quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Carlos Augusto Ferreira: "História da Minha Pena"

HISTÓRIA DA MINHA PENA
(Confidências de um poeta)


AO MEU DISTINTO AMIGO DR. F. QUIRINO DOS SANTOS

Não é com uma pena que eu tenho o prazer de traçar estas minhas magras inspirações — é com um palito...

Peço licença para dar uma rápida explicação, no caso que haja quem queira dar-se ao trabalho de ouvir-me.

É com um palito, sim, porque eu gosto de escrever a crítica da humanidade com rabiscos, pois não conheço espetáculo mais divertido do que a seriedade dos homens.

Tenho sondado políticos e literatos, homens de pince-nez ou sem ele, e sempre cheguei ao conhecimento profundo de que — para se ser bom.., é preciso que se saiba ser intrepidamente mau!

Dou-me com todos os barões da terra e concordo com todas as opiniões alheias.

A vida é isto: uma viagem no espaço, comédia de meia hora, um movimento de polichinelos, coisas ridículas e engraçadas ao mesmo tempo.

O homem faz tudo o que quer, e tem fantasias espantosas. Compõe Cristos de barro para vende-los; faz papel de S. Pedro e é capaz de esmagar o mundo para fazer triunfar as suas ambições...

Adiante! adiante! Ë perigosíssimo este caminho...

***

A minha pobre pena, uma festiva tagarela que viveu comigo em outros tempos, tinha segredos íntimos que se ocultavam no fundo do meu tinteiro, como o mistério das lágrimas se esconde no fundo dos corações.

Perdão, eu não quero por modo nenhum entreter-vos com uma intempestiva jeremiada, tanto mais que a minha querida companheira de trabalhos, a quem venho de me referir, gostava mais de rir que de chorar.

Tinha também a sua pequena e obscura história a minha despretensiosa pena.

Deixo ao seu substituto, o desgracioso palito, a tarefa de escrever neste momento duas palavras apenas, que direi sobre a memória da pobre.

Nasceu, quem sabe aonde? porém trazia nas costas, como abono de sua têmpera, o nome de seu pai, um tal sr. Mallat, que não tive a honra de conhecer senão pela extensa popularidade de sua fama.

Não era de ouro a esguia pena, nem adornada de esmeraldas como costumam ser a dos príncipes, mas de polido e legítimo aço, tão fina como o bico de um beija-flor, à parte a modéstia.

Um dia teve uma fantasia esquisita: deliberou casar-se.., estava aborrecida da vida de solteira. Casou-se com um sacudido lápis, filho legítimo de Faber, o qual um dia trabalhou tanto sobre tema de grotescos, para que sua esposa descansasse, que morreu vítima do fio voraz do canivete.

Fica pois sabido que a minha modesta pena tinha ainda em si o melancólico atrativo da viuvez.

Algumas vezes banhara-se nas tintas furta- cores das alegrias serenas como os cisnes em lagos de prata; outras vezes embebia-se de fel e começava repentinamente a produzir umas nebulosidades, as quais imediatamente ardiam na voracidade das chamas que as extinguiam.

Meus olhos então se mergulhavam fixos no âmago vermelho das labaredas e acompanhavam saudosos as ondulações das salamandras que o papel inflamado produzia, as quais outra coisa não eram, a meu ver, senão as larvas candentes das agonias!

No mais era uma boa sujeita aquela minha rabiscadora: quando não cantava idílios, tocava funerais e corria pelo campo acetinado do papel velino, pintando corações ou reproduzindo umas carrancas de almas, do mesmo modo que construía castelos.

Foi-me dada em um dia sem sol, por um indivíduo de caráter sombrio, rigorosamente engravatado, que me apresentou o seu cartão de visita com este único nome, que era o seu — o Destino!

Recebi a oferta e considerei-a uma relíquia. A princípio confesso que me senti embaraçado na escolha do uso que devia fazer de minha paciente amiga.

Perguntei-lhe baixinho quais eram os seus segredos, e a curiosa, por única resposta quis também saber os meus.

Falei-lhe do meu primeiro amor! Pintei-lhe o retrato de uma mocinha muito gentil e atirada ao romantismo, por quem eu ia me atirando ao abismo do suicídio no dia em que ela se esqueceu de mim — poeta — para casar com um sujeito muito rico, pançudo, cheio de estupidez e de rapé!

Falei-lhe do meu segundo amor, exibindo o retrato de minha segunda namorada, uma moreninha de quinze anos apenas, que teve o bom gosto de fazer uma parelha entre mim e um Adônis sandeu, para realce de suas conquistas de moça bonita.

Contei-lhe estas e outras pequenas histórias de que a pensativa pena mais tarde se lembrava a rir, porém bem cedo arrependi-me e tive coragem de atirá-la para um canto num dos meus assomos de desalento.

Pobre amiga! Começou a doer-se do desprezo até que em pouco tempo a terrível enfermidade da ferrugem foi-lhe apagando aquele brilho dos dias alegres.

Os seus bicos se ligaram como se foram os lábios de um morto!

Era preciso dar-lhe que fazer, pelo que não hesitei um momento em arrancá-la daquela vergonhosa inércia.

