domingo, 29 de setembro de 2013

Padre Antônio Vieira: "Sermão do Quarto Sábado da Quaresma"

SERMÃO DO QUARTO SÁBADO DA QUARESMA (1640)

Pede o autor a todos os que tomarem este livro nas mãos que, por amor de Deus e de si, leiam este primeiro sermão, do pecador resoluto a nunca mais pecar, com a atenção e paciência que a matéria requer.

Jam amplius noli peccare.

CAPÍTULO I

O maior mal de todos os males — não digo bem — o mal que só é mal, e sumo mal, é o pecado. Porque assim como Deus, por essência é o sumo bem, assim o pecado, por ser ofensa de Deus, é o sumo mal. Mas se entre pecado e pecado, pelo que toca a nós, pode haver comparação e diferença, o pecado futuro é o pior e mais perigoso mal. O passado e o presente, porque foi e é pecado, é a suma miséria; mas o futuro, porque ainda há de ser, sobre ser a suma miséria, é o sumo perigo.

Esta é, fiéis, a importantíssima doutrina que Cristo, soberano Mestre e Senhor nosso, nos deixou recomendada como documento final da última cláusula do presente Evangelho. Trouxeram uma pecadora a Cristo, achada em flagrante delito, para que o Senhor, como intérprete da lei, a sentenciasse. E qual seria a sentença? Foi aquela que se podia esperar da piedade e misericórdia de um Deus feito homem por amor dos homens. Confundiu os acusadores com lhes mostrar escritos seus pecados — que só Deus sabe livrar a uns pelos processos de outros — e depois de absolver a pecadora do pecado de que era acusada, e de todos, o documento breve, maravilhoso e divino, com que a despediu consolada, foram as palavras que propus: Jam amplius noli peccare (Jo. 8,11): Não queiras mais pecar.

Isto é o que encomendou Cristo àquela venturosa pecadora, em cuja maravilhosa história se nos representa, com grande propriedade, o juízo sacramental a que todos somos chamados ou citados no termo peremptório destes quarenta dias. Todos somos pecadores, e todos temos obrigação neste santo tempo de nos presentar em pessoa, e não por outrem, naquele sagrado tribunal, onde o mesmo Cristo é o juiz, e preside invisivelmente. Ali, sendo nós mesmos os réus e os acusadores, confessamos espontaneamente todas nossas culpas, e se o fazemos com a verdadeira detestação e arrependimento que devemos a um Deus infinitamente bom e infinitamente ofendido, o mesmo Senhor, que hoje escreveu pecados, manda riscar os nossos de seus livros, e totalmente perdoados e absoltos, nos recolhe entre os braços de sua misericórdia, e nos recebe em sua graça. Tal é o felicíssimo estado a que, por virtude do Sacramento da penitência, se restituem todos aqueles que dignamente o recebem, bem assim como a pecadora do Evangelho, quando ouviu da boca do Redentor: Nec ego te condemnabo. Mas porque a absolvição e a graça, posto que livre dos pecados passados, não segura  do perigo para os futuros, sobre este grande risco de tornarmos a adoecer depois de sãos e a cair depois de levantados, nos avisa e acautela o Divino Oráculo, exortando-nos a todos e a cada um, como à mesma pecadora, a nunca mais pecar: Jam amplius noli peccare.
  
Este foi o ponto único da doutrina de Cristo — que não só é conselho, mas preceito — e neste mesmo determino também insistir unicamente hoje, pois, sendo sua a eleição do assunto, nem eu posso tomar outro, nem devo. A matéria, pois, de todo o sermão, sumamente necessária e sumamente útil, será esta. O pecador resoluto a nunca mais pecar. Na primeira parte do discurso lhes descobrirei a falsidade e engano de todas as razões ou pretextos com que o demônio facilita a continuar os pecados; na segunda lhes inculcarei um novo motivo — que porventura nunca ouvistes — o mais eficaz, o mais forte e o mais terrível que pode haver, para nunca jamais pecar: Jam amplius noli peccare. À Virgem Santíssima, em quem nunca houve pecado, peçamos muito de coração, que como Mãe e Advogada de pecadores, nos alcance para esta tão importante resolução a graça que havemos mister. Ave Maria.


CAPÍTULO II

Jam amplius noli peccare.

Para não pecar mais, nem ter pecado jamais, bastava ser o pecado ofensa de Deus, e ser Deus quem é: infinita e inefável bondade, infinita e imensa grandeza, infinita e incompreensível majestade, infinita sabedoria, infinita onipotência, infinito, incriado, eterno e imutável ser, que só ele é de si mesmo, e por tudo isto digno de ser infinitamente amado, como ele, que só se compreende, se ama, e não por outra causa ou respeito, senão por ser quem é. Mas, como a vileza do nosso barro, para subir tão alto é muito pesada, e para amar tão fina e desinteressadamente muito grosseira, acomodando-se o Espírito Santo à incapacidade de nossa fraca natureza e à corrupção em que a deixou o primeiro pecado, nos ensinou para não pecar aqueles quatro motivos de temor, tão fortes e tão sabidos, como de nós mal aplicados: Memorare novissima tua, et in aeternum non peccabis (Eclo. 7, 40): Lembra-te, homem, dos teus novíssimos, e não pecarás jamais. — E, verdadeiramente, que homem haverá, se não tem perdido o juízo e uso da razão, que sabendo de certo que há de morrer sem levar desta vida mais que as suas boas ou más obras, e que com elas se há de presentar diante do tribunal da Divina justiça, para ser severissimamente julgado, e que dada a sentença, de que não há apelação nem embargos, ou há de gozar de Deus para sempre na glória, ou carecer de Deus para sempre, e penar sem remissão no fogo do inferno, que homem haverá, torno a dizer, se não tem perdido o juízo e uso da razão, que com a fé e consideração viva destes quatro motivos, seja tão temerário e cego, que se atreva a cometer um pecado?

Sendo pois esta verdade tão certa e infalível, e a conseqüência dela tão racional, tão útil e tão conforme por uma parte ao temor, e por outra ao desejo e esperança humana, qual é ou pode ser a causa por que a experiência de cada dia nos mostre o contrário, e seja coisa tão ordinária nos homens, que isto mesmo crêem e confessam, o pecar, o ter pecado e o tornar a pecar? A causa ou ocasião não é outra, senão que assim como o Espírito Santo nos deu quatro motivos para espertadores da memória, assim o demônio inventou e nos dá outros quatro para adormentadores do esquecimento; aqueles espertam o entendimento, para que sempre vigilante, e com os olhos abertos, nos não consinta pecar; e estes adormentam a vontade, para que frouxa, descuidada e cega nos facilite o pecado. E que motivos infernais são estes quatro? Para serem mais infernais vão todos fundados na verdade da fé e experiência. O primeiro é a dilação do castigo, o segundo a confiança na misericórdia, o terceiro o propósito do arrependimento, o quarto a facilidade e prontidão do remédio. Como o Espírito Santo nos refreia do pecado com a memória e consideração dos quatro novíssimos, diz assim o demônio ao pecador, e o pecador a si mesmo: os novíssimos da glória e do inferno não hão de vir senão depois do juízo; o novíssimo do juízo não há de vir senão depois da morte; o novíssimo da morte não vem senão no fim da vida. Logo, enquanto dura a vida, quero fazer a minha vontade e viver a meu gosto; e para que seja sem perigo da salvação, desse me asseguram quatro motivos e fundamentos tão certos como os que já referimos e agora veremos.


