CURIOSA...
Isso de ter recebido a carta do
Braga aquela que lhe estava agora no seio, muito junta à carne, ferindo-a,
torturando-a com a ponta aguda do envelope — isso fazia-a estar para ali muito
abstrata, sem dar atenção ao almoço, a procurar a razão por que assim
procedera, quase sem ver o Bernardo, o marido, que ruminava muito
pachorrentamente o seu bife.
Porque aquilo que ela praticara
assim tão irrefletidamente, apenas por um bocadinho de curiosidade, poderia
fazê-lo supor que ela ainda fosse a mesma que dantes. Cruzes! Pensar naquilo
sempre lhe dava uns calafrios! Em outro tempo, em solteira, não lhe1teria dito
nada... Mas agora! Agora era viver para os filhos, quando viessem.
Distraía-se, olhos fitos no
prato, a perscrutar, a indagar de si mesma por que a recebera, àquela maldita
carta. “Fora por força, curiosidade...
pensava. Nem podia ter sido outra
cousa... Se era tão curiosa!
E a Cocota, muito alegre, muito
satisfeita no íntimo por ter achado assim uma desculpa àquela leviandade,
voltou-se para o marido. A Brígida, a criada, servia-o nesse momento. E
justamente, aí estava, fora ela a culpada de tudo aquilo. Pela manhã, muito
cedo, dando-se uns ares de confidente, viera trazer-lhe a carta do Braga. E
aquele seu modo misterioso, aquele meio riso confidencial, aquelas duas
palavras, sobretudo, tinham-lhe chamado a atenção. “Do Braga!” murmurara-lhe a
Brígida, quase ao ouvjdo, entregando-lhe a carta.
A Cocota, inconscientemente,
estendera-lhe a mão para recebê-la, perturbando-se toda, muito assustada, como
se ele já ali estivesse a reclamar todo um mundo de promessas feitas há muito
tempo. Porque com aquela carta do Braga surgia de bem fundo todo um passado de
recordações. E vinham-lhe à memória as esquecidas noites de luar em que os
dois, num abandono idiota de namorados românticos, se tinham enternecidamente
entregue à contemplação “daquela lua que os ouvia” e que lhes fora o penhor de
todos os juramentos.
Ela — a Cocota do Tavares, como a
chamavam naquele tempo — tivera sempre uma certa predileção por essas cousas de
poesia e de ideal. E repetidas vezes, quando a lua, muito alta, banhava a rua
de uma pálida claridade, divertira-se com o fantasiar na massa escura das
árvores, em cada perfil escuro recortado pela claridade do luar, namorados
errantes, que se ficavam ali, eternamente a contempla-la como a uma beldade
estranha, arrancados de muito longe aos amorosos beijos das noivas, unicamente
para vê-la, unicamente para admirá-la.
Foi por esse tempo que o Braga
apareceu. Tipo anêmico, longas melenas pretas, um pálido ar doentio, o poético
ajudante de guarda-livros agradou-lhe para logo. E a Cocota que sonhara
entrevistas à noite, docemente enlaçados os dois, a passearem sob a ramaria
frondosa das árvores, teve-as ali mesmo, num telheiro para onde o pai, como
taverneiro muito prático, atirava os barris vazios de banha e os jacás inda
rescendendo um forte odor de toucinho.
Esse cheiro de toucinho,
infiltrando-se-lhes pelo nariz, justamente quando lhes seria preferível
qualquer outro mais suavemente doce, mais deliciosamente romântico, esse não
lhes conseguiu lembrar o prosaísmo da vida... Triste cegueira, a dos namorados!
Encarregou-se disso o Tavares, surpreendendo-os uma noite, e tosando-o a valer.
“Ainda tenho bem vivas as recordações. daquela noite. . .“ — escrevera o Braga
à Cocota, oito dias depois. Pudera! E continuava”.., mas acredita que se te não
puder encontrar nunca mais, breve, muito breve, o meu corpo há de rolar
inanimado junto às penedias abruptas do Pão de Açúcar”.
O Pão de Açúcar fora metido ali
unicamente para dar a cor local, O incoerente período, esse copiara-o o Braga a
um livro que lhe compunha toda a biblioteca. Compreende-se que tamanho apuro de
redação não estava muito a caráter em um simples ajudante de guarda-livros.
Valeu-lhe a sinceridade do
momento. Do momento, porque nem breve, nem depois, nem nunca mais, o Braga teve
a lembrança do suicídio. Agora voltava, como parecia. “E não é que voltou mais
bonito!” — garantira a Brígida à Cocota. Mais forte, mais corado... Qual! A ama
que o visse, como ela própria o tinha visto com aqueles que a terra havia de
comer.
