quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Pedro Rabello: "Genial Ator!"

GENIAL ATOR!

Já me não lembra qual era o título da peça que por aquele tempo se representava no S. Pedro. Parece-me que era o Demônio do Mal; o Demônio ou a Vilania de Rei. Vá que fosse a Vilania. Belo drama! Os jornais achavam que era uma peça filosófico- sociológico-moral, e acrescentavam — “é mais uma pérola arrancada ao glorioso escrínio do festejado dramaturgo Borbas de Vasconcelos”. O Borbas era também o autor dos Desgraçados que Riem, que já haviam dado uma dúzia de representações. E por tudo isso rejubilava. Quem não rejubilava era o Fabriciano Correto.

Vilania de Rei... O rei era um que por aquele tempo estava no galarim. O Fabriciano fazia de duque duque de Santo Ildefonso. E no 5º  ato, brandindo a espada, rangendo os dentes, pálido e trêmulo de raiva, tinha que recitar uma fala enorme, da qual a frase última era, por assim dizer, o maior atrativo da representação.

É preciso confessar uma cousa — o duque de Santo Ildefonso não era papel para as forças do Fabriciano. Ele nunca fora homem para indignações, nem para gritos. Se lhe houvessem distribuído um tipo de homem pacato, dado a conselheiro, amigo da humanidade, teria feito um sucesso... Mas não lho deram. De modo que o pobre diabo do Mamami lá se arranjou como pode. Se não chegou a fazer um brilhareto não foi por falta de ensaios. Quinze dias antes, já ele brandia a bengala e berrava como um doido no seu quarto da rua de Riachuelo.

Ah! o Mamami! O tal que por aquele tempo estava no galarim dizia dele que “era de gloriosa memória”. Outros achavam-no apenas um pobre- diabo de burguês. O Borbas, o próprio Borbas, dissera dele, encolhendo os ombros: — “É um pedaço de blasé”. O Fabriciano não compreendeu o blasé, mas zangou-se, deu o cavaco. E maior cavaco dava ainda quando lhe chamavam o Mamami. Mamami era um resto do Mamã-mi-qué-ovo com que uma vez o haviam alcunhado no colégio. Meio tate-bitate, danado por ovos, o Fabriciano pedia-os assim, na na sua meia língua: — “Mamã-mi-qué-ovo”. E o Mama-mi-qué-ovo ficou.

Quando a Vilania foi à cena a crítica inteira acudiu ao teatro. Já pela manhã os jornais tinham anunciado que “um brasileiro de talento, o sr. Borbas de Vasconcelos, fizera mais uma tentativa em favor do nosso depauperado teatro nacional”. O Borbas torceu o nariz ao “senhor”, mas achou agradável o “brasileiro de talento”. A noite, ao ver o teatro cheio, sorriu, esfregou as mãos, e foi para os bastidores, para animar a rapaziada.

Subiu o pano. O primeiro ato da Vilania passava-se num jardim do real palácio, “por uma plácida, por uma perfumosa noite de luar”, como lá se dizia na peça. O Fabriciano ainda não entrava; se entrasse não haveria motivo para a sua indignação do 5º ato. Quem entrava era a duquesa — a honesta Santo Ildefonso! O rei também entrava, apressadamente até. E das revelações de semelhante encontro, e de todo o apaixonado diálogo de ambos, resultava que os Santo Ildefonso ficavam moralmente obrigados a baixar a cabeça ao peso daquilo tudo.

O caso não se complicava muito por isso. O rei fazia ao nobre Santo Ildefonso a honra insigne de lhe conceder o pariato... “por amor dos seus grandes serviços e dos da ilustre dama, a virtuosa duquesa...“ Talvez que principalmente por estes últimos. E daí, pode ser que não. “É mais um para nossa família!” — exclamava um velho Santo Ildefonso, ao saber da boa nova. “E é a ti que eu o devo!” — gritava o duque, reconhecido, atirando-se de braços abertos para a sua cara mulher.

