CAMBIANTES DA COMÉDIA HUMANA
Ao Dr. Antonino José Rodrigues Vidal
CAPITULO I
Henrique IV, perguntando a Gabriela d'Estreés por onde se
entrava para o seu quarto, esta respondeu-lhe: — pela porta da igreja. Pela
sociedade moderna pode dizer-se que a entrada para o matrimonio é muitas vezes
a porta de um salão onde se dança.
Lopes de Mendonça. — Cenas e Fantasias.
Um baile!...
Delírio da mocidade! gloria de um
amante! receio das mães! enojo da velhice!...
Um baile!...
Quantas vezes sonhamos, ainda
crianças, com aquele novo mundo ideal e angélico, com aquela visão dulcíssima,
enlevo de amantes, com aquele rodopio vertiginoso e inebriante!...
Um baile!...
Misto de ideias e sentimentos
opostos! Sorrisos e prantos! suspiros e lagrimas! amor e saudade! lírios e
goivos!...
Um baile!...
Desgraça de muitas famílias! orfandade
de muitos corações! inveja de muitas criaturas!...
Um baile é a fotografia da
humanidade, assim como o teatro é o espelho da sociedade.
Tem-se dito muito sobre bailes.
Todos lhe reconhecem os perigos, e, todavia, ninguém os evita.
A donzela corre ao precipício, atraída
pelo canto sedutor desta implacável sereia. O mancebo alimenta ali sua fantasia
ardente. Os velhos assistem a eles, como meros espectadores, realçando as
glorias dos seus tempos, em menosprezo das modernas veleidades civilizadoras e
progressistas.
Enfim, tudo anseia por um baile;
todos rejubilam na sua presença; todos esquecem, por momentos, as ulceras do próprio
corpo, para dar largas ás velas da sua imaginação.
Seja, pois, bem-vindo o salão
onde teremos de encontrar um dos principais personagens da narrativa que vamos
encetar!...
Estava eu em Fafe, no mês de
agosto de 1860. Ali, fugindo ás ardências do estio e monotonia da cidade, me
fui recrear, durante alguns meses, á sombra daquelas viçosas amoreiras,
completamente descuidado do bulício deste mundo, para a sós comigo me entregar
ao prazer de alguns dias serenos e beatifico cismar.
Foi também numa dessas ocasiões,
creio eu, que me foi licito sondar uma das almas mais formosas e um dos gênios
mais modestos que tenho encontrado em dias de minha vida. Arthur de Campos era
realmente um moço afável e de uma fina educação; bom até ali. Havia um não sei
quê de misterioso e simpático naquele seu vulto insinuante e belo, que me
atraia irresistivelmente para ele.
Para logo, procurei travar
relações com o jovem provinciano, e de tal modo o consegui, que, dentro de
pouco tempo, já vivia nas suas próprias alegrias, e chorava nas suas tristezas.
Entre nós a amizade era mais que fraternal. Quase todos os dias nos juntávamos
de manhã, para só nos separarmos ao recolher para casa.
Oh!... com que saudade me não
lembra ainda aquele tempo!... como os dias se deslizavam então brandos e
suaves! como era puro o azul do nosso horizonte, e feliz a nossa existência,
juncada pelas rosas do amor, e matizada de flores, que nos enfeitiçavam a mente
enlouquecida pelas larvas da fantasia!...
Ás vezes passávamos horas
inteiras, um ao pé do outro, sem articularmos uma única palavra; e, contudo, os
nossos pensamentos pareciam adivinhar-se mutuamente naqueles meigos e puros anseios
de paz e felicidade.
Um dia, lembra-me ainda como se
hoje fora, eram talvez duas horas da madrugada. A lua, aureolada de mística
luz, campeava no seu eterno trono de magia e formosura. Reinava um silencio sepulcral.
Apenas se pressentia ao longe o grato arroio, serpeando de mansinho por entre
as dispersas arvores, de que as folhas se agitavam frouxas, ao perpassar da
fresca brisa da madrugada.
Senão quando veio ferir-me o meu
ouvido vigilante a voz de Arthur, que me chamava de fora da porta. Corri a ele,
curioso por saber o que se teria passado. Nada me disse. Entrou pensativo. para
dentro de casa, e sentou-se melancólico e triste.
— Sei quem és, meu amigo; fala
francamente, que tens tu, que te aconteceu?...
Ele, contudo, conservava-se
silencioso, sem nada me responder. Eu, por mim, julguei prudente não insistir
em tão pertinaz propósito, e aguardei melhor ensejo para esse fim, certo de que
ele se não recusaria a revelar-me o seu segredo.
Após alguns momentos, quando o vi
sair, sem proferir sequer uma única palavra, durante o tempo que ali estivera
comigo, tive a fatal idéia de o acreditar demente. Para me certificar, porém,
da verdade do fato, resolvi segui-lo a todo o transe, cometendo a discrição de
me ocultar, o mais cautelosamente possível, atrás da espessura do arvoredo por
onde ele tinha de passar irremediavelmente.
Semelhante a um réptil, lá me fui
arrastando, como pude, por entre o mato e silvedo, que delimitavam o estreito
caminho.
Foi então, que sua tímida voz, de
envolta, com o perfume do orvalho matutino, me veio estancar no peito um misterioso
receio. Suas palavras foram tristes, como a solidão da sua alma, pavorosas como
os milhares de fantasmas, que lhe voejavam na mente tresloucada. Era assim o
monólogo:
— «A sociedade! sempre a
sociedade! Maldita sejas tu, mil vezes maldita!... E o homem há de respeitar
necessariamente os teus decretos vis, e lisonjear a tua hipocrisia infame!
«Triste abjeção!...
«Não sei porque; mas, quando
penso nessas sombras pavorosas, que, a cada passo, me enlutam o espírito com as
trevas deste mundo, sinto-me enlouquecer terrivelmente. Odeio os homens;
abomino o prazer da terra, e não posso de maneira alguma acreditar na idéia de
um Deus infinitamente justo e bom!...