E gabara-o à Cocota, metendo-lho
à cara, muito desejosa no íntimo de que aquilo fosse adiante, muito satisfeita
por entrar assim nos segredos da ama, interessando-se pela resposta. Mas a
Cocota parecera indiferente. “Não lhe diga nada por ora” — pediu. “Agora as
cousas mudaram, e muito. Eu também não sou nenhuma idiota.” E recebera a
carta... Com certeza que por curiosidade; se era tão curiosa!
O Bernardo descendo para o
almoço, em colete e chinelos, obrigara-a a escondê-la por dentro do corpinho. E
à mesa, quase inconsciente, aquilo tudo a trabalhar-lhe no cérebro, sentira-a
sempre, ao curvar-se. A maldita carta lá estava, no seio, muito junta à carne,
ferindo-a, torturando-a com a ponta aguda do envelope.
O marido, esse é que não tinha
cuidados a trabalharem-lhe na bola. Mas, de repente, levantando a cabeça, muito
distraído, voltou-se para a Cocota:
— Sabes, ó...
E calou-se, como se lhe tivesse
esquecido o nome. E entretanto a Cocota ouvira-o, notara-lhe a indecisão. Até
aí absorta, agora que achava uma desculpa à sua leviandade naquela curiosidade
tão natural, voltara-se para o marido. E chegara ainda a tempo de notar-lhe
aquilo. “Pois em três meses pode esquecer-me o nome!” — admirara-se ela. E
confrontando esse incidente com a constância do outro que ainda a procurava,
que ainda lhe escrevia, o resultado do confronto não foi lá muito favorável ao
Bernardo.
Também — e continuava o raciocínio
— também quem o mandara casar-se com ela? Devia ter compreendido que ela não
poderia esquecer assim o outro. E daí, talvez tivesse compreendido mesmo. “Pois
que se queixe de si!” — concluía. Mas do íntimo vinham-lhe uns restos de
honestidade. Lá porque o marido era um estafermo — porque ele o era, e bem
grande — lá por isso não se seguia que ela fosse dar ouvidos ao primeiro que
aparecesse. Apesar de que o Braga não estava nessas condições. Fora seu noivo,
ela amara-o muito...
Disso estava ela bem certa. Se o
amara! Ainda hoje, por sentir lá dentro no seio, ferindo-a, torturando-a com a
ponta aguda do envelope, aquela carta que era dele, que lhe vinha lembrar tudo
isso que já devera ter morrido para si; ainda hoje só ela e Deus sabiam o que
lhe estava agora palpitando no coração.
O Bernardo tomava
pachorrentamente o seu café. Tirassem-lhe tudo — costumava ele dizer —
tirassem-lhe tudo, mas que não lhe tirassem o seu cafezinho! E apreciava-o,
bebendo-o aos goles, dando estalidos com a língua, ao mesmo tempo que a Brígida
tirava os pratos servidos da mesa.
A boa da Brígida! Muito
atarefada, muito diligente, parecia querer mostrar que, apesar dos anos, ainda
podia merecer a confiança da sua rica amazinha. E tinha para a Cocota sorrisos
de inteligência, e mostrava-lhe com os olhos o estafermo do Bernardo, ocupado
em remexer o café no fundo da xícara, para aproveitar todo o açúcar.
Por trás, ao alto da parede,
houve um pequeno ruído metálico de cilindro que desanda, e o relógio começou a
bater nove horas.
— Ora aqui está, é isto! — fez o
Bernardo, levantando-se.
Já lá se iam as nove; nem lhe
restava mais um minuto, para estar a sua vontade. Malditas manhãs, aquelas, que
passavam tão depressa! E resmungava, enfiando o paletó que tinha estado ali
perto, dependurado do encosto de uma cadeira.
A Cocota levantava-se também. Não
se esqueresse de trazer o chá — recomendava-lhe. Trouxesse-o lá da cidade, já
que o dali era uma peste.
E curvava-se para a mesa, muito
cuidadosa, a reunir toda a louça ao redor do bule de metal prateado...
Mas de repente:
— Ah! — gritou, surpresa.
E como o Bernardo a olhasse
tolamente, sem compreender, numa das mãos a botina que se preparava para calçar
— “Que desastrada que eu sou” — desculpou-se. “Que cabeça a minha!” Não se
lembrara de que o bule devia estar quente, e daí... Ele que visse; felizmente
nem o sinal! Mas na realidade o que a fizera gritar assim, de súbito, fora
aquela carta que lhe estava no seio, muito junta à carne, ferindo-a
torturando-a com a ponta aguda do envelope.
