UM DRAMA ÍNTIMO
Ao meu amigo Agostinho F. Velho
La vie en effet n'est qu'une idée sans valeur, une page blanche,
qu'otan n'y a pas écrit ces mots: — J'ai
souffert, c'est à dire, j'ai vécu.
Baron de Feuchtersleben
I
«Como Amélia era formosa! que
bondade a sua! que terna expressão a do seu rosto angélico; e, que sentimento!
que grandeza d'alma!...
«Como não eram radiosos aqueles
sonhos da loura criança, que á noite ia segredar á brisa os seus amores
sentidos, em infantil rubor!...
«Oh!... e que meiguice não era a
sua, espalhando tão docemente o aroma de seus argênteos cabelos á viração
perfumada da tarde, e despertando, ao longe, os ecos da solidão com o brando
dedilhar da sua harpa portentosa!...
«Fantasma cruel, que, por tanto
tempo, me alimentaste o porvir grandioso das minhas aspirações efêmeras! Sombra
implacável de um destino falaz! Efígie derradeira de uma quimera inútil!
Espectro medonho da medonha existência! Mulher! anjo! demônio! tudo enfim!...
«Porém, não!... renasça uma
crença, ao menos! reviva a fé, em nossos corações! dissipem-se as negruras da
vida, e surja a aurora boreal de um futuro certo, e de uma verdade eterna!...
Nestes termos apaixonados falava
o venerando presbítero, Francisco de Castro, ao seu afetuoso amigo, Alberto de
Carvalhal, quando um raio furtivo do sol, penetrando de soslaio por entre a
coma dos pinheirais, que se erguiam altivos lá no cume das montanhas, os veio
despertar do inebriante gozo e suavíssimo prazer, em que, desde longas horas,
se haviam esquecido dois amigos desditosos, profundamente adormecidos nos
braços de uma saudade infinda.
O pescador deixara a choupana,
que lhe era consolação extrema nas horas de aflitivos transes e doloroso penar,
para ir estender a rede na praia mais próxima!
Ao longe ouvia-se a voz rouquenha
e estridula do gondoleiro, acordando aos ecos da sua alma o doce nome da amante
ditosa, que, em terra, por ele velava, dia e noite.
O astro do dia, erguendo-se fantasticamente
das salsas, escamosas ondas em que parecera mergulhado, havia desfeito as
obscuras brumas, que lhe empanavam o brilho, espargindo sua luz etérea pelo
espaço infinito.
Tudo rejuvenescia, ao seu hálito benfazejo!
A planta, modesta e grata,
elevava para o céu a corola de feiticeiro encanto, gotejando compassadamente a
ambrosia celeste de suas elegantes pétalas, matizadas d'ouro e prata.
Rejubilava o passarinho no ramo
frondente, pipitando a medo um eterno canto de amor e saudade.
A abelha, com a cabeça esmaltada
de pedras e diamantes, as azas variegadas como o íris, encetava sua laboriosa
tarefa, sorvendo diligentemente o suco da nectária, que junto lhe acenava.
Neste comenos, Francisco de
Castro enlaçou seu braço direito pelo corpo do idolatrado amigo, convidando-o
fraternalmente a retirar-se para casa.
— Vamos, meu bom amigo, — dizia
ele, — recolhamo-nos ao meu humilde presbitério, e lá lhe contarei então, mais
desafogadamente, os lances da minha existência, se a tibieza do meu espírito
tanto mo permitir, e, antes d'isso, não afrouxar.
II
Francisco de Castro era natural
de Aveiro. Filho de pais indigentes, e de baixa condição, a sua juventude deslizara,
naturalmente, por entre o vegetar monótono daquela cidade, sem outro incentivo
que não fosse a salutar influencia de algum parente mais próximo, ou o conselho
leal e franco de algum amigo intimo.
Chegado, porém, que foi á idade
da razão, os seus sentimentos abriram-se-lhe em sensações suaves num porvir
radiante, e despertaram nele um prurido irresistível de ir em cata de melhores horizontes
por esse mundo além.
Com este intuito, pois, deixou o
nosso provinciano a terra da infância, antecipadamente recomendado, e
sobejamente abonado por um comendador, seu padrinho, com destino para os portos
do Brasil.
