OBRA COMPLETA
O guarda dissera-lhe que se podia
ir embora. Turíbio mirava-o, olhos abertos e fixos. Tinha uma expressão de
doido. Ia para perguntar o quer que era, mas, a um movimento do outro,
deteve-se, humilde. O guarda deitou-lhe a mão ao ombro, muito calmo:
Anda, põe-te lá fora...
— Lá fora...
Os olhos abriam-se-lhe
desmesuradamente.
Hesitava; afinal decidiu-se.
Lá fora — e indicava a porta
aberta, dando para o pátio — Lá, na rua?
— Na rua, sim... Anda, põe-te lá
fora. Turíbio passava a mão pela cabeça, olhava estupidamente. Desceu a mão
pela nuca, passou-a pela barba hirsuta e crescida. Olhava. E arriscou umas
palavras, a medo:
— Posso ir para casa?
O outro desatou a rir
— Como é? Para casa? — e ria-se.
— Queres ir para casa, não é?!
E achava-lhe graça. Queria ir
para casa; era boa! Veio-lhe um acesso de tosse. E repetia:
— Com que então queres ir para
casa, hein?
Turíbio calara-se, cabeça baixa.
Esteve assim um pouco; levantou a cabeça por fim:
— Não senhor... — e
desculpava-se, muito humilde. — Não queria ir para casa. Ia, mas era se V. S me
desse licença... — e aparentava um sorriso; as palavras saíam-lhe a custo. —
Não era porque eu quisesse, não senhor; — embargava-se- lhe a voz na garganta —
ia porque V. S me estava mandando embora. Mas V. S me desculpe...
Falava como uma pessoa a quem se
acenasse com uma esperança para fazê-la desaparecer desde logo. E repetia com a
voz estrangulada:
— V. S desculpe... Pois se eu nem
me quero mais ir embora!
O guarda tinha os olhos cheios de
lágrimas, à força de rir. Queria ir para casa, o diabo do homem! Enxugou os
olhos, levou o lenço à boca. E, agarrando-o por um braço:
— Queres ir para casa, não é?
Pois vai...
Tossia; levou outra vez o lenço à
boca:
— É boa! Pois vai... Vai, se a
encontrares! O que é preciso é que te não demores por aqui. Põe-te na rua,
anda!
Empurrou-o, bateu-lhe a porta nas
costas. Turíbio ficou parado, no pátio, a olhar para fora. Deu uns passos,
correu os olhos pelas paredes, altas, distantes. Moveu os braços, respirou forte.
Para lá da porta ficava a sala de espera, vasta, caiada de novo. Ele
atravessou-a. Mas, pelo corredor ao lado, vinha um sujeito de óculos. Turíbio
parou, tímido. Não fosse ele mandá-lo para dentro. E ficou à espera, trêmulo,
resignado.
O sujeito vira-o, acenava-lhe com
a mão:
— Seja feliz, hein, irmãozinho;
seja feliz! Veja se nos não torna a ocupar.
Ele acompanhava-o com os olhos,
indeciso, surpreso. Dum banco próximo, agarrado à parede, meio oculta pela
sombra, surdira uma figura esquelética de mulher. Embrulhava-se num xale, tinha
um pequeno ao colo. E foi para o dos óculos; cumprimentava com a cabeça, a fala
em pranto, os olhos cheios d’água:
Senhor doutor... Eu vinha para
visitar o 18...
— As terças, filha; às terças é
que são as visitas. Está l na porta; é a ordem... Venha depois de amanhã. É a
ordem; às terças é que são...
E sumiu-se por uma porta. A
mulher teve um gesto de desânimo; ajeitou o pequeno ao ombro, pôs-lhe o xale
pela cabeça, e saiu. À frente da casa, o jardineiro regava duas enfezadas
palmeiras, em tinas, irrompendo dentre moitas de tinhorões rubros. Turíbio
seguira; desceu os dois largos degraus de pedra da entrada, pisou o cascalho do
jardim. Ia para transpor o portão, mas o jardineiro detivera-se e olhava-o. Ele
arriscou um cumprimento:
— Deus Nosso Senhor lhe dê bons
dias, patrão!
— Deus o salve a você! E que
permita que nunca mais o vejamos cá por casa...
Turíbio agradecia:
— Muito obrigado ao senhor! Deus
que o permita! enchia-se de coragem: — Deus que o permita... Olhe muito
obrigado ao senhor!