CAPÍTULO  III

Anima-se primeiramente o homem e facilita-se a pecar pela dilação do castigo, porque, ainda que crê pela fé que Deus nunca deixa de castigar o pecado, vê contudo pela experiência ordinária, que Deus não castiga logo. Daqui nasceu um notável pensamento em que deu Davi para tirar os pecados do mundo. Sentia tanto o santo rei a facilidade com que se quebravam as leis de Deus e os homens não reparavam em pecar, que este sentimento quase lhe tirava a vida: Defectio tenuit me, pro peccatoribus derelinquentibus legem tuam. O primeiro pensamento com que acordava, e a sua primeira meditação, era cuidar e excogitar como se podia tirar do mundo todos os pecados: In  matutino interficiebam omnes peccatores terrae. E, finalmente, veio a dar em um meio, o mais eficaz e efetivo que podia haver, e como tal o presentou a Deus em uma proposta. — Senhor, diz Davi, eu não posso dar conselho, nem vossa infinita sabedoria o há mister: mas não pode o meu zelo deixar de vos representar um meio em que tenho dado para que não haja pecados nem vossa divina Majestade seja ofendido. — Que diferente alvitre era este, dos que ordinariamente se costumam inventar e pagar com grandes mercês, todos para utilidade dos príncipes e para destruição dos vassalos. Porém este de Davi, tão útil era para Deus como para os homens, e mais ainda para os homens que para Deus, porque Deus não seria ofendido se os homens não fossem pecadores. Mas que meio era ou podia ser este, que tirasse os pecados do mundo e não houvesse nele quem não observasse as leis de Deus? As palavras da proposta o dizem: Exurge, Domine, in ira tua: exurge inpraecepto quod mandasti, et synagoga populorum circumdabit te. Mostre-se Vossa Majestade  irado todas as vezes que for ofendido, e assim como a cominação da pena anda junta com o preceito,  ande também a execução do castigo junta com o pecado, porque tanto que os homens virem que o  castigo não tarda nem se dilata, logo todos obedecerão prontamente, e servirão a Deus, e nenhum  haverá que se atreva a pecar: Exurge in ira tua, exurge in praecepto quod mandasti, et synagoga  populorum circumdabit te. Lá disse o poeta: Si quoties peccant homines, sua fulmina mutat Jupiter  exiguo tempore inermis erit: Se todas as vezes que os homens pecam caísse sobre o delinqüente um raio do céu, acabar-se-iam os raios. — Mas não disse nem inferiu bem. Se todas as vezes que os homens pecam caísse logo do céu um raio que abrasasse o pecador, não se acabariam, antes sobejariam os raios. Os que se acabariam ou seriam os homens ou os pecadores: mas o certo é que seriam os pecados, e não os homens, porque, tanto que o castigo andasse junto com o pecado, nenhum homem havia de ser tão cego que se arrojasse a pecar. Esta foi a proposta e o alvitre de Davi. E que lhe respondeu Deus? O mesmo Davi o disse logo. Ainda que o coração de Davi era semelhante ao coração de Deus, o de Davi era tão pequeno que cabia no seu peito, e o de Deus é tão grande como sua mesma imensidade. Respondeu Deus aquilo mesmo que dizem os que, fiados na dilação do castigo, se animam a continuar no pecado: Deus judex justus, fortis et patiens, nunquid irascitur per singulos dies ? Deus — diz o pecador usando das palavras divinas a sabor do seu apetite — Deus, ainda que é justo juiz, e tão forte, que nenhum culpado ou réu lhe pode escapar das mãos, contudo o  seu coração é muito largo, e a sua paciência muito sofrida; e ainda que os nossos pecados são cotidianos, a sua ira não é de cada dia: Nunquid irascitur per singulos dies?

Este é o fundamento com que disse judiciosamente Tertuliano que Deus padece na sua mesma paciência: Deus sua sibi patientia detrahit — porque dá ocasião o seu sofrimento a que se perca o temor de sua justiça e o respeito à sua autoridade. Atreveu-se Osa, posto que com boa tenção, a tocar na Arca do Testamento, e no mesmo ponto pagou aquela temeridade, caindo de repente morto. Oh! se Deus o fizesse assim sempre ou muitas vezes, e os pecados se pagassem logo e de contado, como haviam os homens de ir atentos em pecar, e como se lhes haviam de atar as mãos, ainda quando o pecado fosse duvidoso! Por que cuidais que pecou Adão e comeu da fruta vedada, tendo-lhe Deus cominado a morte, se comesse? Porque viu que Eva tinha comido e não morreu. O preceito e a pena do preceito foi posta a ambos: pois, se Eva comeu e não morreu, também eu — diz Adão — não morrerei, ainda que coma. — Venha a fruta, farte-se o apetite, e vivamos a nosso gosto. — Isto é o que fez Adão, e isto o que fazem seus filhos. O pensamento, diz o texto sagrado com que, depois de ter pecado, se animam os homens a tornar a pecar, é este: Peccavi, et quid mihi accidit triste (Eclo. 5, 4)? Eu pequei, e nem por isso me sucedeu mal ou desgraça alguma: Estava vivo, e estou vivo; estava são, e tenho a mesma saúde; tornei para casa, e nem por isso a achei caída, e meus filhos mortos debaixo dela, como Jó; os gados não mos roubaram os inimigos, nem me mataram os escravos; às lavouras não lhes faltou a chuva que as regasse, nem o sol que as amadurecesse; se meti os frutos no celeiro, conservaram-se; se os naveguei, chegaram a salvamento; tudo me sucedeu tão prosperamente que, no mesmo dia em que pequei, se fui à casa do jogo, ganhei; se pleiteava, tive sentença por mim; se tinha algum requerimento, saí despachado, e se fui beijar a mão ao rei, olhou-me com bons olhos. Pois, se na vida, na fazenda, na honra, em nada me empeceu o pecado, por que não hei de tornar a pecar? Quero pecar como dantes, e mais ainda.

Este é o discurso, ou mais ou menos expresso, com que os homens se precipitam a continuar no pecado. Mas vede o que lhes diz o Espírito Santo: Ne dixeris: peccavi, et quid mihi accidit triste? Altissimus est enim patiens redditor (Ecl. 5, 4): Não digas: pequei, e não me sucedeu nenhum mal, porque a paciência do Altíssimo, ainda que dissimule muito tempo, e se não pague logo do que lhe deves, no cabo puxa pelo capital e mais pelos réditos. — Réditos lhes chamou Tertuliano: peccati censum. E S. Gregório, declarando quão grandes e quão custosos serão estes réditos, diz que será tão estreita e insofrível a execução do juízo, quão larga foi a paciência e sofrimento de Deus na dilação do castigo: Tanto strictiorem justitiam in judicio exiget, quanto largiorem patientiam ante judicium praerogavit. — Oh! como nos enganamos os homens com a paciência e sofrimento de Deus, que quanto mais dilata menos perdoa. Sofreu Deus o fratricídio de Caim, e não o castigou logo com a morte; mas, depois de andar desterrado e fugitivo por esse mundo, e aborrecido de todos em suma confusão e miséria, veio a morrer desastradamente em um bosque, reputado por fera, a mãos de seu próprio neto, Lamec. Sofreu Deus as desobediências de Saul, e a usurpação do ofício sacerdotal, e as invejas e ingratidões com que perseguiu a inocência e pagou os merecimentos de Davi, a quem devia a honra, a vida e a coroa. Mas, perguntei aos montes de Gelboé, qual foi o triste fim do mesmo Saul, afrontosamente vencido, morto com sua própria espada, e depois pendurado de uma ameia nos muros de seus inimigos. Sofreu Deus as ambições e loucuras de Absalão, rebelde a seu rei e a seu pai, e as políticas ímpias de Aquitofel, alheias de toda a lei divina e humana; mas a uns vereis enforcado por suas próprias mãos em uma trave da sua casa, e ao outro preso por seus próprios cabelos nos braços  de uma enzinheira, com o coração, que lhe não cabia no peito, passado com três lanças. Sofreu Deus as idolatrias del-rei Acab e de sua mulher Jesabel, as perseguições dos profetas e os falsos testemunhos levantados contra Nabot, e o roubo perjuro da sua herdade; mas no cabo, ele e ela infamemente privados do reino: ele foi ferido e morto de uma seta perdida, e ela precipitada de uma janela de seu palácio; a ela lhe roeram os cães os ossos, e a ele lhe lamberam o sangue. Deixo os exemplos de Nabuco soberbo, de Antíoco sacrílego, e de Judas traidor: um convertido em bruto, outro comido vivo de bichos, e o terceiro rebentado pelo meio, vomitando a infeliz alma juntamente com as entranhas, todos três longamente sofridos, mas depois severissimamente castigados, para que  ninguém se fie na dilação do castigo, que, se tarda, sempre chega, e recompensa com o rigor as usuras  da tardança.