«Muita lagrima, muita miséria e
muita vingança: eis deveras a realidade das coisas, eis a sociedade, em toda a
sua nudez!
«Nasce a criança, de envolta com
o cilício do sofrimento, para expirar depois no meio de agudas dores e medonho agonizar!
«Um dia, quando já homem,
aproxima-se da mulher, que ama loucamente, e essa mulher, sem pejo, cospe-lhe
nas faces a podridão da sua alma corrompida, o veneno absorvido no seio da
sociedade, o lodo, a corrupção, a vaidade!...
«E ainda há quem sonhe no amor de
uma mulher?!...
«Pobre desgraçado, quem quer que
tu sejas compadeço-me da tua inocência. Aprende antes a conhecer esses vermes
nauseantes, e não creias jamais nas palavras hipócritas de uma mulher
fementida! Afasta-te, em quanto é tempo, dessas víboras dolosas, que te podem
acarretar a tua eterna ruína, e a degradação da tua dignidade!...»
Não pude ouvi-lo por mais tempo.
O eco de suas ultimas palavras foi perder-se a distancia nas azas da branda
viração de uma esplendida madrugada de outono.
Retirei-me para casa bastante apreensivo.
De todo me fora impossível atinar com a origem de semelhante mistério. Apelei,
pois, para o tempo, como melhor mestre e mais eficaz para me elucidar a esse
respeito.
Quando me tornei a encontrar com
Arthur, daí a algumas horas, já o reconheci mais sereno e agradável.
Afigurou-se-me ver dissipadas as sombras, que pouco antes lhe ofuscavam o espírito.
Ainda assim, evitei sempre o falar-lhe sobre coisas, que de algum modo pudessem
ofender o seu melindre e elevados sentimentos. Procurei amigavelmente
distrair-lhe os seus pesares e profundas amarguras, mas vi quase baldados os
meus esforços.
No entretanto, o inverno ameaçava
ser rigoroso. O mês de novembro principiara frio e insuportável.
Tudo se transtornara ali, com a
chegada da estação invernosa. Aqueles prados e veigas, até então tapetados de
verde e flácida alfombra, começavam a inundar-se com as cheias, que os tornavam
geralmente intransitáveis. O céu iriado da primavera havia desaparecido,
deixando em seu lugar um montão de nuvens escuras e temerosas.
Neste comenos, negócios de família
me chamavam a casa, impedindo a continuação da minha residência naquele
encantado paraíso de amor e felicidade. Despedi-me, pois, afetuosamente do meu
amigo Arthur, e regressei ao Porto.
Arthur prometera escrever-me daí
em diante sem interrupção. Passaram-se, contudo, oito meses sem que eu
recebesse uma única carta sua. Quase o julgara doente, se, porventura, não fora
um amigo daqueles sítios, que me disse tê-lo encontrado, poucos dias antes, de
perfeita saúde e invejável robustez. Dei-me por satisfeito, e de nada mais quis
saber.
Aconteceu, porém, um dia, ser eu
convidado para um baile em casa do conselheiro F., por ocasião do aniversário natalício
de sua filha Matilde. Mal teria entrado no salão, quando, cheio de espanto e receoso
prazer divisei o meu amigo Arthur de Campos, por entre a multidão de
cavalheiros, que se apinhava a uma das portas, para a próxima quadrilha.
Fiquei estupefato!
Ora vão lá conhecer o mundo, — dizia
eu, repetidas vezes a mim mesmo, mal acreditando ainda na realidade do que via.
Pois aquele homem que, ainda há pouco, amaldiçoava a sociedade, no meio de um horrível
spleen, que lhe atrofiava a dolorosa existência;
aquele homem, para quem a mulher não passava de um espectro hediondo e feroz, —
já então não hesitava em se degradar daquele modo, vivendo na sociedade, e
procurando até o objeto da sua antiga indignação e odioso desprezo?!...
Pois a isto chama-se — saber
viver e nada mais, — dirão muitos, e digo eu também. Lá diz o provérbio: — Qui ne sait pas feindre, ne sait pas vivre.
Passemos, porém, uma esponja por
sobre estas misérias e humanas ninharias, e voltemos ao salão.
Ao meu lado conversava
calorosamente um grupo de convidados.
Dizia o primeiro, literato de
grande nomeada na invicta cidade:
— Quem será aquele jovem
Lovelace, que traz cativos tantos olhares modestos e apaixonados?...
— Pois, em verdade, ainda não o
conheces, meu caro? — retorquia um adestrado Marialva, muito conhecido pelas
suas proezas e afamada mestria. — Aquele sujeito é um provinciano de Fafe,
homem de grandes haveres, segundo me dizem, e que vem agora residir para o
Porto. É o que em boa sociedade pode chamar-se un homme distingué, un homme à bonnes fortunes.
— Hum!... lá me parecia!... — prorrompeu
o primeiro. Isso assim é outro cantar. Por isso a filha do nosso conselheiro
não descura da sua missão. Olha... que modos aqueles... como ela se quebra toda
para lhe agradar... ah! pois não, coitadinha!... Nem a formosa ninfa da mitologia,
surgindo do seio do Oceano, seria mais bela e tentadora!...
— E bem haja. ela, continuou o
segundo. Isto, hoje em dia, mulher esbelta sem dinheiro é o mesmo que um cavalo
bonito e manhoso: todos gostam de lhe admirar a estampa, mas ninguém o quer
para si.
Enquanto isto assim se passava,
Arthur, de longe, pareceu reconhecer-me, e, levantando-se de golpe do lugar
onde se sentara, ao lado de Matilde, veio abraçar-me sem demora.
— Como tu estás gordo e bom, meu
caro! Estava longe de te fazer hoje por aqui, dizia ele, apertando-me
fraternalmente em seus braços varonis.
— Pois olha, eu a ti muito menos;
foi milagre, de certo. Mas conta-me lá: que transformação foi essa tão rápida?
Tu, o homem piegas e choramingas de outrora, o Heráclito provinciano, a quem
nada podia distrair, a não ser uma ou outra pagina do milagroso Werther,
apareces-me agora transformado em Demócrito feliz e folgazão, catequizando
estes corações rebeldes ao teu domínio e absoluto império?!...
