CASA DE ADULTÉRIO
Trinta anos há que isto foi... E
daí, há talvez trinta e cinco ou quarenta. A casa era na rua do Núncio, mais
para a dos Ciganos do que para a do Visconde do Rio Branco. Por aquele tempo
ainda esta não era do Visconde do Rio Branco. Era mais fidalga e mais simples;
— do Conde, sem mais nada. A nova denominação veio depois, com o Ventre Livre,
com as festas de 71. Já por aí se vê que foi há mais de trinta anos. Mas não
importa; a casa era na rua do Núncio.
Agora, de onde seria quem a
habitava? De 5. Paulo, diziam; mas também se dizia que era do Rio Grande.
Outros asseguravam que era de Santa Catarina, até pelos modos, quanto mais
pelos olhos pretos e pelo moreno do rosto. Seria ou não. Havia divergências em
toda a rua do Núncio, na própria rua do Conde. Uma noite, no vizinho do lado,
paredes meias, brigou-se por causa de d. Senhorinha Duarte. Foi na casa das
Machado, velhas ambas, solteiras as duas. Mana Melinha teimava que a moça era
de Porto Alegre.
— Qual Porto Alegre! Aquilo é
paulista; é cara da Aparecida...
Mana Júlia conhecia .5. Paulo.
Teimaram; acabaram por não se falar mais. A história não cogita de cousas
mínimas; se cogitasse, haveria de mencionar que, para as Machado, nunca mais
lhes chegou o momento da reconciliação.
De onde era d. Senhorinha Duarte?
Da travessa das Partilhas. Nasceu lá, por uma tempestuosa noite de março.
Restos de verão; últimas trovoadas secas.., O pai assustou-se muito, não
naquele dia; o susto veio-lhe duas semanas antes. Culpa da folhinha de Ayer. Lá
estava o aviso, muito miudinho, nestas quatro palavras, ainda mais ameaçadoras
do que miúdas:
Fortes
trovoadas
ao
Sul
A semana passou sem trovoadas, só
com o susto. Veio outra; Ayer já não cogitava de relâmpagos, nem de trovões.
Que muito é que também o pai de d. Senhorinha não cogitasse deles? E passavam
os dias. Mas, numa bela noite, lá aparecem os relâmpagos. A trovoada vinha,
estrondeante, atordoadora. D. Senhorinha veio com ela, muito peque- fina,
envolta nuns tênues panos bordados.
O pai de d. Senhorinha ainda o
não fora de ninguém mais. Tomou-a nos braços, beijou-a na boca, nos olhos, na
testa... Beijou-a muito, ao acaso. Tinha os olhos úmidos, não dizia nada.
Olhava para a filha, beijava-a, tornava a mirá-la outra vez.
— Está bom, agora deixe ela
dormir... Olhe, faça favor de mandar-me dar a alfazema.
— Ah! sim... A alfazema.
E repetia “A alfazema, a
alfazema”. Só. “A alfazema, a alfazema”. Deu uns passos, deixou-se cair no
sofá. O dia ia clareando. A comadre esperava pela alfazema. Esperava; não vinha
cousa nenhuma. E foi buscá-la ela mesma. O pai de d. Senhorinho ficou sozinho,
a dormir.
Eis aí como, por uma tempestuosa
noite de março, veio ao mundo a bela rio-grandense da travessa das Partilhas.
Cresceu, esteve no colégio, teve namorados e casou. Há aí um episódio de
viagem, não em solteira, mas depois de casada. Viagem a Pelotas... Porque, no
fundo, uma das Machado não deixava de ter a sua pontinha de razão. D.
Senhorinha esteve em Pelotas. O marido era conferente da mesa de rendas; ou por
outra, foi conferente mais tarde, depois das núpcias, talvez dois anos depois.
Antes era escriturário, 29 ou 39. E d. Senhorinha veio de Pelotas para a rua do
Núncio.
Chegaram cedo; as Machado já
estavam à janela, cumprimentaram sorrindo, muito amáveis; e ficaram a ver
entrar a mobília. Tão disparatada, tão velha! Já lhes parecia que devia ter
sido comprada em leilão.
Talvez, d. Senhorinha teve
saudade de Pelotas; mas, se as teve, deveu-as ao marido. A princípio, Duarte
era um marido modelo; ia de casa para a alfândega — estava adido à alfândega —
e saía da alfândega para casa. Mas numa certa, frígida tarde não veio; veio à
noite, às sete horas. Tinha ficado com o ministro; negócios urgentes,
relatório, o diabo! Era uma quarta-feira; no sábado foi pior. Ficou toda a
noite na rua, O ministro era incansável, parecia de ferro. Que se lhe havia de
fazer? D. Senhorinha chorou, mas não disse nada. Duarte viera às seis horas da
manhã, com o dia claro. E o relatório continuou.
O relatório morava na rua do
Hospício. Tinha cabelos castanhos, meio louros; pescoço comprido, emergindo de
rendas largas e caras. Duarte viu-o uma vez, de volta da repartição. Sorriu; o
relatório sorria também. Coitado! Sorrira já tantas vezes, para tantos
conferentes adidos... Mas Duarte chegou há meses de Pelotas. O relatório
sorria; ele foi até o canto da rua da Vala, voltou, fez um sinal... No dia seguinte
mandava lá um moleque; três dias mais tarde ele e o ministro começavam a
trabalhar juntos, pela noite adiante. O país ia ver o que era um relatório de
fazenda!
