Á BEIRA-MAR
Por uma tarde calmosa de estio passeava eu distraidamente á
beira-mar, sorvendo o doce aroma, que emanava das auras céleres e vaporosas,
compondo milhares de prismas sedutores e fantásticos, ao som lúgubre das vagas
altissonantes, que se escoavam languidas por sobre a fulva, resplandecente
areia, — quando, inopinadamente, vi surgir do seio do oceano um longo objeto,
informe e opaco. Aproximei-me da superfície do mar, esperando que este, no seu
incessante ímpeto, o arrojasse á praia. Efetivamente, dentro de pouco tempo,
examinava nas minhas mãos uma enorme garrafa, de amplo bojo, que, a todos os
respeitos, me parecera ter sido um eco disperso de algum naufrágio recente. E
não me enganei, com efeito. Abri-a, com todo o cuidado, e lá encontrei o curioso
manuscrito, que vou hoje reproduzir textualmente, por o julgar digno disso.
É a vida de um homem audacioso, encerrada no verbo da ambição, e
santificada no prestigio da gloria!...
É possível, minha mãe, que tenha esquecido o seu querido Ernesto?
Dar-se-á o caso, por ventura, que haja apagado na sua memória a imagem da loura
criancinha, que a fazia sorrir tão docemente naquelas horas de profunda
tristeza, quando, cheia de virginal ternura e temeroso receio, pranteava na
solidão a morte de meu chorado, bondoso pai?...
Oh!... não, não é possível, mil vezes não!...
Pois bem, se assim é, se ainda vives, meiga visão da minha alma,
ouve pela derradeira vez as palavras de teu desditoso filho, que de certo terá
deixado de existir ao tempo em que receberes estas linhas, e santifica a sua
desventura, neste mundo, com a prece angustiada do teu coração atribulado.
Nada mais te peço, nem tão pouco ambiciono!
Desfolhou-se a ultima, sentida saudade da minha existência:
acolhe-a em teu seio; aquece-a muitas e repetidas vezes junto de teu peito, e
aceita na pobre florinha emurchecida o triste Evangelho da minha vida
desventurada!...
I
Ambição! é um sonho, uma fantasia, um entusiasmo, uma centelha
divina!...
Sonho de gloria, fantasia. povoada de inúmeras quimeras,
entusiasmo heróico e magnânimo, centelha do céu, que prende os homens ás
grandes empresas, e arrojados cometimentos, arco-íris deslumbrante, no mundo
das idéias e dos fatos, tudo enfim!...
Ambição e gloria são os dois elos extremos dessa cadeia
indissolúvel chamada humanidade.
A mocidade é uma ambição sem limites.
Ter ambição é aspirar: um aspirar de continuo para a luz, para a
vida, para o amor, para a virtude!...
Era dominado por estes e outros pensamentos, que eu muitas vezes
sentia o vácuo da minha acanhada existência; espraiava então, com avidez
incalculável, meus olhos inconstantes por sobre uma extensa clareira, que
orlava um vastíssimo pinhal, e lá, muito ao longe, por entre o verde negro da
sua espessa ramada, descobria o quer que era de vago e reflexivo, que me
seduzia instintivamente.
Era o meu sonho quotidiano!
E tantas vezes se repetiram estas ilusões, tornou-se tão frequente
este sonambulismo das minhas faculdades, que prestes reconheci a necessidade de
obedecer-lhe cega e fatalmente.
Cortar o espaço e o tempo, — voar, voar e voar muito! — tal era a
idéia, que me dominava!
Em meio, porem, deste magnetismo atraente, vertiginoso, indizível,
languido, vaporoso, sentia eu um fio dourado, que me prendia á terra, um eco
longínquo e salutar, que tentava acordar-me á realidade do mundo.
Era a doce voz de Terezinha, que me chamava, — era o anjo do amor,
que estendia sobre mim suas cândidas e miríficas azas de veludo.
Indescritível colisão! fadado momento!
Sem embargo, a minha aurora resplandecia-me no horizonte do
futuro; acenava-me de longe a estrela do Senhor. Era necessário partir.
II
Eu amava a liberdade; precisava de escolher um país livre!
A republica era o meu ideal!
A ave, que se agita nos ares, é livre em face do Criador
Onipotente; o homem pode e deve ser livre perante a lei, — imagem da justiça
divina, lançada ao meio das sociedades atualmente existentes.