— Isso é uma longa historia, meu
amigo, que para aqui não vem a propósito. A esse respeito tenho muito que te
contar. Aparece amanhã no Hotel Central, quarto n.º 9, e lá falaremos.
— Está dito: amanhã lá me tens,
sem falta. Apertamo-nos depois as mãos reciprocamente, e cada um seguiu o seu
rumo. Arthur voltou ao salão; eu retirei-me sossegadamente ao meu quartel.
CAPITULO II
Amor, és imortal! sorris nas
campas!
Goethe.
No dia imediato, á hora aprazada,
dirigi-me apressadamente para a rua do Laranjal, conforme havíamos
convencionado na véspera.
Seria talvez uma hora da tarde,
quando entrei no Hotel Central. Fui assim percorrendo a longa numeração dos
quartos, até que se me deparou o mencionado n.º 9, a cuja porta bati duas
vezes, sem obter a mínima resposta. Á terceira pancada, já conseguira mais alguma
coisa, por isso que me soara distintamente o ranger descompassado de um leito,
e o bocejar monótono de algum sibarita, que se espreguiçava indolente, qual
moderno Sardanapalo. Quase me julgara iludido no meu humilde propósito, quando
ouvi a voz de Arthur, clamando bem alto:
— Olé! quem está aí? Entre quem
é...
Abri a porta, e entrei. Arthur
mal havia despertado ainda do contristante letargo que daquele modo lhe
entorpecera seus membros voluptuosos.
— Sim, senhor, muito bem, menino
Arthur! isto é que se chama viver, o mais é historia! Olha que lá por fora já é
dia há muito tempo.
— Ora deixa-me, nem me fales nisso.
Estou perdido, estou morto! Amo uma mulher apaixonadamente.
Ai! Matilde! Matilde! o teu olhar
foi o demônio, que se introduziu na minha alma. Preciso amar-te. Doravante só
quero viver para ti, adorar-te, e chamar-te minha, finalmente. Que nos
importarão, então, os prazeres deste mundo, quando nós, afastados da sua
corrupção e miséria, vivermos um só para o outro e nos alimentarmos na
inocência e suave conforto dos nossos corações privilegiados?!...
Ai! Matilde! meu amor! custe o
que custar, tu hás de pertencer-me um dia. Embora tenha de arrancar-te aos
braços de teu pai, tu serás minha e só minha, doce perola do meu coração!
— Bravo! tudo vai a melhor. Á
ultima hora apareces-me metamorfoseado num elegante Romeu. Realmente, és um
homem singular, um tipo sui generis!...
— Sou um homem singular, dizes tu.
Não preciso, nem quero compreender-te. Porque me não vês, como vós outros,
verme impotente, rastejando impunemente na podridão das próprias chagas,
chamas-me um tipo sui generis.
Embora! Prouvera a Deus todos assim fossem!...
— Lá por isso não vale zangar,
meu amigo. Já vejo que não estás hoje de muito bom humor. Este tempo chuvoso também
não deixa de ter sua influencia sobre o sistema nervoso. Mas, enfim, falemos em
outra coisa. Quando chegaste de Fafe?
— De Fafe cheguei há três dias, e
de sobejo têm eles sido para me persuadir a que não devo voltar para lá.
— Não deves voltar para lá?!...
Essa é melhor. Então por que?
— Porque já agora aborreço aquela
vida solitária da minha aldeia. Tenciono comprar uma casa, casar-me breve, e
continuar a residir aqui. Mas, olha lá, isto devem ser horas de almoço: que me
dizes?
— Até de jantar, meu caro: são
quase duas horas da tarde.
— Pois bem, nesse caso, vou
vestir-me quanto antes, e tu almoçarás comigo, como espero.
— Eu?! almoçar a estas horas?!
Estás perfeitamente enganado a meu respeito. Eram 7 horas da manhã, já estava fora
de lençóis; ás 8 tinha o almoço digerido; e ás 9 estava na rua a tratar dos
meus negócios.
C'est trop fort!... Faz-me-hás companhia, ao menos, estimulando-me
o apetite com dois dedos de suculento cavaco; depois iremos juntos a casa do
conselheiro F., onde se me faz mister da tua valiosa proteção.
— Nesse caso, uma vez que me
queres para jantar, tomarei a liberdade de ir já confortando as paredes estomacais,
para o que der e vier.
— Á cautela, também to aconselho;
porque, finalmente sempre é obra que fica feita.
Almoçamos, pois, deliciosamente.
Eu de cada vez admirava mais o meu amigo Arthur. Dir-se-ia um ente incompreensível,
na verdade: ora alegre, ora triste, ora melancólico e sereno, ora folgazão e
jovial; enfim, são coisas deste mundo!
Depois de termos entrouxado duas
boas travessas de apetitosas costeletas de porco e ovos, acompanhadas do
saboroso e estomacal vinho de Xerez, — saímos ambos, em direção á rua de Santa
Catharina, onde morava o nosso amigo conselheiro F.
Apenas havíamos subido alguns
degraus da escada, cujo andar era habitado pelo conselheiro e sua família,
quando nos soou distintamente a voz de Matilde, altercando furiosa com sua irmã
Maria. Hesitamos um instante no nosso propósito, e por alguns momentos ficamos
perplexos, sem saber o que fazer. Por fim paramos juntos á porta da entrada, a
cuja fechadura colamos o ouvido cautelosamente, para assim, invisíveis, melhor
podermos assistir aquele espetáculo de ciumenta fraternidade.
Dizia Matilde, com as faces
inflamadas em cólera e súbito desespero, acentuando bem as suas palavras,
vibradas do intimo do coração:
— Ora a mana sempre é muito
invejosa!... que se importa com a vida do sr. Arthur? que tem com ele? nunca o
ouviu falar a seu respeito, nem bem, nem mal, não é assim?... pois então é melhor
calar-se, e nunca mais tornar a falar em tal coisa.