CAPÍTULO IV

O segundo motivo que facilita, e quase parece que convida os homens a perseverar na continuação do pecado, é a confiança na misericórdia divina. Nenhum atributo pregam e apregoam mais em Deus todas as Escrituras que a sua misericórdia, grande, infinita, imensa. Não só chamam a Deus misericordioso, senão misericordiador: Misericors et miserator (Sl. 110, 4). E como se Deus se multiplicara a si mesmo para multiplicar as misericórdias, dizem que é multus ad ignoscendum. À mesma misericórdia, sendo uma, dão nome de multidão: Secundum multitudinem miserationum tuarum. E, finalmente, porque a multidão se compõe de números, acrescentam que a misericórdia de Deus não tem número: Cujus misericordiae non est numerus. Que muito, logo, que se Deus se multiplica para perdoar, multipliquem também os homens a matéria do perdão, que são os pecados, e que não reparem em acumular uns pecados sobre outros, pois, ainda que o número e multidão deles seja grande, o número inumerável e a multidão sem conta das misericórdias de Deus, sempre é maior? Tão assentado está este desprezo do pecado na confiança da misericórdia divina, que se eu — diz Santo Agostinho, falando de si — se eu quiser persuadir aos homens que temam a Deus e o rigor de  sua justiça, para que se abstenham de pecar, haverá algum que, fundado nas Escrituras, se levante  contra mim, e não duvide dizer-me na cara: Quid me terres de Deo nostro? Ille misericors est, et miserator, et multum misericors: Que medos são estes, Agostinho, que cá nos quereis meter com o nosso Deus? Ele é misericordioso, e mais misericordioso, e muito mais misericordioso; e sendo tanta e tal a sua misericórdia, como é de fé, ainda que nós pequemos, e mais pequemos, e tornemos a pecar, sempre seremos perdoados.

Isto dizem muitos pecadores, e isto fazem todos, ainda que o não digam. E é coisa sobre toda a admiração e sobre todo o encarecimento notável, que prometendo Deus o céu e a bem-aventurança, e não podendo o demônio dar senão o que tem, que é o inferno, sendo Deus tão bom e o demônio tão mau, Deus tão formoso e o demônio tão feio, haja, contudo, tantas almas enganadas e cegas que, deixando a Deus, se amiguem com o demônio. Palácios, doutíssimo expositor das Escrituras Sagradas, e tão pio como douto, respondendo a esta admiração, diz uma coisa a que, pelo nome com que a declara, duvidei se a referiria deste lugar. Mas porque outros comentadores, que vieram depois dele, a alegam como muito digna de se saber e dizer, eu a não devo calar. Diz pois este grave autor que a causa de muitas almas deixarem a Deus e se amigarem com o demônio, é porque tem o demônio uma terceira, solicitada pelos mesmos homens, com a qual é tão sagaz, tão astuto, tão enganador e lisonjeiro o demônio, que com suas artes, promessas e carícias, afeiçoa, rende e traz a si as almas. E que ministra é esta, que terceira tão poderosa, para o demônio enganar os juízos e cativaras liberdades? É, porventura, alguma Circes ou alguma Medéia, que com feitiços e encantos alucineos homens? É alguma fúria do inferno, transfigurada em anjo de luz, que com adulações e falsas esperanças lhes tire o medo do mesmo inferno? Não é do inferno, nem da terra, nem só do céu, mas tirada do seio e das entranhas do mesmo Deus, que criou o céu e a terra. E — quem tal imaginara — é a mesma misericórdia divina, a qual os homens, por suma temeridade e impudência, fazem terceira do demônio, para se amigarem com ele: Immane flagitium est misericordiam Dei lenam facere diaboli, et quod per misericordiam, per quam Deo conjungi debueras, diaboli conjugaris: Não pode haver mais enorme e mais atroz sacrilégio, nem mais horrendo descomedimento de maldade ímpia e cega, que fazer a misericórdia de Deus terceira do demônio, e que por ocasião da mesma misericórdia, pela qual o homem se havia de unir mais a Deus, se ajunte com o demônio e se amigue com ele. Isto pois é, e nada menos, o que fazem todos aqueles que, confiados na misericórdia de Deus, em lugar de lhe pedir perdão dos pecados, se animam e facilitam sem temor a continuar neles.

Ouçam agora estes enganados com a misericórdia, o que lhes diz o mesmo Pai das misericórdias: Ne adjicias peccatum super peccatum, et ne dicas: Miseratio Domini magna est, multitudinis peccatorum meorum miserebitur (Eclo. 5,5 s): Não acrescentes pecados sobre pecados, e não digas que a misericórdia de Deus é grande e perdoará todos os pecados, ainda que sejam muitos. — E por que razão, Senhor? Se os nossos pecados foram muitos e a vossa misericórdia pouca ou pequena, então tínhamos fundamento para desconfiar do perdão; mas, se a misericórdia é grande, e sempre maior que os nossos pecados, por mais e mais que os acrescentemos, por que não havemos de confiar e estar muito seguros que sempre nos perdoará vossa misericórdia? O mesmo Deus dá a razão, e é tão divina como sua: Misericordia enim et ira ab illo cito proximant (Ibid. 7): Não vos fieis demasiadamente da minha misericórdia, diz Deus, porque a misericórdia e a justiça em mim estão muito perto uma da outra. — Admirável sentença! Em Deus, cuja natureza e essência é simplicíssima, tudo é a mesma coisa, porque tudo é Deus. Mas nenhuma coisa há em Deus mais unida entre si, nem mais identificada e mais uma, e mais a mesma, que a misericórdia e a justiça. Em Deus o Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus, a misericórdia é Deus e a justiça é Deus; mas o Padre, o Filho e o Espírito Santo, ainda que sejam Deus, e o mesmo Deus, distinguem-se realmente: porém, a misericórdia e a justiça não têm distinção alguma. O Padre é Deus, mas não Filho; o Filho é Deus, mas não é Padre; o Padre e o Filho são Deus, mas não são Espírito Santo; o Espírito Santo é Deus, mas não é Padre nem Filho. Porém a misericórdia e a justiça em Deus de tal maneira são Deus, que a mesma justiça é misericórdia, e a mesma misericórdia é justiça.