Caiu; mas da rua voltou-se ainda
para trás. O jardineiro curvara-se, cuidava das plantas. O sol caía do alto,
rútilo, sobre o áspero cascalho do jardim. Perto, ao alto do morro, badalavam
sinos; e da capelinha para cá derramava-se o casario do povoado,
atabalhoadamente pintalgado de cores vivas. Turíbio mirava a casa. Há doze anos
era acanhada e úmida; pelo telhado limoso e negro, à sombra de copadas árvores,
desoladas plantas raquíticas finavam-se, baldas de calor. Agora, erguia-se para
o sol, vasta e nova. E às janelas, as grades de ferro tinham uma coloração
artística de bronze.
Abanou a cabeça; olhou ainda um
pouco. Seguiu afinal. Ia embora. O jardineiro, porém, vira-o parado, e teve uma
idéia. Correu à porta, chamou-o:
— Eh lá, 6 amigo! — e gritava — Ó
amigo! — e, sardônico: — Onde diabo vai você assim?...
Ele parou. Fez-lhe um nó na
garganta. Uma cousa gélida subia-lhe, rápida, à cabeça. Tremiam- lhe as pernas.
— Ó amigo! Olhe, faça favor...
Turíbio veio. O que ele entrevira
há pouco, o que ele sonhara, tudo lhe desabava de repente. Sentia-o ruir no
cérebro. Veio, não porque o quisesse; as pernas traziam-no, mau grado seu.
Entrou. Tinha as feições desfiguradas. Passou a manga da camisa pelos olhos; ia
para subir os dois largos degraus de pedra. O jardineiro agarrou-o:
— Onde diabo vai você, homem?
Turíbio sacudiu-se num ímpeto,
para se desvencilhar do outro:
— Vou pra cima... Lá pra cima...
E num desabafo:
— Lá pra cima, pra o inferno!
— Ó homem de Deus! — e o jardineiro
parecia arrependido de o ter chamado. Que pensa você que a gente lhe quer? — o
outro olhava-o; não compreendia cousa nenhuma. — Você que ir embora? Se quer,
olhe lá que já aqui não está quem falou... Co’os diabos! A gente até se
arrepende de lhe querer fazer bem!
Fazer bem; queria-lhe fazer bem.
Turíbio ficou olhando, calado. O jardineiro falava, batendo-lhe no ombro:
— Vai você por aí, sem casaco e
sem chapéu; a gente chama-o; põe-se você com essa cara que até dá vontade de
lhe voltar as costas, para a não ver.
E ele recordava-se. É, ia por ali
sem casaco e sem chapéu. Mas tinha-os em casa. E concordava:
— É, vou... Mas tenho-os em casa.
— Em casa, onde?
— Em casa, lá em casa...
O outro sacudiu a cabeça:
— Qual! você até parece que não
entende das cousas... Que casa é que você tem? onde é? Que diabo é que você tem
em casa?
— A minha roupa... — e corno se
lhe houvesse recordado alguma cousa melhor. — A minha filha!
Enchia-se-lhe o rosto de júbilo,
àquela idéia da filha. Brilhavam-lhe os olhos. O jardineiro fitou-o; talvez
duvidasse da seriedade do que ele estava dizendo. E não lhe tirava os olhos de
cima; não lhe perdia uma contração, um movimento.
Afinal:
— Você está falando sério?
Turíbio nem lhe escutara a
pergunta. Repetia muito baixo, somente para si:
— A minha filha!
O outro teve um gesto de piedade:
— Olhe, 22, venha cá... — e
passou-lhe o braço pelos ombros. — Venha cá comigo. Você parece-me um bom
homem.
Turíbio deixou-se ir; parecia que
já se não recordava de mais nada do que lhe estava em redor. Calara-se, alheio
a tudo, como quem mergulha num sonho. Foram pelo corredor, ao lado da casa. Ao
fundo era o quarto das ferramentas, pequeno, de tábuas. Entraram. Dependurada
do tabique, pendia a roupa de uso. O jardineiro tomou de um paletó esverdeado,
roto:
— Escute, 22. — Turíbio olhava em
roda, à toa.
— Escute... Leve isto para
você... Tenho também ali um chapéu velho — o outro mirava-o, pasmo. — Está um
pouco velho... — ele dizia-lhe que não, com a cabeça. — Está; mas que diabo! antes
um casaco roto do que nenhum. — Turíbio fizera um gesto de recusa. — Leve-os,
eu tenho outros; comprei-os há dias...
E pôs-lhe o casaco aos ombros;
ajudava-o a vestir as mangas:
— Você há pouco estava com medo,
não era?
— É que... O senhor sabe; é que
às vezes a gente... — passava a manga do casaco pelos olhos, para enxugar as
lágrimas; ria-se. — A gente, às vezes, sabe lá o que tem...
O jardineiro examinava-lhe a
roupa:
— Fica-lhe a matar! Olhe, é só
para ver...