Parece que ainda se não falou
aqui do dr. J. Mendes. Tem vinte e sete anos e foi promotor no Rio Grande do
Sul. Conheceu lá o Duarte, prestou- lhe obséquios; chegou há pouco, com
licença, e freqüenta a casa de d. Senhorinha. É, porventura, um dos que lhe
dizem com os olhos o que a ela já lhe não é dado ouvir. J. Mendes descobriu o
caso do relatório. Não porque visse, mas porque lhe disseram. Aliás, não
precisava de que lhe dissessem cousa nenhuma. D. Senhorinha tem agora um par de
olheiras que contam tudo o que o marido anda fazendo; e fala com uns ares de
mártir dolorosa. Na véspera ainda, Duarte teve de organizar umas tabelas.
Serviço delicado, cousa de muita confiança. E nem jantou em casa, nem voltou
senão no dia seguinte. Esqueceu-se de que tinha convidado J. Mendes para
jantar. J. Mendes é que não esqueceu o convite, e foi. Bateu à porta, meio
trêmulo, meio receioso.
— O patrão ainda não veio, mas a
senhora está...
— É o doutor... Entre!
D. Senhorinha sorria, ao alto da
escada; ela própria vinha abrir. Mais bonita, num amplo vestido de cassa. As
olheiras estavam talvez majores; muito pouco, mas estavam, O rosto é que já não
tinha nada de mártir, nem a fala. J. Mendes estranhou a mudança; mas não se
despediu, não procurou nenhum pretexto para se ir embora. Subiu, muito trêmulo,
muito receioso. D. Senhorinha recuou um pouco, para deixá-lo passar. A alma
dela devia estar tramando alguma cousa. Foram para a sala. A criada seguia
adiante; abriu as janelas, ficou a endireitar umas jarras...
Vá dizer lá dentro que não
demorem muito o jantar... Olhe, veja se falta alguma cousa. Seu amo talvez
jante fora.
A criada ia embora, mas não foi.
Sacudiu umas flores, apanhou uns jornais caídos. Saiu enfim. O Duarte não
jantava em casa; J. Mendes achou que se devia admirar.
— Janta fora, o Duarte!?
— Janta, ou não janta. Quem sabe
lá o que ele pretende fazer? A mim, disse-me que jantava em casa; mas também o
disse ontem...
— E não veio.
— Não veio; veio hoje... Mas quem
lhe disse que ele não veio ontem?
— Ninguém... Eu não precisava de
que ninguém me dissesse; eu sei...
— Sabe o quê?
— Sei que a senhora... A senhora
agora não é muito feliz.
— Não sou? Por que não? O
Duarte...
— O Duarte, d. Senhorinha...
Escute; a senhora sabe que eu sou muito seu camarada, não é?
— É; o senhor é muito camarada de
nossa família.
— Principalmente.. .. da senhora.
— Meu, por quê? Pois não é tão
meu camarada como de meu marido?
J. Mendes não respondeu logo.
Parece mesmo que a resposta, já a entenderam os olhos de d. Senhorinha. Aquela
pergunta veio, talvez, em busca de umas palavras que ela espera desde que o fez
entrar. Mas, se J. Mendes não respondeu, ao menos chegou-se mais para ela.
Fitou-a bem em face. O. Senhorinha baixou os olhos, corou; ficou assim,
contando as tábuas do assoalho.
— A senhora sabe que eu sou mais
seu camarada do que dele.
— Não sei nada.
— Sabe, d. Senhorinha.
— Sei por quê?
J. Mendes abaixou a voz; cerrava
os lábios, as palavras saíam-lhe através do bigode, ainda perfumadas de
brilhantina:
— Lembra-se de quando estava em
Pelotas? Me perdoe; eu prometi não falar enquanto ele fosse bom para a senhora.
Mas agora não é. Lembra-se do que lhe disse em Pelotas? Nem sabe o que tenho
sofrido por sua causa, Senhorinha... Não viu que deixei tudo lá, família,
lugar, interesses, tudo? Vim só para poder estar aqui, falando com você,
ouvindo o que você diz. Para que há de ficar no Rio, maltratada, esquecida por
uma sujeita à-toa? Pensa que o Duarte ainda lhe estima? Há de ver o que ele
faz. Olhe, eu tenho um dinheiro junto; vamos viver no rio da Prata. Quer ir,
Senhorinha? Ë a sua felicidade que eu lhe estou oferecendo.
D. Senhorinha ouvia em silêncio;
ou não ouvia. Ficara muito séria, cabeça baixa, olhos fitos no assoalho. Talvez
nem sentiu que J. Mendes lhe enlaçava a cintura, nem o viu todo curvado para
ela. Mas, de súbito, estremeceu; J. Mendes apertava-a nos braços. E os ouvidos
de d. Senhorinha ouviram estas doces palavras melífluas:
— Meu bem, meu amor!
D. Senhorinha levantou a cabeça;
olhou-o. J. Mendes repetia a frase, e abanava a cabeça. O cabelo dele brilhava;
tinha-o aberto em duas pastas, encaracolado, lustroso de óleo:
— Meu bem, meu amor!
Os olhos, as narinas, a boca de
J. Mendes, tudo se abria, melífluo e doce. Não sei que cousa passou pela alma
de d. Senhorinha. Foram náuseas, se é que a alma tem náuseas. Pelos olhos sei
que lhe passou num relâmpago; talvez o mesmo que ela viu ao nascer, na travessa
das Partilhas. Deixou J. Mendes de joelhos no tapete; mal o mandou em hora. “Vá
embora, me deixe!” E correu para o quarto. Chorou; chorou muito. Não jantou nem
dormiu. Duarte, ao voltar no dia seguinte, ainda a encontrou chorando.
Perguntou o que era; não sabiam. Talvez doença.
— É possível, é... O Justino que
vá chamar um médico.
E ia saindo, mas parou à porta:
— Olhem, hoje não me esperem para
jantar.
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Nota:
Pedro Rabello: "Alma Alheia" (1895)
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