MANA MINDUCA
Volto, afinal... Espera-me; irei
hoje... Mana Minduca sorriu. De pé, ao lado, o moleque esperava. Era em 80, na
velha casa da rua de Riachuelo, ao canto da rua dos Inválidos. “Volto, afinal.
. .“ Mana Minduca fitava atentamente os olhos no papel; sofria acaso da dúvida
de que aquela não fosse a sua letra... E mirava o detalhe delgado da escrita.
Verdade é que não parecia a mesma. Um pouco mais firme... Daí, em doze anos a
gente muda de letra. Valha-lhe Nossa Senhora! O moleque esperava, tímido,
amarrotando o chapéu entre as mãos.
Bendita carta! E Mana Minduca
mirava o talhe delgado da escrita. Agora já lhe parecia que era dele; o corte
daquele t, os 1... “Volto, afinal...
Era. Mana Minduca sorria; o
sorriso derramou-se- lhe por todo o rosto, apareceu brilhando nos olhos. Nem
havia mais dúvidas, era dele; Nossa Senhora trazia-o ao fim. E Mana Minduca,
olhou em roda. Pareceu-lhe que se alegrava a sala. A mesa redonda, ao centro,
coberta de poeira e de livros, era justamente agora tocada de um raio de sol.
Esses que há doze anos lhe falam
do rosto pálido, das lágrimas e da voluntária clausura, vissem-na agora! Mana
Minduca sorria; nem se lembrava mais do moleque. Se alguém houvesse, que fosse
passando pela rua, que surpresa não haveria de ter quando visse que ela abria
as janelas. Abriu-as todas; não um bocadinho, como o fazia há doze anos, não
como aquela por onde entrou o raio de sol; abriu-as de par em par. Debruçou-se
bem para fora, cantalorando. Voltou, sentou-se. O moleque esperava, olhos fitos
no chão, amarrotando o chapéu. Levantou a cabeça, olhou timidamente. Mana
Minduca relia a carta. Por certo que era dele... Milagrosa Nossa Senhora das
Dores!
— Tá entregue?
O amo que fosse ficaria para ali,
sem resposta, como o moleque. Mana Minduca estava que não cabia em si de
contente. “Volto, afinal. . .“ E aquele “afinal” dizia bem. Doze anos há que o
espera. Viram-se no fogo da Lapa. Que festa! Povo assim... Mana Mínduca
deixava-se levar à toa. Chegou a pensar que aquilo já se ia demorando muito.
Mas, de súbito, o coração estremeceu-lhe; quase parou, até... Corou muito. Que
tinha? Nada. Não deu mais um passo que se não voltasse para trás; os olhos dela
achavam sempre um par de olhos que iam em sua procura.
Doces, bem-aventurados olhos! Não
unicamente os dela; os de ambos. Os dele então, foi tamanha a impressão que lhe
fizeram, a ela, que ainda agora se lhe destaca a cena da primeira noite (m que
os viu. Atenta bem no modo por que ela a faz reviver agora, à simples leitura
daquela carta. Parece-lhe que lá vai outra vez pelo meio do largo. Povo,
assim... O dono dos olhos lá está, apoiado a um lampião, quase juntinho do
coreto. Doze anos passaram já sobre tudo isto, e ela ainda os revê, aqueles
doces olhos. Que festa! Mana Minduca demorava o passo. “Anda mais depressa. .
.“ — recomendaram. Era o pai. Ela disse que sim: — “Sim, senhor” E voltou a
cabeça para o lado do lampião. Daí por diante andou ainda mais devagar.
Tá entregue?
— Ah! Diga que está entregue...
Olhe... Diabo de moleque! Diga que venha cedo, ouviu? As seis horas. Passe pela
porta que eu estou na janela. Que venha cedo, ouviu?
O moleque batia longe. Deitara a
correr pela rua de Riachuelo acima. Em pouco já se não o avistava. Mana Minduca
ficou à janela; os olhos vagavam-lhe ao longe. Se ele não viesse... Mas havia
de vir. E fechava os olhos, para revê-lo bem. Que figura teria ele agora? Há
doze anos era magrinho, com um pequeno buço, mas em doze anos a gente muda.
Deve estar gordo; dizem que em S. Paulo se engorda, por causa do frio. E ele
volta de lá — bacharel em direito.
Levou doze anos a fazer o curso.
É muito tempo, mas há tanta contrariedade, anos perdidos, moléstias, um horror!
Outros se demoraram mais tempo, e vieram de lá sem diploma. Um vizinho, para
amostra — o Quincas, neto do conselheiro Domingues. Levou dezoito anos em S.
Paulo, e veio com o curso ainda por acabar. Concluiu-o em Pernambuco. Bacharel
em direito! Dr. Eduardo de Campos Lustosa. Os olhos viam-lhe já o nome do
marido, à entrada da casa, num quadro, assim:
CAMPOS LUSTOSA
ADVOGADO
Campos Lustosa é um nome que fica
bem à porta, numa chapa escura, com letras pintadas a ouro.,. Que depressa que
ia o sonho de Mana Minduca! “O dr. Eduardo de Campos Lustosa e d. Carminda de
Barros Lustosa participam a V. S. o seu casamento...”