Foi a um canto da parede, agarrou
lá um pedaço de espelho, colado a um retalho de cartão, preso por tiras de
papel de cor; pô-lo diante dos olhos de Turíbio, obrigou-o a segurá-lo:
— Veja só... Olhe que nem de
encomenda!
Fê-lo voltar-se de costas.
Olhava.
— Nem de encomenda! Parece que
foi feito para você!
Turíbio tomou do espelho, fitou-o
um pouco, levantou-o mais, para ver bem. Passava a mão pela barba, pelo rosto
magro, pelos cabelos crescidos. O rosto dele, muito pálido, muito grave,
contrastava com o do outro. Palpava com os dedos as covas amarelas da face.
Ficou muito tempo, olhando. E abanava a cabeça, com um ar desolado, em
silêncio.
— Hein? — perguntava-lhe o
jardineiro. — Que tal? Está-lhe a matar!
— É — e Turíbio voltava-se para
ele, muito sério. — É uma esmola que eu lhe hei de pagar. A gente neste mundo
sempre se encontra, mais dia, menos dia... — olhava para a porta. Bem, eu vou
indo... — e esperava a ver se o outro lhe não dizia nada. — Eu vou indo...
Muito obrigado ao senhor!
— Nem por isso!
— Deus Nosso Senhor é que lhe há
de dar o pago.
Saía, chapéu na mão. O jardineiro
acompanhou-o; levou-o até a porta, à entrada. Ele voltou-se ainda:
— Deus lhe dê muito ao senhor, e
que lhe não falte...
Demorou-se um pouco, a olhar para
os lados, como quem se orienta. O caminho fazia uma curva à esquerda; seguia,
ladeando cercas; súbito, descia para o vale. A direita, era o povoado, em morro
íngreme. E abaixo dele, para longe, através dos campos, quase na orla azulada
dos montes longínquos, sumia-se a linha de postes da via férrea — onde, por
neblinosas madrugadas e ásperas tardes frígidas, férreos, pesados comboios
rolavam, abalando o silêncio de em redor...
Turíbio tomou à esquerda; andava
a custo, com esforço, com fadiga. Por vezes, iluminavam-se- lhe os olhos,
murmurava muito baixo — “A minha filha!” Num ponto, deteve-se, mirou o sol —
“Pra mais de onze. . .“ E seguiu. A estrada, em declive, ajudava-o a descer.
Puxou o chapéu para o rosto. Embaixo, onde começavam os campos, deteve-se
ainda. O caminho cansava-o; respirou comprimindo o peito. E foi por um atalho,
por entre terras úmidas, para lá, muito longe, onde árvores se erguiam e uma
torre tocava o céu.
Mas, dentre sáfaras moitas
híspidas de híspidos espinheiros, uma dulçurosa, trêmula toada surdiu:
Peito que foi magoado Bote pra
fora a paixão...
Um homem vinha, pela estrada
próxima. Passou através dos espinheiros, desapareceu numa curva, surgiu afinal,
adiante. Cantava. E a voz dele, nostálgica e saudosa, espalhava-se, nítida,
pelo ar:
Peito que foi magoado
Bote pra fora a paixão;
Amor não pode morar
Onde mora a ingratidão...
Demorava-se, numa última nota, e,
numa outra nota prolongada, repetia:
Aaaah...
Amor não pode morar
Onde mora a ingratidão.
Turíbio parou; o homem vinha para
ele. Tirou o chapéu:
— Com perdão do senhor, hein...
Fazer parar assim uma pessoa... É que eu queria ir para Santa Tomásia... Já nem
sei mais onde é.
— Santa Tomásia?
— Santa Tomásia. Eu tenho lá uma
filha.
O homem refletia — “Santa
Tomásia... Santa Tomásia.” E, alteando a voz:
— O senhor quer ir para a Santa
Tomásia?
—E...
— Veio de muito longe?
— Vim de lá de cima.
Turíbio apontava o morro,
distante, para lá da linha de postes da via férrea.
— Da banda da Cadeia Nova?
— É... Da banda da Cadeia.
O homem fazia por se recordar
onde era a Santa Tomásia:
— Santa Tomásia... O senhor já lá
esteve?
— Há tantos anos!
— Muitos, pra mais de dez?
Turíbio encolheu os ombros:
— Já lá se vai tanto tempo!
O outro ficara em silêncio; mas
afinal:
— Pois, por aqui não há nenhuma
Santa Tomásia, não.
— É que o senhor não se lembra.
Havia lá uma fazenda, grande. Era a um bocado do cemitério. Até a capelinha
pegou fogo.
— Ah! a capelinha pegou fogo?
Pegou.
— Se sei! O senhor dizia que era
Santa Tomásia... Água Nova sei eu que é! Fica perto da fazenda da Saudade, não
fica?