Daqui se entenderá aquela sentença famosa de Davi, que mais parece enigma que sentença: Semel locutus est Deus, duo haec audivi (SI. 61, 12): Deus — diz Davi — disse uma coisa, e eu ouvi duas.  — Aquilo que se ouve, se se ouve bem, é o mesmo que se diz; pois, se Deus disse uma só coisa, Davi,  que era muito bom ouvinte, como ouviu duas? O mesmo Davi se explicou, e não sei se nos implicou  mais: Duo haec audivi, quia potestas Dei est, et tibi, Domine, misericordia: quia tu reddes unicuique  juxta opera sua (Ibid. 12): O que ouvi — diz Davi — é que Deus todo-poderoso tem misericórdia e  justiça, com que dá a cada um segundo o merecimento de suas obras. — Bem ouviu logo Davi, e bem  diz que ouviu duas coisas, pois ouviu que Deus tem misericórdia e justiça. Mas se ele ouviu estas  duas coisas: Duo haec audivi — como disse Deus uma só: Semel locutus est Deus? Porque esta é a diferença que há de Deus para com os homens na realidade ou apreensão da misericórdia e justiça divina: para conosco, e na apreensão com que consideramos a misericórdia e justiça divina, são duas  coisas, e por isso: Duo haec audivi; porém na realidade com que a mesma misericórdia e justiça  divina está em Deus, é uma só coisa, e por isso: Semel locutus est Deus. Para conosco, a misericórdia  e a justiça são duas coisas, porque apreendemos a misericórdia como misericórdia distinta da justiça, e a justiça como justiça distinta da misericórdia; mas para com Deus e em Deus são a mesma coisa, sem distinção alguma, porque em Deus a justiça é misericórdia, e a misericórdia justiça. Sendo, pois, tão inseparável e tão íntima, não digo a união, senão a unidade destes dois atributos divinos, dos quais depende o perdão ou condenação de todos os que pecam, vede agora se é bom conselho, e digno de Deus, aquele com que o mesmo Deus tanto nos exorta e admoesta, que não acrescentemos pecados sobre pecados, fiados na sua misericórdia, porque a misericórdia e a justiça em Deus estão muito perto uma da outra: Ne adjicias peccatum super peccatum, et ne dicas: MiseratioDomini magna est: misericordia enim et ira ab illo cito proximant. É contudo tal a cegueira e malícia humana, que estando a misericórdia e justiça divina tão perto uma da outra, não só os hereges, senão também os católicos têm achado invenção com que as dividir. Os hereges marcionistas diziam que Deus tinha misericórdia e não tinha justiça, por ser coisa alheia da sua bondade o castigar, como se
Deus fora bom, para que os homens fossem maus, como bem os argüi Tertuliano. E os católicos, ainda com maior incoerência, conhecendo e confessando que Deus é misericordioso e justo: Misericors Dominus et justus (Sl. 114,5) — que fizeram, ou que fazem? Partem a Deus pelo meio — diz S. Basílio: — Deum ex dimidia tantum parte agnoscunt. Donde vem que, pecando facilmente contra a metade de Deus, que reconhecem por misericordioso, da outra a metade não fazem caso, como se não creram que é justo. Oh! que sisudos seriam os homens, já que fazem esta divisão, se a fizessem às avessas! Assim a fazia Davi, depois que o seu mesmo pecado o fez sisudo: Domine, memorabor justitiae tuae solius (SI. 70, 16): Senhor, eu daqui por diante só me hei de lembrar de vossa justiça. — E da sua misericórdia, por que não, tendo vós recebido tantos favores da misericórdia divina? Por isso mesmo: para não abusar dela. Quem se lembra só da justiça de Deus, como se não tivera misericórdia,  teme de pecar, e salva-se; pelo contrário, os que só se lembram da misericórdia de Deus, como se não  tivera justiça, não reparam em pecar, e condenam-se. E isto é o que acontece a todos os que pecam em  confiança da misericórdia divina.


CAPÍTULO V

O terceiro motivo com que o homem se facilita a pecar mais, e a continuar ou multiplicar os pecados, é o propósito do arrependimento. Eu, diz o pecador, peco e pecarei agora, sim: mas não com resolução de perseverar sempre no pecado, senão com intento e propósito firme de me arrepender depois, e de me pesar e doer de todo o coração disto mesmo que agora faço. Este é o modo e a suposição com que se delibera a pecar todo o homem que tem fé da outra vida, e assim o declarou maravilhosamente um deles, bem experimentado nos pecados, e muito mais nos arrependimentos.

Ecce parturiit injustitiam: concepit dolorem, et peperit iniquitatem (SI. 7,15): O pecador — diz  Davi — quando se deliberou a pecar, concebeu a dor e pariu o pecado. — Na produção e nascimento  das coisas animadas, a conceição sempre precede o parto, e o parto se segue à conceição. No pecado sucede o mesmo. Quando o homem se delibera a pecar, então concebeu o pecado, e quando o cometeu e efetuou, então o pariu: Concepit dolorem, et peperit iniquitatem. Mas, se bem repararmos nestas palavras, parece que envolvem uma implicação natural. A conceição e o parto sempre são da mesma espécie. Se o parto é homem, o que se concebeu também foi homem; se o parto é leão, o que se concebeu também foi leão; e se o parto acaso é monstro, como é todo o pecado, também o que se concebeu foi monstro. Pois, se Davi diz que o pecador pariu o pecado: peperit iniquitatem, por que não diz coerentemente que concebeu o pecado, senão que concebeu a dor: concepit dolorem? Porque este é o modo e a suposição com que todo o homem que tem fé se delibera a pecar. Primeiro concebeu a dor, e depois pare o pecado; primeiro faz conceito do arrependimento futuro, e propõe de se doer e arrepender do mesmo pecado que está deliberado a cometer, e sobre este propósito de dor e arrependimento, que já tem concebido, como sobre carta de seguro e imunidade da pena, então peca confiadamente e sem receio. Bem conhece o pecador cristão que o pecado mata a alma e a condena ao inferno; mas, lisonjeado e vencido do apetite, como se tomara a salva e se desculpara com a sua alma, lhe diz dentro em si mesmo: — Alma minha, eu bem sei que te mato e te condeno; mas se agora te mato e te condeno com o pecado, eu te ressuscitarei depois, e te livrarei com a dor: Concepit dolorem, et peperit iniquitatem.

Este é aquele concerto ou pacto, mal considerado e pior entendido, que o profeta Isaías diz fazem os homens com a morte e com o inferno: Audite verbum Domini, viri illusores: dixistis enim: Percussimus foedus cum morte, et cum inferno fecimus pactum. Aos que assim pacteiam com o demônio, e se deliberam a pecar, chama-lhes Deus, não ilusos, senão ilusores: Viri illusores, porque não só o demônio os engana a eles, mas eles cuidam que enganam ao demônio. Dão-lhe agora a alma pelo pecado, para depois lha tornarem a tirar pela dor e arrependimento. E desta maneira, ou por esta traça, o demônio é o que ficaria iluso, e não eles. Mas vamos às condições. O que os homens podem temer, e o que temem todos os timoratos, é que pelo pecado, morrendo nele, vão ao inferno; e por isso o contrato e pacto que fazem com o demônio é sobre a morte e sobre o inferno: Percussimus foedus cum morte, et cum inferno fecimus pactum. Pelo contrato sobre a morte promete-lhes o demônio que antes da morte terão tempo para cumprir os seus propósitos, e se doer e arrepender do pecado; e pelo contrato sobre o inferno, assegura-os o mesmo demônio, que de nenhum modo poderão ir para lá, porque todo o que se arrepende verdadeiramente de seus pecados antes da morte, é certo que não vai ao inferno. Pois, se estas condições assim praticadas são tão úteis ao homem, e o demônio nelas fica perdido, como o mesmo demônio, que é tão sábio e astuto, pacteia tão facilmente com tais condições? Porque debaixo delas, o que vai enganado e totalmente perdido não é ele, senão o homem. A razão de estado do demônio nos seus contratos com os homens — diz S. Basílio — é com condição da nossa parte, que nós lhe demos o presente, e com promessa da sua, que ele nos dará o futuro: peca agora, e depois te arrependerás; e como o presente é o fácil e o certo, e o futuro o contingente e dificultoso, daqui se segue que agora, que era o tempo da emenda, todos pecam, e depois, que é o tempo da conta, em castigo do mesmo pecado, poucos ou nenhum se arrepende.