— Sim, sim, tudo isso é muito
bonito! eu já sei o que a mana quer: imagina talvez que o sr. Arthur está a destilar
de amores pela sua pessoa, e ilude-se perfeitamente. Nem ele tinha mais que
fazer. Olhe, sabe que mais, é melhor tirar daí o sentido. Ainda desta vez não pega
a lábia, minha senhora...
— Olhe bem a mana, veja lá o que
diz; depois não se arrependa, porque pode vir tarde e a más horas. Não estou
disposta a aturar as suas criancices por mais tempo. Parece que ainda cheira a
cueiros! Que tal está o fedelho! já viram coisa igual?...
Neste ponto, Arthur, vendo que a
contenda ia a tomar proporções um pouco serias e assustadoras, julgou do seu
dever atalhar quanto antes os funestos resultados, que daí lhe pudessem provir.
Para isso tocou a campainha, e logo após veio um criado abrir-nos a porta,
convidando-nos a entrar para a próxima saleta.
Entramos numa sala, elegantemente
adornada e cuidadosamente disposta. Sentamo-nos numas cadeiras de braços, ao
acaso, e lançamos mão do primeiro objeto que se nos deparou oportunamente sobre
a mesa: era um álbum, quase todo manuscrito.
Abrimo-lo distraidamente, — passeando
a vista, ao mesmo tempo, por aquela multidão de paginas, repletas de centenas
de palavras sensabores e sem sentido — quando vimos, no topo da pagina, a
seguinte epígrafe:
ILUSÕES
(Fragmento de uma poesia inédita)
Á ex.ma sr.ª D. Mathilde
Isto excitou a curiosidade de
Arthur, que continuou a ler em voz alta:
No céu divinal nascida,
Tão querida!...
Entre os homens és rainha!
No teu olhar enlevados,
Pelo encanto avassalados,
Todos suspiram: sê minha!...
De manhã o sol luzente,
Vem ridente!...
A natura iluminar;
Assim tu, com teu fulgor,
Vens num sorriso d'amor
Minha alma purificar!
No céu a estrela ondulante,
Tão brilhante!...
A cada passo é toldada!
Mas tu brilhas sempre pura,
Qual a rosa com frescura
Pelo sol iluminada!...
— C'est assez!... — exclamou Arthur, contendo um longo abrimento de
boca, e depondo discretamente o álbum sobre a mesa. É um ótimo narcótico para
quem precisar dele: eu, por mim, declaro, estou satisfeito e mais que
satisfeito.
Neste momento entraram na sala as
duas filhas do conselheiro, acompanhadas de sua respeitável mãe.
Trocadas as cortesias do estilo, tornamos
a tomar novos lugares.
Arthur começou, dizendo que
aproveitava aquela ocasião para ir agradecer pessoalmente o benévolo
acolhimento e fraternal simpatia com que se tinham dignado tratá-lo na noite
antecedente, confessando-se eternamente grato por todos aqueles obséquios, que
tão do intimo lhe tinham sabido prodigalizar, e que ele jamais poderia esquecer
em dias de sua vida.
A isto respondeu mui
laconicamente a dona da casa, intentando provar-lhe que não tinha feito mais do
que cumprir um dever para com os seus hospedes e amigos, que tanto folgava em
ver reunidos, como em família, naquelas poucas noites de santa alegria e
jubilosa reminiscência.
Arthur, por um momento
silencioso, continuou logo naquele mesmo estilo parlamentar, com que havia
encetado a sua conversação, manifestando igualmente o seu profundo sentimento
pela ausência do conselheiro, a quem desejava falar urgentemente para tratar de
um negocio importante, cuja solução deveria interessar a toda a família.
Nesta ocasião, confesso, tive um
horrível calafrio. Tratar de um negocio importante, cuja solução deveria
interessar a toda a família?!...
Nem eu sabia que pensar daquelas
suas palavras. Pois dar-se-á o caso, na realidade, que este homem vá pedir a
mão de Matilde, não tendo falado com ela senão uma vez, ignorando completamente
os seus sentimentos e qualidades morais?!...
Veremos!... — dizia eu a mim
mesmo, abrangendo em toda a estreiteza desta palavra um raio de esperança no
futuro.
Após alguns momentos, como víssemos
que não chegava o dono da casa, saímos, prometendo voltar nessa mesma noite.
Quando depois nos encontramos, cá
fora, ao ar livre, sem haver nenhuma pessoa que pudesse espiar os nossos
passos, Arthur encarou-me com um olhar furtivo, misto de susto e alegria,
perguntando-me disfarçadamente:
— Então que te parece a minha
resolução? Não julgavas, talvez, que fosse tão precipitado nos meus planos; não
é assim? Pois olha, eu previra tudo isso, e, todavia, não o pude dissimular.
Quis evitar todos os escolhos, que me pudessem sobrevir, no decurso desta minha
difícil peregrinação, mas cheguei nimiamente tarde. Agora entrego-me á
Providencia de alma e coração. O futuro nos dirá o que for.
Estas ultimas palavras foram
proferidas num tom severo e decisivo, e de tal modo, que julguei inútil toda e
qualquer replica, que a minha amizade, porventura, pudesse sugerir-lhe.
Limitei-me apenas a fazer-lhe alguns reparos sobre o casamento, apontando
sempre ao futuro, como uma sombra pavorosa, diante da qual ele teria de recuar
um dia, se a fatalidade, por acaso, porfiasse em persegui-lo. Ele, pela sua
parte, fingiu nada ouvir do que eu lhe dissera, e calou-se.
Nessa mesma noite, o casamento
ficara definitivamente tratado, para ter lugar dentro em quinze dias, o mais
tardar. Esta resolução do moço provinciano propalou-se logo pela cidade, e
todos pasmavam ao ouvi-la, acreditando uns na sua realidade, e outros
negando-se em aceitá-la como verdadeira.
