quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Pedro Rabello: "Curiosa..."

CURIOSA...


Isso de ter recebido a carta do Braga aquela que lhe estava agora no seio, muito junta à carne, ferindo-a, torturando-a com a ponta aguda do envelope — isso fazia-a estar para ali muito abstrata, sem dar atenção ao almoço, a procurar a razão por que assim procedera, quase sem ver o Bernardo, o marido, que ruminava muito pachorrentamente o seu bife.

Porque aquilo que ela praticara assim tão irrefletidamente, apenas por um bocadinho de curiosidade, poderia fazê-lo supor que ela ainda fosse a mesma que dantes. Cruzes! Pensar naquilo sempre lhe dava uns calafrios! Em outro tempo, em solteira, não lhe1teria dito nada... Mas agora! Agora era viver para os filhos, quando viessem.
Distraía-se, olhos fitos no prato, a perscrutar, a indagar de si mesma por que a recebera, àquela maldita carta. “Fora por força, curiosidade...

pensava. Nem podia ter sido outra cousa... Se era tão curiosa!

E a Cocota, muito alegre, muito satisfeita no íntimo por ter achado assim uma desculpa àquela leviandade, voltou-se para o marido. A Brígida, a criada, servia-o nesse momento. E justamente, aí estava, fora ela a culpada de tudo aquilo. Pela manhã, muito cedo, dando-se uns ares de confidente, viera trazer-lhe a carta do Braga. E aquele seu modo misterioso, aquele meio riso confidencial, aquelas duas palavras, sobretudo, tinham-lhe chamado a atenção. “Do Braga!” murmurara-lhe a Brígida, quase ao ouvjdo, entregando-lhe a carta.

A Cocota, inconscientemente, estendera-lhe a mão para recebê-la, perturbando-se toda, muito assustada, como se ele já ali estivesse a reclamar todo um mundo de promessas feitas há muito tempo. Porque com aquela carta do Braga surgia de bem fundo todo um passado de recordações. E vinham-lhe à memória as esquecidas noites de luar em que os dois, num abandono idiota de namorados românticos, se tinham enternecidamente entregue à contemplação “daquela lua que os ouvia” e que lhes fora o penhor de todos os juramentos.

Ela — a Cocota do Tavares, como a chamavam naquele tempo — tivera sempre uma certa predileção por essas cousas de poesia e de ideal. E repetidas vezes, quando a lua, muito alta, banhava a rua de uma pálida claridade, divertira-se com o fantasiar na massa escura das árvores, em cada perfil escuro recortado pela claridade do luar, namorados errantes, que se ficavam ali, eternamente a contempla-la como a uma beldade estranha, arrancados de muito longe aos amorosos beijos das noivas, unicamente para vê-la, unicamente para admirá-la.

Foi por esse tempo que o Braga apareceu. Tipo anêmico, longas melenas pretas, um pálido ar doentio, o poético ajudante de guarda-livros agradou-lhe para logo. E a Cocota que sonhara entrevistas à noite, docemente enlaçados os dois, a passearem sob a ramaria frondosa das árvores, teve-as ali mesmo, num telheiro para onde o pai, como taverneiro muito prático, atirava os barris vazios de banha e os jacás inda rescendendo um forte odor de toucinho.

Esse cheiro de toucinho, infiltrando-se-lhes pelo nariz, justamente quando lhes seria preferível qualquer outro mais suavemente doce, mais deliciosamente romântico, esse não lhes conseguiu lembrar o prosaísmo da vida... Triste cegueira, a dos namorados! Encarregou-se disso o Tavares, surpreendendo-os uma noite, e tosando-o a valer. “Ainda tenho bem vivas as recordações. daquela noite. . .“ — escrevera o Braga à Cocota, oito dias depois. Pudera! E continuava”.., mas acredita que se te não puder encontrar nunca mais, breve, muito breve, o meu corpo há de rolar inanimado junto às penedias abruptas do Pão de Açúcar”.

O Pão de Açúcar fora metido ali unicamente para dar a cor local, O incoerente período, esse copiara-o o Braga a um livro que lhe compunha toda a biblioteca. Compreende-se que tamanho apuro de redação não estava muito a caráter em um simples ajudante de guarda-livros.

Valeu-lhe a sinceridade do momento. Do momento, porque nem breve, nem depois, nem nunca mais, o Braga teve a lembrança do suicídio. Agora voltava, como parecia. “E não é que voltou mais bonito!” — garantira a Brígida à Cocota. Mais forte, mais corado... Qual! A ama que o visse, como ela própria o tinha visto com aqueles que a terra havia de comer.