Mais faz o demônio, como ainda não ponderamos, nas palavras de Davi: Concepit dolorem, et peperit iniquitatem. A natureza pôs o deleite na conceição e a dor no parto; e o demônio, às avessas, põe o deleite no parto e a dor na conceição: põe o deleite no parto, que é o pecado, porque a todo o pecado, em qualquer gênero, sempre acompanha o deleite; e põe a dor na conceição, porque na deliberação de pecar nos sugere e faz conceber a dor para depois de ter pecado. E como o apetite humano se leva tão cegamente do deleitável, por isso ao pecado, em que está o deleite e a perdição, damos o tempo presente, e a dor, em que estava o remédio e a salvação, deixamo-la para o futuro. Desta sorte, os nossos mesmos propósitos, que nós chamamos de arrependimento, são de condenação, e os mesmos pecados, que em confiança deles nos deliberamos a cometer, nos deveram desenganar da sua falsidade. Ou estes propósitos são falsos ou são verdadeiros. Se são falsos, por que nos fiamos deles? E se são verdadeiros, e são propósitos de arrependimento, por que nos não arrependemos logo, enquanto temos tempo de não pecar? O certo é que nem os propósitos são propósitos, nem os arrependimentos hão de ser arrependimentos, e porque são propósitos de arrependimento que não hão de ser, nem eles são propósitos.

Mas, suposto que este pacto é feito com o inferno: Cum inferno fecimus pactum, desçamos ao  mesmo inferno, e vejamos como lá se guarda. Há neste cárcere infernal, há nesta masmorra  escuríssima algum homem que fosse cristão? Muitos. Responda-me algum homem desventurado, quem quer que sejas, se foste cristão, ainda hoje o és, porque o caráter do batismo impresso na alma,   nunca se perde. Pois, se és e foste cristão, e crias tudo o que crê a Santa Madre Igreja, como te não aproveitaste da fé e dos sacramentos, como te não aproveitaste da doutrina e exemplos do Evangelho, que tantas vezes ouvistes, e como enfim te condenaste? — Por meus pecados. — E sabias tu que os pecados, e um só pecado, basta para levar ao inferno? — Bem sabia tudo isso; mas também sabia que basta o verdadeiro arrependimento dos mesmos pecados para Deus os perdoar; e por este conhecimento que eu tinha, todas as vezes que me resolvia a pecar, era com grandes propósitos de depois me arrepender. — Pois, se fazias tantos propósitos de arrependimento, por que te não arrependeste? — Porque esse é o engano que cá nos traz a todos. Estes dois, que aqui estão ardendo junto a mim, foram os dois irmãos Ofni e Finéias, filhos do Sumo Sacerdote Heli, e como tais, muito bem doutrinados e instruídos em todos os mistérios da fé e da salvação. Repreendia-os seu pai, e dizia-lhes que se emendassem e arrependessem de seus pecados; e eles respondiam: Cum senuerimus, tunc poenitebimus: que eram moços e queriam viver com liberdade, que depois se arrependeriam. Mas a morte veio antes do depois, os arrependimentos e os propósitos ficaram no ar, e as almas desceram ao inferno. Aqui estão ardendo há dois mil e setecentos anos, e arderão, e eu com eles, porque fiz a mesma conta, enquanto Deus for Deus.

Cristãos, tomemos exemplos neste, e não nos fiemos de semelhantes propósitos. Quando o propósito do arrependimento se ajunta com a resolução do pecado, nem é arrependimento, nem é propósito, porque a resolução do pecar contradiz o propósito da emenda, e o pecado presente desfaz o arrependimento futuro. Se os propósitos de não pecar, ainda feitos em graça de Deus, são pouco seguros, os propósitos de arrepender do pecado, que se fazem querendo pecar e pecando atualmente, que firmeza podem ter? Os mais valentes propósitos que se fizeram neste mundo foram os de S. Pedro: valentes não só na boca, mas, o que poucas vezes se ajunta, na boca e mais na espada. E que disse Pedro? Et si omnes scandalizati fuerint in te, ego nunquam scandalizabor (Mt. 26,33): Ainda que todos, Senhor, faltem à fidelidade e amor que vos devem, eu nunca hei de faltar. — Que mais disse? Etiamsi oportuerit me mori tecum, non te negabo (Ibid. 35). E quando seja necessário dar a vida e morrer convosco, primeiro morrerei, que negar-vos. — Podia haver mais animosos e mais resolutos propósitos que estes, e mais bizarramente declarados? Não podia. E com serem tão repetidos, tão constantes, e feitos, como verdadeiramente eram, de todo coração, não se tinham passado seis horas, quando o mesmo Pedro, caindo, recaindo e tornando a cair, tinha negado a seu  Mestre, não menos que três vezes. E se os propósitos de não pecar acabam negando a Cristo, os que  começam pecando e negando a Cristo, que se pode esperar deles? Ao pecado de Pedro seguiu-se depois o arrependimento, porque foram propósitos de não pecar, estando em graça; mas a quem peca com propósitos de se arrepender depois, donde lhe há de vir o arrependimento, se o nega e desmerece com o mesmo pecado? Pecareis, como pecais, mas não vos arrependereis, como prometeis.


CAPÍTULO VI

O quarto e último motivo com que os homens se cegam e não temem continuar no pecado, posto que conheçam ser enfermidade mortal, é a facilidade e prontidão do remédio. O remédio que Cristo, Senhor nosso, condescendendo com a fraqueza humana, deixou para os pecados que depois do Batismo se cometessem, foi a confissão dos mesmos pecados. Por isso o sacramento da Penitência se chama segunda tábua em que o homem depois do naufrágio se pode salvar. Mas assim como seria temeridade mais que grande a daquele que voluntariamente se lançasse ao mar, mui seguro de chegar ao porto sobre uma tábua, e maior temeridade ainda, se em confiança da mesma tábua, se fosse sempre engolfando mais e mais, assim o fazem os que, debaixo do pretexto da Confissão, se precipitam a pecar, e dizendo: eu me confessarei, multiplicam pecados sobre pecados.