— Fica logo adiante.
E até a capelinha pegou fogo?
— Pegou fogo.
— Não havia eu de saber onde é a
Água Nova! Pois se foi até lá que mataram o filho da fazendeira...
Turíbio fez-se pálido, voltou o
rosto, levou a mão à barba. Depois, muito tranqüilo, muito devagar:
— Houve lá uma morte, na Água
Nova? Agora, há pouco tempo?
— Pouco tempo! Só doze anos sei
eu que há.
— Doze anos... — e ele contava
pelos dedos.
— Doze anos... E mataram um
homem?
— Mataram.
— Mataram... — e ele continuava,
a meia voz. — Mataram.. . Quem sabe lá se o teriam morto agora! Quem sabe lá!
Depois, mais alto:
— E o que matou foi preso? — O
homem dizia- lhe que sim. — Foi preso... Sabe o senhor o que é ser preso, hein?
Sabe o que é? Preso sempre, sempre, sempre... Ah! — e rangia os dentes, de
raiva.
— Sabe o que é?
O outro olhava-o, desconfiado,
muito sério. Turíbio calara-se; fitou-o um pouco, baixou a cabeça. Acalmava-se.
Depois:
— Mataram-no à toa?
O homem sorriu:
— À toa! Quer saber o senhor? Eu
tenho lá uns parentes...
— Na Água Nova?
— Sim, na Água Nova. Agora mesmo
vou eu para lá... — Turíbio ouviu, muito atento. — Tenho lá uns parentes. Pois
eles sabem de tudo; não viram, mas lá toda a gente conta. Era uma cousa de
fazer virar o sangue à gente. O que morreu enganava o outro, sabe?
Turíbio repetia:
— Enganava o outro...
— É, enganava-o com a mulher.
Metia-se lá dia e noite. Todo o mundo via; o marido é que não via nada. Mas um
dia.., O senhor sabe; lá vem um dia em que a gente descobre tudo, O marido
apanhou os dois, em casa...
Turíbio deitou-lhe a mão a um
braço, rápido, com um relâmpago nos olhos:
— Com a filha ali perto, não é?
Com a filha ali mesmo, deitada ali, vendo tudo, aprendendo tudo. Não houve um
raio do céu que os matasse! Acredita em Deus, o senhor? Acredita, hein? Pode-
se acreditar, pode-se ter fé, assim?
Tremia, de cólera. O homem puxou
o braço:
— Como é que o senhor sabe que
ele tinha uma filha?
Turíbio voltou a si. Disfarçava:
— Eu ia lá, às vezes... E depois,
lá — e indicava o caminho, para trás — lá toda a gente conta; todos sabem... O
senhor mesmo disse, inda agora...
— É... — e o outro concordava. —
Na Água Nova, então, toda a gente sabe. Não vê mesmo que aquilo era para se
esquecer assim! Que morte! Picou-o todo, a faca; todo! No peito, nos olhos, na
boca...
— Na boca, no peito... Nos
olhos... — e acentuava aquilo. — A boca era falsa, os olhos enganavam... Sabe o
senhor? Enganavam... Olhavam para o outro assim... — e puxava as maçãs do rosto
para baixo, com os dedos; deixava os olhos a descoberto. — Olhavam assim,
claro, puro... Falava tão doce, tão sério... Falso, tudo falso! Pensa que. ele
tinha coração? Tinha coração como o senhor, como eu? — e levava a mão ao peito.
— Tinha coração, aqui? Ah! Quem o tem faz aquilo? Agora não há de fazer. Está
morto, pagou tudo.
“Pagou tudo!” Turíbio cerrara os
punhos, com força, com ódio. Cravava as unhas nas mãos. Via- se-lhe nos olhos
uma terrível expressão de fereza. Esteve assim um bocado; voltava o rosto para
um lado, para outro; não via bem, faltava-lhe o ar. Sentia um quer que era que
lhe apertava a garganta. O homem recuara; parecia disposto a ir embora;
estendeu-lhe a mão:
Bem... Então até, hein?
Turíbio serenava, pouco a pouco. Fez-lhe
sinal para que esperasse. O olhar dele voltava à primitiva expressão de doçura.
Respirou muito, quanto pôde. A camisa afogava-o; ele rompeu-a, de um gesto
rápido. E levava a mão ao peito, hauria o ar balsâmico de em redor:
— Perdoe. A gente pode lá ouvir
tudo, assim, a sangue-frio... E dizem que há um Deus no céu! — soluçava, mal
podia falar — um Deus, dizem que há um Deus! — levou a mão à cabeça em fogo,
fechava os olhos; e, ao cabo de um momento. — E... E a filha do outro? E
frisava bem aquele do outro:
— A filha do outro? Era tão
pequenina, tão loura!