E gabara-o à Cocota, metendo-lho à cara, muito desejosa no íntimo de que aquilo fosse adiante, muito satisfeita por entrar assim nos segredos da ama, interessando-se pela resposta. Mas a Cocota parecera indiferente. “Não lhe diga nada por ora” — pediu. “Agora as cousas mudaram, e muito. Eu também não sou nenhuma idiota.” E recebera a carta... Com certeza que por curiosidade; se era tão curiosa!

O Bernardo descendo para o almoço, em colete e chinelos, obrigara-a a escondê-la por dentro do corpinho. E à mesa, quase inconsciente, aquilo tudo a trabalhar-lhe no cérebro, sentira-a sempre, ao curvar-se. A maldita carta lá estava, no seio, muito junta à carne, ferindo-a, torturando-a com a ponta aguda do envelope.

O marido, esse é que não tinha cuidados a trabalharem-lhe na bola. Mas, de repente, levantando a cabeça, muito distraído, voltou-se para a Cocota:

— Sabes, ó...

E calou-se, como se lhe tivesse esquecido o nome. E entretanto a Cocota ouvira-o, notara-lhe a indecisão. Até aí absorta, agora que achava uma desculpa à sua leviandade naquela curiosidade tão natural, voltara-se para o marido. E chegara ainda a tempo de notar-lhe aquilo. “Pois em três meses pode esquecer-me o nome!” — admirara-se ela. E confrontando esse incidente com a constância do outro que ainda a procurava, que ainda lhe escrevia, o resultado do confronto não foi lá muito favorável ao Bernardo.

Também — e continuava o raciocínio — também quem o mandara casar-se com ela? Devia ter compreendido que ela não poderia esquecer assim o outro. E daí, talvez tivesse compreendido mesmo. “Pois que se queixe de si!” — concluía. Mas do íntimo vinham-lhe uns restos de honestidade. Lá porque o marido era um estafermo — porque ele o era, e bem grande — lá por isso não se seguia que ela fosse dar ouvidos ao primeiro que aparecesse. Apesar de que o Braga não estava nessas condições. Fora seu noivo, ela amara-o muito...

Disso estava ela bem certa. Se o amara! Ainda hoje, por sentir lá dentro no seio, ferindo-a, torturando-a com a ponta aguda do envelope, aquela carta que era dele, que lhe vinha lembrar tudo isso que já devera ter morrido para si; ainda hoje só ela e Deus sabiam o que lhe estava agora palpitando no coração.

O Bernardo tomava pachorrentamente o seu café. Tirassem-lhe tudo — costumava ele dizer — tirassem-lhe tudo, mas que não lhe tirassem o seu cafezinho! E apreciava-o, bebendo-o aos goles, dando estalidos com a língua, ao mesmo tempo que a Brígida tirava os pratos servidos da mesa.

A boa da Brígida! Muito atarefada, muito diligente, parecia querer mostrar que, apesar dos anos, ainda podia merecer a confiança da sua rica amazinha. E tinha para a Cocota sorrisos de inteligência, e mostrava-lhe com os olhos o estafermo do Bernardo, ocupado em remexer o café no fundo da xícara, para aproveitar todo o açúcar.

Por trás, ao alto da parede, houve um pequeno ruído metálico de cilindro que desanda, e o relógio começou a bater nove horas.

— Ora aqui está, é isto! — fez o Bernardo, levantando-se.

Já lá se iam as nove; nem lhe restava mais um minuto, para estar a sua vontade. Malditas manhãs, aquelas, que passavam tão depressa! E resmungava, enfiando o paletó que tinha estado ali perto, dependurado do encosto de uma cadeira.

A Cocota levantava-se também. Não se esqueresse de trazer o chá — recomendava-lhe. Trouxesse-o lá da cidade, já que o dali era uma peste.

E curvava-se para a mesa, muito cuidadosa, a reunir toda a louça ao redor do bule de metal prateado...

Mas de repente:

— Ah! — gritou, surpresa.

E como o Bernardo a olhasse tolamente, sem compreender, numa das mãos a botina que se preparava para calçar — “Que desastrada que eu sou” — desculpou-se. “Que cabeça a minha!” Não se lembrara de que o bule devia estar quente, e daí... Ele que visse; felizmente nem o sinal! Mas na realidade o que a fizera gritar assim, de súbito, fora aquela carta que lhe estava no seio, muito junta à carne, ferindo-a torturando-a com a ponta aguda do envelope.