— Até logo, hein! — gritou-lhe o
marido.
E saiu, batendo a porta para que
fechasse bem.
A Brígida adiantou-se então. A
ama que lhe desse uma resposta para ele — pedia. Coitadito! Até parecia capaz
de morrer, se a não visse. Olhasse que ela, a respeito de segredos... Aquilo
era um poço!
E não era porque tivesse algum
interesse em vê-los a aproveitar a sua mocidade; é que lhe doía lá dentro saber
de uma criaturinha de Deus que até se parecia mirrar de paixão.
E a Cocota interessava-se pelo
Braga... Se era tão curiosa! Era então verdade? A Brígida que fosse franca. Não
que ela desejasse muito vê-lo, que até a carta ainda lá estava fechadinha como
a recebera; mas que lhe dissesse tudo. Ele perguntara muito por ela, não?
Parecia muito desejoso de a encontrar, não era verdade?
E a Brígida assegurara que era.
Coitadito! Estava de meter piedade à gente. E tomava umas certas liberdades de
cúmplice. Punha-lhe a mão no ombro. Andasse lá, a felizarda! Porque nem todas
tinham a felicidade de encontrar assim uma Brígida tão resolvida a fazer o sacriTício
da sua tranqüilidade para comodidade de ambos.
Calculava já o que o negócio lhe
poderia render. A ama que a ouvisse e que não tivesse cuidados pedia. Com
franqueza ela nunca pudera gostar do patrão. Achava-o assim meio idiota, meio
impertinente; muito metido consigo... Palavra de Brígida, o casamento fora uma
desgraça para a ama! ora se fora!
Teve de dar tréguas àquela
tagarelice. A ama pedia-lhe que fosse passar a vassoura na sala. Na véspera,
ordenara-lhe cousa igual. E ajuntava — “Você sabe... Pode vir alguém de fora. .
.“ Ela então iria ler a carta, e depois...
E a Brígida saiu, e lá foi a
cantarolar para a sala. A Cocota entrou no quarto. Aí, sentada à beira da cama,
tirou do seio a carta do Braga, carta muito perfumada, rescendendo muito
fortemente a violetas.
Era uma longa história de mágoas,
a narração de uma vida de prantos, vivida muito longe, lá no ignorado retiro
dos que sofrem. E aí, mais que todas, sorria-lhe aquela imagem querida, tantas
vezes entrevista em seus sonhos, tantas vezes quimericamente apertada em seus
braços.
Desfiava por aí além todo um
enorme rosário de padecimentos. Vinham depois as alusões. Que nunca pudera
esquecer aquelas entrevistas de outrora. Como eles tinham sido felizes ali,
naquele delicioso telheiro que se lhes assemelhara ao Paraíso. E achava-o
delicioso! Delicioso, O abandonado telheiro do Tavares, para onde ele atirava
os barris vazios de banha e os jacás inda rescendendo uni forte odor de toucinho!
Relembrava também a história da
sova. Chamava-lhe “os tormentos que por ela tinha padecido; isso que fora o
começo do seu glorioso martírio”. Mas a Cocotinha que tivesse fé em Nossa
Senhora, e que esperasse, porque a felicidade, quem a dá é Nosso Senhor Jesus
Cristo...
Sabe, sabe, minha ama! — gritou
de repente a Brígida, entrando arrebatadamente pelo quarto. — Estão aí as
Travassos; as Travassos, nem mais nem menos...
A Cocota só teve tempo de abrir
uma gaveta, guardar lá a carta, e sair, porque as outras, as três, já entravam
muito sem cerimônia, ameaçando ir até à cozinha se não a encontrassem.
— Gentes! Como estás pálida, menina!
— fez a mais moça, beijando-a fortemente, apertando-a muito nos braços,
querendo mostrar saúde.
A outra, a Julinha, abraçou-a por
sua vez, e depois a mais velha, a Travassos, viúva que era de um chefe de seção
aposentado, ainda célebre pela surdez nunca excedida.
Foram para a sala. Aí, a mais
moça, a Gertrudes, explicou que tinham vindo da rua do Ouvidor. Como a Cocota
talvez já soubesse, andavam a fazer compras para o grande prêmio do Derby.
Porque elas não perdiam corrida. Aquilo até já era a predileção do high-lif e.
Ela própria que lhe falara, então, já estava uma.., uma...
E voltando-se para a Julinha:
— Como é mesmo que se diz, Juju?
Tu sabes... Quando uma moça gosta muito de corridas?
