MARTÍRIO DE UM ANJO
Despontara risonho o dia 23 de
maio de 1856. Era profundo o anil do céu. Nem uma nuvem sequer toldava o puro
azul do firmamento, nem um sopro de desgosto vinha embaciar o prisma da
felicidade humana.
Tudo era bulício, vida, amor!...
A natureza, revestida das
magnificentes pompas da primavera, desentranhava-se em flores e frutos, revelando
mais e mais a grandeza e onipotência do Criador, que avulta tanto no mais
humilde inseto, como no mais esplendido organismo.
Folgava a toutinegra no raminho
frondente, dizendo-se ternos amores com o emplumado rouxinol, cujo canto
mavioso repercutia em ecos longínquos o idílio melancólico da criação.
Impelida doidejava a mariposa de
flor em flor, e a brisa, tépida, ciciava de mansinho ao perpassar por sobre a solitária
florinha.
Em delirantes êxtases, suspirava
a pudibunda donzela, sorvendo grata a vida num casto e puro anseio.
O amante, sem desfitar os olhos
da fugitiva lympha, mudo contemplava,
gentil, o retrato da sua amada.
E ao pobre faminto, para quem a
ventura fora meteoro fugaz, no horizonte medonho da humana desdita, sorriu a
furto um raio de esperança no seu espírito angustiado por cruciante dor.
Sublime era o quadro, beatifica a
visão!
E qual seria o ente, cuja alma
fosse aleitada por uma centelha divina, que não sentisse roubar-se-lhe a existência
ao contemplar tão sublime maravilha, tão rara formosura!!...
Que Rafael seria capaz de
reproduzir na tela esta estrofe melodiosa e suavíssima do Senhor, a que os
homens deram o nome de — primavera!!...
Molemente reclinada em flácida
alfombra, Leonor, parecera, contudo, indiferente ás doçuras d'este panorama, e
ao brilho da sua divina poesia. Em que cismava aquele anjo de pudor?... Que
fatal magnetismo a arrastara ali?
Ninguém o poderá dizer. Ao certo
só sabemos que a sua alma, cheia de sublime poesia, procurara instintivamente
aquela solidão, como que agrilhoada pela necessidade inata de fugir ao mundo e
aos seus encantos.
Leonor chegara do Brasil havia
poucos meses. Cecília, sua mãe, vendo-se viúva, com este único tesouro das suas
entranhas, para logo tratar de alugar casa em Benfica, não só por ser esse o lugar
da sua naturalidade, senão também pelo desejo de satisfazer ás reiteradas
instancias de sua filha, que desde muito aborrecia a cidade. Ali viviam aqueles
dois anjos uma vida beatifica, alentados pela mutua esperança, e identificados
pelos poderosos laços do amor.
Leonor, no dia em que a encontramos,
completara vinte anos: tinha, portanto, atingido essa idade sublime e misteriosa,
mormente para a mulher, que, elegíaca por condição, sente o vácuo da sua existência,
arrojando-se loucamente ás ondas do amor, talvez, pela natural fragilidade da
sua natureza.
Quem sabe, se n'isto divagaria a
nossa poetiza, no momento em que a encontramos no seu pitoresco jardim?
Uns vislumbres de saudade, de
tristeza e melancolia animavam seu rosto naturalmente pálido. — Aqueles olhos
pretos e rasgados, enturvecidos por uma nevoa de languidez, provavam bem
quantos e quão perigosos seriam os pensamentos que se lhe agitavam na mente.
Sua mãe viera pé ante pé,
curiosa, sem duvida, por penetrar no recôndito daquele coração. Leonor pressentiu-a,
e sorriu-se. Cecília pousou seus castos lábios na angélica fronte da filha, e
nela depositou, com maternal carinho, o néctar que dimanava de seu extremoso
peito. Depois, tomando entre as suas as mãos daquela pomba, disse:
— Então que tens tu, minha
querida filha? Tão triste e solitária no dia de teus anos! Ora anda: fala
francamente a tua mãe.
