A FATALIDADE E O DESTINO
Blood will have blood
Shakesp. — Macbeth.
O sangue pede sangue.
Era por uma dessas noites
tempestuosas e frias do mês de dezembro de 18... O vento soprava rijo e
medonho. Lá fora ouvia-se o rugir da procela. O ribombo do trovão ecoava
tremendo e severo, como um castigo de Deus. As nuvens, prenhes de eletricidade,
revolviam os ares, de cada vez mais espessas e rápidas. A natureza parecera
amesquinhar-se, perante o pavoroso espetáculo, que, em breve, teria de
representar-se por sobre a superfície da terra.
Tudo cedia, sem remédio, á violência
de tão possante e irresistível inimigo.
O roble altivo dobrava sua fronte
majestosa ao ímpeto do vendaval raivoso. O cedro rojava-se humilhado ante a sua
impotência e frágil embaraço. No céu mal se destacava o refulgir das estrelas,
dentre a densidade das brumas e trevas espessas. A humanidade, em silencio,
parecera adormecida num leito de funeral tristeza, e o prazer profundamente
engolfado num abismo de terrível melancolia.
Dir-se-ia a hora de eterna
vingança, o dia de suprema verdade!
Em Lisboa, nessa cidade luxuosa e
rica, era prolongado o silencio. Apenas o vozear confuso e indistinto de um ou
outro pregoeiro poderia tomar-se, talvez, como um sinal de vida e movimento efêmeros,
por entre o tumultuar daquele estranho labirinto.
Numa pequena e exótica habitação
da rua dos Douradores agitava-se violento e apressurado, de um para outro lado
da casa, um vulto alto e nobre, de tez morena, barba preta, longa até ao peito,
e com a fronte sulcada de profundas e salientes rugas.
De quando em quando, Lourenço
Viegas corria pressuroso pela sala, abria a vidraça da janela, com ímpeto não
vulgar, e observava impaciente aquele estado de cousas, que refervia, lá por fora,
nas ondas da procela. Depois voltava para dentro, e continuava a passear
agitado e trêmulo.
Num dos intervalos, porém,
Lourenço caiu quase automaticamente sobre uma velha cadeira de espaldar, ali
existente, único móvel que guarnecia aquele triste e humilde recinto, e que
tivera a dita de escapar á sua espantosa prodigalidade. Após alguns momentos,
como se pensamento estranho, de súbito, lhe houvesse subjugado a fronte intumescida
pelo continuo redemoinhar de idéias, quase sempre opostas, puxou por um punhal,
que nunca esquecia ao seu lado esquerdo, e colérico arremessou-o para longe de
si, sem outro instinto que não fosse o da própria salvação. A lamina de aço fuzilou
um instante, e foi cravar-se numa porta fronteira onde bruxuleava ainda o
clarão quase extinto de uma candeia, ali cravada. Ao contacto de tão perigoso
agressor a porta estremeceu, e a luz, mal segura, caiu.
Nesse momento estrugiu os ares o
latir agudo de enorme rafeiro, inseparável companheiro deste nosso Otelo em
miniatura. Lourenço apenas levantara a cabeça, para tornar a cair naquele mesmo
estado de medonha letargia.
No entretanto a tempestade havia
serenado algum tanto. As brumas começavam a dissipar-se no horizonte, e a
estrela d'alva rompia bonançosa e feliz.
Lourenço levantou-se então,
alumiado ainda pelo continuo e rápido fuzilar dos relâmpagos, e foi arrancar o
punhal do lugar em que, momentos antes, se tinha cravado. Olhou para ele com a
firmeza de um herói, e introduziu-o no bolso.
Tu me salvarás!... — dizia ele,
empurrando cautelosamente a portinhola daquele cubículo, que nem já chave possuía.
Acompanhava-o o seu — Terra-Nova.
Mas que iria ele fazer a desoras
da madrugada? Que desígnio era o seu? Vê-lo-emos mais tarde. Por agora, limitar-nos-emos
a seguir-lhe seus passos incertos, se tal nos aprouver.
Da rua dos Douradores, Lourenço
Viegas caminhou até o Cais do Sodré, onde parou junto do Grand Hotel-Central.
— É preciso partirmos já, sem
mais demora. Remos ao mar, e nada de hesitações. Vamos a isso. O teu premio
está nas minhas mãos.
Isto dizia Lourenço Viegas,
dirigindo-se a um desconhecido, que há muito o esperava naquele mesmo logar.
— Receio muito pelo mar, meu amo.
Mas, enfim, uma vez que é da sua vontade, vá lá. A Virgem Nossa Senhora nos
acompanhe.
Assim falava o arrais, saltando,
prestes e desimpedido, para dentro de um pequeno escaler, que se vergava
submisso sobre as ondas enfurecidas.
Depois de varias e perigosas peripécias,
de todo inúteis á curiosidade do leitor, o escaler abicou finalmente á praia de
Cacilhas. De um pulo estava Lourenço em cima do cais, tendo exposto de antemão
ao arrais todo o plano de seus futuros desígnios.