— A filha? Coitada! Andou por
aí... Não vê que a mulher pôs fogo à casa, sabe?
— Andou por aí, a filha?
— A mulher pôs fogo à casa. Dizia
que no quarto onde o tinham morto, depois daquilo tudo, só o fogo é que ainda
lá podia entrar. E então, levou a pequenina; deu-a numa casa, para o alto...
Depois, foi embora. Tem andado por aí; está agora com um, está daqui a bocado
com outro... É uma desgraça; mas há gente que é assim mesmo.
— A pequenina ficou, lá no alto?
— É... Mas davam-lhe muito,
davam-lhe à toa... Coitada! A mãe tinha-se ido embora, o pai estava preso. Era
uma desgraça! Pobre de quem não tem nem uma pessoa por si... A mãe dela, então,
foi por aí; estava com um, com outro...
— Eles davam-lhe muito?
— Em quem?
— Na pequenina.
— Davam-lhe tanto!
— Davam-lhe! Mas a mãe dela, por
que é que lhe deixava dar? Tão pequenina, tão loura!
— Pois a mãe já não estava mais
lá, na casa. Pôs-lhe fogo e foi embora. E então, a pequena ficou. Antes não
ficasse! Davam-lhe tanto...
— Davam-lhe muito... E agora?
— Agora — e o homem apontava para
o céu, alto. — Agora, está lá, está nos ouvindo...
Turíbio agarrou-lhe na mão,
puxou-o a si. Cravava-lhe no rosto o olhar fixo, acerado, lúcido:
— Está lá! — e mostrava o céu —
Está lá?... Morreu?
— Morreu.
— Morreu!
Lágrimas lhe brotavam dos olhos,
rápidas, ardentes. Escaldavam-lhe o rosto, punham-lhe como que pequeninos
diamantes disseminados pela barba hirsuta. Quedara-se em silêncio. Por fim:
— Eles davam-lhe muito?
— Se lhe davam! Até nem parecia
gente cristã...
Turíbio murmurava — “Davam-lhe!”
E, com os olhos vagos, absorto:
— E ela morreu?
O homem afirmava que sim. E ele
levantou os ombros, num soluço:
— Assim até foi melhor!
O outro fitava-o, comovido. E
depois:
— O senhor gostava da pequenina?
— Pois se ela era... — e calou-se;
desvairava-se-lhe o olhar, levou a mão à boca, olhava em roda. E aos poucos: —
Vim por aqui muito... Muitas vezes! Nestes braços andou ela. Era assim — e
fazia- lhe o tamanho com a mão. — Tinha uns cabelos que só vistos, de lindos! E
davam-lhe! Se eu estivesse lá... Juro-lhe pela minha alma! Levasse-me um raio
se mais algum dia se levantasse a mão que lhe estivesse batendo!
Baixou a cabeça; tinha os olhos
cravados na terra, direitos, fixos. As lágrimas corriam-lhe grossas, rápidas,
contínuas. Soluçava. O homem estendeu-lhe a mão:
— Desculpe, hein? Mas, eu vou
indo...
— Eu vou também... O senhor disse
que a Água Nova é para lá, não é? — e mostrava-lhe o caminho, longe. — Eu
vou... A mãe dela, então, ficou lá na casa?
— A mãe da pequenina? Turíbio
fazia-lhe que sim; o outro sorriu. — Foi embora... Pois ela deitou fogo à casa
e foi embora.
— Deitou fogo à casa... Ardeu
tudo?
— Tudo.
— E foi embora! Contanto que a
não tenha tragado o inferno... Vê o senhor? Tanta miséria!. .. O céu cobre
tudo, azul, azul... A casa era lá pra cima, não era? Uma, de tábuas, com um
mamoeiro à porta, uma hortazinha ao fundo? Tinha-a feito ele mesmo. . . Ele,
sim; ele! Muita terra cavou pra a fazer...
— O marido era da lavoura?
— O pai, o pai da pequenina? Era
da lavoura... Duma outra lavoura; também se cava a terra, também se planta, mas
não se colhe. Cavou muita terra, muita! Ah! assim a estivesse ele agora cavando
para a que foi embora!
O homem achava que sim:
— É mesmo, antes trabalhasse para
a filha. Quando se tem mulher assim...
Mas Turíbio interrompeu-o:
— Para a filha, não! — E com a
voz em lágrimas: — Para a filha, coitada! nem foi ele que a cavou. Atiraram-na
lá para o fundo, à toa. Para a filha, não; para a que foi embora! Deitou fogo à
casa e foi embora... Antes para ela! Bem larga, bem funda! Lá, bem embaixo...
E dentro em pouco:
— A casa era lá pra cima?