— Até logo, hein! — gritou-lhe o marido.

E saiu, batendo a porta para que fechasse bem.

A Brígida adiantou-se então. A ama que lhe desse uma resposta para ele — pedia. Coitadito! Até parecia capaz de morrer, se a não visse. Olhasse que ela, a respeito de segredos... Aquilo era um poço!

E não era porque tivesse algum interesse em vê-los a aproveitar a sua mocidade; é que lhe doía lá dentro saber de uma criaturinha de Deus que até se parecia mirrar de paixão.

E a Cocota interessava-se pelo Braga... Se era tão curiosa! Era então verdade? A Brígida que fosse franca. Não que ela desejasse muito vê-lo, que até a carta ainda lá estava fechadinha como a recebera; mas que lhe dissesse tudo. Ele perguntara muito por ela, não? Parecia muito desejoso de a encontrar, não era verdade?

E a Brígida assegurara que era. Coitadito! Estava de meter piedade à gente. E tomava umas certas liberdades de cúmplice. Punha-lhe a mão no ombro. Andasse lá, a felizarda! Porque nem todas tinham a felicidade de encontrar assim uma Brígida tão resolvida a fazer o sacriTício da sua tranqüilidade para comodidade de ambos.

Calculava já o que o negócio lhe poderia render. A ama que a ouvisse e que não tivesse cuidados pedia. Com franqueza ela nunca pudera gostar do patrão. Achava-o assim meio idiota, meio impertinente; muito metido consigo... Palavra de Brígida, o casamento fora uma desgraça para a ama! ora se fora!

Teve de dar tréguas àquela tagarelice. A ama pedia-lhe que fosse passar a vassoura na sala. Na véspera, ordenara-lhe cousa igual. E ajuntava — “Você sabe... Pode vir alguém de fora. . .“ Ela então iria ler a carta, e depois...

E a Brígida saiu, e lá foi a cantarolar para a sala. A Cocota entrou no quarto. Aí, sentada à beira da cama, tirou do seio a carta do Braga, carta muito perfumada, rescendendo muito fortemente a violetas.

Era uma longa história de mágoas, a narração de uma vida de prantos, vivida muito longe, lá no ignorado retiro dos que sofrem. E aí, mais que todas, sorria-lhe aquela imagem querida, tantas vezes entrevista em seus sonhos, tantas vezes quimericamente apertada em seus braços.

Desfiava por aí além todo um enorme rosário de padecimentos. Vinham depois as alusões. Que nunca pudera esquecer aquelas entrevistas de outrora. Como eles tinham sido felizes ali, naquele delicioso telheiro que se lhes assemelhara ao Paraíso. E achava-o delicioso! Delicioso, O abandonado telheiro do Tavares, para onde ele atirava os barris vazios de banha e os jacás inda rescendendo uni forte odor de toucinho!

Relembrava também a história da sova. Chamava-lhe “os tormentos que por ela tinha padecido; isso que fora o começo do seu glorioso martírio”. Mas a Cocotinha que tivesse fé em Nossa Senhora, e que esperasse, porque a felicidade, quem a dá é Nosso Senhor Jesus Cristo...

Sabe, sabe, minha ama! — gritou de repente a Brígida, entrando arrebatadamente pelo quarto. — Estão aí as Travassos; as Travassos, nem mais nem menos...

A Cocota só teve tempo de abrir uma gaveta, guardar lá a carta, e sair, porque as outras, as três, já entravam muito sem cerimônia, ameaçando ir até à cozinha se não a encontrassem.

— Gentes! Como estás pálida, menina! — fez a mais moça, beijando-a fortemente, apertando-a muito nos braços, querendo mostrar saúde.

A outra, a Julinha, abraçou-a por sua vez, e depois a mais velha, a Travassos, viúva que era de um chefe de seção aposentado, ainda célebre pela surdez nunca excedida.

Foram para a sala. Aí, a mais moça, a Gertrudes, explicou que tinham vindo da rua do Ouvidor. Como a Cocota talvez já soubesse, andavam a fazer compras para o grande prêmio do Derby. Porque elas não perdiam corrida. Aquilo até já era a predileção do high-lif e. Ela própria que lhe falara, então, já estava uma.., uma...

E voltando-se para a Julinha:

— Como é mesmo que se diz, Juju? Tu sabes... Quando uma moça gosta muito de corridas?

