A BARRICADA
Passos soaram, não muitos; poucos
e mal distintos. Quem era deteve-se, talvez, à porta; mas, se que se deteve,
cobrou ânimo e subiu. Dava meia- noite; noite sem luar, escura e úmida. Nasceu
daí, porventura, a indecisão de quem vinha. A escada íngreme. Quem quer que
fosse, parou ao alto, olhou em roda, bateu palmas, medrosas e tímidas.
Ouvia-se-lhe a respiração. O ruído acordou uma voz, dentro:
— Há alguém aí?
— Mandou saber se está melhor, se
precisa t1guma coisa...
— De onde é?
Dali defronte, do sobrado...
— Ah! Diga que está assim
mesmo... Por ora não precisa coisa nenhuma. Diga que fica muito obrigado,
ouviu?
Passos soaram de novo, não tímidos,
nem medrosos; rápidos, como os de quem tem pressa de sair. Quem era desceu,
parou à porta, colheu as saias, atravessou a rua, correndo, e sumiu-se.
Olhos que me ledes, detende-vos;
parece-me que por aí anda uma incorreção. O ruído não foi acordar nenhuma voz
dentro. Essa que se levantou lá ao fundo, na sala, mudou talvez de assunto; mas
nem se calara, nem dormia há três noites. Calou-se agora; outra surdiu, mais
baixa, voz conselheira e amiga.
— Eu em seu lugar, d. Adelaide,
tratava de procurar bem... A boca do mundo fala muito, mas não fala sem razão.
Se seu mano morresse, já a senhora não ficava atirada por aí, sujeita aos
outros, precisando morar de favor...
— Se ele tivesse alguma coisa, já
tinha dito.
— Podia não dizer. Não é por
falar mal, mas a senhora mesmo sabe; ele sempre foi muito apertado. Gastava
pouco e ganhava muito. Eu não via, mas meu marido contava. E não era só meu
marido, eram os vizinhos todos. Só aquela causa do Mauá quanto não lhe deu? Pra
mais de seis contos de réis. E o resto? Dinheiro não se some; quando a gente
não gasta, ele fica.
— E há quanto tempo foi isso?
Contos de réis também não duram sempre; às vezes, não duram um ano, quanto mais
quatro ou cinco. Se maninho tivesse dinheiro ele trazia. Não tem nada, creia.
Ontem, antes da senhora chegar, ele me chamou. Eu fui. Estava muito amarelo,
com os olhos cheios d’água. Olhou para mim, encarou bastante, depois disse assim: — “Adelaide, seu mano vai
embora... eu desatei a chorar; ele pegou-me na mão: — “Você sabe que seu mano
não tem nem um vintém para lhe deixar, não é, maninha?” Eu disse que sabia, com
a cabeça. Ele tirou-me as mãos dos olhos, puxou-me o rosto para bem perto:
“Diga se sabe, Adelaide; eu não tenho nem um vintém, não é?” Os olhos dele
estavam espetados nos meus. Ficou olhando, olhando... Eu disse que sabia. E vim
embora. Se ele tivesse dinheiro, não fazia isto.
— A vista às vezes engana...
— Na hora da morte, d. Lúcia!
— A senhora é muito moça, não
conhece o mundo; eu conheço...
— Por amor de Deus!
— Conheço; a senhora é que não
conhece. Há de ver...
Escute.
Havia um rumor, pouco
pronunciado, contínuo, não muito longe. Calaram-se ambas. Escutavam. O ruído
vinha do quarto, ao fundo. Era como um resfolegar de doente. Gemidos acaso;
acaso palavras soltas, sem nexo. O quer que fosse, mal se entendia, através das
paredes, das portas cerradas, do longo corredor escuro. Mana Adelaide curvou-se
para o lado da sala, pôs a mão em côncavo, bem junto do ouvido. E ficaram
caladas, imóveis.
— Parece que está chamando...
— É o vento.
— Vento assim, d. Lúcia!
— Há de ser. Às vezes...
— Olhe.
Gemidos ou palavras soltas,
percebia-se que alguma cousa era. Mana Adelaide levantou-se:
— Eu vou ver.
D. Lúcia pôs-se de pé, arredou a
cadeira:
— Espere; eu também vou.