O que é certo é que daí a dez
dias os jornais da localidade registravam nas suas colunas o casamento de Arthur,
do modo seguinte:
— «Ontem, pelas 10 horas da
manhã, na igreja de Santo Ildefonso, contraíram os sagrados laços matrimoniais
o ex.mo sr. Arthur de Campos e a ex.ma sr.ª D. Matilde de Andrade Castelo
Branco, menina de subidos sentimentos e elevadas qualidades. Os ditosos noivos
retirar-se-ão brevemente para Lisboa, onde irão passar a lua de mel. Daqui
mesmo lhes enviamos os nossos parabéns, fazendo votos pela sua felicidade
futura, e eterna união.»
O ideal de Arthur realizara-se,
pois, neste mundo. Naquele dia tudo lhe sorriu fagueiro e jovial. A primavera
tornara a despontar no seu coração, cheia de galas e encantos. A sua imaginação,
povoada de tudo quanto há de mais belo e sublime, neste vale de lagrimas, nada
mais enxergara além da existência presente. O sol da sua felicidade, até então
sepultado nas trevas de um desditoso porvir, surgiu enfim majestosamente no horizonte
da vida, purpureado de bem vivas cores e rescendentes perfumes.
E, diga-se a verdade, naquele
dia, ao menos, Arthur julgou-se feliz, e muito feliz. Por entre as rosas do
amor não distinguiu ele os goivos da existência; através a pureza do seu horizonte
de todo lhe fora impossível notar a orla sombria e fatídica. Sentiu-se
deslumbrado por um não sei quê de vago e misterioso, que o arrastava
involuntariamente para um abismo tremendo, onde tinha de resvalar mais tarde, a
despeito mesmo da sua vida regrada e hábitos morigerados.
Por esta ocasião memorável foi
servido um lauto banquete em casa do conselheiro F.
Opiparos manjares guarneciam as
mesas, rodeadas de amigos e parentes.
Nessa mesma noite houve um baile,
esplendidamente servido, e que se prolongou até ás 6 horas da manhã.
Passados que foram três dias,
Arthur partiu para Lisboa, acompanhado de sua esposa e sogro. Ali se demorou três
meses, ao cabo dos quais regressou á invicta cidade, mais ditoso ainda do que
lhe fora licito imaginar.
A felicidade, porém, como o
destino, tem os seus revezes neste mundo. Um amor excessivo aterra-nos e
confunde-nos. Os extremos são sempre anomalias, mais ou menos perigosas, na
vida humana.
CAPITULO III
Un groupe de Dalila et de Sanson avec celui de la farouche Judith
serait toute la femme expliquée.
Balzac.
Ai! mulheres! mulheres! De todos
os mistérios, que Deus há criado, vós sois o maior deles, talvez!...
E quem poderá compreender-vos,
com efeito?!...
A candura do vosso espírito, ao
desabrochar das mil quimeras da existência; a meiguice de um vosso olhar
voluptuoso e luxuriante; o feiticeiro encanto de um vosso sorriso,
profundamente celestial e angélico; todo o complexo de variegadas cores e místicas
harmonias, que vos envolve e sobrepuja aos outros seres da criação: enfim,
todos esses sons dispersos, indefiníveis e atraentes, constituem em vós um Éden
de amor, idealização sublime, perante a qual todos se julgam impotentes, não
sabendo até o meio de resistir-lhe.
Tudo tem o seu contraste,
porém!... Não há pomba sem fel, assim como também não há rosa sem espinhos!
A par de seráfica inocência
existe em vós a ferocidade do tigre; junto á sublimidade do vosso coração
tendes a fealdade da hiena!
Profunda e contristante
antinomia!!!
O mundo, em seus juízos iníquos,
condena-vos, a cada passo, sem procurar mesmo ouvir as vossas queixas. A
sociedade há muito lançou o estigma fatal sobre a vossa fronte impura. E no
meio de tudo isto, todos vos procuram para vos repelirem mais tarde, quando já
eivadas das mil misérias e humanas torpezas.
Então ninguém se lembra já que
fostes uma mãe desvelada e terna; que amamentastes a vossos peitos a loira criancinha-fruto
mimoso do Senhor; — que procurastes imprimir na sua fronte o osculo do amor
para o tornar o homem bom e virtuoso, que todos desejam, e por quem a civilização
trabalha sem cessar!
Sim! então, ninguém se recorda
que fostes o encantamento do lar domestico, quando filha; — esse tipo sedutor,
visão etérea, que pela sua natural candura, meigo aspecto e divina graça, fazia
a felicidade dos pais e o respeito dos estranhos!...
Até mesmo a esposa carinhosa e
meiga, que outrora iluminava, como um sol de primavera, foi esquecida e
amaldiçoada pelos homens; — eclipsou-a a nuvem sombria da civilização. O
Minotauro de Balzac devora as mulheres jovens e belas, as outras anseiam por
serem devoradas por ele.
Ai! mulher!... mulher!... Quanto
é sublime a tua missão sobre a terra! Como é soberbo o teu domínio!... Quantas dores
não tens tu mitigado com a proteção do teu mágico afeto!... Para quantos infortúnios
não tens sido o anjo mensageiro, enviado pelo Criador á humanidade!... E haverá
ainda alguém, tão estolidamente egoísta, que pretenda negar o teu poder?!...
Homem, quem quer que tu sejas,
dize-me — que és tu perante as lagrimas de uma mulher?... oh!... mesquinha e
louca criatura!... quão efêmera é a tua
natureza!... grão de areia na vastidão do oceano!...
Mulher! Eu respeito as tuas dores,
bendigo as tuas lagrimas!...
Porém, vai longa a digressão.
Voltemos ao fio da nossa historia.
Arthur viera, pois, assentar a
sua residência no Porto, definitivamente. Ali comprou uma linda habitação, ao
cimo da rua da Alegria, onde se conservou durante um ano, aproximadamente, num
remanso de paz e sossego de espírito, que ameaçava ser eterno.
Não aconteceu, porém, assim. As
nuvens iam-se-lhe amontoando gradualmente por sobre o anil do seu horizonte. A
procela estava iminente; era terrível o abismo!
Acompanhemos o drama.