Não pretendo negar com isto que o remédio da confissão não seja muito pronto e muito fácil. Não é muito fácil remédio o de curar com palavras, ou fosse inventado pela superstição ou pela arte? Pois deste gênero é, e com muito grandes vantagens, o remédio da Confissão. Não só cura de algumas feridas, senão de todas, ainda que sejam mortais; não só cura de poucas ou de muitas, senão de todas, ainda que sejam inumeráveis; e de tal maneira cura de todas quantas padece o enfermo, que se uma só se lhe excetuasse, não curaria de nenhuma. E tudo isto faz a confissão, não em largo tempo, senão em um instante, e sem outra aplicação da nossa parte mais que palavras. O profeta Oséias, exortando aos homens a que se convertam a Deus, diz assim: Convertimini ad Dominum, et dicite ei: omnem aufer iniquitatem (Os. 14,3): Convertei-vos a Deus, e dizei-lhe que vos tire todos vossos pecados. — Pois, não há mais que dizer a Deus que nos tire nossos pecados, e não alguns, senão todos: Omnem aufer iniquita tem? E se Deus da sua parte nos há de tirar todos os pecados, nós da nossa que havemos de fazer para que ele no-los tire? O mesmo profeta o diz, e é coisa bem notável: Tollite vobiscum verba (Os. 14,3): Levai convosco palavras. — Bem diferentemente falavam os outros profetas no mesmo tempo de Oséias, que era o da lei velha. O que diziam os outros profetas era: Tollite hostias: levai a Deus sacrifícios, para que por meio deles aplaqueis sua justa ira, e vos perdoe os pecados. Pois, se os outros profetas dizia: Tollite hostias, por que diz Oséias: Tollite verba? Porque Oséias, neste texto, como diz a glosa com Ruperto, fala profeticamente do Sacramento da Confissão, que Cristo havia de instituir na lei da graça; e para conseguir o perdão dos pecados por meio da Confissão, não são necessárias da nossa parte mais que as palavras — não informes, mas formadas — com que os confessamos. Excelentemente Ruperto: Non dico: Tollite vobiscum multitudinem hircorum, aut vitulorum, sed verba, quae consequi potestis sine dispendio rerum. Verba confessionis Deo pro salute vestra sufficiunt, pro iniquitatibus vestris satisfaciunt: Não vos digo que tragais convosco ao sacrifício multidão de bezerros ou de cordeiros, senão somente palavras, para as quais todos tendes cabedal, sem dispêndio da fazenda ou necessidade dela, porque virá tempo em que bastem para com Deus as palavras da vossa Confissão, e só com essas palavras se dê por satisfeito de todos vossos pecados. Pode haver maior facilidade que esta?

É tão grande que, como refere Santo Agostinho, os gentios do seu tempo o lançavam em rosto aos cristãos, dizendo que não podia ser boa aquela lei, em que tão facilmente se perdoavam os pecados, pois era dar licença para pecar. Assim o diziam ignorantemente os bárbaros, e puderam provar a blasfêmia do seu pensamento com o exemplo ou escândalo de muitos cristãos, os quais de tal modo abusam da facilidade da Confissão, como se fora licença ou imunidade dada por Deus para poderem pecar quanto quisessem. Mas o mesmo Santo Agostinho ensinou aos gentios, que tão fora está a Confissão de facilitar o pecado, que antes é um novo freio com que mais se dificulta, porque, como na Confissão só se perdoam os pecados de quem leva resolução de nunca mais pecar, se no pecado se quebra a lei com que Deus nos manda que não pequemos, na Confissão não só se torna a ratificar a mesma lei de Deus, mas nós mesmos nos pomos outra lei de novo, com que nos obrigamos a não reincidir naquele pecado, nem cometer algum outro. Foi tão engenhosa a traça da Confissão, ou verdadeiramente tão divina, que quando por uma parte abre a porta ao perdão, por outra fecha a porta ao pecado. Se duas casas têm as entradas juntas, com a mesma porta com que se abre uma, se pode fechar a outra. E isto é o que fez Deus no sacramento da Confissão. E como a Confissão verdadeira inclui essencialmente detestação dos pecados cometidos, e resolução firme de nunca mais pecar, com a detestação abriu a porta ao perdão dos pecados passados, e com a resolução fechou a porta à continuação dos futuros.

Já daqui começarão a entender os que tanto se confiam no remédio da Confissão quão enganada e enganosa é esta sua confiança. A Confissão verdadeira e efetiva há de levar consigo ao confessado, e pô-lo todo, e para sempre, aos pés de Deus. Se não leva consigo ao confessado, não é Confissão. Olhai o que dizia Oséias, e ainda não notastes: Tollite vobiscum verba, ei dicite: omnem aufer iniquitatem. Para que Deus vos perdoe os pecados, não só diz que leveis as palavras à Confissão, senão que as leveis convosco: Tollite vobiscum verba. Porque se vós não levais as palavras da Confissão convosco, e elas vos não levam consigo, a Confissão não é Confissão, são palavras. O sacrifício de Abel, por que contentou a Deus? Porque levou consigo o mesmo Abel. E o de Caim, por que não lhe contentou? Porque não levou consigo a Caim. Davi disse a Natã: Peccavi, e Saul também disse a Samuel: Peccavi (1 Rs. 15,24). E sendo as palavras as mesmas, Davi ficou absolto do seu pecado, e Saul não, porque a Davi levou-o consigo a sua Confissão, e a Saul não o levou a sua. Vejam agora os que guardam a Confissão para a hora da morte, as suas palavras os podem levar consigo, quando eles já não estão em si? Eis aqui por que vemos morrer tantos sem Confissão, ou com Confissões que não são Confissões. Porque é justo castigo de Deus que a quem pecou em confiança da Confissão, essa mesma Confissão lhe falte ou lhe não aproveite.

Os moradores de Jerusalém pecavam dissoluta e desaforadamente, como se para eles não houvera lei nem castigo, e toda a sua confiança se fundava em que Deus tinha o seu Templo na mesma Jerusalém. Deus, diziam eles, tem o seu Templo na nossa cidade? Pois ele defenderá as nossas casas, por não perder a sua. Mas vede o que lhes disse então o profeta Jeremias: Nolite confidere in verbis mendacii, dicentes: Templum Domini, templum Domini, templum Domini est. Vós, fiados no Templo de Deus, matais, roubais, adulterais, como se no mesmo Templo tivéreis licença e imunidade de Deus para pecar livremente: pois sabei que toda essa vossa confiança é falsa e enganosa, e que no cabo vos há de mentir: Nolite confidere in verbis mendacii, porque a quem peca em confiança do Templo, não lhe vale o Templo. E assim sucedeu. O mesmo digo da Confissão, porque Deus, e sua justiça, sempre é o mesmo e a mesma. Assim como não vale o Templo a quem peca em confiança do Templo, assim é justo castigo de Deus que não aproveite a Confissão aos que pecam fiados na Confissão. Deus fez a Confissão para remédio da fraqueza, e não para estímulo da malícia. É medicina para sarar, e não carta de seguro para adoecer. Por isso permite Deus justissimamente, que ou falte a confissão, ou não aproveite a muitos, porque não é razão que o remédio seja proveitoso a quem foi injurioso ao mesmo remédio.