A outra sorriu.
Não é por medo, não. A mim não me
metem medo os vivos, quanto mais os que estão para morrer. É que eu não gosto.
Assim até é melhor; nem eu fico sozinha, nem a senhora vai sozinha também.
Foram. O corredor era longo,
longo e escuro.
D. Lúcia levava uma vela.
Alçava-a bem, para alumiar o caminho. O vento apagava-a quase. Pararam junto ao
quarto. Mana Adelaide abriu a porta, entrou, chamou baixinho:
— Mano Malveiros...
Gemidos ou palavras soltas, o que
era calou-se de súbito. D. Lúcia levantou a vela, para alumiar melhor. A luz
bateu primeiro na cômoda, por sobre a lamparina; passou ao lavatório, parou na
cama de ferro. Os lençóis agitaram-se; quem lá estava moveu-se, agarrou-se a
eles, virou-se para a parede.
— Maninho está chamando?
D. Lúcia curvou-se para a cama,
levantou mais a vela:
— Está chamando, dr. Malveiros?
Malveiros descobriu o rosto,
magro, escaveirado, amarelo. Os olhos brilhavam-lhe, muito vivos, muito
trêmulos. Ficou olhando, entre desconfiado e severo.
— Não conhece, maninho? É d.
Lúcia, a vizinha aqui do canto...
O olhar de Malveiros buscava o de
d. Lúcia; o dela é que o não buscava, nem reparara nele. Procurava outra cousa;
e daí, bem pode ser que não buscasse cousa nenhuma. Andava da cômoda para a
cama de ferro; mergulhava nos lençóis; ia da cama de ferro para as gavetas da
cômoda. Traspassou-as, acaso, agudo e fixo que era. Mas, se a alguma cousa
buscava, certo é que não a encontrou; voltou da cômoda com uma expressão de
desânimo; subiu ao teto, desceu as tábuas do soalho, mirou-se no espelho do
lavatório. O espelho disse-lhe porventura que se traía. D. Lúcia compôs o
rosto, amorteceu os olhos. Quando Malveiros os encontrou, ressumbravam piedade
pelo doente. Mana Adelaide ainda os achou piedosos e amigos.
— Está acabado, não é, d. Lúcia?
Quem o viu, há dois meses! Lembra-se daquele jantar dos meus anos? Riu, brincou,
dançou... Nem parecia velho! Para hoje estar atirado numa cama.
— Não acho que esteja muito mal,
não... Agora, ficar assim no escuro é que lhe não há de fazer bem. Por que não
deixa a vela em cima da cômoda?
— Luz forte no quarto! É porque a
senhora ainda não viu o que ele faz. Não suporta nem a lamparina; é preciso
botar uma cousa adiante, pra não deixar a claridade toda.
— Mas estar assim no escuro não é
bom, não.
— É o que ele quer; diz que a luz
lhe dói nos olhos...
— Talvez seja por outra cousa.
— Não é por outra cousa; deve
doer mesmo. Não viu quando a senhora entrou com a vela, como ele se virou para
a parede?
— Enfim, isso ainda pode ser...
Mas por que é que não deixa mudar a roupa da cama? Doente nenhum faz isto. E
então roupa úmida, como a dele está...
— A senhora sabe; ele quase que
não se pode levantar. Já vê que andar de um lado para o outro, para deixar
limpar a cama, incomoda. E depois, quando se fica assim, não é um lençol lavado
que dá vida.
— Mas não precisava tirar a cama
toda, agora parede. Quer ver então que ele está encostado à como é..
D. Lúcia ainda não concluíra, e
já o lençol lhe estava seguro na mão; seguro por uma ponta. Puxou-o de um gesto
rápido, da cabeceira para os pés. Talvez quisesse deslocar as almofadas; se é o
que pretendeu, conseguiu-o. Os olhos mergulharam- lhe abaixo delas; regressaram
em breve, deslumbrados, acaso satisfeitos. O lençol é que não veio, nem a mão
de d. Lúcia. Malveiros agarrou-a, cravou nela os dedos hirtos. O relâmpago que
lhe passou pelos olhos não foi tão rápido que ele o não surpreendesse. E
segurava o lençol, com a mão livre, com o peso do corpo. Tremia todo, de raiva
ou de frio. D. Lúcia teve medo, abrandou os olhos, deixou o lençol livre.