Vejamos, pois, o que sucedeu.
Lourenço subiu apressado a longa
e dificultosa encosta, que conduz á vila de Almada, e parou no cimo, lá, onde
alveja uma casinha graciosa, rodeada de espesso arvoredo, e fragrâncias sem
conto.
A um sinal convencionado,
abriu-se uma das janelas daquela airosa e solitária vivenda, e logo após
assomou a ela uma figura de mulher, que mal se destacava ainda por entre as
sombras quase desvanecidas da madrugada.
— És tu, Lourenço? — perguntou
Beatriz num tom receoso e baixo.
— Sim, meu anjo, é o teu amante,
que te espera. Convém não demorar, de modo algum, a nossa partida. A claridade
começa a romper, e os nossos esforços serão frustrados, se não fugirmos antes
do dia.
— Então já, meu amigo. Fujamos,
enquanto é tempo. Meu pai dorme profundamente, e creio até que ninguém mais vela
nesta casa.
Neste comenos, Beatriz atou um
lençol á beira da janela, procurando ter nele um esteio seguro para a sua rápida
fuga. Desceu, em seguida, até uma certa altura, em que Lourenço a pôde suster
em seus possantes braços, não consentindo, por este modo, que seu pesinho
aristocrata tocasse sequer esta terra ingrata e rebelde, que só pisam humildes mortais.
Momentos depois as pedras da
calçada iscavam fogo ao rápido perpassar de um brioso alazão, que tomara o
caminho do cais com celeridade inaudita.
Quem era o cavaleiro, ou antes,
quem eram os cavaleiros, já o leitor, de certeza, o terá imaginado. E como
Lourenço pôde haver á mão aquele meio de transporte, fácil nos será também
conjecturar, mormente se nos lembrarmos de que ele havia transmitido, muito
antes, as suas ordens ao arrais João.
Apearam-se no cais. Beatriz,
quase desmaiada, dando apenas acordo de si, foi conduzida ao escaler nos braços
de Lourenço, que a envolveu solicitamente no seu xale-manta, para evitar que
sua melindrosa saúde, de algum modo, se alterasse com os rigores do tempo e intempéries
da estação.
O escaler, depois, remou ao
largo, e foi atracar a um brigue, que estava ancorado, defronte da torre de Belém,
para onde Beatriz foi levada, a custo, com o salutar auxilio de Lourenço
Viegas. Daí a duas horas já o navio se fazia de vela, com destino para
New-York.
Mas, enfim, é tempo de sabermos
quem são estes dois personagens, — dir-nos-á a amável leitora, já um tanto
agrilhoada por desesperadora curiosidade.
Pois tem v. ex.ª muita razão,
minha senhora. E para o que vou procurar, desde já, sanar este inconveniente,
apresentando, o mais ligeiramente possível, a fotografia dos nossos viajantes.
Lourenço Viegas era bacharel
formado em direito pela universidade de Coimbra, e exercia, há dois anos, um lugar
de professorado em Lisboa. Procurando debalde obter a mão de sua adorada
Beatriz, filha única do abastado lavrador — José de Brites Lencastre Serrão, — Lourenço
resolveu-se, por fim, a sacrificar toda a sua vida e paz de espírito,
intentando o rapto daquela angélica sabina, em que se estreou evidentemente
feliz, como acabamos de ver.
Beatriz, que, a principio,
vacilara em aceitar a temerária e audaz proposta do exímio professor. não pôde
abafar, mais tarde, o grito espontâneo do seu apaixonado coração, consentindo,
de boa mente, nos sinistros desejos de tão aleivoso amante.
Eis aqui, pois, como, por uma
natural coincidência, nos foi licito assistir aquele espetáculo, deveras
comovente e fatal para ambos, que, ainda há pouco, vimos ser representado
dentro dos muros da vila de Almada.
Chegado que foi á America,
Lourenço procurou logo empregar-se; e conseguiu efetivamente uma posição
modesta e decente, sobejamente capaz para antecipar toda e qualquer eventualidade,
que, inopinadamente, lhe pudesse sobrevir pelo decorrer dos anos.
A saúde, porém, não lhe fora de
todo favorável, sob a influencia daquele clima. Por isso, ao cabo de alguns meses,
jazia ele enfermo, no leito da desgraça e da miséria.
Beatriz bem lhe quis valer com o
seu trabalho, é verdade. Mas, coitada!... como o poderia ela fazer, se todo o
tempo lhe era pouco para velar pelo moribundo e saudoso amante?
Portanto, quando Lourenço obteve
algumas melhoras, os seus recursos estavam completamente esgotados. Era
dolorosa a posição daquele desventurado! As suas forças mal lhe consentiam
ainda qualquer gênero de trabalho, por menos violento que ele fosse.