— Inda lá está o terreno... É
perto. Eu é que já vou indo...
— Também eu vou.
E foram ambos. Turíbio calara-se;
por vezes, ouvia-se-lhe um soluço. O homem apertava o passo. Numa curva, por
uma aberta de cerca, mostrou-lhe o caminho adiante, o terreno da casa, o
mamoeiro à porta, longe, mal distinto. O sol caía agora do alto, por sobre a
terra úmida da geada; áureo e tardio, retardatário sol benéfico de junho...
Turíbio reconhecia a estrada,
alegravam-se-lhe os olhos. Já nem sentia o cansaço de há pouco. E marchava
calado, com pressa. Num ponto, o homem agarrou-o, fê-lo parar:
— Olhe, vê ali, agora...
Era o terreno próximo, o mamoeiro
à entrada. Onde a casa estivera, por sobre a massa disforme do entulho,
daninhas plantas se enredavam, subiam, avassalavam tudo. E dentro elas, apenas,
a espaços, carbonizados caibros emergiam do mato crescido e ruim.
Pararam à porta. O homem
voltou-se para Turíbio:
— Não era aqui?
— Era... — e ele fitava o terreno
desolado e lúgubre. — Era aqui! — e enchiam-se-lhe os olhos d’água. — Contanto
que a não tenha tragado o inferno! Olhe, tem a sua vida segura, o senhor? — o
outro não respondia. — Tem-na segura? Deixe-a andar... Segura para quê? Um dia
desaba tudo. Está ali, queimado, podre... E o céu cobre tudo, azul, azul...
Passeava os olhos em redor.
Súbito:
— O cemitério é pra lá, não é?
— É lá adiante, no fim daquele
caminho; lá por trás daquela mangueira grande...
— Lá adiante, por trás da
mangueira? Olhe — e acenava-lhe com a mão. — Deus que o acompanhe!
E deixou-o. “Deus que o
acompanhe!” Foi embora. O homem ficara, pasmo; abanou a cabeça, sorrindo:
— Qual!
E seguiu. Turíbio embrenhara-se
pela estrada. Tinha as pernas trôpegas, como as de um ébrio.
Gelava-se-lhe a cabeça;
esvaíam-se-lhe as forças. E aos olhos dele, o campo em roda, as árvores, os
morros, tudo se ia de ténebras cobrindo.
Deu ainda uns passos, mas
dobraram-se-lhe os joelhos, fez-se-lhe um vácuo em torno. Caiu para a frente, e
ficou inerte, ao meio da estrada, ao sol.
Névoas caíam do alto, quando se
lhe descerraram os olhos. Vinha a manhã nascendo, longe. O orvalho alagara-lhe
a roupa. Tiritava de frio. Despiu o casaco úmido; sacudiu-o com força, vestiu-o
de novo. Tumultuavam-lhe idéias no cérebro. Sentou-se; fitava a estrada
adiante. E a pouco e pouco, foi-se-lhe aquietando a cabeça. Lembrava-se devagar:
— “Pôs fogo à casa.” Lembrava-se. “O cemitério é pra lá... .“ Ergueu-se;
sentia-se fraco, com fome; respirou, tirou o chapéu. E pôs-se a caminho. “O
cemitério é pra lá...”
Avistou-o, adiante. Homens
estavam à porta, casaco aos ombros, fumando; um dentre eles, tomava-lhes os
nomes:
— Gaspar?
— Cá está.
— Domingos?
— Pronto.
Entravam, um a um, tirando os
casacos, dobrando-os ao meio. Turíbio chegou-se, chapéu na mão:
— Com licença dos senhores... É
que... Eu venho lá de cima... ‘Stou desempregado. Então, vinha por aqui...
Talvez queiram alguém para a enxada.
Um alto, espadaúdo, coçou a
barba, e depois:
— Isso é lá com o sr. Eduardo.
E deu com o queixo para o lado do
que tomava os nomes. Turíbio foi para ele, vagaroso, hesitante, tímido:
Com sua licença, hein... É que eu
‘stou desempregado. É... Perdoe o senhor... E vinha para saber se não precisam
cá ninguém...
O sr. Eduardo tinha um cachimbo à
boca; tirou-o, olhou do alto:
— Você já trabalhou nisto?
Tantos anos!... Ah! a mim não me
ganhavam! — e procurava uma resposta. — Mas o senhor sabe; a gente guarda o seu
dinheiro, depois é infeliz...
O sr. Eduardo franzira a testa.
Esteve a pensar, olhava-lhe pra a cara. E depois, para dentro:
— Ó Maturina?!
“Maturina!” Turíbio sentiu que a
alma lhe saltava num ímpeto. E de dentro uma mulher veio, chegou à porta:
Assim inda é pior... Agora é só
ferver a água.
