CÃO!
Sol a pino; esbraseado, rútilo
sol de janeiro...
Tangendo a tropa — de volta do
mercado longínquo — o Rufino estacou, de súbito, ao súbito chamado de tia Rita.
E à porta da casinha branca, dentre os galhos ásperos dos espinheiros, a figura
encarquilhada da velha chamava-o de novo:,
— Eh lá, Rufino!
Sua bênção, tia Rita!
Calor danado, hein?
Parece que não passa sem chuva...
— Nossa Senhora que mande.
Em roda, pelo mato mirrado e
seco, secas, mirradas árvores se levantam, ávidas, para o céu. E, por entre a
relva queimada, ao acaso dos campos, apenas os longos, áridos caminhos de areia
refulgiam ao sol, O Rufino demorava-se um pouco, a arredar as mulas para junto
dos espinheiros da cerca; sacudiu o suor, a um rápido passar dos dedos pela
testa. E veio, chapéu ao alto, enrolando o cigarro tirado da orelha:
— Forte sempre, hein, tia Rita?
— Não vê! Caco de velha que a
maldita nem deixa parar. Mariana já levantou?
— Levantou?! Nossa Senhora que
tenha pena dela. De já hoje se foi chamar seu dr. Paixão.
— Eh! Ruim assim?
— Ruim de não tirar a cabeça da
cama.
Um corvo pairava alto, voando em
círculo. E a sombra negra da ave passou, rápida, por sobre a cabeça da velha.
Tia Rita franziu as sobrancelhas:
— Vá longe o agouro! Cuidado com
ela, hein, Rufino...
— E eu cá que já vou andando pra
casa...
— Deus que te acompanhe!
O Rufino estalou o chicote no ar.
E, sacolejando os jacás vazios, a tropa embicou pela estrada fustigada do sol.
A casinha de tia Rita ficou para trás, muito alva, com os seus ares de eremitério
em meio das roças queimadas — como uma capelinha ao centro de um campo talado
pelo incêndio, pela devastação e pela morte. Ao longo da estrada nem mais
sombra humana aparecia. Eram apenas, no ar imóvel, folhas imóveis de árvores
imóveis. E só de entre duas mangueiras, muito ao longe, num alto, transparecia
a casinha do Zé Português — um que, por noites enluaradas, costumava dizer, à
guitarra, toda a saudade nostálgica da sua terra.
De novo, lépido, o látego vibrou,
estalando, desenroscando-se no ar. E agora, para lá da curva distante do
caminho, emergia da massa de troncos das amendoeiras despidas a ponta aguda da
torre da Matriz. Em frente, tranqüila e pobre, era a casa. F o Rufino apressava
a tropa. Do caminho de areia em brasa, ao trote das mulas, subia para o ar uma
poeira fúlgida e fina...
Mas — porque ao fim chegassem — o
Rufino (cancarou a porteira; e, enquanto a uma chicotada iuais forte, as mulas
trotavam para o telheiro ao fundo — à cata de sombra e de água — entrou em casa
muito rápido, a indagar do estado de tia Mariana.
Então, tia Rosa, e a velha?
— Assim...
Imóvel, sobre a cama de ferro, no
quarto de portas abertas para o ar e para a luz, tia Mariana arfava
compassadamente. Os finos braços, amarelecidos e magros, mal lhe sustinham o
lençol dobrado por sobre a colcha de chita. Nos olhos vítreos errava-lhe o
resto de um amortecido clarão. E tia Mariana movia monótona, maquinalmente, a
cabeça. Pela porta entreaberta via-se o quarto vizinho. E nele, junto do
oratório iluminado, a Úrsula, vinha de fora, ajeitava um galho de flores de
espinheiros aos pés finos e brancos da Senhora da Conceição.
O dr. Paixão viera de quatro
léguas mais adiante. E, mais o Tinoco, o irmão da Úrsula, lhe fora dizer que a
mãe do Rufino estava, havia oito dias, com uma febre ruim, pusera pé no estribo
da égua e atirara-se para a Areia Branca. A porta, ao saltar, perguntara logo
se lhe não haviam aparecido uns vômitos. E fora com um ar compungido que lhe
buscara o pulso, tateando-o no braço descarnado e emagrecido da velha.