— Oh! minha querida mãe, quanto
lhe sou devedora! Como havia de eu estar triste, tendo-a aqui ao meu lado? Não
vê que sou tão sua amiguinha, e como já estou tão alegre?
— Por quem és, Leonor, nada me
queiras ocultar. Poupa-me a um sacrifício doloroso, dispensando-me a sinceridade
que mereço. Compreendo a tua dor, como se minha já fosse. Tu amas, bem o sei.
Tenho presenciado tudo. Nada me é estranho.
Leonor corou de involuntário
receio, ao ouvir as ternas expressões de sua mãe, e por alguns minutos
permaneceu em cismador enleio, como que subitamente preocupada por estranho
pensamento. Recobrando, porém, a serenidade, que momentaneamente houvera
perdido, prorrompeu nos termos seguintes:
— É verdade, minha mãe, nada lhe
desejo nem posso ocultar. Eu amo meu primo Mauricio. Amo-o com toda a pureza da
minha alma, e em todo o fervor da minha existência. Uma circunstância poderosa
veio, contudo, cavar um abismo entre nós, e forçar-me á dura colisão, em que, mau
grado meu, me tenho conservado. Foi esse o motivo por que ha mais tempo lho não
declarei, intimamente convencida de que a minha bondosa mãe perdoaria mais uma
vez esta falta á sua filhinha, que tanta felicidade lhe deseja.
— Julgas, talvez, que te culpo
por isso; antes, pelo contrario, não podia achar mais acertada a tua escolha. Mauricio
é um rapaz serio, capaz de te retribuir o teu afeto, e de desempenhar no futuro
a missão de um marido exemplar.
— Sem duvida, também assim o
creio. Mas não lhe tenho já declarado por vezes que só me unirei eternamente a
um homem de muita instrução e de grande saber?
— Isso é uma fraqueza da tua
parte, que se virá a dissipar com o tempo; sendo que muitas vezes os homens
mais celebres são exatamente aqueles que menos se coadunam com a índole do
viver domestico. Além disso, teu primo tem o desenvolvimento suficiente para te
saber estimar; e eu morreria tranquila se um dia tivesse a dita de te ver
enlaçada pelo afeto aquele que já posso apelidar — meu segundo filho.
— Oxalá assim suceda, replicou
Leonor, com um disfarce feliz. O futuro só a Deus pertence. Amar a
mediocridade, isso só pode ser o apanágio das mulheres vulgares. Por hoje não
falemos mais n'isso. Vamos antes esperar as pessoas da nossa intimidade, que
decerto não perderão esta noite, para nos prestarem agradável companhia.
Dirigiram-se depois para casa, e
assim correu o resto da tarde sem maior incidente.
Ás nove horas da noite já se
cruzavam nas salas algumas famílias, que expressamente tinham vindo festejar o
aniversário natalício de Leonor, com brindes de toda a espécie. Esta não sabia
como agradecer tantos e tão prolongados obséquios, que a cada passo lhe prodigalizavam
os convivas recém-chegados. No entretanto todos se retiravam sobejamente
remunerados, com o galardão do seu peregrino talento e natural candura.
Mauricio, como era de esperar,
abrilhantou esta festa com a sua presença. Logo, porém, notou em sua prima um
ardente desejo de o evitar. Na primeira quadrilha viu em Leonor hesitação, e
que só forçada condescendência a obrigava a dançar com ele.
Não sabendo a que atribuir tão rápida
transformação, recorreu a sua tia. Cecília, que a principio vacilara em relatar
o acontecido a seu sobrinho, não pôde de modo algum abafar o grito imperioso do
seu coração, patenteando-lhe tanto ao vivo o pensamento de sua filha, que
Mauricio a custo reteve uma lagrima de saudade por aquela que já ha muito
dourava o horizonte de sua existência.
E quantas vezes um sorriso nos lábios
oculta uma grande dor!...
