Precisava ser enforcada, a tua
mãe; quem quer que é tem mesmo entranhas de lobo.
O pequenino entrou a vagir, muito
friorento, embrulhado numa camisa do José Grilo.
— É fome, coitadinho! o infeliz
inda não sabe que coisa é mamar—disse contristado o lavrador.
Foi-se logo à porta, a ver se a
Brites chegava. Mas quem vinha com a Ana era a outra, a Doroteia do Antônio das
Veredas.
— Tua irmã, tua irmã é que se cá
precisava. Que demônio vens tu cá fazer? Ouves? não me dirás que diabo vens tu
cá fazer? — E deu um bofetão na filha, «para que soubesse dar o recado».
A Doroteia pôs-se a explicar que
a rapariga não tinha culpa. A irmã é que a mandara para levar a criança, porque
ela, adoentada, fazia-lhe mal sair de casa assim cedo...
— Só se lhe queres tu dar de
mamar — insistiu ainda o José Grilo, virado para a Doroteia, irreverente pelos
seus dezenove anos inda virgens.
A senhora Joana fez-lhe de dentro
que se calasse:
— Credo, homem! essas coisas não
se dizem, nem por graça.
— Eu sei lá se não se dizem? — observou
o lavrador, muito zangado. — Dá cá daí o pequeno.
Veio a senhora Joana com o
embrulhinho, que entregou ao José Grilo. O lavrador depô-lo nos braços da
Doroteia, com mil cuidados, e depois ele mesmo ajudou as mulheres a ajeitar o
pequenino, em termos que fosse bem quente.
— Roda forte, ouves? E diz lá a
tua mãe que eu de tarde por lá apareço, pra ver isto do ajuste.
A rapariga saiu. E como o
lavrador desse fé que tinham ali ficado os farrapos, gritou para a rapariga:
— Ó Doroteia! espera que inda cá
ficou isto.
Então pôs-lhe os farrapos ao
ombro — uns pedaços miseráveis de velha chita — e a Doroteia partiu onde à
irmã.
II
“Quarta-feira anterior a Domingo
Gordo. Monte do Rosário. Em casa de Antônio Palma, casado com Rufina Maria.”
O Antônio Palma tinha acabado de
jantar, rodeado da pequenada. A mulher, a Rufina, principiava a lavar a louça,
quando à grade do quinchoso uma voz chamou:
— Ó Sra. Rufina!
Vieram os pequenos, veio o Antônio
Palma, a mulher com as mãos fumegantes. Foi preciso fazer calar o “Farrusco”
para se poder ouvir o que dizia aquela mulher que lhes estava falando do
caminho.
— Queria-lhe uma palavrinha, a si
mais ao seu homem.
O Palma foi abrir o cancelório. E
foi com grande desgosto que deu de cara com a Francisca Fortunata, de grande
ventre alçado, uma desavergonhada que tinha fugido ao marido, o José Tomás
negociante de gado. Entrou, fizeram-lhe uma recepção fria. Os próprios pequenos
olhavam desconfiados e silenciosos aquela grande mulher gorda que eles não
conheciam. Ela sentou-se logo num saco, muito esfalfada, enquanto o Palma e a
mulher afetavam procurar ambos um banco, acotovelando-se, com trejeitos de quem
se sentia arreliado com a visita. O “Farrusco” investiu com a mulher, achando-a
estranha; mas uma vez enxotado com o pontapé do Palma, fez-se na casa um grande
silêncio, e a mulher começou assim:
— Venho pedir por caridade e
esmola que me deixem aqui estar uns dias. Já vêem como eu ando, isto deve estar
por pouco. Logo que tenha o meu filho, em arribando da quebreira do parto,
deixo-os e vou-me embora. Lá em casa de minha mãe aquilo é uma grande miséria,
passam-se dias que não comemos. Não há uma cama, a gente dorme sobre umas
palhas, sem jeitos de roupa com que se cubra. Mas eu ando neste estado, bem
vêem como eu ando...
Aqui desatou a chorar, levando
aos olhos o avental miserável. O Palma e a mulher diziam não sei que
monossílabos, o “Farrusco” rosnava. A outra prosseguiu:
— Não é por mim, sabem? não é por
mim. É este inocentinho que tem de nascer no chão, como os cães... Bem sabem
que isto custa. Pouco se me dava de morrer, afinal, mas queria que o meu filho
vivesse... Coitadinho!
Ergueu-se num ímpeto, depois caiu
de joelhos, mãos erguidas para o Palma e para a mulher.
— Pelas cinco chagas de Nosso
Senhor! exclamou.
O Palma fez para a mulher um
gesto resignado e de lástima. Cada um de seu lado, ajudaram-na a levantar-se,
dizendo-lhe submissamente que tudo se havia de arranjar, que sossegasse.