Arthur, apenas estabelecida a sua
morada, e dispostas convenientemente as demais coisas, concernentes a uma boa
administração, começou a embriagar-se de tal modo naqueles eflúvios de amor,
que brotavam espontâneos do seio de sua adorada esposa, que se julgou prestes a
sucumbir de felicidade e bem-estar.
A ventura em demasia conduz-nos a
maior parte das vezes a uma dolorosa prostração e fleumática indiferença por
tudo o que não for o objeto das nossas vistas apaixonadas e infantis.
Foi exatamente o que sucedeu ao
afortunado (?) mancebo. Matilde tornara-o flexível a ponto de o converter num
instrumento pueril de todos os seus caprichos e insaciáveis desejos.
Os bailes multiplicavam-se; os
jantares não tinham limites. Enfim, por aquele andar, tudo tendia, sem remédio,
a uma perdição infernal e miserável corrupção. E a par disto tudo, como sucede
a maior parte das vezes, a reputação de Matilde corria já empeçonhada e
perdida...
O jovem provinciano parecera não
ter primado demasiadamente na escolha dos seus amigos. Por entre um ou outro
coração sincero e bom, daqueles que frequentavam a sua casa, surgiram também
muitas almas corrompidas e devassas. Entre estas, notara-se particularmente um flaneur de bom tom, a quem Arthur dedicara
sempre, desde o principio, uma particular predileção. Chamava-se ele Roberto
Guimarães, se bem me recordo.
Roberto Guimarães era um destes
elegantes da boa sociedade, a quem de resto pareciam sobejar dotes de espírito
e faculdades inventivas para se fazer amar por qualquer mulher, igualmente
formosa e bela. Trajava pelo ultimo figurino de Paris: o pescoço, vexado em
enorme colarinho, que devia medir um palmo, aproximadamente; as pernas
enfronhadas em apertada calça, que ameaçava desconjuntar-se a cada movimento; o
pé, encaixado numa bota de lustroso verniz, obrigando-o a andar em passo de
dança por causa dos calos que o molestavam; a luzente cabeça, sepultada em fino
chapéu, cuja altura não excedia três polegadas. Era sua inseparável uma badine,
em que pegava com o primor do fino janota; frequentava o café Marrare, onde ia
discutir a política do dia.
Com tais predicados, Roberto era
acolhido em todos os salões com inaudita ansiedade e frenesi espontâneo; em
todos eles figurava sempre na primeira plana, prodigalizando com perspicácia
nada vulgar os preciosos dotes da sua atilada imaginação e acrisolado saber.
E, digamo-lo de passagem, Roberto
era uma alma grande e difícil de encontrar entre os homens. Enquanto tivesse
dinheiro, não havia ninguém pobre ao pé de si: todos folgavam com a sua
alegria.
Amava do mesmo modo todas as
mulheres, sem contudo ter paixão a nenhuma delas. Para ele, a mulher não
passava de um objeto, como qualquer outro, que o deleitava simplesmente durante
duas ou três horas por dia, um incentivo para melhor passar o tempo, e mais se
rir com alguns amigos íntimos entre duas botijas de cognac e apetitoso fiambre.
Com o contacto da sociedade
tornara-se cínico. A seus olhos a família, a religião, a pátria, a sociedade não
eram mais que meras fantasmagorias — um espectro vil e hediondo!
Não acatava ninguém, nem mesmo as
cousas mais sagradas deste mundo. Era implacável nos seus juízos.
O boato circulava já nas ruas
mais frequentadas da cidade. Aos olhos da sociedade Matilde escorregara
subitamente do santuário da moralidade no esterquilínio do vicio e do crime; já
não havia valer-lhe.
Choveram, então, cartas anônimas,
sem peso nem medida, — o meio mais torpe e tacanho de que se servem algumas
pessoas, estribadas impunemente numa amizade insensata e vã, para acarretarem o
desgosto e a perturbação ao seio de uma família, muitas vezes inocente!
Arthur, que a principio não
fizera caso de tais bagatelas, intimamente convencido da inocência de sua
esposa, — concluiu finalmente por encarar a sua vida pelo lado pior e mais
perverso.
Daí em diante não perdeu a
expectativa, simulando, contudo, a maior tranquilidade, e plena confiança em
sua mulher.
Um dia levantara-se pelas seis
horas da manhã, e, arranjada que foi a sua mala, disse ele a sua mulher que se
ausentava por três dias para fora da cidade: foi a primeira vez que tal
sucedeu... Matilde, algum tanto assustada com tão inesperada resolução, não
pôde, todavia, atingir qual o fim desta peripécia, que ela estava longe de
conceber.
Roberto, aproveitando-se da ausência
do seu amigo Arthur, fora imediatamente habitar para casa da sua querida
amante, a fim de lhe fazer companhia, ao menos durante o apartamento de seu
esposo...
Uma noite estavam eles inebriados
em mutuo abrasamento, quando, inopinadamente, sentiram abrir-se a porta, de
golpe, e entrar por ela o moço provinciano, de uma palidez sepulcral e com a
fronte inundada de um suor frio, que lhe devorava a triste existência. Sustinha
um revólver na mão direita, que lhe fora impossível desfechar: tal era a sua
situação!
Matilde caíra desfalecida e
exangue. Roberto, aterrorizado, recuou dois passos; depois investiu contra o
inimigo, a quem tomou por um braço, e arrancou de uma espécie de torpor em que
jazia.
— Medir-nos-emos no mesmo campo, —
vociferou Roberto, como que alucinado e simulando gestos medonhos.
Arthur interrompeu-o por algum
tempo, olhando para ele fitamente e exprimindo, talvez, a sua profunda
compaixão pelo miserável que via diante de si.
Em seguida Roberto prosseguiu:
— Amanhã, ás 4 horas da manhã, na
praça da Boa-Vista: escolherá as armas e padrinhos, conforme lhe convier: de
resto, estou ás suas ordens.
Após esta fatal alocução, Roberto
saiu tranquilamente daquela casa.