Que saudades se lhe não avivaram
na mente, ao ver-se longe da pátria e dos seus! que pavor não afrontou com o
rugir da procela, e horrores do naufrágio no alto mar! ele, que jamais havia
ultrapassado os estreitos limites da sua terra natal! mas também, com que
deleite, com que profunda emoção, não mirava ele, por noites calmosas, o manto
do firmamento azul, majestosamente recamado de estrelas, que se lhe desenhavam
por cima da sua fronte! e o sereno marulhar das vagas, quebrando-se de mansinho
no dorso da frágil embarcação! e aquele continuo acastelar de nuvens, debuxando
tão ridentes e fantásticas figuras por sobre a vastidão dos mares!...
Como ele sonhava, então!... Como
se deixava arrastar tão docemente pelos mundos etéreos de ignota fantasia,
julgando ter já encontrado o almejado tesouro que ao longe lhe sorria!
regressando rico e feliz ao solo natalício, e vendo já os seus, agrupados em
torno de si, beijando-o alegremente! E, contudo, como foi diversa a
realidade!...
Francisco de Castro desembarcara
no Rio de Janeiro a 30 de março de 1849. Procurando saber imediatamente onde
era a rua Direita, aí se dirigiu, sem mais delonga, aos srs. Costa Pereira
& C.ª, ricos proprietários de uma casa comercial, e correspondentes de seu
padrinho naquela cidade.
Tanto que foram entregues as
cartas, que devidamente o recomendavam, apareceu um caixeiro convidando-o a
entrar, e, apertando-lhe fraternalmente a mão, como sinal evidente de futura e benévola
camaradagem.
Daqui foi o nosso provinciano
levado á presença de um dos donos do estabelecimento, que o interrogou
minuciosamente acerca da sua vida passada, animando-o amigavelmente a entrar no
escabroso labutar daquele labirinto comercial, e acolhendo-o para logo em sua
casa, consoante a praxe de ha muito estabelecida naquele país.
Eis aqui, pois, como Francisco de
Castro se iniciou na vida ativa do comércio, desejoso, sem duvida, de
trabalhar, quanto o comportassem as suas forças, e esforçando-se o mais possível
por granjear, dentro de pouco, os meios de subsistência necessários para prover
decentemente ás necessidades de sua família, que tanto o havia mister.
A fortuna foi-lhe, porém,
adversa. Caiu, quando menos o julgava, e caiu, para nunca mais se levantar.
Repugnava lhe á sua índole, em
extremo ardente, o ver-se um dia inteiro acorrentado a um balcão, não mirando a
outro horizonte, que não fosse o sediço positivismo do — Deve — e Há de haver.
Cansado já daquele pandemônio
tumultuoso de gelo e de cifras, intentava uma ou outra vez espairecer os olhos
lassos de fadiga e sensaboria, levantando um olhar modesto e casto para uma
casa fronteira, em cuja janela voejava brandamente uma andorinha gentil.
Foi isto mais que suficiente para
ele ser despedido, ao cabo de alguns meses, da residência, onde tão
familiarmente havia sido acolhido, logo após a sua chegada.
Assim vagueou incerto, por alguns
meses, benquisto por uns, odiado por outros, sustentando, a cada passo, uma luta
ingente e dolorosa consigo próprio; e regressando, mais tarde, á pátria com o
vivo remorso de nada haver contribuído para o bem estar de seus pais, e de ter
ido, além d'isso, semear a desordem e a confusão no seio de uma família estranha.
Por isso, minguado de recursos,
apenas chegou a Portugal, Francisco de Castro, não contando mais de trinta anos
de idade, resolveu-se a tomar ordens, expiando, com o sacrifício de seus derradeiros
dias, uma mocidade, no parecer de muitos, estouvada e febril, que jamais pudera
olvidar.
Estava ele, um dia, meditando
deliciosamente, á sombra de anoso cedro, recolhendo, na sua debilitada
imaginação, as sombras longínquas desta tragédia estupenda, que se passa entre
Deus, o homem e o universo, quando um desconhecido, eventualmente, se acercou
daqueles sítios!