A existência é a liberdade; o tumulo é o despotismo!
Livre é a flor, quando envia aos céus o aroma de suas douradas
pétalas; a brisa é livre, quando beija o lírio; é livre o passarinho, quando em
haste vergada festeja o doce idílio do crepúsculo; é livre a humanidade, quando
bafejada pelo sopro divinal das grandes idéias e sublimes princípios!...
Por entre todas as nações do universo, a America sorria-me
grandemente ditosa. Washington era para mim um planeta, aureolado de mística
luz; Franklin o seu majestoso satélite.
Um dia, quando menos o julgara, estava a milhões de passos da
minha terra natal.
Singrei vastos mares.
E quantas vezes, minha mãe, veio o teu doce anelo contornar uma
consoladora esperança em meu espírito perturbado! Oh! e quantas vezes, mimosa
Terezinha, me veio a tua imagem afagar o meu cismador enlevo! E como tu eras
bela, então!...
Queres saber — nas horas da bonança, quando o nosso barco
deslizava muito de mansinho, ao de leve, por sobre o cristal sempre agitado do
oceano, em guisa de quem receia ser ouvido pelos milhares de espectadores, que
se nos atulhavam naqueles raros momentos de inebriantes arroubos e místicas
harmonias, — eu imaginava ver-te entre nuvens, radiante de fulgor ingente,
cingida a fronte alabastrina de rosas purpurinas, lírios prateados, meigas
violetas, opulentas camélias!
Depois vinha o desfazer das quimeras, e eu, a trasbordar de
entusiasmo, dizia de mim para mim: — «Ao menos, se um dia alcançar o que
desejo, verei para sempre minha pobre mãe feliz, ao pé de mim, e Terezinha será
o meu anjo custodio!
E vês tu, minha mãe, todos estes quadros se me desenhavam nesta
imaginação incendiada, quando ouvi subitamente a maruja no tombadilho levantar
um brado compassivo e clamorosas imprecações.
Agitei-me violentamente, e corri ao lugar do sinistro!
III
É medonho, causa horror uma tempestade sobre o alto mar!
O vento sibilava, agudo e frio, por entre as enxárcias do navio. A
embarcação rangia lugubremente no seu movimento vagaroso e desigual.
Era o mês de dezembro, áspero, severo, rigoroso!
Os membros confrangiam-se-nos, ao encarar tão lutuoso espetáculo;
vacilava a imaginação, e a fé entibiava-se-nos poderosamente.
— Lastro ao mar! — gritava o capitão num tom rouquenho e
cavernoso.
— Amaina, amaina essa escota!
E todos nós trabalhávamos com frenesi espontâneo, e celeridade
inaudita. A tripulação, quase toda nua, era incansável no seu incessante
labutar. Não se ouvia uma queixa, um ruído sequer. Todos denunciavam o mais
vigoroso esforço, a mais acrisolada virtude.
Apenas existia ali uma mulher com dois filhinhos achegados ao
peito, que soltava de quando em quando um estridente e doloroso gemido, até que
por fim caiu de todo desfalecida. Era tamanho o perigo, que nenhum de nós ousou
socorrê-la em tão espinhosa atitude.
Pobre mãe! coitadinha!...
O vendaval abismara-nos num precipício inevitável!
Todas as nossas diligencias saíram frustradas; em vão foram as
nossas orações!
Dois escaleres desceram ao mar; dividiu-se a gente do navio entre
eles de tal modo, que cada um comportasse doze pessoas.
Depressa nos separamos uns dos outros, impelidos pelo vento, pela
água, pelo mar, pela força, enfim!...
Depois de muito remar, muito lutar, muito sofrer, extenuados,
exaustos, sem vigor, sem alento, abordamos, finalmente, a uma ilha
completamente desconhecida, que existe lá para as bandas do norte da America.
Para ali nos rojamos nus sobre a fria areia, onde adormecemos poucos momentos
depois: tal era a nossa debilidade!
No dia imediato, de seis companheiros, que havíamos escapado ás
garras daquele inquebrantável tigre — chamado oceano, — apenas apareci eu,
preso de pés e mãos, e rodeado de um grande numero de selvagens, todos armados
de setas e outras armas de igual quilate.
Naquele momento, receei muito pela vida; julgara-me entre gente
antropófaga!
IV
Como a espuma do mar, impelida de praia em praia, assim se
desvaneceram as minhas ilusões efêmeras!