— Que a falar os pontos de
verdade, Sra. Fortunata, vossemecê é que tem a culpa desses trabalhos,
disse-lhe logo o Palma.
Ela escondeu a cara no avental,
fazendo-lhe com a mão que se calasse.
— Má sorte daquele pobre José Tomás,
acabou-se! Quando ele casou com vossemecê antes tivesse quebrado uma perna.
Ela chorava cada vez mais,
parecendo muito aflita.
— Agora aí o tem, anda por esses
caminhos que parece doido. Nem gado, nem o diabo. Desde que vossemecê alvorou
que o rapaz não vai a uma feira. Pois olhe que era homem para juntar, videiro
como poucos.
Pôs-se a fazer um cigarro,
olhando os pequenos atônitos. Depois continuou:
— Esteve aqui um destes dias, por
sinal que sentado nesse mesmo saco...
A Fortunata levantou-se num
ímpeto, como se o saco a repelisse. O Palma prosseguiu:
— Sente-se vossemecê, mulher, o
saco não faz ao caso. Pois foi aí mesmo que ele esteve, até parecia um pobre de
pedir. Nem botões na camisa, coitado! Mas pela conversa bem se vê que inda lhe
não quer mal. Que a bem dizer ele quase não conversa, anda a modos que
amalucado, sempre a levar a mão à cabeça, como se lá dentro aquilo andasse
azoado. E mais é que bem pode o rapaz dar em doido...
A senhora Rufina foi de parecer
que doido já ele andava. Passavam-se dias que não aparecia em casa do tio José
Garção, que o levara logo para ele, mal a Sra. Fortunata o deixara. Por onde
andava? que fazia? Contava-se que uma noite dormira numa coutada, no mesmo
telheiro que os porcos. Que doutra vez fora ter com o vigário para que lhe batizasse
o filho, dizendo que já tinha nascido.
— No filho inda ele aqui se pôs a
falar, lembrou o Palma. — Anda com ela ferrada que o filho já nasceu.
Aqui, a Fortunata, de pé junto à
porta, rompeu numa choradeira, ouvindo falar no filho. O Palma interveio,
condoído, dizendo que se não afligisse, que o filho sempre teria uma caminha
onde nascesse.
Ela ia ajoelhar, o Palma não
deixou.
— Não é por vossemecê, mulher,
assim me Deus salve como não é por vossemecê. Mas é que o inocentinho que aí
traz esse é que não tem culpa. Faço de conta que é o pai que me pede, o pobre
José Tomás. Vossemecê bem sabe que eu era amigo do José Tomás. Diabo! a gente
já diz “era”, já fala nele como se o
pobre tivesse morrido...
Nisto vieram chamar o Palma, que
no lameiro ali em baixo andavam uns bois que não eram dele. Foi-se a buscar um
marmeleiro, e depois, quando já ia para sair, disse em resumo:
— Fique vossemecê então, Sra.
Fortunata. Ouves, Rufina? Talvez que ela inda não jantasse. Faz-lhe a cama lá
dentro, e o resto arranjem-se.
Caso é que a Maria Fortunata,
amanhecendo para Domingo Gordo, desentupiu e teve um filho. Mas nem sequer o
tinha ainda beijado, nem lhe tinha feito uma carícia, quando por volta do
meio-dia a avó do pequeno ali chegou, vinda de longe. O Palma que estava no
quinchoso, a dar a bolota aos cevados, ficou espantado:
— Pois senhores! havia de jurar
que você adivinha, Sra. Ana!
Ela, sem mais rodeios, perguntou
se a criança já tinha nascido.
— Já nasceu, sim senhora, vá lá
dentro se a quer ver. Venha daí.
Mas iam ainda à porta, quando a
velha, filando o braço do Palma, lhe perguntou num sobressalto:
— Vivo ou morto, Sr. Antônio?
O Palma percebeu. O estafermo da
velha queria que a criança nascesse morta. Aquilo fez-lhe nojo, deram-lhe ganas
de correr a mulher a pontapés. Conteve-se. Mas todo ele vibrou de cólera,
quando em presença do pequenino a velha, sem o beijar, perguntou o que se lhe
havia de fazer.
O Palma, furioso, repeliu a
mulher com desprezo. E como ela insistisse com a pergunta: «que se há de agora
fazer a isto?» ele redarguiu, irado;
— Dar-lhe de mamar, está bem
visto. Inda você pergunta o que se há de fazer à criança. Talvez você queira
que o pequeno vá já cavar...
A velha ia falar.
— Nem pio, seu estafermo! Que tal
é o amor que você lhe tem, que inda nem sequer a beijou. Nem a mãe o beijou
ainda, coitadinho! Você já viu uma cadela quando tem os filhos, já viu? Com mil
diabos, qualquer cadela vale mais que vocês duas.