Um dia, Beatriz, depois de ter
vendido e sacrificado tudo o que possuía de seu, lembrou-se de apelar para a ação
da caridade publica, como único e verdadeiro recurso no extremo daquela
aterradora indigência. Lourenço, porém, apenas soube a fatal nova de que os
alimentos, que ela lhe ministrava diariamente, com tanta bondade e doçura, eram
colhidos de porta em porta, mediante as suas lagrimas e contristante
humilhação, não ousou suportá-los por mais tempo.
Daí em diante, tudo o que ela
podia trazer-lhe para alentar o seu vigor físico e robustez intelectual era
arremessado á rua irremissivelmente. Nunca o seu orgulho e independência
poderiam conceder tal baixeza e opróbrio na mulher que ele desejara por esposa.
Desde então o tédio começou a apossar-se violentamente de seu angustiado
espirito, e Beatriz, a seus olhos, tornara-se um ente desprezível e vil.
Assim pois, neste estado atrofiante
e sensibilizador, pensou ele muitas e longas horas. A loucura parecia dominá-lo
fortemente. E já não havia valer-lhe, talvez, se, por acaso, uma circunstância
imprevista, o não obrigasse subitamente a abandonar aquela imobilidade e
desoladora situação, em que, mau grado seu, o haviam encerrado suas forças e abominável
desesperança.
Por um acaso inexplicável de
manifesta loucura, Lourenço Viegas não pôde mais prolongar a febre vertiginosa,
que lhe abrasava a mente enlouquecida: levantou-se de salto, como se o
desespero, de súbito, lhe houvesse alentado o corpo, enervado pela doença, e
aproximou-se de Beatriz, cujos cabelos beijou sofregamente:
— Ao menos, morrerás com o meu
amor, anjo bendito do Senhor! — exclamava ele, afagando-lhe com delírio sua
fronte mimosa.
Já não havia remédio, que lhe pudesse
abrandar o seu feroz instinto. Que valeriam as súplicas da pobre mulher, em
face da hediondez daquele tigre asqueroso e repelente,... se, minutos depois,
ela tinha de jazer a seus pés, vítima expiatória de um pensamento infernal?!...
Consumou-se o sacrifício!...
Lourenço, cego de raiva, sem
atinar mesmo com a enormidade do crime, que praticara, deu-se pressa em fugir
para longes terras, passando sempre incólume ás mãos da policia vigilante
daquele país.
Decorridos alguns anos, voltava
ele a Portugal, em demasia opulento, para poder granjear quaisquer desses títulos
ou comendas, que tão malbaratados andam por este nosso malfadado país. Onde ele
conseguira tão rápida transformação, isso ainda hoje passa como mistério insondável
para todos os que o conheceram outrora pobre e sem meios de vida. Diziam alguns
que ele se associara a uma quadrilha de bandidos na America do Sul; outros
afirmavam ter sido roubada aquela fortuna a um abastado proprietário, ao
serviço do qual ele se conservara por muito tempo.
Em conclusão, o que se sabe ao
certo é que, estando ele um dia, muito descansado, pacificamente encostado ao
portal de sua casa, respirando docemente as exalações fragrantes das mil
florinhas, que, então, apenas começavam a vegetar, de súbito parou junto dele
um vulto desconhecido, sopeando galhardamente um brioso e folgazão ginete.
— É o sr. Lourenço Viegas a quem
tenho a honra de falar? — dizia o cavaleiro, dirigindo-se para ele com
delicadeza e urbanidade.
— Um seu humilde servo, — replicou
Lourenço, admirado.
— Pois, sr., saiba que aproveito
esta ocasião para vir pagar-lhe uma divida antiga, que até hoje não tenho
podido satisfazer.
— Uma divida?!... A mim?! Isso há
de ser engano, forçosamente. Creio que v. s.ª nada me deve.
— Pois então saiba mais que me
chamo José de Brites Lencastre Serrão, e que tinha uma única filha chamada
Beatriz, a quem um infame assassinou e roubou para sempre aos meus carinhos e
afeições.
Palavras não eram ditas, e já
Lourenço Viegas caía moribundo no chão com um tiro de bacamarte, que lhe varara
o peito de lado a lado.
Lourenço caiu exclamando: — Mataram-me!...
Fez-se a justiça de Deus!...
Quando, algumas horas depois,
acorreu a gente da terra aquele sitio, já ele havia exalado o ultimo suspiro.
No dia imediato alguns dos seus
poucos amigos conseguiram, a grandes rogos, que o pároco da freguesia desse o
seu consentimento para ele ser sepultado no adro da igreja.
Hoje a sua lousa jaz quase
ignorada. Algumas florinhas solitárias, que derramam aromas nas horas do crepúsculo,
ou quando muito um cipreste erguendo-se melancólico e severo, com as cores
sombrias e esverdeadas da sua eterna primavera, e uma cruz silenciosa e triste
indicando que ali repousam os ossos de um desgraçado!...
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Nota:
Sebastião de Magalhães Lima: " Miniaturas Românticas" (1871)
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