Reivindiquei para mim os direitos de homem livre, e tive a
felicidade de ser bem acolhido no meio daquela gente inculta e rudemente
educada. Eu era o monarca daquelas solidões; amado, respeitado, e, mais que
tudo, sinceramente incensado pelo turíbulo augusto dos mais atilados engenhos,
que então nobilitavam aquelas ignotas paragens.
Um lampejo de felicidade, porem, é sempre acompanhado de atro
penar e funesto mal-estar. Em redor de um planeta faustuoso gravitam miríades
de assoladoras estrelas.
Erin era um portento de formosura indiana: olhar incandescente e
fatal, cinzelado por longa e aveludada pestana; o seu colo de perolas
ocultava-se debaixo de uma farta e suntuosa madeixa, que a tornava sobremodo
angélica e donairosa; a cintura quase se eclipsava, estreitada em esplendente
faixa de valioso tecido; o gracioso pé, adelgaçado por ebúrneas sandálias,
seria a inveja de um querubim. Dir-se-hia toda a opulência do oriente ali
profusamente derramada. E, além disto, animo varonil, imaginação de fogo,
efervescência de sangue nas veias; até a vegetação tropical parecera concentrar-se
naquele todo de luz e calor: a vida borbulhava de continuo naquele pobre
coração.
O vime fora tão frágil, que não poderá ceder á violência do tufão!
Erin amava-me com ardor. Era inextinguível o incêndio que lhe
inundava a fronte, já de si escaldada pelos ímpetos de uma paixão vulcânica.
A minha posição tornara-me sobretudo ridículo. Nem sequer me
ocorreu um leve paliativo para atenuar aquele manancial perene de bons
sentimentos e lisonjeiro pensar.
Acima de tudo isto, porem, conservava ainda na memória a imagem de
Terezinha, os meus juramentos contraídos, os meus protestos no porvir. Mentir
assim á minha consciência, do estar o meu pundonor, com tamanha aleivosia e
escárnio da minha própria dignidade, — isso seria, além de tudo, um sacrilégio
inaudito.
Conservei-me inabalável á sinceridade das suas súplicas, aos seus
rogos, ás suas lagrimas: tudo desprezei. Não havia demover-me de semelhante
propósito.
V
No entretanto a pira fumegava já em larga extensão, e a hidra do
ciúme não tardaria de certo a levantar as suas cem ígneas cabeças, para me
esmagar e oprimir.
Dois anos de negro cismar e indiferente convivência não foram
ainda suficientes para cicatrizar as ulceras daquele extenuado corpinho e
abençoado tesouro.
Erin tinha esperança de subjugar de vez o inimigo: melindrosa era
a sua tarefa, e... quem sabe?... talvez inútil.
Após muitos e infrutuosos assaltos, o baluarte conservara-se
inexpugnável. Tornara-se mister um derradeiro e definitivo recurso.
Um dia estava eu sinceramente absorto na contemplação de uma
agigantada palmeira, que se erguia altiva junto do meu silencioso casebre,
procurando ler, em cada uma daquelas espalmadas, longas folhas, o verbo
onipotente do Criador, e de seus esplendentes atributos, — quando vi a doce
palidez de Erin, estranhamente retratada na reverberação que produzia o sol,
por entre as suas ondulações e constante sombrear. As contrações do rosto, o
seu andar mórbido e inconstante, o pestanejar de continuo e violento, a
resolução impetuosa de seus braços, — tudo prenunciava tremenda catástrofe.
Entrou, rojou-se tragicamente a meus pés, e rompeu nas seguintes
dolorosas imprecações:
— «Fale, diga-me agora aqui, porque me não ama? qual a razão por
que me despreza? Ah! sim, compreendo: sou pobre de mais, talvez, para saciar a
sua medonha ambição; repugnam-lhe as minhas ações, não é assim? causa-lhe tédio
olhar para mim! Oh! Coitado! Vai cessar o seu tormento; descanse, jamais
tentarei embargar-lhe os passos; termina, enfim, o meu aviltamento! A mulher
vilipendiada vai desaparecer para sempre deste mundo, em face de seu despótico
amante! Derradeira gloria de uma desgraçada!»
Neste ponto Erin, num ato de inabalável resolução, descobriu seu
ávido seio com a feroz menção de nele cravar um agudo punhal, que conservava
energicamente apertado em sua pequenina mão.