O Rufino entrou, pé ante pé. E o
Tinoco, que andava a rachar lenha por ali perto, veio também, cauteloso, e,
logo à porta, depôs no chão a foice afiada para a tarefa, O calor abafava fora.
No quarto próximo, a um prenúncio de vento, as velas do oratório estremeciam...
Pela alta cruz do Senhor Crucificado — um velho Cristo de jacarandá balsâmico e
forte — subia uma espiral de fumaça pardacenta; e, mal o vento aumentava, a
chama das velas ia lamber os sangrentos, chagados pés do Senhor.
Tia Mariana movia a cabeça,
pausadamente, de um para outro lado. Voltara-se; fincara os pés na cabeceira da
cama de ferro. E a pouco e pouco, ia-se-lhe amortecendo o clarão moribundo do
olhar. Era como se adormecesse, afinal, depois daquelas tantas, longas noites monótonas
de vigília... O dr. Paixão fitava-a insistentemente.
Fora, no espaço, uma nuvem tapara
por momentos o sol. Ventava agora. E de todo o côncavo do céu, muito alto,
vinha por sobre a terra um ar pesado de desgraça e de morte. Pássaros passavam
m fuga. Pela estrada adiante, às bruscas, fortes rajadas do vento,
levantavam-se turbilhonando, e iam às soltas, pelos campos, as folhas secas das
amendoeiras do largo da Matriz. E súbito, relâmpagos abriram um rápido, largo
claro no céu.
O dr. Paixão voltou-se para tia
Rosa:
— Mudança de tempo... — fez,
baixo.
E com os olhos indicava-lhe a
calma brusca de Lia Mariana. Mas o calor aumentava, terrível. O Rufino tinha os
olhos presos ao rosto amarelecido da velha, O doutor fizera um sinal à Úrsula;
e ela foi esperá-lo perto, no corredor.
— Rum!... Mudança de tempo... —
repetia Lia Rosa.
E abanava a cabeça, com um ar
desolado, O doutor levantou-se, ficou um pouco, de pé, em frente à janela, a
mirar o horizonte longínquo. Assobiava baixinho. Deu uns passos até o aparador
onde o lampião de querosene descansava num tapete vermelho, de lã. E sumiu-se,.
pelo corredor adentro.
— Ora aí está; já tardava... —
observou tia Rosa. — Aí temos nós a chuva.
Grossos, disseminados pingos
d’água caíam agora por sobre a areia em brasa. E, a um relâmpago mais forte, a
casinha do Zé Português — longe, num alto, entre duas mangueiras — apareceu num
fundo de luz amarela, como num clarão de apoteose. Tia Mariana arfava, de novo.
Faltava-lhe o ar... Do fundo da casa, escondendo o quer que era, a Úrsula veio
então, chorosa, para o quarto. E, logo ao chegar, disfarçadamente para que
ninguém a visse, tirou de uma dobra da saia a vela benta do Santo Sepulcro.
— Ah! É a chuva... Pois mais vale
tarde do que nunca... — sentenciou o dr. Paixão, entrando.
O Rufino chegou-se para junto do
médico:
— Seu doutor...
E indicava-lhe tia Mariana,
inquieta, na ânsia de conservar o ar que lhe ia fugindo:
— Está ruim, não está?
O doutor não respondia. Fitava-o
dolorosamente. O Rufino tinha uma coisa a apertar-lhe o coração.
— E agora? — perguntou.
— Agora, só Deus!
“Só Deus!” — Ao lado, no quarto
vizinho, a figura aureolada do Cristo — plácido e sereno — refulgia ao clarão
das duas velas do oratório.., O Rufino fitava o rosto de tia Mariana. — “Só
Deus!”
— A santa imagem do Cristo
atraia-o como para um sagrado refúgio de fé. E o Rufino esgueirou-se para o
oratório iluminado.
— Padre nosso, que estais nos
céus...