E Turíbio ergueu-se, apoiou a mão
à enxada; olhava o sol morrendo, longe...
— É. Fica pra amanhã... Já o
verão entra. O sol vem cedo.
Sacudia a terra presa à enxada;
apanhou o casaco, perto, a uma borda de túmulo, atirou-o às costas, pôs a
enxada ao ombro. E veio, e dizia:
Porque lá isso é... Não vai a matar.
Mas sempre é bom andar pra diante, O que fica feito, fica feito. Não se faz
mais...
Tinham-lhe dado um quarto de
tábuas, janela para o quadro dos adultos, em frente. Pedira-o, instara por ele.
Os outros dormiam à entrada, paredes meias com o administrador. Turíbio, porém,
lembrara as coroas abandonadas, fora. “Assim até era melhor para a vigia.” E
ficara lá. De onde estavam, já o quarto se avistava, ao fim da aléia. E ele
repetia:
— O que fica feito, fica feito...
É tempo que se poupa. Não se faz mais.
— É... Mas tu, matas-te. Um homem
quer-se trabalhador, mas com saúde. Porque depois, dá-lhe em casa o raio da
doença; e é pagar-lhe pr’ali, à toa, e é vê-lo a s’agoniar... Ele vai-se, e os
outros é que ficam.
Turíbio concordava:
— Também lá isso, é... Vieram.
Ele parou à porta:
— Vou aqui agora a ver...
— Pois então, é o que te digo; um
homem quer- se com saúde.
E o sr. Eduardo seguiu. Turíbio
demorou-se um pouco, à porta. Enrolava um cigarro; pusera a enxada a um canto.
Por fim, entrou. A noite caía, tênue; e, no céu, ainda claro, a lua, em
crescente, surdia, luminosa e doce.
Madrugada alta — inda a manhã não
viera — já ele estava vestido, à janela do quarto. Fumava, pondo largas
baforadas para fora, através da neblina e da noite. E súbito, por entre
árvores, longe, ao luar, um vulto de mulher passou, hesitante e esquivo.
Ele ficou, suspenso, no ar, como
se alguma cousa o viesse elevando do chão. Os olhos prendiam-se-lhe àquela
figura, distante, negra. Perdeu-a num ponto, viu-a crescer do outro lado. E
agora, brotava-lhe uma idéia no cérebro; expandia-se-lhe o rosto. “Vai ver a
filha...“ fez, muito baixo. Acendiam-se-lhe os olhos. Tomou da enxada, saiu.
O vulto ia, direito ao quadro dos
anjos; passou por ele, numa curva larga. Turíbio seguia-o, agarrado às árvores,
oculto por elas. Viu-o parar, seguir depois, dar uma volta, entrar pelo outro
quadro em frente. Um túmulo deteve-o; caiu de joelhos. Reza- ‘ia o quer que
fosse, entrecortado de soluços; debruçava-se sobre o mármore, regando-o de
lágrimas. E à cabeceira, de um quadro, circulado de perpétuas, banhado da lua,
o busto de um homem emergia, amarelecido e sereno.
Turíbio parou; e, para logo, do
íntimo, velhos rancores, esquecidos ódios vieram-lhe atropeladamente para fora,
sufocando-o. Ela rezava pelo outro, chorava pelo outro! Ouviam-se-lhe soluços,
angustiados, contínuos, como se neles a alma inteira, também angustiada, lhe
fugisse. Turíbio cravara os dentes nos lábios, mordia-os a fazer sangue;
apertava o cabo nodoso da enxada na mão convulsa. Tremia, tremia... Ia-se-lhe
fazendo em torno uma atroz noite de loucura e de morte.
Virou a enxada, com a lâmina para
dentro. Acertou-a bem, bem segura, bem certa; direita e forte. Curvou-se,
chegou-se um pouco mais, com vagar, com cautela; tinha o braço p’ra trás, a
enxada à mão. Esperou... Maturina levara o lenço aos olhos, a cabeça alta. Ele
marcou-a, no meio, do lado. Tremia, tremia... Fez um esforço; crisparam-selhe
os dedos. A enxada ergueu-se, brilhou, lúcida, no ar.
Vibrara-lha, rápido, na cabeça.
Houve um som cavo, um estertor, um côncavo baque oco e surdo. A massa informe
do corpo caiu, flácida; distendeu-se,., Batia os pés, trêmulos, nervosos,
esticados; empinava o ventre, na ânsia de se reerguer. E ele vibrou-lhe a
enxada, de novo. Da brecha aberta, mal percebida, púrpuro, o sangue em ondas
vinha, corria, manchava o solo; e — tal como se para o alto houvesse partido,
num rápido jato rubro — altas, no céu, rubras, púrpuras manchas sanguíneas
espalhavam-se pelo nascente.