Cresceu de ponto o meu denodo, que até ali havia permanecido
impassível ás suas palavras e lagrimas represas. Consegui arrancar-lhe o punhal
das mãos e abrandar-lhe a sanha, que a devorava. Ela, vendo assim frustrados os
seus esforços, caiu em dolorosa prostração, sem dar acordo de si.
VI
A mulher, que, estreada na própria natureza, não pode cativar,
recorre, por ultimo, ao artifício, como meio mais próprio e decoroso de atingir
o seu fim.
Erin não poderá abafar as lutas intimas do espírito. Devia de ser
bem penoso o seu tormento! Ver esfacelar uma a uma as fibras mais intimas do
coração; sentir o gotejar acerbo do gelo da descrença e da iniquidade; viver
tanto tempo atrelada ao pelourinho da ignomínia, sem outro apego ás cousas
deste mundo, que não fosse um amor honesto, virtuoso, sublime,... contemplar,
por longos anos, a lividez do próprio cadáver, arquejante, nervosa, moribunda!
— que triste e grandioso lutar! que doloroso sofrimento!...
Como todas as mulheres, quando não vêem o seu amor igualmente
correspondido, a jovem indiana tocou o auge do desespero, da raiva, do ódio, da
vingança!
Estava preparada a vítima; restava apenas o sacrifício!
No meio da minha virtuosa indiferença, mal julgara eu a dura
sorte, que me estava reservada no futuro.
Erin aproveitou logo a ocasião, que se lhe deparou mais oportuna,
a fim de melhor e mais satisfatoriamente pôr em pratica um trama cavilosamente
urdido e astuciosamente antecipado.
Sem dar tréguas á sanha, que a dominava, entrou uma noite em minha
casa, ofegante, colérica, e nimiamente impaciente. Procurou mais uma vez
convencer-me do seu amor, almejou ferir-me com o punhal da sua tirania, e tudo
foi baldado: por ultimo quis ver se despertava em mim a sensualidade pelos seus
artifícios, meneios e donairosos requebros, pela voluptuosidade do seu olhar
ardente e libidinoso, resumindo, em fim, numa palavra, por tudo aquilo, de que
uma mulher é capaz para excitar um amante profundamente amortecido, e
glacialmente cínico.
Assim, pois, reconhecida e evidenciada a inutilidade de seus
esforços, tomou ela uma derradeira deliberação, em nada somenos aquelas já por
si anteriormente experimentadas. Com os cabelos desgrenhados, as faces
afogueadas em colérico desespero, em andrajos, quase nua, alucinada, doida,
perdida, deu um pulo para fora da porta, e começou a uivar, como uma fera,
implorando socorro, declarando-se desonrada, para deste modo provocar a morte
de um inocente, ocultando a fealdade do seu crime!
VII
Erin fora evidentemente feliz no seu audacioso plano. Indiciado no
crime, que foi geralmente acreditado, reuniram-se imediatamente os magnatas da
terra para deliberarem em comum sobre qual fosse a pena, que me deveria ser
aplicada.
Eu, encerrado na minha choupana, apenas sentia o burburinho
daquela multidão selvagem, já de há muito conglobada em redor da minha
habitação, com sinistro intento e feroz vozear.
Ao cabo de algumas horas fui manietado e cautelosamente conduzido
a um largo terreiro, onde costumavam supliciar-se os inimigos, atando-os a um
vetusto tronco, que expressamente ali existia para esse fim, e lançando-se-lhes
depois as chamas aos corpos; as próprias cinzas eram arremessadas ao rio.
Compreendi, desde logo, todo o alcance da minha injusta condenação,
e senti o gélido suor da campa a trespassar-me vagarosamente os membros do
corpo. As lagrimas escaldaram-me as faces crestadas pelo ardor da indignação; o
desalento surgia a meus olhos com toda a hediondez de suas negras cores.
A Providencia, porem, houve por bem fazer-me a justiça de que era
merecedor, enviando-me sagazmente o meu anjo custodio, o libertador das minhas
agonias e sofrimentos.
Poucos dias antes de tão estranho sucesso, acontecera ter
ancorado, defronte daquela ilha, por falta de munições, um navio inglês, que se
destinava para os portos da America do Norte. O capitão, homem corajoso e
profundamente temerário, sabendo, casualmente, que a minha próxima execução ia
ter lugar, não duvidou assaltar a ilhota, durante a noite, para me livrar das
mãos dos meus detestáveis algozes.
