UM DIA DE NOIVADO
A F. Simões Margiochi Junior
Ahi! null'altro che pianto al mondo dura!
Petrarca
Ai! neste mundo só as lagrimas
não têm termo!
Cantai, ternos passarinhos; voai,
mariposas gentis!
É dia de noivado!
Rejubile a natureza; reviva,
resplandeça a festa!...
Folgam, auras indiscretas, nos
choupais e nos silvedos! Tudo acode, sem delonga, ao banquete dos bem-aventurados!
A aldeia exulta de vivaz festejo! É vivo o reboliço: grinaldas de flores,
perolas e diamantes, tudo, á porfia, deslumbra os convivas!
Que doce aroma! que suave fragrância!
Alada visão, fiel mensageiro do
homem — o amor, — conforta o desgraçado e sorri á opulência. Expelem-se os
cuidados, apavoram-se os temores, rejuvenesce a humanidade!
Dia de solene bem-aventurança! — eu
quero colorir teu quadro ingente, juncar de variegadas cores teu solo
matizado!...
A nove quilômetros de Aveiro
existe a pitoresca vila de Eixo. É uma deliciosa povoação! O Vouga espraia ali
mansamente suas límpidas águas, formando como que um vasto lençol, por entre os
formosos salgueirais, que lhe servem de margem e curiosa graciosidade!
Há um não sei quê de vago e simpático
nos seus ignotos caminhos, tão cheios de divina poesia e mágica formosura, que
nos seduz instintivamente. Em todos os países há destas pequenas povoações,
mais ou menos diletas do povo, e que parecem ter sido apontadas adrede para a
representação dos grandes dramas da humanidade. E esta foi realmente uma delas,
como abaixo veremos!
Há de haver dez anos, Eixo trajava
de galas. A solidão transformara-se subitamente em meigo teatro de harmonia e
saudade. Os habitantes como que ressuscitavam do seu antigo marasmo.
Desvaneciam-se as trevas do sepulcro, perante o vivo esplendor de uma aurora
deslumbrante!
Era um dia de festa, enfim, dia
de noivado, santo alvoroço, cândida alegria!
Fernando, o moço querido da
terra, esposara Luíza, a jovem e simpática aldeã. E foi deveras uma suprema
abnegação aquele divino enlace! Fernando possuía a riqueza do espírito e a
riqueza do dinheiro.
Era uma jóia!
Luíza, essa, coitadinha! limitava
seus parcos cabedais á rara e quase esquecida opulência dos grandes sentimentos
e vivas impressões. Amava com ardente intensidade.
Era uma perola!
Fernando era tão amado, tão
louvado! Ai! Senhor! que tesouro aquele!...
Na sua frequente passagem pelas
ruas da vila, os lavradores descobriam-se respeitosamente. Depois lá se ficavam
longos momentos a cismar, até que por fim! diziam eles de si para si: — Pombinha
sem fel! — e seguiam o seu rumo.
Luíza granjeara a piedosa
dedicação das suas patrícias. Era em extremo filantrópica: e de muitas
conseguira ela até a sincera veneração de santinha, que realmente era.
Quando, por acaso, se falava em
Luíza aquela pobre gente d'aldeia, esta retorquia logo com vivo interesse: — Ai!
a Luizinha! a noiva do sr. Fernandinho! isso é mesmo um anjo, meu senhor! E
ele, que bondade, que ternura! É mesmo ouro sobre azul!...
Imagine-se pois, que mago fulgor
não irradiariam aquelas duas ternas criaturinhas, ao estreitarem seus amorosos
corações pelos vínculos indissolúveis do matrimonio!...
Que santa aliança aquela, meu
Deus! Que inocente festa não ia pela vila!...
Tudo folgava, tudo amava, tudo
vivia!...
Apenas o mancebo saíra da igreja,
levando sua angélica esposa pelo braço, imediatamente, daquele enorme conjunto
de povo, apinhado em massa pelas ruas da vila, para assistir ao brilhante
cortejo, rompeu a mais solene aclamação, o mais entusiástico viva.
Fernando respondia com lagrimas,
que simbolizavam o entusiasmo e a gratidão. Luíza, pela sua parte, julgara-se
guindada a um paraíso de fadas, onde a vida se assemelha ao grato arroio
escoando-se de mansinho por entre as mil verduras e fragrâncias da natureza.
Porém surgira a noite, e suas
sombras temerosas, até ali ocultas pelo brilho das luzes, invadiram a mesma
área, que, horas antes, fora povoada pelos raios diamantinos de mago
encantamento e verdadeiro prazer!