Mauricio, como se nada com ele
houvera passado, voltou á sala, e dançou até ver a reunião completamente
terminada.
Seriam duas horas da noite.
Despediu-se de sua tia, e saiu. Mas, ai do mal fortunado mancebo!...
Longe de se dirigir para casa,
divagou triste e pensativo pelas ruas da capital até ao alvorecer do dia, sendo
a cada passo assaltado por dolorosas recordações, que lhe dilaceravam as fibras
do seu apaixonado coração.
No dia imediato Mauricio havia
desaparecido de Lisboa!...
Deixemos agora esvoaçar quatro
anos nas azas do passado, e voltemos a Benfica.
Ali reconheceremos Leonor, próxima
de sua mãe, trabalhando diligentemente. Aquela flor, que ha cinco anos se
ostentava tão altiva e louçã, vede-a, presentemente, como vai estiolando e
fenecendo, e ai dela!... se o céu, na sua infinita misericórdia, lhe não enviar
o orvalho que lhe restitua o viço e frescor!
Estávamos, então, em maio de
1860, cujo mês fora assinalado pela rápida ausência de Mauricio. E nisto falava
a virtuosa mãe a sua filha, enxugando de quando a quando uma lagrima, que espontânea
lhe rolava pelas faces. Não era tanto o desaparecimento de seu sobrinho que a
afligia, como ela julgar-se a principal causa desse fatal evento.
Leonor vivificava o pesar de sua
pobre mãe com gostosas consolações, que, puras e castas, brotavam de seu
virginal seio.
Seriam talvez cinco horas da tarde
do dia 30 de maio, quando sentiram bater á porta. Sensação particular, por
aquele inesperado toque, fez estremecer mãe e filha. Mistérios ha na vida
humana que se não explicam. Este era um deles.
A porta da sala abriu-se, e o
criado anunciou uma visita, que não queria dar o nome, mas que muito desejaria
falar com a senhora.
Mandaram-na entrar.
Ora imagine o benévolo leitor
qual não seria a profunda comoção, sentida simultaneamente por aquela família,
vendo junto de si o sobrinho que há muito julgava perdido.
Mauricio tinha chegado naquele
dia de Paris, onde, a grandes e penosos sacrifícios, fora buscar uma solida
instrução com o único intuito de realizar a sua felicidade futura, unindo-se a
sua prima pelos laços matrimoniais. Cursava, então, o terceiro ano de
engenharia, e viera passar as ferias a Lisboa.
Leonor, ao ouvir dos saudosos lábios
de seu primo a narração circunstanciada dos motivos, que o levaram a executar
tão heróico projeto, sentiu aumentar-lhe gradualmente aquela paixão latente,
que ha muito ardia em seu peito. Ele, atento ao benévolo acolhimento e
fraternal regozijo, que então lhe dispensaram, não duvidou em declarar-se a sua
cândida prima, que o atendeu com meiguice e amor.
Rápido se passou o tempo de
ferias. De dia para dia se iam identificando aqueles dois corações, que tinham
nascido para muito se amarem. E, semelhante a um grande rio, já não haveria
dique capaz de lhe vedar o seu correr impetuoso.
O amor verdadeiro e puro é uma
irradiação do sublime, e como tal uma aspiração constante para as regiões do
absoluto.
Os esponsais ficaram tratados, e
por eles Mauricio voltaria dentro em dois anos formado, e sobejamente instruído
para melhor poder satisfazer as nobres e santas aspirações de sua prima.
O leitor melhor poderá imaginar qual
não seria a violenta agitação dos dois amantes ao dizerem-se o adeus da
despedida. Um drama intimo, impossível de descrever-se, e que só poderá ser bem
apreciado por aquele que, no decurso da sua vida, se encontrar algum dia em idênticas
circunstâncias.