Arthur, apenas recuperados os
sentidos, retirou-se igualmente pacifico, como se tivesse assistido a um magnífico
espetáculo.
O certo é que Matilde, quando
voltou a si, já não viu mais ninguém no quarto, afora uma velha criada, que
velava por ela solicitamente.
No dia imediato, á hora convencionada,
Roberto apresentou-se destemidamente na praça da Boa-Vista, aguardando o seu adversário,
com quem esperava bater-se num duelo de morte.
Arthur, porem, não apareceu ali,
como era para desejar. Também ninguém mais soube do desventurado mancebo. Diziam
uns que ele tinha embarcado para Inglaterra, onde se fôra reunir a seu irmão,
muito amigo, que negociava em vinhos naquele país: outros afirmavam que vivia
oculto num lugar próximo de Lisboa, afim de nunca mais ser visto, nem tão pouco
tornar a falar com sua esposa depravada e falsa.
Mais adiante veremos o que é
feito dele.
CAPITULO IV
Oh! n'insultez jamais une femme qui tombe;
Qui sait sous quel fardeau la
pauvre âme sucombe?...
Caiu o anjo bom, ficou o anjo
mau!
Já não havia valer-lhe, á triste vítima.
A queda foi tanto mais fatal, quanto mais audacioso tinha sido o vôo a que
loucamente se arrojara.
Dentro de pouco tempo, Matilde
ganhara o desprezo da sociedade. Seu pai havia sucumbido a tão dolorosa crise.
Arthur retirara consigo a sua proteção e o seu dinheiro.
No meio do esplendor e louçanias
deste mundo tudo nos sorri prospero e sedutor. Não faltam amigos;
multiplicam-se os parentes. Vem depois o fantasma da tristeza, o espectro da
desventura, e a vítima, odiada por todos, á beira do abismo, terá, apenas, a
Providencia por único e derradeiro recurso.
Nada mais verdadeiro. É assim a
nossa sociedade: ataviada de galas no exterior, e contaminada de podridão no
intimo.
Por algum tempo, Roberto
continuou ainda a dispensar os seus desvelos e favores aquela desgraçada
mulher; preparou-lhe uma pequena habitação, a alguma distancia da cidade, e lá
conseguiu encarcerá-la, durante algum tempo.
Cometido o crime, o primeiro
cuidado do malfeitor é ocultá-lo, sem demora, aos olhos dos seus semelhantes.
As trevas fogem da luz; o sol odeia a noite.
Isto, porém, foi de pouca dura:
com a saciedade veio o ódio, com o ódio o abandono.
Matilde ficou só no mundo, sozinha,
com as suas lagrimas, com a sua dor, com a sua miséria! E que poderia ela
fazer, coitadinha!... Depois de ter empenhado e vendido tudo o que possuía de
mais valor, vexada de si mesmo, com a febre do desespero, amaldiçoou o sol que
a aquecia, e foi procurar na sombra o refrigério á sua alma atribulada.
A sociedade cavou-lhe o sepulcro,
e soltou uma gargalhada estulta e pérfida! O homem covarde esmagou o verme
impotente, e tripudiou incólume sobre todos os sentimentos e qualidades morais!
A matéria venceu o espírito! a força bruta subjugou o movimento!...
Ontem censuramos em Matilde a mulher
social; hoje podemos e devemos justificá-lo, sem que nisto sejamos contraditórias.
E, de feito, o que era aquela
mulher, senão uma dessas desgraçadas, a quem a sociedade havia enxovalhado com
a lama do desprezo, sujeitando-a a mercadejar o melhor dote que Deus lhe
concedera — a honra?! Era uma dessas mulheres estouvadas, no sentir de muitos,
que, zombando de tudo, também ousam profanar com mãos sacrílegas o santuário do
pudor e da virgindade, contribuindo assim para a sua inteira ruína e completa perdição!
E no entretanto, esses são os
homens bons, que mais tarde fingem não reconhecer a vítima de seus nefastos
interesses, lançando o escarro do desdém na sua passagem. São estes os homens
bons, que, longe de aliviar o pobre com uma esmola, filha de um nobre coração,
pelo contrario, tropeçam impunemente nas suas chagas, enodoando-as com a baba
asquerosa do seu orgulho!...
Assim decorreram alguns anos. Matilde,
a mulher perdida, lá foi encontrar num prostíbulo a expiação severa e árdua de
uma falta injusta, embora tolerável. O holocausto começara então; devia de ser
bem negro o seu fim.
A aridez do deserto, depressa a
superou, a triste romeira. As dificuldades foram-se-lhe tornando habituais de
dia para dia. O seu hálito alcoolizado cativara a atenção de muita gente.
O corpo, já de si pestilente,
transformara-se repentinamente em podridão nauseante. Ao longe, pairava o
corvo, imundo e contente, por sobre as exalações infectas daquele charco pútrido,
aguardando ocasião oportuna para cevar ali a sua espantosa avidez.
E assim aconteceu, realmente. Um
dia, atravessava indiferentemente as ruas da cidade um camponês, levando um
caixão ás costas. Dirigia-se para o Prado do Repouso! Lá o lançaram para uma cova,
e com ele os restos mortais de uma mulher desditosa.
A terra ocultava uma infeliz no
seu seio obscuro; os homens acolhiam no seu grêmio um leproso vil e incurável!...
Nem uma lagrima! nem um suspiro!
nem um ai compassivo!...
Roberto, ao saber do fúnebre
passamento de Matilde, neste mundo, limitou-se muito ingenuamente a vomitar uma
baforada de fumo de seu enorme cachimbo, acompanhada de sinistra gargalhada!
E melhor foi assim, talvez!...
A mulher ludibriada havia
desaparecido para sempre de sobre a superfície da terra! Era tempo de procurar
outra vítima!...
Rejubilae, sátrapas da corrupção e da licença! erguei as cabeças,
parasitas ignóbeis!...
Vinte, trinta ou quarenta mortes,
que importa tudo isso, uma vez que nós vivamos contentes e satisfeitos?!...
Arda muito embora o universo! De
que vale essa triste ninharia, se as chamas mesmo de leve nos não tocarem?!...