No dia imediato ao do seu noivado
Fernando despertara triste e pesaroso; isolara-se voluntariamente de sua
esposa, e aparecera envolvido em profundo meditar. Os restos da sua primitiva
alegria haviam-se-lhe convertido medonhamente num oceano de torturas. Os sons
melodiosos da orquestra nupcial eram agora para ele um motivo de pungente
agonia e de atroz suplício. Silvavam-lhe no cérebro as negras víboras da
loucura. Era forçoso afastar de si o vil e gélido fantasma, que o perseguia sem
cessar.
Assim se passaram muitos e longos
dias. Todos indagavam solicitamente a causa de tão inesperada catástrofe, de
tão cruel agitação; e, todavia, ninguém ousava responder, ninguém proferia
sequer uma palavra.
Fernando corria todas as tardes
os sítios recônditos da vila. Com os cabelos eriçados, a lividez nas faces, o
olhar cintilante, as mãos nervosas, os punhos sempre cerrados, lá se ia o pobre
doido, o desgraçado moço — para quem a fortuna fora um sonho falaz de alguns
momentos apenas — a conversar com as arvores, que tanta vez lhe ouviram seus
queixumes de amor, — a ralhar com o plácido regato, que o atormentava
ferozmente, — a rir-se, enfim, de si mesmo, da descompostura do seu trajo, das
suas palavras!...
E era tremenda e pavorosa a sua
gargalhada!...
Luíza conquistara, a par da ciência
do amor, a ciência da resignação: por isso vivia, e suportava o agudo espinho,
que lhe trespassava o coração.
Um dia, em que intentara
aproximar-se de seu marido, este repelira energicamente sua mão, e, sem dó nem
piedade fugira para longe de suas caricias e afagos!
Estavam as cousas neste ponto,
quando Fernando foi acometido de um delírio mais violento e doloroso. A sua
constante monomania, o seu desejo incessante, era assassinar todas as mulheres,
que, por acaso, encontrava. Tornou-se mister o auxilio de toda aquela gente,
para o encerrar cautelosamente num quarto subterrâneo, onde lhe era ministrada
a comida, que mal provava.
No auge da loucura, conheceu-se,
então, a causa do seu infortúnio, por alguns poucos monólogos, que ele soltava
de quando a quando, tais como este:
— «Ser eu feliz, alegre, bom, dócil;
amar uma mulher ternamente, com a intensidade de um serafim; e ver-me
tristemente iludido por esse demônio maldito!... Oh!... por Deus! nem pensar nisso!...
«E aquela víbora, aquela Lui...
i... — Ai! Senhor! Senhor! seja o seu nome para sempre esquecido! — a ostentar
tamanho pudor, tamanha virgindade e honestidade, e tudo com o hipócrita fim de
me amortalhar covardemente!...
«E toda a gente a acreditava
piamente; sim! todo o mundo, até eu!...
«Eterna maldição sobre o
desgraçado, que foi procurar na mulher, que escolhera para esposa, a desonra da
sua própria família!...
«Ha! Ha! Ha!...
E nisto o desventurado moço
soltava uma cínica gargalhada!
Frequentemente repetia ele o nome
de sua esposa, uma e muitas vezes; e logo após, num ato de medonho desespero,
chorando desabridamente, arrancava de si um punhado de cabelos ensanguentados,
e rojava-se no lajedo do cárcere.
E eram bem tristes as suas
lagrimas, bem acerbo o seu pranto!
Pobre Fernando! Quem não teria
pena de ti?!...
Um ano decorrido exatamente desde
o dia em que se havia festejado o noivado de Fernando e Luíza, — pelas ruas da
pequena e triste povoação seguia compassadamente um fúnebre préstito.
O doido havia cessado de existir
naquela madrugada!...
Mal julgara aquela gente, que
tivera ido brindar tão esplendido noivado — que tão cedo havia de acompanhar o cadáver
do simpático Fernando á sua derradeira morada!
É assim o infortúnio deste
mundo!...
A coroa de grinaldas, essa
desfizera-a o vento desapiedadamente! Hoje só restam coroas de perpetuas, e
alguns goivos tristemente derramados sobre a ignota lousa do desditoso mancebo!
Luíza vive resignada, e lá vai
lavrando quotidianamente o epitáfio, que há de guarnecer a laje sepulcral de
seu marido, com as sinceras e ardentes lagrimas da saudade e do arrependimento!
Aguarda pacientemente a hora da sua partida para ir fruir no céu aquilo que lhe
foi vedado na terra!
Deus é compassivo, e de certo não
olvidará a sua redenção celeste!...
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Nota:
Sebastião de Magalhães Lima: " Miniaturas Românticas" (1871)
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