Malveiros trouxe-lhe a mão, presa, até a beira da cama; empurrou-a para fora,
para longe. Ela curvou-se ainda para a cama, tranqüila a fala, os olhos
resignados:
— Não quer, paciência. Mas ao
menos é bom tomar alguma cousa quente. Porque não toma um caldo?
O olhar de Malveiros
traspassava-a, desconfiado, ríspido. Cravou-se no dela; talvez lhe buscasse ler
na alma, que não mente. Os olhos mentiam. D. Lúcia insistiu pelo caldo:
— Tome, que lhe faz bem. Nós
vamos aprontá-lo, quer?
Nem esperou pela resposta, O que
ela queria, era porventura ver-se fora dali. Tomou da vela, pôs-lhe a mão por
diante, para abrandar a luz. Voltou-se para mana Adelaide:
— Não é, d. Adelaide? Vamos
preparar um caldinho para ele...
Abriu a porta, saíram. Malveiros
ficou só. Os passos de d. Lúcia iam-se calando, diminuindo. Ele ergueu-se na
cama, não muito; pouco, com dificuldade. Apoiou-se às almofadas, aplicou o
ouvido, Já nem se distinguiam os passos de d. Lúcia. Os olhos e o rosto iam-lhe
tomando uma expressão de tranqüilidade Não digo que se transfigurassem. A,
mudança era lenta, como se ainda lhe sobrassem cuidados alerta. Aplicou mais o
ouvido. Não vinha ninguém. Sentou-se na cama; as pernas caíram-lhe para fora do
chambre, fluas, muito magras, sem cor. Dentro, na sala, havia um rumor de
colheres.
Malveiros olhou em roda, voltou-se
para a cabeceira, curvou-se um pouco, estendeu o braço. A mão dele mergulhou na
almofada; foi lá ao fundo, voltou contraída e trêmula, menos trêmula do que
contraída. Não afirmo o que trouxe, porque já se não conhecia bem. Eram papéis,
num maço; oleosos, encorpados e úmidos. A alguns, mal se lhes distinguia um
rosto de homem, Talvez nem fosse de homem, Números se que tinham, diversos,
pequenos e grandes. Letras também; palavras até, em arabescos, em círculo, mais
escuras num canto, mais claras noutro.
O rosto de Malveiros dilatava-se.
Súbito, guardou o maço; aplicou o ouvido. Não vinha ninguém. ‘Virou-o de novo,
desenrolou-o, pô-lo sobre o joelho. Alisava os papéis; descolou-os depois, com
vagar, com trabalho. Ia-os separando, um por um; não em silêncio, alguma cousa
se lhe ouvia. Era como se cada papel daqueles lhe arrancasse um gemido. Gemidos
ou palavras soltas, Talvez palavras; dir-se-ia que ele contava baixinho, a
meia, voz. Talvez estivesse rezando. Mas o que era, acabou. Malveiros leve um suspiro
de alívio, de desafogo. Teve-o e ficou sentado, olhando em roda, corno quem
procura uma idéia.
Se é que a procurava, a idéia não
veio; se é que veio, foi repelida. Os olhos dele iam tomando uma expressão de
desânimo, de desespero, de dor. Fitava-os na cômoda, no soalho, no teto;
passeiava-os vagarosos, pelo chão. Por vezes, aplicava o ouvido. Não vinha
ninguém. Ensaiou uns passos; vergavam-lhe as pernas. Meteu os papéis no seio;
sentou- se, curvou a cabeça. Dentro, na sala, a voz de mana Adelaide ergueu-se,
alta, surpresa:
— A senhora viu, d. Lúcia!
— Se eu vi?! Vi com estes que a
terra há de comer...
Malveiros alçou a cabeça. Alguma
cousa o reanimou, por certo. Prestou ouvidos; a voz de d. Lúcia calava-se,
diminuía... Brilharam-lhe os olhos, lúcidos, vivos. Não eram os olhos de há
pouco, feitos de desânimo, de agonia; eram olhos enérgicos, plenos de força,
cheios de vontade. Levantou-se, trêmulo; firmou-se nas pernas, deu uns passos.