Era Alberto de Carvalhal!
Movido pela profunda tristeza,
que subitamente acometera Francisco de Castro, e pela curiosidade irrequieta de
querer sondar os arcanos daquela alma formosa, que bem se deixava entrever na
sua fronte generosa e ampla, e naquele seu vulto insinuante e nobre, já curvado
ao peso de uma paixão prematura, e de um destino atroz, que lhe secara a seiva
da vida, e lhe emurchecera as flores mais ridentes da sua primavera; Alberto
aproximou-se do lugar, onde o presbítero se sentara, e prorrompeu nos termos
seguintes:
— Não sei se, da minha parte,
haveria indiscrição, em vir quebrar-lhe este momento de gozo inefável e plácida
meditação, acordando-o á triste realidade da vida?! Confio, porém, no perdão da
sua generosidade.
— Bem pelo contrario, meu caro.
Um amigo é sempre bem-vindo, e, se uma ou outra vez nos apraz a solidão, é
certo que a sua continuação nos causaria insuportável tédio. Precisamos de uma
urna depositaria dos nossos segredos; do mesmo modo que a planta carece do
orvalho para vicejar e crescer. Sente-se aqui ao meu lado, e assista comigo ao
mais pavoroso de todos os espetáculos que só a natureza nos sabe prodigalizar,
e que a maioria dos homens, no meio de seu estúpido orgulho, olham
indiferentes.
Travada, assim, a intimidade
entre estes dois corações, que á primeira vista pareciam entender-se bem; fácil
lhe foi, a Alberto de Carvalhal, que Francisco de Castro lhe narrasse
circunstanciadamente os tristes episódios de alguns dos seus dias passados.
Com este alvitre pois, enlaçados
pela mutua simpatia, aqueles dois amigos encaminharam-se para casa, onde,
depois de terem almoçado jubilosamente, Francisco de Castro, coadjuvado pelo
atencioso ardor do seu companheiro, encetou o drama da sua vida com as
palavras, que vão ler-se no seguinte capitulo.
III
«Foi por uma tarde serena de
abril. Eu, criança ainda, dos meus 13 anos, divagava, triste e solitário pela
margem graciosa do meu límpido Vouga, contemplando aquele espetáculo de místico
enlevo, aquela hora de profundos arroubos e de gostosa melancolia, em que o
Criador mais parece falar diretamente ao coração do homem, — quando,
inopinadamente, me pareceu ouvir, a poucos passos do logar onde me encontrara,
o estalido rápido e seco de um instrumento metálico. Em poucos minutos galguei
um comoro, que me separava daquele sitio desastroso, encontrando-me face a face
com dois personagens, que, muito intencionalmente, tinham escolhido o silencio
daquela hora para ali virem bater-se num duelo de morte. Quis dissuadi-los de
semelhante propósito: nada consegui.
«Travou-se uma luta feroz, e,
dentro de pouco tempo, um dos adversários jazia por terra, coberto de pó, e
revolvendo-se cruelmente no sangue de suas próprias feridas. Ainda
experimentei, uma e muitas vezes, levantar o moribundo, e conduzi-lo á primeira
guarida, que se me deparasse oportunamente. Tudo foi baldado, porém.
«O outro adversário, apenas viu o
contendor prostrado, e sem forças, abandonou o campo, e fugiu. Que fazer, em
tal conjuntura? Eu, só, ali, sem uma pessoa única, que pudesse velar por ele.
nem sequer uma gota d'água para o refrigerar momentaneamente!!
«Felizmente, meia hora não era
passada, quando, ao clamor da minha voz, acorreu aquele lugar um trabalhador,
que, casualmente, se recolhia a casa. Em poucas palavras, contei-lhe o
sucedido, convidando-o a que velasse pelo ferido, enquanto eu, açodado,
correria á cidade a dar parte do acontecido.
«E assim foi com efeito. Dei-me
pressa em correr á vizinha povoação. Em vinte minutos estava de volta com dois
valentes companheiros para logo o conduzirmos a um lugar seguro, como a urgência
do caso no-lo ordenava.