Caíra de joelhos. E as palavras
sagradas da reza borbulhavam-lhe dos lábios, trêmulas e repetidas. “Santificado
seja o vosso nome.. .“ E eram padre- nossos por sobre padre-nossos — Agora, só
Deus!
“Ave Maria, cheia de graça,. . .“
E vinham-lhe ave-marias por sobre ave-marias. “O senhor é convosco, bendita
sois vós. . .“ As velas morriam aos is sangrentos do Senhor.
Mas, no quarto da velha, houve um
lúgubre ruído estranho. Parecia que todos se haviam levantado a um tempo. E,
para logo — ao surdo baque pesado de um corpo — o grito estrídulo e doloroso da
Úrsula estrugiu. O Rufino atirou-se para a cama de tia Mariana. De mãos postas,
agarradas à vela benta do Santo Sepulcro, mal sustida pelo Tinoco e pela tia
Rosa, a velha, esticada num último arranco, punha os dois olhos vítreos
fincados no teto.
O Rufino parou:
— Mãe! — soluçou, num gemido.
— Tenha paciência, Rufino...
E o doutor consolava-o:
— Tenha paciência... Também a
minha mãe um dia morreu...
— Morreu!
Não via mais nada, não ouvia mais
nada. Os olhos prenderam-se-lhe ao corpo desfalecido da velha, vergaram-lhe as
pernas. Ria, de um riso nervoso e trêmulo; chorava, de um pranto sem soluços
nem lágrimas. Parecia que lhe rebentava a cabeça.
E um peso enorme oprimia-o,
fazendo-o pender para o chão.
Mas, a um relâmpago mais forte, a
foice do Tinoco luziu, abandonada, num canto. E, do outro lado, no quarto
vizinho, as moribundas velas de cera finavam-se, trêmulas, aos pés sangrentos
do Senhor crucificado, O Rufino voltou-se para o Cristo; não tinha um gesto,
não tinha uma palavra. Os olhos iam-lhe do crucifixo para o límpido aço da foice;
da foice para a imagem sagrada do Senhor.
— Cão! — fez, de súbito.
A foice luzia, de novo, a um
rútilo relâmpago mais demorado. O Rufino tomou-a de um gesto brusco, e — mal a
apertara na mão crispada e trêmula saltou, num ímpeto, do quarto para o oratório
iluminado. Fuzilava-lhe a cólera nos olhos avermelhados e úmidos.
E, a um golpe, loira e fina, a
benta Virgem da Conceição voou em pedaços. E a outro golpe, a outros, àqueles
desencontrados, doidos golpes sacrílegos, piedosas Virgens santas, e sagrados
Apóstolos, e bentos registros imáculos redomoinhavam no ar.
— Cães!
A imagem do Senhor fitava-o do
alto, serena e aureolada. O Rufino vibrou-lhe a foice, certeira e rápida. E
eram novos golpes, doidos, repetidos golpes certeiros. Mas, porque a foice lhe
escapasse, a um gesto mais violento, tomou do crucifixo pelos pés. Vibrava-o
agora às tontas, contra as paredes contra os móveis, contra os portais. Tia
Rosa, muito pálida, correra para arrancar-lhe a imagem. Mas o Rufino galgara a
porta. A chuva caía em torrentes. Rútilos, rápidos relâmpagos cortavam o ar. E
como uma cachoeira enorme, o vendaval descompassado bramia por todo o campo em
redor.
— Cão!
O Rufino atirou-Se, estrada a
fora. Tia Mariana ficara de olhos vidrados, muito hirta, ao centro da cama de
ferro. E o Tinoco correra a pôr fora a água tia talha, para não fazer mal. O
Rufino subia sempre, galgando a árida estrada, através da tormenta. Agora,
revoluteava o crucifixo no ar. Vibrava-O de encontro às cercas, rachava-o de
encontro às rochas ásperas, partia-o de encontro aos ásperos troncos nus. E, do
alto — alma doida! — vinham-lhe os soturnos gritos roucos, por entre as sombras
da tarde que morria:
— Cão!... Cão!...
---
---
Nota:
Pedro Rabello: "Alma Alheia" (1895)
Nenhum comentário:
Postar um comentário