— Ah! sim... Sportwoman.
— Exatamente. Pois ela própria já
estava uma sportwoman de truz.
E continuava. Na volta, ao tomar
o bonde, a Juju, que era muito míope, enganara-se de tabuleta. De modo que aí
estavam elas, longe de casa, e com os pés num estado, num estado... Ah! a
Cocota que imaginasse!
Mas a Cocota garantia que podiam
vir sempre, seriam sempre muito bem recebidas. A d. Clotilde é que talvez não
gostasse muito de ir lá... Casa de pobre...
E a Travassos, a viúva, muito
depressa:
— Cruzes, menina! Pois eu posso
lá desgostar- me daqui! Não, que comigo vale mais o ser recebida de cara alegre
do que andar a gente a refestelar-se em divã, e a dona da casa a mandar pelos
criados que ponham sal ao braseiro!
— Aí está — interrompeu a
Gerturdes — a tua cara alegre é que é a great
a.ttraction daqui.
E a Cocota agradecia, sem ter
compreendido a great attraction.
Quanto a ela ainda lhe restava um
bocadinho da educação que sua mãe lhe dera, graças a Deus. Quando quisessem era
só bater à porta. A casa era aquilo que ali estava — pobrezinha, é verdade; mas
o pouco que possuíam era de todos, e não se pediam agradecimentos. Viessem;
voltassem mais a miúdo...
A Julinha permanecia calada, a
olhar para os quadros, apertando muito os olhos. Só de vez em quando falava ao
ouvido da velha, impaciente. “Espera, filha — dizia-lhe a Travassos, e
recostava-se mais e mais no sofá. Porque ela — garantia à Cocota, — não era
muito de visitas. Desde que o seu defunto se fora que não tivera mais vontade
de sair da casa. Era aquilo que se estava vendo. Sempre de preto, qualquer
cousa a fatigava daquele modo...
— Ah! É verdade, Juju! — lembrou
a Cocota.
— Disseram-me que te casas?
A Travassos, a viúva, sem deixar
a palavra, explicou logo que sim. Já era cousa decidida. Um partidão, filha! E
que rapaz simpático! Ela não era de muitas simpatias; pois aquilo fora
olhar-lhe para a cara, e ficar logo caidinha pelo genro. Imaginasse a Cocota,
quando se dera aquilo com ela, o que se não teria dado com a Juju. Verdade
fosse que falavam muito dele no sítio. Mas inveja, pura inveja; unicamente
porque o rapaz tinha dinheiro!
— Ah! tem dinheiro!
E a Cocota compreendia
perfeitamente o entusiasmo da velha. Tinha dinheiro! Mas aí estava a razão de
toda a brusca simpatia da Travassos por ele. A Cocota conhecia-a muito bem.
Aquela era ambiciosa como nenhuma. Ninguém melhor do que (‘ia farejava um
casamento rico. E ouvindo-a discorrer tão entusiasticamente sobre esse noivo da
Juju, vinha-lhe à idéia o entusiasmo do Tavares, falando-lhe do Bernardo,
inculcando-o para seu marido, a afirmar que ele era “um partidão” como a
Travassos não se cansava de repetir; e revoltava-se no íntimo contra esse modo
de dispor tão livremente dos filhos como de um objeto que pode trazer algum
lucro.
Não é exato, não tenho razão? —
perguntava-lhe a Travassos pela terceira vez, sem que ela a ouvisse.
E a Cocota, arrancada àquelas
reflexões, que até lhe davam vontade de enganar o marido para se vingar de tudo
quanto tinham feito perder com o seu casamento, voltou-se para a Travassos.
— É sim — garantiu, um quase nada
irônica.
— Já se tem até provado que esses
é que são os casamentos melhores. A Juju que não deixe fugir o noivo...
— Qual fugir, filha. Agora então!
E a Travassos continuava, O rapaz
já estava pelo beiço. Ah! mas também que trabalho para lhe não desagradar! Ela
então — levasse-o Deus em conta! — não tinha descanso nenhum. E senão a Cocota
que ouvisse. — Enquanto os dois estavam na sala, enquanto a Gertrudes ficava ao
piano, ia ela tratar do chá. Ora, aquilo na sua idade... Verdade fosse —
concluía — que ela só lhe desejava mostrar que não era para ali nenhuma sogra
dos jornais.
— Sim! — fez então a Gertrudes. —
Isso pode ser muita cousa... Mas então eu? Eu que hei de estar todas as noites
ao piano, para lhes amenizar o tête-à-tête?