Pensamento de Mana Minduca,
detende-vos! Coisas há em que toda a precipitação é perigosa.. Mas vão lá deter
o pensamento de uma moça que esperou doze anos pelo noivo e tem-no agora à mão.
Vejam com que delícia ela lhe repete o nome, e como o espírito se lhe não
afasta das participações de casamento. Dr. Campos Lustosa... “O dr. Eduardo de
Campos Lustosa e d. Carminda de Barros. . .“ Aí a dificuldade do nome futuro.
Carminda de Barros ou Carminda Viana Lustosa? O pai é Frederico Via- na de
Barros; Chico Viana, conferente da alfândega. Viana talvez ficasse melhor, ou
Viana de Barros. E ei-la que sonha já com os seus cartões de visita lilás,
dourado nas extremidades, com uma pontinha dobrada e o nome, em corpo minúsculo
— “Carminda Viana de Barros Lustosa.”
Volta, afinal! Doida era ela que
se não preparava para recebê-lo. E Mana Minduca correu para o quarto. Abria
gavetas, fechava gavetas. Três vezes saiu pronta. O espelho, porém, gritava-lhe
que já se não sabia vestir. E Mana Minduca voltou. Destrançou os cabelos,
soltou-os, trançou-os de novo. Davam cinco e meia. Valha-lhe Nossa Senhora!
Mana Minduca veio para a janela.
Veio para a janela. Santa de que
ela é devota, poupai-lhe a dor de ficar ali eternamente a esperá-lo... Fora, ia
caindo a noite. Mana Minduca debruçou-se quase toda para as trevas; interrogava
o fim da rua, longe. Ninguém; a noite apenas. Mana Minduca mergulhava bem os
olhos na escuridão da noite. Um homem passou, lépido, correndo de um para outro
lado. Atrás dele iam ficando acesos os lampiões de gás... O frio aumentava sempre;
frio de junho, frio que penetra a alma.
Valha-lhe Nossa Senhora! Mana
Minduca distinguiu alguém, longe. Não lhe via bem o rosto, via- lhe apenas o
vulto. Vulto de homem. Debruçou-se mais da janela. O homem apoiara-se a um
lampião; alguém, perto, dizia-lhe qualquer coisa. Agora ei-lo que metia a mão
no bolso, tirou um objeto, deu-o. O outro desapareceu, a correr. Em pouco já se
não o avistava. E o homem aproximou-se. Talvez fosse o Lustosa... Não era. Era
um sujeito baixo, gordo. A barba inteira cobria-lhe o rosto antipático. Mana
Minduca teve vontade de sair da janela. Antes saís- se! Mas ficou.
O homem aproximava-se. Quem quer
que fosse com certeza que andava à procura de alguém. Demorou-se um bocadinho
ao canto da rua dos Inválidos. Depois, veio, devagarinho. Mana Minduca viu-o
passar, olhando-a muito. Parecia que o homem tinha vontade de lhe dizer o quer
que era. Ela própria julgava que já o vira. Mas onde? Não sabia, O homem foi
até mais adiante, e voltou.
Agora, vinha resolutamente.
Deteve-se à porta, tirou o chapéu. Que diabo quereria ele? O homem murmurava
alguma coisa. Mana Minduca debruçou-se mais, para ouvi-lo.
— O sr. Viana de Barros?
— É papai; mora aqui mesmo.
O homem levantou a cabeça,
fitou-lhe bem o rosto magro. Que olhar curioso! E agora o rosto dele tomava uma
expressão de piedade:
— E... E uma sua filha solteira?
Mana Minduca não respondia. O
homem não lhe tirava os olhos do rosto:
— E uma sua filha solteira?
— Minduca? Sou eu.
— Ah! É a senhora?
E o homem levou a mão ao chapéu.
Santa de que Mana Minduca é devota, dize-lhe que esse que aí está é o mesmo que
ela espera há doze anos. Mas o homem levou a mão ao chapéu:
— Ah! é a senhora! Pois, minha
senhora, queira desculpar...
E seguiu. Que bem verdade é que
doze anos de lágrimas envelhecem a gente. Nessa que aí ficou à janela, quem há
que possa reconhecer a moça do fogo da Lapa? O tempo encheu-lhe a face de
rugas. Pérfido tempo! A ele a culpa de que esses dois namorados já se não
reconheçam ao cabo de doze anos. Vejam como o Lustosa lá vai, a toda pressa, à
procura do bonde. Esse não volta nunca mais. E Mana Minduca ficou à janela. Não
sabe quem ele é, não compreende nada. Espera sempre, como na véspera, como há
doze anos. E a noite aumenta, o frio cresce com ela; Mana Minduca mergulha bem
os olhos na escuridão da noite...
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Nota:
Pedro Rabello: "Alma Alheia" (1895)
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