«Sem saber, porém, o nome do
individuo, nem tão pouco a sua procedência, julguei prudente entregá-lo ao
cuidado de um desgraçado, mas honrado agricultor, que, de bom grado, o acolheu
no seio de sua família, dispensando-lhe todo o desvelo e solicitude, que soe
sempre encontrar-se no tugúrio do pobre.
«O ferimento não fora mortal. O
cirurgião assistente, apenas decorrido o primeiro mês, para logo o declarara livre
de perigo, concedendo-lhe igualmente a liberdade de dar alguns passeios pelos
campos e divisas mais próximas, com o intuito de tornar mais rápida a sua
convalescença.
«Pouco tempo depois, instaurou-se
um processo para proceder a uma averiguação rigorosa sobre aquele fato lamentável.
No dia aprazado para esse fim fui obrigado a comparecer na audiência, como
testemunha ocular, que, infelizmente, houvera sido.
«E fui pontual, n'esse dia,
aparecendo, sem dificuldade no tribunal, onde pouco depois teria de julgar-se
um crime de ha muito reprovado pela moral, e pelo direito. Estava impoluta a
minha consciência, não me arguindo de cousa alguma, a não ser o ter eu envidado
todos os meus esforços, posto que inúteis, para salvar um desgraçado.
«Por isso, quando me chegou a vez
de falar, contei singela e lealmente o que me fora licito ver e presenciar. O
juiz figurara-se-me satisfeito com o meu depoimento. A minha má sina, porém, já
então me começava a perseguir.
«Após alguns momentos de
silencio, e geral expectação, o réu começou a narrar circunstanciadamente tudo
o que lhe houvera sucedido; vindo eu, finalmente, ao conhecimento de que ele
era um mancebo natural de Lisboa, descendente de preclara estirpe, a quem uma
paixão violenta, e uma rivalidade sem limites haviam arruinado física e
moralmente.
«Estavam as cousas neste ponto,
quando seus olhos, por acaso, se fixaram na minha humilde pessoa. Parecera-me encontrar
naquele olhar o quer que era de satânico e sinistro, que me horrorizou até á
medula dos ossos. E, de feito, não me iludi.
«Alguns instantes depois, aquele
individuo, para quem eu fora o anjo custodio num momento de suprema desventura,
apontava-me ao publico como um dos principais cúmplices naquele crime; e
asseverando até abertamente ter sido o meu desejo imediato o assassiná-lo para
lhe roubar o pouco que consigo trouxera, se, por ventura, um transeunte não
tivesse ido em seu auxilio, arrancando-o ás minhas mãos.
«Desta vez a minha indignação
tocou o seu zenith. Os olhos
chispavam-me fogo; o coração, afogueado em cólera, batia-me apressado e
violento. Quis falar, mas não pude. A voz prendera-se-me na garganta. Alcei os
olhos para o céu, e caí, subitamente acometido por dolorosa síncope. O que
depois d'isto se passou, nem eu o sei, meu amigo.
«Quando, no dia imediato,
descerrei as pálpebras amortecidas ao astro do dia, encontrei-me isolado, numa
alcova escura e úmida, com uma estreita gelosia apenas, no vão da parede, por
onde se coava, a custo, um tênue raio de luz.
«Por informações colhidas
posteriormente, concluí ser aquele o cárcere, que, logo após o julgamento, me fora
predestinado para justa expiação do meu delito. Apelei para a ação da divina
Providencia, e sofri resignado o peso da minha cruz.
«Lembrei-me, então, de minha
pobre e santa mãe, ralada de desgosto, de meu excelente pai, de meus pequeninos
e inocentes irmãos, enfim, de tudo o que me era caro neste mundo, e chorei...
chorei... muito...
Neste ponto, o venerando apostolo
de Cristo, não pôde, por mais tempo, sufocar a sinceridade de seu coração.
Levantou-se do escabelo, em que se havia sentado, com dois fios de grossas
lagrimas a deslizarem-lhe brandamente pelas faces macilentas; e, de súbito,
alçou a adufa da janela, como se peso enorme lhe afrontasse a vista. Alberto
acompanhou-o naquele movimento convulsivo, auxiliando-o de boa mente a volver
as negras paginas do livro fatal da sua vida. Depois, sentaram-se novamente, e
Francisco de Castro, fortificado pelas ternas consolações de um amigo sincero e
bom, continuou, mais alentado, a sua historia até ali encetada.