Neros do egoísmo! preparai a
vossa argila imunda! A hora soará uma vez, e os vossos cadáveres, por seu
turno, agitar-se-ão ensanguentados ao longo das vossas misérias e vilanias!...
No entretanto, em quanto as
coisas assim se passavam, Arthur regressara finalmente á pátria, após uma longa
viagem, que havia empreendido á Inglaterra, com o intuito provável de recuperar
no estrangeiro a ventura, que lhe fora impossível encontrar no meio daqueles
que mais amava e queria. Quem o visse, depois da sua chegada, passear as ruas
do Porto numa perfeita serenidade de espírito e jovialidade quase espontânea,
que tão peculiares se tornavam ao seu caráter indiferente e generoso — reputá-lo-ia,
á primeira vista, um homem feliz, sem receio de errar.
As grandes comoções variam de
individuo, segundo a diversidade de circunstâncias que as podem originar. A
desgraça de Matilde convertera-se num manancial de felicidade para Arthur. O
homem, aviltado por um amor insensato, reconheceu, ao fim, a sua dignidade, e
ergueu a cabeça, cheia de luz e esplendor. O holocausto de sua mulher resgatara-o
para a vida e para o mundo.
Antes assim!
Após esta grande evolução do espírito
humano, a transformação operara-se rápida e completa. Apagaram-se ódios ruins;
deslembraram-se velhos rancores.
O esquecimento da vítima e o cinismo
tornavam dois homens ditosos sobre a terra, em quanto o céu acolhia, talvez, no
seu seio uma pecadora arrependida, e regenerada pelo amor e pela virtude!
E de fato, Matilde, quando se viu
assim ludibriada, e afastada da sociedade, chorou muitas lagrimas de
arrependimento sincero, derramou nas trevas muita perola oculta, tragou até ás
fezes o absinto daquela taça denegrida e empestada pela sociedade, a que alguns
muito erradamente chamavam vida. Vida! para aqueles que a não conheceram
outrora opulenta e a trasbordar de pura seiva vital!... Vida, sim, mil vezes terrível
e amargurada!...
Antes o inferno, a solidão, o
abandono, a inércia, do que o sacrifício de tão ignóbil vegetação!...
Agora, é tempo de terminarmos a
nossa historia. Fica ao arbítrio de cada um, o ajuizar da bondade ou maldade da
nossa heroína. Nem isso nos causará assombro. Para nós, Matilde simboliza uma
perfeita imagem da mulher atual; nem mais nem menos.
Arthur foi, pois, despejadamente
abraçar o seu amigo Roberto Guimarães, que de muito bom grado o acolheu em sua
casa, cheio de gaudio ingente, e espontaneidade feliz. Congraçaram-se as duas
veleidades; o veneno amalgamou-se com a peçonha num grosseiro deletério; o piar
do mocho agoureiro contrastou singularmente com a avidez do abutre esfaimado!
Fazia-se mister uma ocasião
oportuna, a fim de cada um poder expandir convenientemente os seus sentimentos.
É o que vamos ver.
O moço provinciano, já a este
tempo purificado no cadinho de uma civilização depravada e falsa, foi
readquirindo as suas antigas relações. Os seus salões continuaram a estar
patentes a todos os velhos amigos e parentes. O seu nome tornara-se sobejamente
conhecido no país. A sua fortuna aumentara consideravelmente com a ida á
Inglaterra. Não lhe faltavam pais, que o desejassem ver bem colocado no seio de
suas famílias.
E o certo é que as circunstâncias
se combinaram de tal modo, que, dentro de pouco tempo, Arthur de Campos fora
feito barão de... E era justo, com efeito; tinha dinheiro: ao menos podia
contribuir para a prosperidade do país.
A riqueza reabilitou o homem
covarde, perante as cataratas de uma sociedade meia em dissolução. É assim que
vemos muitas vezes a virtude suplantada, e o egoísmo triunfante e vitorioso!...
Tudo isto, porém, era pouco
ainda, ante o glorioso porvir que lhe estava reservado. O baronato metamorfoseara
o nosso provinciano a ponto de lhe incutir no animo um acervo de sentimentos
depravados e baixos, de uma certa aristocracia ignara, que por aí tropeça a
cada canto.
Feito barão, o seu primeiro
cuidado foi escolher uma mulher da alta sociedade, que lhe lisonjeasse deveras
o paladar, já de si delicado e corrupto. Para isso procurou ele unir-se em
segundas núpcias com a filha de um acreditado visconde, que ainda hoje reside
em Lisboa.
De resto, nada mais é notório, a
não ser que o sr. barão de... empreendeu, ainda há pouco, uma nova viagem ao
estrangeiro, em companhia de sua amável esposa, com quem dizem gozar perfeita
felicidade e verdadeira união.
A reparação, embora tardia, não
foi intempestiva. Possa, ao menos, a Providencia prolongar-lhes os dias da sua
ventura e do seu amor!...
Presentemente, de toda a família
do conselheiro F. existe apenas Maria, irmã de Matilde, que nós encontramos no
principio desta narrativa. Vive do seu trabalho e das suas lagrimas, porque,
segundo a tradição mais geralmente seguida, a sua reputação também não corre
isenta de grandes manchas.
Enfim, é desculpável o seu erro:
quando a necessidade entra pela porta, a virtude sai pela janela.
Consta que Roberto lhe
estabelecera uma mesada nada inferior, a fim de lhe minorar as suas penas, e
restabelecer, talvez, a tranquilidade da sua consciência!
Enquanto a este mal-intencionado
cavalheiro, nada temos a acrescentar, senão que continua a ser o mesmo homem, e
sê-lo há sempre!...
Ce qui a été, sera, — dizia Eugênio Huzar....
Agora, leitor amigo, é ocasião de
me dirigir a ti. Desculpa o autor destes Cambiantes, e continua sempre a ver
neles uma imagem fiel da comedia humana!
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Nota:
Sebastião de Magalhães Lima: " Miniaturas Românticas" (1871)
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