— Ah! sim... Sportwoman.

— Exatamente. Pois ela própria já estava uma sportwoman de truz.

E continuava. Na volta, ao tomar o bonde, a Juju, que era muito míope, enganara-se de tabuleta. De modo que aí estavam elas, longe de casa, e com os pés num estado, num estado... Ah! a Cocota que imaginasse!

Mas a Cocota garantia que podiam vir sempre, seriam sempre muito bem recebidas. A d. Clotilde é que talvez não gostasse muito de ir lá... Casa de pobre...

E a Travassos, a viúva, muito depressa:

— Cruzes, menina! Pois eu posso lá desgostar- me daqui! Não, que comigo vale mais o ser recebida de cara alegre do que andar a gente a refestelar-se em divã, e a dona da casa a mandar pelos criados que ponham sal ao braseiro!

— Aí está — interrompeu a Gerturdes — a tua cara alegre é que é a great a.ttraction daqui.

E a Cocota agradecia, sem ter compreendido a great attraction.

Quanto a ela ainda lhe restava um bocadinho da educação que sua mãe lhe dera, graças a Deus. Quando quisessem era só bater à porta. A casa era aquilo que ali estava — pobrezinha, é verdade; mas o pouco que possuíam era de todos, e não se pediam agradecimentos. Viessem; voltassem mais a miúdo...

A Julinha permanecia calada, a olhar para os quadros, apertando muito os olhos. Só de vez em quando falava ao ouvido da velha, impaciente. “Espera, filha — dizia-lhe a Travassos, e recostava-se mais e mais no sofá. Porque ela — garantia à Cocota, — não era muito de visitas. Desde que o seu defunto se fora que não tivera mais vontade de sair da casa. Era aquilo que se estava vendo. Sempre de preto, qualquer cousa a fatigava daquele modo...

— Ah! É verdade, Juju! — lembrou a Cocota.

— Disseram-me que te casas?

A Travassos, a viúva, sem deixar a palavra, explicou logo que sim. Já era cousa decidida. Um partidão, filha! E que rapaz simpático! Ela não era de muitas simpatias; pois aquilo fora olhar-lhe para a cara, e ficar logo caidinha pelo genro. Imaginasse a Cocota, quando se dera aquilo com ela, o que se não teria dado com a Juju. Verdade fosse que falavam muito dele no sítio. Mas inveja, pura inveja; unicamente porque o rapaz tinha dinheiro!

— Ah! tem dinheiro!

E a Cocota compreendia perfeitamente o entusiasmo da velha. Tinha dinheiro! Mas aí estava a razão de toda a brusca simpatia da Travassos por ele. A Cocota conhecia-a muito bem. Aquela era ambiciosa como nenhuma. Ninguém melhor do que (‘ia farejava um casamento rico. E ouvindo-a discorrer tão entusiasticamente sobre esse noivo da Juju, vinha-lhe à idéia o entusiasmo do Tavares, falando-lhe do Bernardo, inculcando-o para seu marido, a afirmar que ele era “um partidão” como a Travassos não se cansava de repetir; e revoltava-se no íntimo contra esse modo de dispor tão livremente dos filhos como de um objeto que pode trazer algum lucro.

Não é exato, não tenho razão? — perguntava-lhe a Travassos pela terceira vez, sem que ela a ouvisse.

E a Cocota, arrancada àquelas reflexões, que até lhe davam vontade de enganar o marido para se vingar de tudo quanto tinham feito perder com o seu casamento, voltou-se para a Travassos.

— É sim — garantiu, um quase nada irônica.

— Já se tem até provado que esses é que são os casamentos melhores. A Juju que não deixe fugir o noivo...

— Qual fugir, filha. Agora então!

E a Travassos continuava, O rapaz já estava pelo beiço. Ah! mas também que trabalho para lhe não desagradar! Ela então — levasse-o Deus em conta! — não tinha descanso nenhum. E senão a Cocota que ouvisse. — Enquanto os dois estavam na sala, enquanto a Gertrudes ficava ao piano, ia ela tratar do chá. Ora, aquilo na sua idade... Verdade fosse — concluía — que ela só lhe desejava mostrar que não era para ali nenhuma sogra dos jornais.

— Sim! — fez então a Gertrudes. — Isso pode ser muita cousa... Mas então eu? Eu que hei de estar todas as noites ao piano, para lhes amenizar o tête-à-tête?