O Palma ia-se pondo amarelo, a Sra.
Rufina interveio, aconselhando-o a que saísse.
— Saio, e vou-me embora, ouviste?
Ouviste? Aparelho a égua e vou-me de véspera até à feira.
Pôs-se a procurar pelos cantos,
aqui os estribos, além o freio da égua.
— Tanto faz ir amanhã cedo, como
ir já agora. É já de cara. Mete-me qualquer coisa nos alforges, que vou já
aparelhar a égua.
Daí a meia hora, o Palma montava
à porta, no meio do rancho dos cevados, e chamando a mulher dizia-lhe com má
cara:
— Em estando capaz, rua!
— Daqui a três dias, talvez...
— Então até daqui a quatro.
Ouves? E olha se defumas a casa, quando esses estafermos saírem.
Ora o Antônio Palma a virar
costas, e a velha a sair porta fora — com o embrulhinho do neto ao colo...
Como ela corre, a maldita! Parece
que o leva roubado...
Onde passou ela o dia? Onde
passou ela a noite? Não sei. Caso é que na madrugada seguinte, a desavergonhada
abandonava o pequenino à porta do José Grilo.
Madrugada de Fevereiro, nevava...
III
Quando a Doroteia saiu com o
pequeno, para o levar à irmã, tinha amanhecido havia pouco. A neve cessara; mas
um nordeste frigidíssimo retalhava a cara da rapariga, encolhida sob aquela
atmosfera de gelo. Nunca o souto que ia atravessando lhe parecera tão comprido
e tão triste. Os grandes castanheiros despidos, cheios de neve até ao alto, faziam-lhe
mais viva e mais cortante aquela impressão de frio. O chão estava coberto de
neve; e lá em cima, muito alto, o céu muito azul anunciava um dia de sol.
A rapariga ia triste. Dir-se-ia
que a tristeza lhe nascia toda daquele lado em contato com o pequenino...
Por isso quando passou pela
azenha, e que a mulher do Paulo lhe perguntou o que levava ali, erguendo a voz
sobre o ruído forte da levada, a rapariga entrou de chorar e respondeu que era
um enjeitadinho.
— Um quê, mulher? que dizes tu?
insistiu a outra.
Mas o moleiro, que vinha
chegando, especou diante da mulher, e repetiu como um eco:
—...Um enjeitadinho.
Entreolharam-se os três, numa
incerteza vaga.
— Sim, um enjeitadinho, deve ser
isso... — continuou o moleiro.—E daí... pode ser que não seja...
A rapariga, muito impaciente,
perguntou se sabiam alguma coisa.
— Nada! pode ser que a história
seja outra — elucidou o moleiro.—Onde foi que isso foi posto?
— Esta madrugada, à porta do José
Grilo.
— Olá! isso então pode ser coisa
dele — observou a rir o moleiro.—Esse diabo não é seguro.
Puseram-se a rir da lembrança. Já
dentro do moinho, o homem pôs-se a explicar à rapariga:
— É que ontem à noite veio aqui
um homem pedir pousada, um homem a modos que adoidado. Boa figura de homem, por
sinal. Assim às primeiras, tanto eu como
a Luísa tivemos o nosso medo...
— Ó Doroteia! interrompeu a
mulher do moleiro, dá cá o menino e senta-te. Vou-lhe dar de mamar, que o
pobrezinho há de ter fome.
A Doroteia passou a criança para
os braços da moleira. Foi uma alegria ao verem-no sugar no peito, minúsculo,
com os olhitos inda fechados.
— Meu rico anjinho, meu amor! A
fome que o desgraçadinho tem! Quem seria a desavergonhada?...
— Mas depois? inquiriu a
Doroteia, voltando-se para o moleiro.
— Depois, dormiu cá, aí lhe demos
da ceia e aí ficou. Mas dá-se o caso que o homem não pregou olho em toda a
noite, sempre a malucar, num falatório pegado. «Que o filho era dele, que se a
cabra da mãe teimasse em o enjeitar, ele ia dar parte à justiça.» Um arrazoado assim,
muito comprido.
Espantada, a Doroteia ia falar.
— Mas espera, que o melhor da
festa é que o homem tão depressa dizia isto, como dizia que o filho já tinha
nascido, que era muito lindo, que onde ele o tinha escondido ninguém lho ia
roubar.
Ficaram-se um instante a mirar
consolados a criança.
A pobrezinha vagia, mamando com
sofreguidão.
— Mas então sempre ele sabe do
filho, reatou com interesse a Doroteia. — Ora! assim este enjeitadinho soubesse
quem era o pai, coitadinho!
A Sra. Luísa, que não gostara que
se recolhesse o homem, resumiu com ar compungido:
— Um doido, o pobre de Cristo!
Deixá-lo ir!