Aqui parara eu já, e me dera por satisfeito, se não tivera notícia, que anda muito valida pela terra  uma nova proposição ou teologia, a qual eu não posso crer, senão que o Norte a trouxe de Holanda a Pernambuco, e o Nordeste de Pernambuco à Bahia. E que proposição é esta? Que para um cristão ir ao céu, basta ter confessor e dinheiro: o confessor para os pecados, o dinheiro para os sufrágios; o confessor para as culpas, com que vos livreis do inferno, e o dinheiro para as penas, com que vos livrais do purgatório. Ainda agradeço aos que isto dizem, crerem que há purgatório e inferno; mas assim começam as heresias. Pobres dos pobres que não têm dinheiro, e mais pobres dos ricos que nele se fiam. Mas eu lhes concedo que tenham confessor e dinheiro, e, deixado o exemplo de Judas, ainda lhes mostro com outro mais apertado, que com dinheiro e confessor podem morrer sem Confissão. No tempo da primitiva Igreja todos os cristãos levavam o dinheiro que tinham aos pés dos apóstolos, porque viviam em comunidade, como hoje os religiosos. Houve, contudo, dois casados, Ananias e Safira, que vendendo uma sua herdade, contra o voto que tinham feito, reservaram escondidamente parte do preço. Chamou Pedro a Ananias, fez-lhe cargo do seu pecado e de ter mentido ao Espírito Santo, quando estava em sua mão lograr o que tinha, e no mesmo ponto, sem dizer palavra, caiu Ananias morto (At. 5,1-10). Veio depois do mesmo modo Safira, chamada a juízo: argüiu-a S. Pedro da mesma culpa, como meeira da mesma fazenda e cúmplice na reserva do dinheiro, e também caiu de repente muda e morta. Agora pergunto: E estes dois desventurados tiveram confessor e dinheiro? Uma e outra coisa tiveram. Tiveram confessor, e tal confessor como S. Pedro, Sumo Pontífice da Igreja; tiveram também dinheiro, que para isso o esconderam e reservaram, e confessou-se algum deles? Nenhum. De maneira que ambos tiveram dinheiro, ambos tiveram confessor, ambos morreram aos pés do confessor, e ambos morreram sem Confissão. Levai lá as novas aos da nova teologia, porque não quero afrontar a nenhum dos presentes com presumir dele tal ignorância.

Não basta ter confessor na hora da morte para a alma se salvar, porque, com o confessor à cabeceira, a uns falta a Confissão, e outros faltam a ela. Aos que falta vida, a fala e o juízo, falta a Confissão; e os que têm vida, fala e juízo, faltam eles à Confissão muitas vezes, porque em pena de a guardarem para aquela hora, e pecarem em confiança dela, permite justamente Deus que por falta de verdadeira disposição — que pode ser de muitos modos — lhes não aproveite a Confissão. Dizei-me: se um homem, por suas próprias mãos se dera uma estocada penetrante, e sobre esta, outras e outras, não o teríeis por doido? E se ele respondesse que fazia tudo aquilo porque tinha uma redoma de óleo de ouro muito provado, com que facilmente se curaria, não o teríeis por mais doido ainda? Pois isto é o que fazem os que, fiados na facilidade da Confissão, continuam a pecar. E a doidice e loucura deles é muito mais rematada, porque nem a Confissão nem o efeito dela está na sua mão. Por isso há tantos que se condenaram sem Confissão, e tantos que se condenaram confessados, para que ninguém, finalmente, se fie na facilidade deste remédio.


CAPÍTULO VII

Temos visto mais largamente do que quisera, posto que com a maior brevidade que me foi possível, quão enganosos são os motivos e quão falsos os pretextos do nosso apetite, com que o demônio nos anima a pecar e a continuar nos pecados, contra o preceito e conselho de quem tanto nos deseja salvar, que deu por isso a vida: Jam amplius noli peccare. Vimos que todos são falsos e enganosos, porque nem a dilação do castigo o diminui, antes o acrescenta; nem a confiança na misericórdia divina nos assegura da sua justiça, antes a provoca; nem os propósitos do arrependimento têm firmeza alguma na vida, nem ainda na vontade; nem, finalmente, a facilidade do remédio é tão desembaraçada e pronta que não tenha tantas dificuldades como perigos, bastando o menor deles para que a alma se perca e se condene. Mas porque este ponto de não haver de pecar mais é tão árduo, a natureza tão corrupta e o hábito de cair e tornar a cair tão comum na cegueira humana, desejando eu algum meio que vos propor mais poderoso que tudo isto, foi Deus servido por sua bondade de me descobrir e inspirar um tão forte, tão eficaz e ainda tão terrível, que depois de ouvido e sabido como é em si mesmo, nenhum homem haverá que se atreva a cometer um pecado mortal, se não for tão obstinado e tão precito que se queira condenar sem remédio. Este é o meio que porventura nunca ouvistes, como ao princípio prometi; e agora torno a pedir de novo àquele Senhor crucificado, pelo preço infinito de seu sangue e pela intercessão de sua Santíssima Mãe, me assista e nos assista a todos neste ponto, com a eficácia e força de sua graça, que a importância dele requere. Se em algum discurso me destes atenção, seja neste que, para que o leveis na memória, todo será substância, e muito breve.

Por primeiro fundamento de tudo, havemos de saber e supor que Deus, na sua mente divina, tem certa medida destinada aos pecados de cada um, a qual medida, enquanto não está cheia, tem remédio, e podem ter perdão os pecados, mas tanto que se encheu, não tem nenhum remédio. A primeira vez que Deus revelou este segredo da sua Providência e justiça, foi nos pecados dos reinos, das repúblicas e das cidades, que também é muito boa suposição e doutrina para o tempo, estado e contingências em que se acha o Brasil. Prometeu Deus a Abraão, que a ele e a seus descendentes daria as terras dos amorreus, por isso chamadas da Promissão, mas que não seria logo, senão dai a muitos anos: Nec dum enim completae sunt iniquitates Amorrhaeorum usque ad praesens tempus (Gên. 15,16): Porque os amorreus, até o tempo presente, não encheram ainda a medida dos pecados que eu tenho decretado e taxado para seu castigo. E essa foi uma das razões por que os filhos de Israel andaram tanto tempo aos bordos pelo deserto, até tomarem porto no Rio Jordão, para que entretanto se acabasse de encher a medida dos pecados dos amorreus. Este mesmo foi o sentido em que Cristo, Senhor nosso, disse aos escribas e fariseus, depois de repreender suas impiedades e injustiças, que enchessem a medida de seus pais: Implete mensuram patrum vestrorum, porque nos corpos políticos, quais são as repúblicas, que duram em muitas vidas, os pecados dos pais, filhos e netos, todos concorrem a encher a medida.

No profeta Zacarias temos uma ilustre representação desta verdade por todas suas circunstâncias. Apareceu um anjo a Zacarias, e disse-lhe que levantasse os olhos, e visse o que saía pelas portas de Jerusalém. Olhou, e viu que saía uma ânfora, que era certo gênero de medida, quadrada por todas as partes, de que usavam naquele tempo, assim hebreus como latinos; após a ânfora, saiu uma pasta grossa de chumbo, a qual pesava um talento, que do nosso peso vem a ser três arrobas; e atrás destes dois instrumentos ou figuras inanimadas, viu o profeta que saía pela mesma porta uma mulher, a qual encaminhando-se para a ânfora, se assentou sobre ela; porém o anjo, declarando que aquela mulher era a impiedade: Haec est impietas, a lançou e meteu dentro da mesma ânfora, e a fechou e tapou com a pasta de chumbo, que, como cortada para o mesmo efeito, se ajustou naturalmente com ela. Feito isto, tornei a olhar, diz o profeta, e vi sair da cidade outras duas mulheres, voando com asas de minhoto, as quais levantaram a ânfora por uma e outra parte, e a levaram pelos ares à terra de Senar. Até aqui, palavra por palavra e letra por letra, a visão de Zacarias, na qual lhe representou Deus a destruição de Jerusalém e Reino de Judá, quando, sitiada e devastada a cidade pelos exércitos de Nabucodonosor, todos presos e cativos foram levados à Babilônia. Isso quer dizer a terra de Senar, porque nesta terra foi edificada a Torre de Babel, donde Babilônia tomou o nome. Mas se todo o intento desta visão era significar Deus a Zacarias o cativeiro e transmigração do seu povo, que se podia declarar em tão poucas palavras como eu o digo, para que o fez a divina Sabedoria com tantas cerimônias, tantos aparatos, tantas figuras, e com tal ordem e sucessão de umas depois das outras, e com tão notáveis circunstâncias em cada ato ou cena da mesma representação? Porque assim quis revelar Deus ao seu profeta, e nele a todos nós, quais são os estilos ocultos de sua justiça, e as causas da assolação das cidades, reinos e nações, quando contra elas se procede ao extremo castigo.