Andava. Andou um pouco; os passos eram-lhe mais seguros. Foi até à porta... A
porta estava aberta, cerrada apenas. Ele fechou-a a chave, com duas voltas. E
veio direito à cama; parou, apoiado à cabeceira.
Olhava em roda. Dir-se-ia que lhe
voltava a idéia de há pouco; se é que voltava, ficou; aceita, não repelida. Foi
até a cômoda. Pisava melhor, mais firme. Parou, curvou-se, agarrou-a pelos
cantos, de um lado. A cômoda era pesada, forte; ele puxou-a a custo. Puxou-a
mais, arredou-a um pouco; arredou-a, moveu-a para fora. Passou para o outro
lado, arrastou-a, moveu-a daí, O esforço cansava-o; suava de um suor frio. E
arrastava a cômoda. Deu-lhe uma volta, pô-la ao longo do soalho; empurrou-a
mais, levou-a até a porta, pô-la por trás dela, bem junto. Deixou-a ficar aí,
tapando a entrada e voltou.
Agora não hesitava mais; andava
como quem tem uma idéia fixa. Foi à cama, arrancou-lhe as almofadas, tirou as
cobertas, as colchas. Dobrou o colchão, foi pô-lo sobre a cômoda. Agia rápido
com delírio, com febre. Tirou as tábuas, foi encostá-las à porta. Voltou,
curvou-se junto à cama; correu-lhe os dedos, trêmulos, rápidos, pela cabeceira.
Buscava alguma cousa; achou um ferro, tirou-o. A cama dobrou-se, aberta.
Abriu-a do outro lado, fê-la bater no chão, arrastou-a até à porta; deixou-a
aí, de pé, ao lado da cômoda, de encontro às tábuas, apoiada ao colchão. Por
cima de tudo, as colchas, as almofadas, os lençóis.
Voltava, mas parou em caminho. A
vontade dele pretendia por certo ir mais longe; as pernas não foram,
dobraram-se-lhe, desfalecidas, quase mortas. Caiu de bruços. A vista ia-lhe
ficando trêmula, escura; ergueu-se nos braços, pôs-se de joelhos. Talvez se
levantasse; não pôde. Arrastou-se, foi de rastros até o lavatório, pequeno, de
ferro; agarrou-o por um pé, trouxe-o assim, arrastado, até a porta. Batiam-lhe
os dentes; tinha as mãos geladas, gelados os pés. Um frio de morte, hórrido e
lúgubre, apossava-se-lhe do corpo, subia-lhe à cabeça. Arrastou-se mais, aos
poucos, para o meio do quarto; mirou a barricada, viu-a pequena e fraca; olhou
em roda, à procura, pelas paredes nuas, pelo quarto vazio. Os olhos vagavam-lhe
à toa; correram-lhe duas lágrimas. E foi através delas que ele lobrigou alguma
cousa luzindo, num canto.
Os olhos trêmulos, a vista
escura, não lhe reconheceram aquela escarradeira pequenina, de metal branco; o
que ele via ia crescendo, crescendo...
Devia ser de prata, pesada e
forte. Malveiros tentou mover um braço. Não pôde; o braço pendia-lhe gelado,
morto. Moveu o outro, arrastou-se mais, para perto. O que era crescia,
crescia... Ele já não via bem; ia-se-lhe cerrando um véu pelos olhos. Estendeu
o braço livre, procurou, não via nada. Os pés inteiriçaram-se-lhe. O olhar dele
mergulhou numa noite profunda e espessa. Ficou de bruços, imóvel. Vinha
rompendo o dia. O sol entrou, do alto, pelas janelas; bateu sobre Malveiros,
banhou-lhe o rosto amarelo, os olhos vidrados; estendeu-se, alagou todo o
quarto de ouro fluido. Lá dentro a voz de d. Lúcia falava, conselheira e amiga:
— Deixe ficar o caldo; já não lhe
pode fazer bem. O que a senhora precisa, é arrecadar tudo, logo que ele morra.
As vezes aparecem parentes de fora..
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Nota:
Pedro Rabello: "Alma Alheia" (1895)
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