O
SARGENTO QUE FOI AO INFERNO
Havia
numa terra um sargento, que era muito bom rapaz; um rico mercador tomou-lhe amizade, arranjou-lhe a baixa e tomou-o para seu
empregado. Como o mercador tinha filhas, o sargento apaixonou-se por uma delas: ora o
mercador era muito desconfiado e nunca deixava sair as filhas de casa, mas pela grande conta
em que tinha o rapaz ele mesmo lhe falou para se fazer o casamento. Tudo corria muito bem;
vai, acontece ir uma peça muito linda no teatro, e como as filhas desejassem ver, pediram ao
sargento, que só ele é que era capaz de apanhar licença do pai para as deixar ir ver. O
mercador ficou carrancudo, mas deu licença, dizendo:
–
Deixo ir as minhas filhas com o senhor, e é com a condição, que quando der a
última badalada da meia-noite hão-de
estar aqui à porta.
Disseram
todos que sim, e partiram.
Quase
perto da meia-noite, o rapaz disse para a sua noiva, que era bom retirarem-se
para casa. Mais um bocadinho, mais um
bocadinho; pede daqui, pede dali, o certo é que já tinha dado a meia-noite, eles ainda longe de casa.
Assim
que o rapaz bateu à porta, abriu-se logo de repente, e o mercador começou a
bradar:
– Foi
assim que o senhor cumpriu as ordens que eu lhe dei? Pois trate já de arranjar
as suas coisas que nem já esta noite me
fica em casa.
– Oh
senhor, então só por isto! E quando estava já para casar com sua filha!
O
velho respondeu-lhe:
– Só
tem um meio de poder casar com minha filha, e voltar para casa.
–
Qual?
– Vá
ao Inferno, e traga-me três anéis que o Diabo tem no corpo, dois debaixo dos
braços, e outro num olho.
O
rapaz achou aquilo impossível; mas que remédio teve senão pôr-se a caminho. Na
primeira terra a que chegou, pregou um
edital em que dizia: "Quem quiser alguma coisa para o Inferno, amanhã parte um mensageiro." Isto causou
grande curiosidade, até que chegou aos ouvidos do rei, que mandou chamar o rapaz.
Perguntou-lhe o rei:
–
Como é que você vai ao Inferno?
–
Real senhor, por ora ainda não sei; ando em procura dele, e irei lá, dê por
onde der.
–
Pois bem, disse o rei, quando encontrares o Diabo, pergunta-lhe se ele sabe de
um anel de muito valor que eu perdi, do
que ainda tenho grande desgosto.
Chegou
o rapaz a outra terra e botou o mesmo anúncio. O rei também o mandou chamar:
–
Tenho uma filha que padece uma doença muito grande, e ninguém lhe acerta com o
mal. Já que vais ao Inferno quero que saibas por lá onde é que estará a cura.
O
rapaz partiu sempre à procura do Inferno, e foi dar a uma encruzilhada em que
estavam dois caminhos, um com pegadas de gente, e o outro com pegadas de
ovelhas. Pensou, e por fim seguiu pelo
caminho das pegadas de gente; ao meio dele encontrou um ermitão, de barbas brancas, que rezava em umas camândulas muito
grandes, e lhe disse:
–
Ainda bem que tomaste por este caminho, porque esse outro é o que vai para o
Inferno.
– Oh,
senhor! E eu há tanto tempo que ando à procura dele!
O
rapaz contou-lhe todo o acontecido; o ermitão teve compaixão dele, e disse:
– Já
que tens de ir ao Inferno, vai, mas sempre leva contigo estas contas, porque
antes de lá chegar tens de passar um rio
escuro, e há-de ser um pássaro que te há-de levar para o outro lado; e quando ele te quiser afundar no rio,
joga-lhe as contas ao pescoço. Daqui em diante não sei mais o que te sucederá.
Assim
aconteceu. Chegado ao Inferno o rapaz teve um grande medo, e viu para ali um
forno vazio e escondeu-se dentro dele.
Quando estava todo agachado, passou uma velha muito velha e viu-o.
– O
menino aqui! Ora coitadinho, que é tão lindo; se o meu filho o visse matava-o,
com certeza. O que veio cá fazer?
O
rapaz contou tudo à mãe do Diabo; a velha teve pena dele, e disse-lhe:
–
Olhe; pois deixe-se ficar aqui escondido, porque eu não sei quando o meu filho
virá; ele está assistindo à morte do
Padre Santo, que está nas agonias, e quer-lhe apanhar a alma. O rapaz pediu à velha se sabia do Diabo as perguntas
de que trazia encomenda. Quando estavam nestas
conversas chegou o Diabo bufando; a velha escondeu-o logo, e disse:
–
Anda cá, filho, para descansares; deita-te aqui no meu colo.
O
Diabo deitou-se e ficou logo a dormir. A velha foi muito devagarinho com as
unhas e arrancou-lhe um anel que tinha
debaixo do braço. O Diabo mexeu-se desesperado, gritando:
–
Isto o que é?
– Ai,
filho, fui eu que me deixei dormir, e dei uma pendedela em cima de ti. Estava a
sonhar com aquele rei que perdeu o anel,
e que nunca mais o tornou a achar.
–
Pois é verdade esse sonho, respondeu o Diabo; está debaixo de uma laje ao pé do
repuxo do jardim.
O
Diabo tornou a ficar a dormir; a velha sorrateira arrancou-lhe o segundo anel.
O Diabo tornou a acordar desesperado:
_ Tem
paciência, filho; tornei-me a deixar dormir e a sonhar com a filha daquele rei
que nenhum médico sabe curar.
–
Também é verdade; a doença dela é o sapo-sapão, que está metido no enxergão.
Tornou
o Diabo a dormir. Para arrancar o anel do olho é que foram os trabalhos.
A
velha tirou-o com um espéculo, e o diabo com a dor e zangado com as pendedelas,
saiu pela porta fora. O rapaz recebeu
tudo da velha; voltou para o mundo, quando ela chamou o pássaro: "Menino, menino, menino."
Foi dali entregar as contas ao ermitão. Depois passou pela terra do rei que tinha perdido o anel, que lhe
deu muito dinheiro quando o tornou a achar debaixo da laje. Depois passou pela corte do
rei que tinha a filha doente, disse onde estava o sapo-sapão. A princesa melhorou logo, e o rei
pediu-lhe para que dissesse a paga que queria.
–
Quero que Vossa Majestade me dê o seu poder por oito dias.
O rei
mandou deitar um pregão para ele governar oito dias; o rapaz partiu logo para a
terra do sogro, e deu ordem logo que lá
chegou para o mercador dentro em meia hora lhe vir falar à sua presença. O mercador foi, mas quando chegou
era já mais de uma hora. O rapaz disse:
–
Podia-o mandar matar, por me ter desobedecido, em vir depois da meia hora.
– Oh
senhor, não me demorei por minha vontade.
–
Pois sim. Mas porque não soube em tempo desculpar aquele pobre sargento que pôs
fora de sua casa?
O
mercador conheceu então o antigo noivo de sua filha, que tinha sempre chorado,
confessou o seu erro, e pediu-lhe de
joelhos muitos perdões. O rapaz entregou-lhe os anéis do Diabo, e nesse mesmo dia casou com a sua namorada, por
quem tinha metido um pé no Inferno.
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Nota:Teófilo Braga: "Contos Tradicionais do Povo Português" (1883)
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