Entretanto, como a Juju falasse
desta vez muito decidida ao ouvido da velha, levantando-se, pronta para ir
embora, a Travassos acedeu.
— Sim, vamos... E voltando-se
para a Coco— ta: —. Vês, filha? Ainda uma pessoa não teve tempo de descansar um
bocado, e já lhe estão a gritar que ande, que vá para casa... Um fadário, um
verdadeiro fadário!
— Qual — atenuava a Cocota. — O
que é necessário é ter paciência, fazer cara alegre.
E depois, tu compreendes... —
interrompeu a Gertrudes, — Noblesse
oblige...
Mas a Cocota não compreendia.
Detestava mesmo na Gertrudes aquele sestro de estar a repetir tudo quanto lhe
caía ao alcance da mão, unicamente para ficar acima de outras. E, como a
Travassos fosse para beijá-la, voltou o rosto para o outro lado, muito enjoada
pelo mau hálito da velha.
Houve ainda uma troca de beijos,
abraçaram- se; a Getrudes foi a um dos canteiros do jardim buscar uma rosa que
prendeu triunfantemente ao peito, e saíram, rindo, gargalhando umas tantas
recomendações que mutuamente se faziam, e agitando ainda de fora os lenços,
quase a desaparecerem ocultas pelo muro enegrecido do tempo.
A Cocota ficara de pé, no limiar
da porta. Agora que se via só não precisava disfarçar o mau efeito que lhe
tinha produzido todo o falatório da Travassos a propósito daquele noivo da
Juju. Tinha dinheiro! Mas então era também como o outro, como o Bernardo?
E porque aquilo a tivesse
aborrecido, porque aquilo a tivesse incomodado dando-lhe o secreto desejo de se
vingar de todos, entrou para a sala. Justamente, vinha-lhe à memória a carta do
Braga, aquela que lhe parecia sentir ainda no seio, muito junta a carne, ferindo-a,
torturando-a com a ponta aguda do envelope. Ali, na meia escuridão produzida
pelas janelas cerradas, poderia reflexionar mais à vontade.
E, entretanto, alguma cousa como
um perfume forte e penetrante posto ali perto fazia-lhe mal. Era um lenço da Gertrudes,
esquecido junto de uma cadeira, muito fortemente impregnado de heliotrópio. A
Gertrudes adorava esse cheiro; ela é que nunca o pudera tolerar; dava-lhe dores
de cabeça, fazia-a pensar em cousas tão extravagantes!
E quase tonta, sentindo oscilar-lhe
a cabeça, levantou-se para pô-lo fora.
Mas a Brígida, a criada, entrava nesse momento. Vagarosa, olhando
misteriosamente em redor, depois de fechar bem as janelas, tornando ainda mais
asfixiante a temperatura da sala, contou-lhe que o Braga viera pouco antes;
como as Travassos estivessem na sala, ela tinha-o feito demorar-se lá dentro;
agora vinha preveni-la, vinha saber se a ama sempre o queria receber. Porque
ele lá estava, doido, ansioso, sôfrego por vê-la.
— O Braga ali, tão perto!
Isto há tanto tempo murmurado no
íntimo, isto no íntimo há tanto tempo desejado, punha-a trêmula, feliz por
sabê-lo perto, sequiosa de o ter ao seu lado, respirando o mesmo ar que ela,
ébrio da- aquela mesma embriaguez. E sem ouvir mais a Brígida, sem entender o
que ela lhe perguntava, deixou pender maquinalmente a cabeça, parecendo aceder.
O calor abafava, na escuridão
quase inteira da sala. Aquele maldito perfume do heliotrópio fazia- lhe arder a
cabeça. Felizmente a Brígida fora-se; do contrário nem ela própria sabia o que
lhe teria acontecido.
E deixava-se estar presa daquela
doce embriaguez dos sentidos, e ia quase a adormecer, feliz arfando-lhe o
coração, quimericamente transportada àquele tempo das entrevistas ao luar,
quando sentiu que a tomavam nos braços, apertando-a muito, esmagando-a quase,
beijando-a por todo o rosto, mesmo tempo que ela se deixava arrebatar, muito
curiosa de saber para onde a levavam assim, trêmula, ofegante, tão
deliciosamente embriagada.
E enquanto o Braga desaparecia
levando-a pela porta encortinada do seu quarto de núpcias, do outro lado o
olhar vesgo, o olhar hipócrita da Brígida aparecia colado à vidraça,
flamejante, curiosamente terrível, procurando devassar até o mais íntimo
segredo da alcova...
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Nota:
Pedro Rabello: "Alma Alheia" (1895)
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