IV
«O desgraçado havia ensandecido.
Por isso, reconhecida a verdade do fato, me concederam a liberdade, e me restituíram
ao seio da família. Ainda assim, não havia furtar-me aos olhares perscrutadores
e cobiçosos daquela gente hipócrita e ridícula da terra.
«Foi, pois, com este intento que
meu padrinho, Francisco Marques, homem solteiro e de grandes haveres, se
resolveu a persuadir minha mãe, a fim de me deixar embarcar para o Brasil,
pretextando ser aquele o único meio, não só de me subtrair ás línguas
viperinas, que, a cada passo, intentavam empeçonhar o santuário da minha
reputação, até ali intacta, senão também o caminho mais seguro para alcançar no
futuro uma posição certa e definida.
«Daí a dois meses já eu estava no
Rio de Janeiro como caixeiro de uma casa comercial.
«A ingênua hospitalidade, e natural
lhaneza, com que ali me trataram, deixara-me de todo cativo daquela santa e boa
gente. Fora-me, porém, impossível contrariar a minha natureza, já de si
sobejamente expansiva e juvenil, escravizando-a a tão árduo e difícil mister.
«Todavia, a despeito das mil e
quase insuperáveis contrariedades, que então se me atulharam no horizonte da
minha vida social, estava intimamente convencido, ainda assim, que a foice do
tempo, roçando ao de leve por sobre os sonhos e ilusões da minha mocidade,
faria de mim um bom negociante, e um verdadeiro autômato das minhas necessidades,
sempre crescentes de dia para dia, se um motivo inopinado não viesse, por uma
vez, cercear o nó fatal de todas as minhas aspirações no porvir.
«E foi o caso:
«Na rua Direita, onde eu residia,
havia dois anos, habitava quase vis-à-vis de nossa casa, um diplomata de grande
nomeada naquele tempo, muito afeiçoado a meus patrões, com quem nutria também
algumas relações comerciais.
«Descendente de ilustres
avoengos, este personagem, pelos seus ademanes e ações, afigurara-se-me, desde
a primeira vez que o vi, um senhor feudal da idade-média, no entranhável rancor
e ódio feroz, com que olhara sempre os que lhe eram inferiores em categoria e
nascimento; ou, por outra, esse bando de mecânicos, que por aí tropeça a cada
canto, espécie de bestas de carga, — segundo ele — úteis, apenas, para ludibrio
dos grandes e descrédito da sociedade.
«Já vê, pois, o meu amigo, quão
longe estaria eu de simpatizar com aquele homem, sinceramente estulto e fátuo,
que receava macular as insígnias do seu brasão hereditário, apertando a mão
impoluta de um pobre, mas honrado plebeu. E, no entretanto, a minha má estrela
parecia caprichar em me ter escolhido, um monstro daquela casta, para meu implacável
algoz.
«Do seu primeiro matrimonio, que
ele concebera apenas obtida a elevada posição de embaixador estrangeiro junto á
corte brasileira, houve ele tão somente uma filha, em quem debalde procurou
imprimir o cunho dos seus depravados sentimentos. Amélia era o seu nome.
«Inebriado pela sedução de seu
olhar magnético, e lisonjeado pela magia de celestial encanto que me sorria ao
longe por entre o anil da minha primavera; eu, átomo insignificante, ousei, um
dia, alçar a minha fronte obscura para aquele astro de divina poesia.
Contemplei-o, por longas horas, num êxtase de inefável ventura, e reconheci, ao
fim, a grandeza e imensidade daquele coração, para quem não fora indiferente o
meu olhar receoso e temerário.
«Porém, entre mim e aquela mulher
existia um abismo incomensurável; um inferno medonho nos separava. Ela era
rica, e nobre; eu era pobre, e plebeu.
«Era, sem duvida, uma atitude
dolorosa, aquela, em que inesperadamente nos colocara um caso fortuito, e
meramente instintivo. Todavia, não desanimei, e cedi maquinalmente aos impulsos
poderosos do meu destino, alentado apenas por uma esperança vaga e indecisa,
que me adejava furtiva e longínqua por sobre a orla do meu horizonte.