Travou-se uma encarniçada peleja. Houve muitas mortes, e
ferimentos de parte a parte. O capitão alcançou a palma da vitória, no meio de
um esplendido triunfo, e eu recuperei a minha liberdade, sendo levado para
bordo do navio.
No dia seguinte a embarcação levantou ferro; e nós, propiciados
por fresca viração, seguimos viagem para New-York.
VIII
O acaso, o destino ou a fatalidade, levaram-me, finalmente, ao
país da minha predileção. Após longos anos de pacifico lutar e de evangélica
resignação, foi-me dado livre ingresso nas terras do Colombo. Julgara ter
atingido o zenith da felicidade e do bem-estar.
Afigurou-se-me a entrada no paraíso, com as suas mil venturas, e delicias sem
conto. Tal era a loucura, que me dominava!
As aparências podem iludir o homem, por algum tempo; e feliz
daquele que as puder conservar. A realidade é negra como a noite. O desfolhar
das ilusões, o emurchecer desse pequeno numero de florinhas solitárias, que,
raras vezes, vegetam em redor da nossa alma, marca para a humanidade a crise
mais tempestuosa e violenta, — o tremendo contraste entre a saudade e a
esperança, — o sorrir da mocidade e as convulsões da velhice!
Suprema e eterna verdade!
O coração da juventude é um formoso, esplendido ninho,
majestosamente entretecido de mil variegadas cores, onde se acoitam as mais
ternas avezinhas do céu. A senectude, por seu turno, apresenta esse ninho
desfiado, solto, disperso, e os passarinhos voando alegremente em cata de mais
inspiradoras paragens. O mancebo, vivificado pelos raios da aurora, contempla o
porvir, cheio de gaudio ingente; o velho, por entre as lagrimas da sua idade,
olha o passado e entristece-se lugubremente... A primavera sorri-nos no berço
infantil; o outono vem, ainda mais, denegrir a algidez tumular!
A minha vida agitava-se alternadamente entre estes dois pólos
distintos e independentes. Cheguei a New-York, radiante de belas aspirações e
fulgurantes idéias. Procurei empregar-me honestamente: tudo consegui, sem
dificuldade. O meu gênio volúvel, porem, impelia-me constantemente para fora
daquela esfera, onde o trabalho se remunerava tarde e mal.
Dentro de pouco tempo, agrilhoado por uma ambição sem limites, e,
mais que tudo, profundamente vulnerado pelo demônio do egoísmo, tinha eu
roubado o meu senhor, fugindo logo, espavorido e temeroso, para uma selva
distante, onde procurei refugio entre uma quadrilha de bandidos, que, desde
muito, ali haviam assentado a sua tenda de pilhagem e de noturno assassinato.
IX
Por muitos e longos anos durou a minha nefanda peregrinação
naquele terrível deserto, onde não penetrava sequer um raio do sol. Ocultos,
durante o dia pela espessura do arvoredo, — aguardávamos tristemente o silencio
da noite para dar largas á nossa voracidade famélica. Então, não passava pessoa
alguma, por aquelas solidões tenebrosas, em quem não procurássemos, desde logo,
embeber a esponja corrosiva do veneno e da maldição, — o cutelo do algoz e do
malvado.
Aviltante e funesta condição a minha! A principio o remorso
levantava-se irado contra tamanhas torpezas e monstruosas infâmias. Mais tarde
a minha alma, já de si calejada no erro e no crime, nada mais quis ouvir;
empalideceu terrivelmente nas trevas, e nunca até hoje tornou a guiar os passos
incertos da minha vida depravada.
Nada mais pungente e superiormente bestial do que locupletar-se um
individuo qualquer com o ouro roubado aos seus semelhantes. O trabalho honesto
nobilita o seu autor. Procurar ilicitamente um interesse, que nos não pertence,
isso, além de ignominiosamente vilão, toca ainda as balizas da perfídia. — Não
há necessidade que só de per si possa abonar satisfatoriamente semelhante
corrupção e baixeza de ânimo!
A despeito de tudo isto, porém, não duvidei iniciar os dias da
minha vida social em tão rude aprendizagem e degradante profissão. E bem cruel
me foi esse engano!