Turíbio olhava, absorto agora...
O corpo aquietara-se; agitava-se apenas a bruscos, trêmulos espaços, no estertor
último. Teve um estremecimento mais forte, e ficou, parado, morto. O sangue
corria por uma depressão do terreno; era um tênue fio, quase róseo, que se
coagulava ao fio gélido da manhã.
Ele moveu-se, como quem desperta;
atirou a enxada fora. Voltava a si. Recordava-se de um dia, há muito. Ferira
fundo, muitas vezes, muitas vezes, com delírio, com raiva. Levaram-no. Anos
decorreram; tudo se foi apagando aos poucos, ódios, memória, tempo, tudo. E
recordava-se; olhava em roda, pelos alvos túmulos, pelos ávidos sepulcros
abertos. Suava frio. Tirou o chapéu, atirou-o para longe. O olhar deteve-se-lhe
na cova ainda mal cheia, da véspera, voltou ao corpo imóvel, fitou-o, volveu a
ela. Esteve assim um instante de um lado para outro. Acalmava-se mais. E tomou
da enxada, foi para a cova, enterrou-a lá, com força, tirou-a depois, bem
cheia, sacudiu-a para o lado. Enterrou-a ainda, tirou-a, para a enterrar de
novo. E a terra ficou, espalhada pelo solo, por sobre plantas, aos montões.
Cavava com esforço, rápido. Já de
uma derradeira camada, última e leve, irrompia a tampa negra e lúgubre de um
caixão. Ele deixou a enxada. Tomou de Maturina pelos pés, inteiriçados, ainda
quentes; arrastou-a para perto; e os cabelos dela, de rastros, luzidios e
longos, toucavam-se de folhas secas, empoavam-se de lúcidos grânulos de areia,
vinham marcando a sua passagem pelo chão.
Deixou-a posta à beira desse que
lhe seria o pouso último; agarrou-a então pela cabeça, pô-la ao comprido da
abertura. E atirou-a para dentro, para baixo, para bem fundo. Por onde viera, o
corpo deixara um rastro de sangue. Ele apagou-o, com a enxada; desfez os largos
coágulos sanguíneos; levou-os, empastados, para a cova aberta. Procedia com
arte, com vagar, com cuidado — tal como quem numa obra definitiva e completa se
absorve. Passava e repassava a enxada pelo terreno; deu-lhe a aparência de um
pedaço de jardim, tratado e limpo.
Voltou para a cova, O corpo
ficara meio dobrado, ao fundo; ele ajeitou-o, ao comprido. E começou a cobri-lo
com a terra amontoada, às porções, grossas, rápidas, brutas. O corpo
desapareceu em baixo. Por sobre ele ia a espessa camada de terra subindo,
crescendo, pesada do eterno peso do olvido e do esquecimento eterno. Turíbio
saltou para a cova, ainda mal cheia. Puxava a terra para si, quase a cobrir-lhe
os pés. Por momentos parava, pisava-a com força, atirava-a com o pé para as
extremidades. E continuava depois. Passou os dedos pela testa, para limpar o
suor; estava calmo, respirava com força, muito, em roda — como um enterrado
vivo a quem se houvesse arrancado a álgida laje cerrada e fria do túmulo.
Respirava... Mas ouviu passos. O sr. Eduardo vinha, apressado, sem chapéu;
gritou- lhe de longe:
— Que é da Maturina?
Turíbio alçou a cabeça, ficou
olhando; hesitava, parecia querer ocultar alguma cousa. E, apoiado à enxada:
—A... Eu...
— Tu viste-a... — e o sr. Eduardo
agarrou-o pelo ombro. — Fala ou ponho-te na rua!
Turíbio levara a mão à cabeça: —
Homem...
— e alisava o cabelo, por trás da
orelha —, há bocado, inda o dia lá vinha na casa de Cristo, vi-a passar por
ali...
Apontava a aléia, perto. O sr.
Eduardo sacudiu-o:
— E depois?
— Depois, foi lá para os lados da
porta... Havia lá um senhor alto, um que já ontem andou por aí. Estiveram a
conversar juntos, e foram-se. Foram embora. Ela levava uma trouxa.
O sr. Eduardo fê-lo voltar-se,
com um repelão. Agarrou-o pela gola:
— Levava uma trouxa? E o xale, ia
de xale?
— Levava um xale preto.
Fora-se, pregara-lha na bochecha!
Turíbio calara-se... O sr. Eduardo repeliu-o, com força. Fê-lo cambalear. E
expectorou:
— O raio da burra!
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Nota:
Pedro Rabello: "Alma Alheia" (1895)
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