«Ao tempo em que primeiramente a
conheci, Amélia não contava mais de 18 anos de idade, ostentando então toda a
formosura e transparência de seu elevado espírito, num rosto profundamente
sereno e angélico, onde cintilavam, como esmeraldas, dois olhos verde-negros e sedutores,
que me deixaram deveras cativo e enleado.
«Quando, pela primeira vez, fitei
a gentileza daquela imagem radiante, daquele corpo donairoso e alabastrino,
daquela mãozinha tão delicada e quase impalpável, daquele pesinho de sílfide,
daqueles cabelos, pretos como azeviche, ondulando naturalmente por sobre os
seus ombros de cisne, á mercê da branda e tépida viração do crepúsculo;
senti-me enlevado em místicas harmonias; convulso, não pude suster o vôo da
minha fantasia. Crera-me até arrastado no mimo da flor, e na melodia do
rouxinol, a um novo mundo; julgara entrever um paraíso, nessa exuberância de
seiva imaginativa, que produziu em mim um misto de sentimentos indizíveis e misteriosos.
«Dir-se-ia uma visão oceânica!
«Amélia, para quem a minha
presença fora de todo indiferente, no principio, começou por me corresponder,
daí a um mês, com um amor apaixonado, e tão verdadeiro como era o meu. E, em
verdade, tudo nos corria auspicioso e prometedor. Quase nos havíamos esquecido
d'este mundo, com as suas paixões e ódios ruins, para nos extasiarmos perante o
desabrochar daquela ventura celestial, cujo ambiente nos envolvia num deleite imperceptível.
«Porém, tudo tinha de acabar
irremediavelmente; e foi exatamente, quando menos o esperávamos, que o sopro terrível
da realidade nos veio dissipar, num momento, todas as doces ilusões daquele
imenso amor, que nos absorvia, desfolhando-nos, impassível, todos os sonhos que
nos alimentavam o ideal da nossa juventude esperançosa e meiga.
«O diplomata, tendo sido
competentemente avisado d'esta nossa mutua afeição, não só me ameaçou logo com
toda a casta de doestos e convícios, como também o participou imediatamente aos
meus patrões, que me despediram, n'esse mesmo dia, com uma desculpa ridícula e
alvar.
«Amélia, essa, coitada! teve de
lutar, e lutar muito, para arcar com os instintos ferinos de seu pai, a quem
prestes ocorreu a ideia nefasta de sacrificar aquela vítima inocente a um
interesse sórdido e vil. Aquele miserável concebera a satânica inspiração de
vender sua filha a um milionário devasso, que, anteriormente, lhe havia
manifestado o desejo de casar um único filho que possuía com o doce objeto dos
meus sonhos sobre a terra,
«Por maiores que fossem as
imprecações daquele anjo celeste, alegando a impossibilidade de uma tal união
com um homem, que mal conhecia, e cuja desventura seria infalível no futuro,
não houve, contudo, resistir-lhe. A resolução, uma vez tomada, tinha de seguir
o seu curso violento, ainda através dos mais insuperáveis obstáculos.
«E, de feito, assim sucedeu!
«Um mês depois, Amélia, aos olhos
do mundo, era legitima esposa do tal milionário. Seu pai havia atingido o auge
de gloria e contentamento, julgando ter encontrado a máxima felicidade para sua
filha. Era, porém, grande a ilusão. E muito calejado, por certo, deveria de
estar aquele homem no vicio, para não resistir ao remorso da sua consciência, e
não conhecer toda a vastidão da sua perfídia e do seu crime.
«Mas esqueçamos esse homem hipócrita
e embusteiro, se tanto nos for possível, de que anda tão colmada esta nossa
sociedade, e voltemos a rematar a nossa historia com os últimos episódios de
meus desgraçados dias.