Sim, quereis saber como?

O criado se incumbiu de fazer com ela o rol da roupa para a lavadeira e a lista nominal das compras do dia!

***

Ah! que doloroso ranger aquele seu sobre o papel!.

Dir-se-ia que chorava.,.

Não eram curvas o que ela deixava após os gemidos, quando traçava, sobre um papel gordurento, a palavra fatal — batatas! — porém sim uns hieroglíficos que se retorciam ao peso da mão do fuliginoso escritor como um corpo humano nas contorções da agonia!

Batatas!... Era de mais!

Foi então quando tive profunda pena daquela desprezada pena, e chamei-a outra vez aos solícitos afagos dos meus dedos trêmulos pela indecisão.

Comecei desde logo a acalentar uma vontade frenética de escrever um tratado sobre a arte de ganhar dinheiro em geral, e dos homens de bem em particular, mas não levei ao cabo a empresa e a pena resignada esperou erguida sobre o papel a mais útil das minhas inspirações.

Lembrei-me de cantigas, mas dei-me para logo ao trabalho de recapitular na imaginação os martírios por que passam esses pobres rouxinóis sociais, e confesso que tive pavor.

Formei diversos planos, mas acabei por não realizar nenhum deles.

Veio-me vontade então de fazer de minha inútil pena uma espécie de irmã de caridade.

Pedir com ela um pouco mais de indulgência para os pobres desta adoidada Babilônia que se chama Rio de Janeiro, e um pouco mais de severidade para os algozes de casaca.

Lembrei-me, talvez muito a propósito, de pedir ao governo um asilo para as crianças órfãs que mendigam, em uma noite em que um episódio doloroso me veio retalhar o coração.

Vinha eu vindo por uma rua abaixo, em uma esplêndida noite de luar, depois de ter bocejos de tédio pelos teatros, e caminhava mergulhado nesse profundo cismar de quem faz a si mesmo perguntas íntimas, para as quais não há resposta possível.

De repente pararam diante de mim dois vultos que me embargaram o passo...
Uma mulher e uma menina — mãe e filha. Esta última teria talvez onze anos e era duma beleza cheia de suave encanto.

Havia no seu mórbido semblante a profunda resignação dos mártires acompanhada da horrível palidez dessa enfermidade cruel que se chama — fome.

A menina estendeu-me a mão...

— Dê-me uma esmola, disse-me entre um soluço e uma lágrima; minha mãe é viúva e todo o mundo nos nega proteção.

A mãe estendeu-me também as suas mãos descarnadas e eu tremi, ao reconhecer pelo som da voz aquela desgraçada criatura.

Sim, eu a tinha visto em outro tempo, alegre, ditosa, boa mãe, esposa modelo.

Seu marido fora infeliz na vida: perdendo tudo quanto possuía, entregou-se ao desregramento e morreu deixando uma viúva e uma pobre filha em completa miséria.

A pobre mulher lutara por muito tempo até que viu-se na cruel necessidade de mendigar à noite pelas esquinas das ruas.

— Amanhã, pensei eu ao deixar aquelas pobres criaturas, amanhã a desgraçada mãe terá morrido, e a filha, anjo em prantos, será vítima das garras venenosas dos abutres!

Aquela criança venderá a alma, esquecendo tudo quanto há puro e sagrado para não morrer de fome.

Achará muita gente que lhe dê dinheiro arrastando-a às alegrias amaldiçoadas. Entrará nas igrejas como quem vai a uma feira, mais para mostrar a beleza do que para rezar.
Os elegantes ensinar-lhe-ão a insolência com que se esmaga a miséria e as impudências com que se adquirem os diamantes.

A pobre menina há de queimar a sua mocidade r a saúde nos lupanares, mas, em compensação, não andará de porta em porta a pedir o que dificilmente lhe dariam — um pedaço de pão para engoli-lo com lágrimas!

Pensei em tudo isto, no poder desse Deus que deixa viver na abastança os algozes d’Ele próprio e dos desvalidos; nas consciências denegridas pelo remorso e nas almas sofredoras dos anjos do martírio, pensei em tudo isto e tive vontade de apostrofar o réu..
A mísera pena, porém, esmoreceu diante de tais pensamentos e resolveu antes reclinar-se muda sobre o seu tinteiro, derramando no seio dele todo o lei de seus queixumes.

E sufoquei todos os meus ímpetos de aspiração r de esperança, arrebentei as cordas da sensibilidade, entreguei-me à correnteza do acaso!

Louros, glórias, porvir, tudo estava perdido! Em tal conjuntura, desejais saber o que a minha inofensiva pena fez?

Em um momento de desvario, de convulsão nervosa, de tempestuosa raiva, precipitou-se no fundo negro do tinteiro, caiu da caneta para sempre... para sempre!

O ácido venenoso da tinta há de em breve tempo devorá-la, e nada mais restará da desgraçada boêmia!..

Deus lhe perdoe!..

Agora... não é mais com uma pena que eu traço estas minhas magras inspirações, é com um palito.

Mas um palito inexorável!..

Rio de Janeiro, 1873.


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Nota:
Carlos Augusto Ferreira:  "Historias Cambiantes" (1874)

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