Porém o bom senso de Mauricio, e
sobretudo a necessidade, que nele falava mais alto do que a voz de seu
apaixonado coração, estimulou-o a prosseguir na vereda tão briosamente
encetada, ainda através dos maiores obstáculos.
Partiu, levando a saudade gravada
no intimo do peito, e a esperança a refulgir-lhe por entre as perspectivas de
um risonho porvir.
Ao entrar nesta parte da verídica
narrativa, que intentamos esboçar, julgamos mais conveniente satisfazer a
curiosidade da amável leitora, transcrevendo para aqui fielmente a limitada correspondência
que se trocou entre Mauricio e sua prima.
É o que vamos fazer.
CARTA 1.ª
(De Mauricio a Leonor)
Paris, 1860.
«Nem eu sei como relatar-te a
minha viagem. Feliz teria ela sido, por certo, se te tivesse visto sempre a meu
lado. Mas... não digo bem... a tua terna imagem acompanhou-me sempre. Na onda,
que preguiçosa ia beijar a fulva areia; na estrela, que á noite cintilava nos
céus; no espaço, que infinito se me atulhava; por toda a parte, enfim, meu
anjo, a tua melancólica figura vinha sempre afagar a minha tétrica existência,
e contornar uns doces eflúvios de amor no meu angustiado espírito.
Oh!... e quem me dera poder hoje
abraçar-te, e depois num êxtase delirante, dizer-te: — Leonor, benéfica luz dos
meus olhos; amo-te, adoro-te, sou teu. Mas um dia virá em que te poderei dizer
desafogadamente: — agora, por toda a vida, meu amor, jamais me verás longe de
ti!
Louco, que eu sou, na verdade!
Insensato!... a dispor do futuro, como se meu já fora. Embora! Deus é bom! Não
sejamos incrédulos! Ele, que na sua infinita bondade não esquece o desgraçado
agonizante no leito da dor, por certo não consentirá que uma negra nuvem venha
toldar o puro azul do nosso céu.
Leonor, por quem és, envia-me o
balsamo para as saudades que me oprimem o coração. — Mauricio.
CARTA 2.ª
(Resposta de Leonor)
Benfica, 1860.
«A tua carta veio encontrar-me agonizando
nas vascas de uma paixão febricitante.
Um dia sorriu-me o Oasis mimoso
no deserto da vida, acerquei-me dele extenuada de fadiga, e com o meu pobre
coração dilacerado por uma luta gigante, que me fora impossível evitar. Julgava
ser aquele o alento para prosseguir na minha espinhosa tarefa!... Ilusão!...
Sinto-me fraca, e não sei se terei forças para resistir ás agitações febris que
hoje me dominam.
Pede a Deus, meu bom amigo, me
prolongue os dias da existência, para poder abraçar-te mais uma vez ao menos, e
morrer depois com a consolação derradeira do moribundo, que vê junto do seu
leito o vulto venerando do presbítero, amenizando a algidez do sepulcro com a
unção da sua divina prece.
Lembra-te sempre da tua amiga,
que, ao longe, vela por ti dia e noite. — Leonor.»
CARTA 3.ª
(De Mauricio a Leonor)
Paris, 1860.
«Não sei como comunicar-te o
temor violento, que se apoderou da minha debilitada existência ao ler e reler a
tua carta. Aquelas linhas, ditadas pela fatalidade poderosa do amor, e escritas
por tua angélica mão, que tantas vezes beijei com o anseio de largas esperanças
no futuro, compungiram-me profundamente.
Justamente, quando o meu espírito
alucinado procurava o cálix da ventura para docemente o libar, veio a desdita
sentar-se ao lado, e envolver-me no luto de medonha desesperança.
Meu Deus! meu Deus! Quanto a vida
é cruel, sem uma esperança fagueira que nos alimente os sonhos radiosos do
porvir! Quão duro é de tragar o absinto desta existência efêmera!
Porque será que o espírito do
homem é tão possante librando-se nos vôos de uma fantasia ardente; e cai depois
prostrado pela vertigem das paixões no mais temeroso de todos os precipícios?