V
«Apenas sair daquela primeira e
ultima casa, em que me fora licito entrar no Rio de Janeiro, nunca mais
consegui empregar-me em parte alguma. A minha reputação estava de todo perdida
e manchada. Como valer-lhe? d'onde haver recursos, para voltar á pátria? Em tal
caso, o único refugio seria, talvez, mendigar de porta em porta um mesquinho
ceitil, com que pudesse matar a fome que me devorava as entranhas; mas, como o
havia de fazer, eu, um homem robusto e apto para trabalhar? quem ousaria
acreditar-me, naquelas circunstâncias? e qual seria o meu denodo para arcar
peito a peito com a indignação da sociedade, arrojando-me ás faces os meus
erros, e passadas loucuras?!...
«Todas estas interrogações
dirigia a mim próprio, apertando, por vezes, entre as mãos convulsas, as minhas
faces afogueadas em cólera e súbito desalento. Procurei repousar o meu corpo
abrasado, e não pude. Experimentei distrair-me, e tudo cri impossível. Que
fazer, pois? Apelar para a ação da divina Providencia; isso seria, além de
demasiada temeridade, um puro lazzaronismo.
Enfim, nem sei como possa descrever-lhe aquele momento de suprema angustia, e
fatal desesperança?! Só lhe direi que em poucas horas me senti envelhecer, como
se já tivesse cinqüenta anos de idade.
Oxalá Deus me tivesse chamado a
si naquele intervalo de pungente dor e luta tenaz!...
«No entretanto, a incredulidade ia-se
apossando do meu debilitado espírito, e o cinismo não tardaria, de certo, a vir
fazer-lhe companhia; quando senti um clarão de luz banhar-me a furto a minha existência
falaz.
«N'esse instante, tinha eu
recebido um bilhete, concebido nos seguintes termos:
— «Meu caro Francisco. — Espero-te
hoje, sem falta, ás 11 horas da noite, junto de minha casa. Sempre a mesma — Amélia.»
«Esperei, pois, por essa hora,
caminhando, lentamente, para o lugar aprazado. Incitava-me uma curiosidade
espantosa, e um desejo violento de poder dizer um derradeiro adeus aquela
perola da minha alma.
«Apenas soaram 11 horas nos relógios
da cidade, de súbito Amélia, surgiu a uma das janelas da casa, acenando-me
cautelosamente para que me aproximasse sem receio. Acerquei-me, portanto,
daquele lugar; porém, oh! meu Deus!... o que vi eu?!... nem quero que tal cousa
me lembre! Amélia, tão formosa outrora, como estava mudada!... As rosas das
faces tinham-se-lhe secado profundamente; os olhos encovados, e sem brilho; as pálpebras
apenas se volviam mórbidas, e sem significação. Tudo denunciava terrível cataclismo,
ruína inevitável!
— «Mandei-te chamar, Francisco,
porque me custava desprender deste mundo, sem me despedir do único amigo que
ainda possuo na terra. Perante o despotismo da força foi cega a minha
humilhação, como sabes. Obedecendo a meu pai, julguei cumprir um dever filial,
e nada mais. Ao menos ninguém ousará taxar-me de ingrata, nem de insubordinada,
creio eu. Agora, consumou-se tudo. A vingança está prestes. Deus, de certo, não
me poderá recusar a bem-aventurança de uma outra vida. Os anjos esperam-me no
céu, meu amigo, e só lá então poderei encontrar a verdadeira felicidade.
Lembra-te sempre da tua Amélia, meu caro, e não percas jamais a esperança da
nossa união ante o trono do Altíssimo. Também imagino bem quantas privações
terás passado, meu bom amigo. Não julgues, por acaso, que tenha esquecido a tua
dedicação e infortúnio, no meio do fausto e esplendor em que vivo. Não; pelo
contrario. Desculpa, se antes te não mandei chamar; mas só hoje me foi possível
levantar as algemas de meus pulsos. Agora... adeus... sinto... passos...
preciso retirar-me... Lembra-te sempre de mim... Não me esqueças.... por quem és...
Toma lá... recebe, agora, a ultima lembrança... da tua querida... E adeus...
adeus...
«Amélia retirou-se logo, para
dentro, cerrando vagarosamente a janela, como para evitar que alguém a pudesse ver
e ouvir. Eu, afastei-me imediatamente daquele logar, sufocado, sem poder
articular nem mais uma palavra. Por pouco se me não esvaíram os sentidos.