Dentro em poucos dias, do esterquilínio do vicio e da maldição
havia eu passado, rápida e insensivelmente, para o fundo de medonha enxovia. A
justiça humana, no seu incessante vôo, não despegara a vista do desgraçado
cadáver, que, ainda no recôndito de árida floresta, lampejava chispas de fogo
amedrontador.
E tudo foi bem assim!
Ao ver cerrar-se sobre mim a solitária porta do cárcere, que
rangia lugubremente nos seus enormes gonzos de ferro, senti um movimento
involuntário e repulsivo, e tive o pavor de quem vê seu peito ferozmente
esmagado pelo duro pé do inimigo vitorioso!
Então veio a sacratíssima imagem de minha mãe dulcificar-me o
amargor da desventura. Lembrei-me de Terezinha. Erin, a bela indiana, de quem
nunca mais tivera noticias, calou-me no espírito não sei que indefinível
sentimento, que me fazia antever uma felicidade duradoura, se, por acaso, não
houvesse desprezado o seu imenso amor para comigo.
X
Ao penetrar na escuridão do ergástulo julgara ter encontrado o meu
epitáfio, assinalado, com letras de bronze, sobre a lousa sepulcral, que se me
atulhava naquele extenso e terrível horizonte. Iludira-me, porém, o meu juízo.
Havia-me Deus predestinado neste mundo para grandes e temerárias empresas.
Por mero acaso, acontecera um dia ter eu lançado as mãos a um
varão de ferro, que me interceptava a passagem para um longo claustro, por onde
se me tornava fácil a saída para a rua. Recobrei alento, e não foram frustradas
as minhas esperanças.
Coadjuvado por antigos companheiros, que haviam escapado
milagrosamente ás garras da humana justiça, e com quem eu continuava ainda a
nutrir relações de camaradagem, — pude aproveitar o silencio de uma longa e
tempestuosa noite de inverno para os fins a que me propunha.
Fui feliz no meu arrojado cometimento. Ás ocultas consegui
embarcar em um navio inglês, que se fazia de vela para a Europa.
Assim, no espaço de pouco tempo, abandonei o país dos meus sonhos
tristemente desfolhados aos ventos do infortúnio e de medonhas calamidades. E o
certo é que, se não vinha tão rico, como de principio o havia imaginado, pelo
menos trazia meios suficientes para viver em Portugal, como capitalista de
modesta aparência.
Tudo isso se desfez, porém, ante a máxima desventura, que, neste
instante, me aguarda terrivelmente.
A nossa embarcação jaz nas alturas da ilha de S. Vicente. O estado
do mar é deveras assolador; não há meio de resistir-lhe. Naufrágio inevitável!
Estão talhadas as nossas mortalhas. Já a morte nos sorri satanicamente por
entre a negra agitação do oceano. Luta infernal! Que diabólico tufão! Meu Deus!
meu Deus! Angustiadas lagrimas, sentidos suspiros, súplicas sinceras,
fervorosas orações!... tudo em vão!... Não há duvida: seremos devorados
irremissivelmente pela sanha do mar! Que profundo abismo nos espera! Como a
esperança nos é ainda meigo amparo nesta hora extrema e fúnebre! E como estamos
todos profundamente unidos pelo mesmo pensamento, pelo mesmo amor! Oh! Só Deus
é infinitamente justo e bom! Enfim, estão lavradas as nossas sentenças! A
redenção do céu, essa, só de ti a poderei suplicar, que decerto não deixarás de
interceder na terra pelo descanso de teu desditoso filho. E adeus,... adeus,...
para todo o sempre!... Uma sentida saudade para Terezinha, o anjo imaculado dos
meus sonhos!... adeus... adeus!...
Eis o conteúdo deste interessante manuscrito, no fim do qual
estava assinado Ernesto, e era dirigido laconicamente a Maria dos Anjos,
moradora no Porto, aos Clérigos. Após longas e infrutuosas pesquisas, consegui
saber que Maria dos Anjos era falecida, tendo instituído por universal herdeira
de seus bens a Terezinha, hoje noviça no convento de Arouca. Para lá foi
remetida esta preciosa relíquia, e com ela a infeliz herança de seu esperançoso
noivado. Por certo não faltariam lagrimas de bem viva saudade a orvalhar aquele
extremo legado de um coração diluído nas grandes lutas de um amor infindo e de
constante tenacidade!
Antes assim!
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Nota:
Sebastião de Magalhães Lima: " Miniaturas Românticas" (1871)
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