Insondáveis são os arcanos do Criador!
A esperança vivifica; o amor martiriza!
Pudesse ao menos o holocausto do
meu doloroso sofrer resgatar os dias santificados de Leonor, e eu satisfeito
deporia a minha cruz, orvalhada pelas lagrimas de eterna saudade.
A ventura é um anseio febril em espíritos
privilegiados. Mas a ventura é uma vaidade, uma quimera, entrecortada, apenas,
pelas alternativas radiantes de melhores horizontes!
Feliz o homem que tem fé; porque
a fé, para almas bem formadas, é a água redentora do seu batismo.
Porém o homem, que sente o gelo
da descrença no seu coração; o homem, que não pode evitar a peçonha corrosiva
do cinismo e da perversidade; esse homem é um desgraçado, um miserável, como
muitos, que a sociedade escolhe para instrumento da sua implacável vingança, e
opróbrio da humanidade!!
E quem me permite ajuizar da
minha virtude?...
Só Deus o sabe, meu anjo, quanto
é leal e verdadeiro o pranto acerbo, que derramei ao saber da tua sentida
doença.
Possa, enfim, o Senhor ouvir a
sinceridade da minha súplica, e fazer descer sobre ti o anjo da felicidade e do
amor. — Mauricio.»
CARTA ULTIMA
(De Leonor a Mauricio)
Benfica, 1860.
«Apesar da expressa proibição dos
médicos de me evitarem tudo o que possa prejudicar o meu estado melindroso de saúde:
não pude, ainda assim, furtar-me a um desejo imperioso de me associar ao teu pesar,
mitigando-o, no caminho espinhoso do meu Gólgota.
É uma expiação, que a mim própria
imponho, sem outro galardão, que não seja a retribuição do teu entranhado
afeto.
As lagrimas têm um condão misterioso.
Adoçam a adversidade terrestre, com a consolação extrema de um futuro incerto.
Assim eu pudesse encontrar nelas o tópico provável para a medonha enfermidade
moral que hoje me devora.
Tudo creio impossível.
Só a tua presença me poderia ser,
talvez, refrigério momentâneo para o meu aturado martírio, e doloroso
esquecimento.
Regressa, portanto, á pátria, meu
bom amigo. Vem engrinaldar a fronte da esposa com as flores amarelecidas do sepulcro,
e prestar um derradeiro tributo aquela que te amou na terra com o fervor da
virgem e pureza dos anjos.
Só Deus poderá abençoar o nosso
amor!...
Não posso mais,... Mauricio...
Sinto-me desfalecer sensivelmente.
Adeus... adeus, e talvez... para
sempre. — Leonor.»
Inútil se tornaria aqui dizer,
que Mauricio obedeceu peremptoriamente ás ordens de sua saudosa noiva, tomando
bilhete para o primeiro vapor com escala por Lisboa.
Fora, porém, intempestiva a sua
viagem.
Quando chegou a Benfica,
encontrou a nudez e a solidão entronizadas no solio, onde deveria ter existido
o jubilo e a gloria de dois amantes ditosos.
Leonor havia desaparecido para
sempre deste mundo!...
O anjo da morte, estendendo suas
negras azas sobre aquele coração de pomba, arrebatou-o para sempre á
humanidade.
Eclipsou-se no céu uma estrela, e
da terra voou um anjo á mansão dos justos!
Mauricio libou até ás fezes o cálix
do infortúnio.
Aquele amigo verdadeiro e fiel;
aquela inteligência robustecida á luz da profunda meditação; aquele coração de
poeta; aquela imagem continuamente açoitada pelo tumultuar de sentimentos
encontrados, onde meigamente vinha transparecer a morbidez e o desalento de uma
paixão precoce, — nunca mais transpor o limiar da casa de Benfica, que outrora
pisava, sentindo a vida a rejuvenescer-lhe a cada passo.