«Apanhei o pacote que Amélia me
pedira para aceitar, como um penhor de reminiscência das nossas horas
venturosas. Abri-o, e encontrei um maço de notas do Banco, que subiam a um
valor nada vulgar. Emudeci, e ajoelhei automaticamente, levantando as mãos aos
céus, num ato de piedosa contrição. Volvi, depois, a casa, ansioso por dar
largas á sinceridade das minhas lagrimas, longo tempo represadas, e ao brado da
minha consciência generosa.
«Daí a um mês estava eu no alto
mar, em regresso para Portugal.
«Alguns dias, porém, antes de
partir, tinha, por acaso, encontrado Amélia, pelo braço de seu respeitável
marido, que me lançou um olhar torvo e sinistro. Foi também a primeira vez que
o vi, e, valha a verdade, poucas ou nenhumas impressões me deixou. Apenas me recordo
ser ele um homem de estatura elevada, muito magro, tendo um espesso e elegante
bigode a cobrir-lhe os lábios, naturalmente grossos e rudes. De nada mais me
recordo. Hoje, se o visse, estou intimamente convencido, que me seria impossível
conhecê-lo.
«Mas, como lhe dizia,
desembarquei no Porto a 2 de julho de 1852. Aí mesmo consegui a minha entrada
no seminário episcopal da cidade, d'onde saí, cinco anos mais tarde, já com
ordens sacras.
«A despeito de todos os
despotismos e ameaças, Amélia continuou a escrever-me todos os paquetes, até
que chegou um dia em que deixei de receber noticias suas. Foi isto, cinco meses
depois da minha chegada a este país. Soube, finalmente, por carta de um
caixeiro da casa comercial, onde eu estivera, que ela havia sucumbido a uma tísica
pulmonar, acompanhada de doloroso sofrimento e pranto acerbo.
«O diplomata, ainda hoje me
consagra um ódio feroz, atribuindo á minha pessoa toda a origem dos seus males
e desgraças. Enquanto a seu genro, nem sei o que lhe terá sucedido. Disse-me alguém,
ha poucos dias, que ele viera fixar a sua residência em Portugal. De certeza,
porém, nada posso afirmar-lhe.
«Em conclusão, o que bem lhe posso
asseverar é que, apesar da grande aversão com que aquele homem ainda hoje me
olha, talvez, eu, pelo contrario, nunca lhe desejei senão o seu bem e completa
felicidade. Pois, em verdade, bastava ver nele o marido de Amélia, para não
poder resistir a um profundo respeito e sincera veneração.
— E que faria hoje a esse homem
se, por acaso, o encontrasse? — interrompeu finalmente Alberto de Carvalhal.
— Perdoar-lhe-ia, como
expressamente mo ordenam os preceitos de Cristo.
— Ora até que enfim! sou feliz,
meu amigo. Deus seja louvado! — exclamou Alberto, caindo aos pés do padre
Francisco de Castro, que debalde procurou sustê-lo em seus braços.
Quem era pois Alberto de
Carvalhal, já o leitor, de sobejo, o terá imaginado. E a razão por que ele
sempre se conservara silencioso, no decurso da triste narrativa do padre
Francisco de Castro, fácil nos será supor também, por isso mesmo que ele não
fazia mais do que ouvir, em parte, a sua própria historia, e chorar nos seus próprios
infortúnios.
EPILOGO
Dois anos depois Alberto era
monge beneditino. Ao cilício do penitente juntara ele as lagrimas de um pecador
contrito.
O padre Francisco de Castro, ao
receber esta nova, que lhe era de tanto prazer e consolação, deu-se pressa em
ir abraçar o seu amigo, e, por longo tempo esquecidos, permaneceram nos braços
um do outro, extasiados da mutua ventura e jubiloso alvoroço.
A felicidade os acompanhe! Que a
gloria do Eterno lhes alente o espírito por entre as lagrimas e abrolhos deste
mundo, e que a certeza de um beatifico porvir os inicie na prática das grandes
virtudes!...
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Nota:
Sebastião de Magalhães Lima: " Miniaturas Românticas" (1871)
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