Fez-se um silêncio, mirando todos
a criança. A taramela do moinho batia, num ritmo vivo. Maquiando uns sacos, o
moleiro explicou ainda que o homem alvorara muito cedo, debaixo de neve, sem ao
menos dizer obrigado. Mas que perguntando-lhe onde ia aquelas horas, o outro
lhe respondera: — «Para a feira. Vender um gado.»
— Ora vá lá o diabo entender
isto! — rematou por fim o moleiro. Um doido a vender gado.
Conversaram sobre o caso, algum
tempo. Até que a Doroteia, com pressa por causa da irmã, pegou outra vez na
criança e abalou pela porta fora, direita à casa do pai.
— Olha os trapos, ó Doroteia!
olha que deixas cá isto. — E o Paulo correu a levar à rapariga os trapos
segunda vez esquecidos, e que eram todo o enxoval do triste pequenino...
Ia mais contente, a Doroteia. Ao
menos levava a certeza de que a criança não ia com fome. E para que também não
fosse com frio, a boa da rapariga achegava ao peito o enjeitadinho, numa
solicitude toda materna.
— Louvado seja Deus! ia dizendo a
rapariga. Como haverá gente que seja capaz destas crueldades! A nevar, e
deixa-se assim um inocentinho, embrulhado em dois farrapos, na soleira de uma
porta! Vamos que o José Grilo não dava fé! Ali se morria de frio o anjinho,
capaz de virem depois os cães e comê-lo.
E espreitando pela fenda estreita
do xaile:
— Meu anjinho! que ruim cadela
que foi a tua mãe, ora foi?
— Foi! rugiu uma voz detrás dela,
como um eco.
A Doroteia deitou a fugir,
espavorida. Mas aquele homem que já de longe a acompanhava, sem ela dar fé,
corria também atrás dela, e não tardou que a filasse, como um lobo. A rapariga
soltou um grito, ia cair com o susto; mas valeu-lhe que nesse mesmo instante
uma voz que ela conhecia gritou ali de perto:
— Larga a rapariga, ó José Tomás!
Larga a cachopa!
E de um pulo, o pastor caiu entre
os dois, separando-os.
— É o José Tomás que está doido, —
explicou o pastor. — Desde que a mulher lhe fugiu, que o pobre anda assim,
coitado!
Mas palavras não eram ditas, eis
que o José Tomás de novo se arremessa à rapariga.
— Tu que levas aí? Tu levas aí o
meu filho! — rugiu ele com voz furiosa.
E como se sentisse agarrado, e
visse que acudia mais gente, o pobre lançou-se por terra, de joelhos sobre a
neve, as mãos erguidas, impetrando a chorar que lhe dessem o seu filho...
A Doroteia cobrou ânimo, ao
ver-se rodeada de gente.
E fez-se luz no seu espírito,
quando reparou que os trapos do enjeitadinho eram reconhecidos pelo doido que
os estava mirando, a rir-se...
— Conheces? perguntou-lhe a
rapariga.
No êxtase em que caíra, mirando e
remirando os farrapos, o doido não respondeu.
— Se conheces isso?
perguntaram-lhe uns poucos.
Nem palavra. Nada a não ser um riso
nervoso que o sacudia todo. Como estava de joelhos, quiseram levantá-lo; mas
ele então opôs-se, caindo sobre os calcanhares.
E ria... ria... enquanto dos
olhos amortecidos, cravados no miserável farrapo, as lágrimas corriam,
copiosas...
Mas daí a pouco, pelas palavras
soltas do doido, todos ficaram percebendo. Os farrapos que embrulhavam a
criança eram da saia da mãe. A mãe era a mulher do José Tomás, e o pequenino
era filho dele... A grande cadela tinha abandonado o pequeno, depois de ter
fugido ao homem!
— Um raio venha que a parta!
rogou do lado o pastor. — Ora vês aí um estafermo que precisava que a matassem!
O José Tomás pôs-se a rir muito,
fitando aquela gente. Uma forte impressão de piedade estampava-se em todos os
rostos.
— Ó Doroteia! chamou então um dos
do grupo. Traz aqui o menino. Um pai deve sempre beijar o seu filho. Traz cá o
pequeno, ó rapariga.
Mas não foi preciso; que o José
Tomás, sempre de joelhos sobre a neve, foi para ela de mãos postas humilde como
um rafeiro... E como aos lábios do pai a rapariga achegasse o pequenino, no
silêncio que se fez ouvia-se o rir convulso do louco, beijando de joelhos o
filho.
Como se fora uma chuva de
pétalas, do céu de madrepérola a neve caía mais densa... — ao mesmo tempo que
nos ramos altos dos castanheiros, como no seio imenso de um órgão, o vento sul —
gemia...
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Nota:
Trindade Coelho: "Os Meus Amores" (1891)
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