Acabava aí o 19 ato. Não é preciso dizer que a Vilania foi um acontecimento. Pelos corredores, durante o intervalo, não se fazia senão comentar o sucesso do Borbas. “Aquele ladrão tem talento como o diabo!” — achava um rapazinho metido a cousas de literatura. Mas o Teodorico Valente, dramaturgo como o Borbas, tinha diversa opinião. No seu entender a Vilania era uma formidolosa estopada.

Num ponto estavam todos de acordo — na frieza com que o Fabriciano dissera a frase final. Toda a gente esperava que ele se reabilitasse dali por diante. Veio o 29 ato, desenrolaram-se mais dois outros, chegou o último, onde se rompiam as cataratas .do ludibriado Santo Ildefonso. Era aí que ele tinha de brandir a espada, trêmulo de ódio, fulo de indignação. Mas o pobre do Fabriciano não era homem para essas cousas; esforçou-se, gritou a valer... À toa! Por pouco que não compromete o papel.

Entretanto, a Vilania de Rei fez barulho, O Borbas chegou a ser por alguns dias uma celebridade. Falou-se em dar-lhe um banquete, pediram-lhe uma cena cômica para o benefício do tal que estava no galarim; e ao mesmo tempo que pelos a pedidos do Jornal, num longo entrelinhado, Um Espectador lhe deprimia o mérito para salientar o do Teodorico Valente, em Maxambomba fundava-se o Grêmio Dramático Borbas de Vasconcelos.

O Borbas estava radiante, O Fabriciano, porém, desesperava-se com o não ser aplaudido, nem ao menos na cena do 5º ato. Para os outros palmas flores, para ele nada. Num belo dia houvera lá pelas galerias um certo ruído muito inquietador. Valeram-lhe uns bruscos psiu! atirados dos camarotes para o alto. Mas a tempestade podia desabar, lá se iria tudo quanto Marta fiou. O Fabriciano punha-se de novo a ensaiar a grande fala, no quarto da rua de Riachuelo, brandindo ameaçadoramente a bengala, berrando como um possesso. Coitado do Fabriciano!

O suplício durava-lhe desde as notícias da primeira representação. O Globo logo no dia seguinte, afirmava: “O sr. Fabriciano estava evidentemente deslocado no seu papel”. O Jornal dizia: “... O  sr. Fabriciano quase que sacrificou a bela cena com que termina o 5º ato”. A Gazeta, então, chegava a fazer um trocadilho. “O sr. Fabriciano’ Correto é que não foi correto nem nada.” O Fabriciano não fez escândalo porque não era homem para indignações. Veio-lhe, porém, a idéia de arranjar uns aplausos também para si. Como diabo os havia de arranjar? O Fabriciano não sabia, mas havia de ver. E pôs-se a pensar e a matutar no caso. Afinal parece que tomou uma resolução. Parece. Ele não a comunicou a ninguém, nem ao empresário, quando lhe foi pedir, pela manhã, “que fizesse o favor de lhe adiantar cento e cinquenta mil-réis”.

À noite, o S. Pedro regurgitava. Pudera! “Hoje, maior sucesso da época, 18ª representação da Vilania de Rei!” — tinham apregoado os jornais. À porta, um grande cartaz anunciava para o dia seguinte ainda “o maior sucesso da época”. O Fabriciano, perto, ensinava a uns sujeitos onde era a subida para as gerais.

Pano acima, começou a Vilania. O jardim do 19 ato aparecia agora um bocadinho mais escuro, conselho do Borbas, para melhor efeito da lua. E a um lado, sob o caramanchão, o soberano e a duquesa trocavam-se juramentos de amor “por aquela plácida, por aquela perfumosa noite de luar...”