Entretanto, como a Juju falasse desta vez muito decidida ao ouvido da velha, levantando-se, pronta para ir embora, a Travassos acedeu.

— Sim, vamos... E voltando-se para a Coco— ta: —. Vês, filha? Ainda uma pessoa não teve tempo de descansar um bocado, e já lhe estão a gritar que ande, que vá para casa... Um fadário, um verdadeiro fadário!

— Qual — atenuava a Cocota. — O que é necessário é ter paciência, fazer cara alegre.
E depois, tu compreendes... — interrompeu a Gertrudes, — Noblesse oblige...

Mas a Cocota não compreendia. Detestava mesmo na Gertrudes aquele sestro de estar a repetir tudo quanto lhe caía ao alcance da mão, unicamente para ficar acima de outras. E, como a Travassos fosse para beijá-la, voltou o rosto para o outro lado, muito enjoada pelo mau hálito da velha.

Houve ainda uma troca de beijos, abraçaram- se; a Getrudes foi a um dos canteiros do jardim buscar uma rosa que prendeu triunfantemente ao peito, e saíram, rindo, gargalhando umas tantas recomendações que mutuamente se faziam, e agitando ainda de fora os lenços, quase a desaparecerem ocultas pelo muro enegrecido do tempo.

A Cocota ficara de pé, no limiar da porta. Agora que se via só não precisava disfarçar o mau efeito que lhe tinha produzido todo o falatório da Travassos a propósito daquele noivo da Juju. Tinha dinheiro! Mas então era também como o outro, como o Bernardo?
E porque aquilo a tivesse aborrecido, porque aquilo a tivesse incomodado dando-lhe o secreto desejo de se vingar de todos, entrou para a sala. Justamente, vinha-lhe à memória a carta do Braga, aquela que lhe parecia sentir ainda no seio, muito junta a carne, ferindo-a, torturando-a com a ponta aguda do envelope. Ali, na meia escuridão produzida pelas janelas cerradas, poderia reflexionar mais à vontade.

E, entretanto, alguma cousa como um perfume forte e penetrante posto ali perto fazia-lhe mal. Era um lenço da Gertrudes, esquecido junto de uma cadeira, muito fortemente impregnado de heliotrópio. A Gertrudes adorava esse cheiro; ela é que nunca o pudera tolerar; dava-lhe dores de cabeça, fazia-a pensar em cousas tão extravagantes!

E quase tonta, sentindo oscilar-lhe a cabeça,  levantou-se para pô-lo fora. Mas a Brígida, a criada, entrava nesse momento. Vagarosa, olhando misteriosamente em redor, depois de fechar bem as janelas, tornando ainda mais asfixiante a temperatura da sala, contou-lhe que o Braga viera pouco antes; como as Travassos estivessem na sala, ela tinha-o feito demorar-se lá dentro; agora vinha preveni-la, vinha saber se a ama sempre o queria receber. Porque ele lá estava, doido, ansioso, sôfrego por vê-la.

— O Braga ali, tão perto!

Isto há tanto tempo murmurado no íntimo, isto no íntimo há tanto tempo desejado, punha-a trêmula, feliz por sabê-lo perto, sequiosa de o ter ao seu lado, respirando o mesmo ar que ela, ébrio da- aquela mesma embriaguez. E sem ouvir mais a Brígida, sem entender o que ela lhe perguntava, deixou pender maquinalmente a cabeça, parecendo aceder.

O calor abafava, na escuridão quase inteira da sala. Aquele maldito perfume do heliotrópio fazia- lhe arder a cabeça. Felizmente a Brígida fora-se; do contrário nem ela própria sabia o que lhe teria acontecido.

E deixava-se estar presa daquela doce embriaguez dos sentidos, e ia quase a adormecer, feliz arfando-lhe o coração, quimericamente transportada àquele tempo das entrevistas ao luar, quando sentiu que a tomavam nos braços, apertando-a muito, esmagando-a quase, beijando-a por todo o rosto, mesmo tempo que ela se deixava arrebatar, muito curiosa de saber para onde a levavam assim, trêmula, ofegante, tão deliciosamente embriagada.

E enquanto o Braga desaparecia levando-a pela porta encortinada do seu quarto de núpcias, do outro lado o olhar vesgo, o olhar hipócrita da Brígida aparecia colado à vidraça, flamejante, curiosamente terrível, procurando devassar até o mais íntimo segredo da alcova...


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Nota:
Pedro Rabello: "Alma Alheia" (1895)

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