Ainda houve quem o visse, um mês
depois, com as faces pálidas, os olhos cadavéricos e um semblante sepulcral.
Não era passado muito tempo,
quando Cecília recebeu uma carta de seu sobrinho, concebida nos seguintes termos:
— Minha excelente tia. — Ao
deixá-la em contristante e dolorosa desolação, tendo-se associado á dor e orfandade
do espírito, como únicas companheiras, que lhe restavam no areal sombrio da
vida, era mais do que dever de um filho aliviá-la, quanto em si coubesse, dos
transes medonhos e caprichos da sorte, por que acaba de passar o seu bondoso
coração.
Porém, minha tia, se neste mundo
pode haver perdão para um desgraçado, conceda-lho.
Já a meus pés se abre o abismo
incomensurável do cinismo e da descrença, que dentro em pouco me ha de
absorver.
Haverá muito quem me censure,
chamando-me — louco!
Louco!... porque não soube abafar
a palpitação febril de um sentimento elevado e nobre!
Louco!... porque não tive a
resignação, para opor ao marulhar tremendo das vagas da desventura!
Louco!... porque cri na santidade
do amor; ajoelhei perante um arcanjo celeste, e senti o fogo da inspiração a
enroscar-se-me voluptuosamente pelos membros!
Louco, enfim, porque soube
desprezar a imbecilidade dos homens pelo gozo inefável de uma ventura celeste!
O suicídio é a suprema aspiração
de uma imaginação sublimemente grandiosa, que, não podendo suster o vôo
audacioso a que se arrojara, se despenha fatalmente no oceano do nada.
E a resignação o que é?...
A imobilidade física e moral, uma
profunda negação do ser humano, e uma violação flagrante dos verdadeiros
sentimentos.
O homem, que vê o seu nome
malbaratado, a sua honra vilipendiada; sem ter uma mão caritativa, que lhe
sirva de luz por entre as fragas estéreis da vida; sem mesmo um refrigério para
as chagas do seu pobre coração; sem uma esperança, ao menos, que lhe acalente
os sonhos radiosos do existir durante o correr tempestuoso, que vai do berço á
sepultura: esse homem, digo, descrê da Providencia; torna-se cínico; e vai
buscar na ponta de um punhal aquilo que não pôde encontrar no meio d'essa
sociedade estulta e devassa.
E, ainda haverá quem condene o suicídio?!...
Condena-o, sim, a mediocridade,
porque o não compreende; porque lhe é mesmo impossível conceber a luta gigante
que se trava a cada passo nos espíritos altaneiros entre a razão e a vontade, —
duas faculdades de que depende toda a nossa vida e bem-estar terrestre.
Por isso, minha bondosa mãe, e
deixe-me chamar-lhe assim nos últimos instantes do meu passamento neste mundo, abençoe
pela derradeira vez o seu desgraçado filho, que sem saudade abandona este teatro
maldito, para ir tributar perante o trono do Altíssimo o santuário das puras
afeições e leal obediência.
Adeus, minha desvelada mãe, e
adeus para sempre. Não descreia do seu filho, e lembre-se que só no céu se
poderá encontrar a remuneração condigna ás virtudes mundanas. — Mauricio.
Cecília ficou como que
petrificada, ao receber o golpe inesperado, que lhe causara a carta de
Mauricio. Desvairada pelo infortúnio, assaltada por uma visão sinistra e cruel,
aquela extremosa mãe vendeu a sua casa em Benfica, que lhe era recordar amargo
de uma felicidade radiante e falaz, e recolheu-se a um convento, onde vive
ainda hoje, acompanhada pela resignação, e alimentada pela virtude esperançosa
de que um dia se irá reunir no seio do Criador aqueles dois mártires bem-aventurados,
a quem o vulcão das paixões sorveu para sempre na sua cratera de fogo.
---
---
Nota:
Sebastião de Magalhães Lima: " Miniaturas Românticas" (1871)
Nenhum comentário:
Postar um comentário