O Borbas lá estava no teatro, mirando-se na sua obra, deliciando-se com aquele apaixonado diálogo de ambos, como se nunca o tivesse ouvido, nem tivesse escrito ele mesmo. Outrem deixaria de ir ou de assistir ao espetáculo todo inteiro; ele não. Ele e o Teodorico; este último para ver quando diabo começavam as vazantes. Um Espectador, o mesmo dos a pedidos do Jornal, já as anunciara para qualquer daqueles próximos dias.

Nessa noite, o Borbas e o Teodorico estavam justamente a pensar que o Fabriciano parecia agora mais à vontade no papel. Parecia, não; estava realmente; ou fosse que ele se tivesse resolvido a dar tudo logo nas primeiras cenas, ou que já se não incomodasse muito com a grande fala do 5º ato, o caso é que o Fabriciano estava agora mais afinado no papel.

Veio o 5º  ato. O Teodorico lá se fora sentar na primeira fila de cadeiras, para não perder nenhum dos movimentos do Fabriciano. E o Fabriciano entrou, braços cruzados, cabisbaixo, abatido ainda pela revelação do adultério da honesta Santo Ildefonso. Estrondeou uma grande, uma uniforme, uma entusiástica salva de palmas. O Fabriciano parou, mirou as torrinhas, atravessou para o fundo, por onde o rei vinha naquele momento a entrar. Nova salva de palmas irrompeu. Desceu ao proscênio. Palmas repercutiram ainda.

E por aquele começo de ato afora foi um nunca acabar de palmas escandalosamente sonoras. Eram palmas por dá cá aquela palha. O rei, o tal que estava no galarim, começava já a desconfiar de tamanha prodigalidade de aplausos. Ali andava por força bandalheira do Mamami. E recordou-se do adiantamento dos cento e cinqüenta mil-réis. Uma claque! Ora ali estava para o que servira o dinheiro. O idiota do Fabriciano nem ao menos sabia escolher gente esperta para aquilo. O próprio Fabriciano já se ia enfurecendo com o caso. As palmas continuavam, cresciam sempre. Afinal, começou a grande fala, a célebre tirada do 5º  ato. “Que o céu vos valha, senhor; mas ides restituir-me aquele coração que era meu!”

Restituir-lhe o seu coração! O rei estava mas era a debochá-lo, meio virado de costas para o público. Fazia-lhe caretas, fingia que também lhe estava a bater palmas. E, súbito, num ponto da cena, porque tivesse de investir para ele, e valendo-se do barulho que faziam as palmas:

— Eh, Mamami! gritou.

Mamami! O Fabriciano perdeu as estribeiras. Era demais, também aquilo era demais. E atirou- se, espada em punho, para o canalha do rei. O braço tremia-lhe de raiva, as palavras saíam-lhe freneticamente, borbulhando, prenhes de ódio, coruscantes de indignação.

Mamami! Espera, pedaço de canalha!” — E as palmas cresciam cada vez mais. Agora era a platéia inteira. Ninguém ouvia o que estava dizendo o Fabriciano; viam-lhe apenas a indignação nos gestos, a cólera na fisionomia. E toda a gente achava que aquilo era verdadeiramente magistral.

Era à toa que o ponto berrava os últimos trechos da grande fala... “Por esta espada que tenho vos juro que daqui não saireis vivo, senhor!” — Qual vivo, qual nada! “Mamami é ela, meu grandessíssimo cão!”

O rei não esperou o golpe do Fabriciano para se deixar cair morto no palco; atirou-se de costas, mal a durindana silvara, lúcida, no ar. Desceu o pano, muito devagarinho. Toda a gente batia palmas, delirante, quase doida. A sala inteira vinha abaixo, à diabólica barulhada de toda aquela ovação. Um espantoso sucesso! O Borbas, sôfrego, a acotovelar toda a gente, atirou-se para o camarim do Fabriciano, para lhe agradecer a sua interpretação. E o Teodorico — o Teodorico ele próprio! — teve esta simples, esta eloqüente, esta convencidíssma frase:

— Genial ator!


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Nota:
Pedro Rabello: "Alma Alheia" (1895)

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