A primeira coisa que aparece em juízo é a ânfora ou medida que Deus tem destinado aos pecados, a qual, enquanto não está cheia, dilata-se e suspende-se o castigo, mas, tanto que se encheu, executa-se sem remédio. Este foi o mistério com que o anjo meteu dentro na ânfora a mulher chamada impiedade, em que eram significados os pecados de Jerusalém e de toda a nação, ímpia contra Deus nas idolatrias e sacrilégios, e ímpia contra o próximo nos roubos, nos homicídios, nos adultérios, e em todo o gênero de injustiças e crueldades. E porque estes pecados tinham já cheia a medida de sorte que não podia levar mais, por isso o anjo, como cheia e arrasada a tapou logo com aquela cobertura de chumbo tão pesada e tão justa, que nem para diminuir nem para acrescentar se podia abrir. Cheia assim até cima a medida, o que só restava era a execução do castigo, sem demora ou momento de dilação. E esta foi a conseqüência com que no mesmo ponto saíram as duas mulheres com asas, as quais, não por terra e andando, senão pelo ar e voando, tomando sobre os ombros a ânfora, a passaram de Jerusalém a Babilônia. E se perguntarmos que duas mulheres eram estas, que não tocaram a terra, respondem os melhores intérpretes, fundados nos oráculos dos profetas, que eram a misericórdia e a justiça divina: a misericórdia, para justificar o castigo, e a justiça, para o executar. Porque, se os homens suspendessem o curso e multiplicação dos pecados, sempre a misericórdia divina, que a isso os exortava pelos profetas, esteve pronta para os perdoar; mas porque eles não quiseram desistir, e chegaram a encher a medida, já não podia a justiça deixar de executar, como executou, o castigo. Só resta saber por que as asas destas duas executoras eram de minhoto; mas isso declarou admiravelmente o mesmo sucesso, porque o minhoto foi Nabusardão, general dos exércitos de Nabuco, o qual dando um e outro cerco à cidade de Jerusalém, como fazem as aves de rapina, finalmente empolgou em todo o povo, e o levou nas unhas à Babilônia.

De maneira que, por esta e outras revelações alegadas, nos consta — o que doutro modo se não podia saber — que Deus na sua mente divina, como dizíamos, e nos decretos altíssimos da sua Providência tem taxado a cada cidade, reino, província e nação certa medida de pecados, aos quais infalivelmente se segue o castigo tanto que se encheu, e antes de estar cheia, não. E neste caso do cativeiro de Babilônia, notam graves autores, e fazem uma advertência, a qual eu não devo passar em silêncio, pelo muito que nos pode importar. Durou aquele cativeiro setenta anos, depois dos quais foram os judeus restituídos à pátria, mas tão pouco emendados e lembrados do primeiro castigo, que dali a pouco tempo começaram outra vez a encher a medida com tal excesso que, depois de estar cheia de todo, os castigou Deus com outro cativeiro e transmigração universal, não de setenta, nem de setecentos anos, mas dos que ainda hoje vão continuando, e são já mil e quinhentos e setenta e sete, sem se saber quantos serão ainda. Disse que essa advertência nos podia também importar a nos, e já creio me tereis entendido. No ano de 1624 castigou Deus a Bahia com a entregar aos holandeses, posto que não passou o cativeiro de um ano, como já passa de nove o de Pernambuco. De então para cá é certo — ainda mal — que os pecados começaram outra vez a encher a segunda medida, e se dão tanta pressa, que não sei como não está já cheia. Na nossa mão está fazer que se não encha de todo, porque as asas do minhoto andam já tão perto, que não será necessário à divina Justiça mandá-las vir de Amsterdão.


CAPÍTULO VIII

Mas, passando da medida dos pecados comuns à dos particulares de cada um, assim como Deus tem sinalado certa medida aos pecados de cada cidade ou reino, assim a tem sinalado também aos pecados de cada homem. Quanto seja mais para temer esta segunda medida, ninguém o pode duvidar, porque as cidades e os reinos não vão ao inferno: os homens sim, e que Deus o tenha determinado e taxado a cada um de nós, é coisa não só manifesta, senão manifestíssima, diz Santo Agostinho. Traz o santo os exemplos da Escritura já alegados, e outros, e conclui assim no livro De Vita Christiana: Manifestissime instruimur et docemur; singulos secundum peccatorum suorum multitudinem consummari, et tandiu, ut convertantur sustineri, quandiu cumulum suorum non habuerint delictorum consum matum: Manifestissimamente nos ensina e declara Deus, diz Agostinho, que a cada homem tem sinalado certa medida ou número de pecados, o qual, enquanto não está cheio e consumado, nos espera, para que nos convertamos; mas, tanto que a dita medida se encheu, e o numero ou cúmulo dos
pecados chegou ao último, então não espera Deus mais, e se segue sem remédio a condenação. — O mesmo afirma Santo Ambrósio por estas palavras: Dei verba sunt, non sunt completa peccata Amorrhaeorum, per quod ostendit mensuram quamdam esse delictorum, quam cum impleverint peccatores, vita digni minime judicentur. E porque este é o comum sentir dos expositores da Escritura Sagrada, contento-me com referir o mais prático e versado em todos, o doutíssimo e diligentíssimo Cornélio a Lápide. Sobre a ânfora de Zacarias diz assim: Amphora est mensura peccatorum cujusque, tum hominis tum populi, qua impleta, Dei vindicta prosilit ad ultionem. E sobre as palavras de S. Paulo aos tessalonicenses, que abaixo hei de alegar, diz: Hinc patet Deum urbibus, regnis, et a pari proportione impiis privatis certum statuisse peccatorum cumulum, ad quem paenam vel vindictam differt, donec impleatur ut ilLo impleto, omnia simul et perfecte vindicet et castiget. E o mesmo comento e declaração faz sobre outros lugares, assim do Velho como do Novo Testamento, colhendo sempre das revelações divinas, expressas nos mesmos textos, que a cada homem tem Deus sinalado certa medida e taxado certo número de pecados, o qual, quando se acaba de encher pelo último, já não há lugar de perdão, senão de castigo.

Nem deve parecer nova ou admirável, e muito menos alheia da justiça ou misericórdia divina a determinação antecedente desta medida, decretada aos pecados de cada homem, porque, se nos castigos dos reinos e das cidades se ajuntam os pecados dos presentes e vivos, que acabaram de encher a medida, com os dos passados e mortos, que a começaram a encher, que muito é que cada homem com os seus, que ele mesmo cometeu, e ultimamente comete, encha também a sua? Nem acrescenta a dificuldade que a medida dos pecados seja maior para uns homens, e menor e de menos número para outros, porque esta mesma, que a nosso fraco entender pode parecer desigualdade, no arbítrio da Providência divina é suma justiça. E se não, respondei-me. Deus também põe medida aos dias da vida de cada homem. Por onde disse Davi: Ecce mensurabiles posuisti dies meos. E esta medida é tão certa e determinada, que chegado o último dia, não tem nenhum remédio, como disse Jó: Constituisti terminos ejus, qui praeteriri non poterun. Pois, assim como ninguém se queixa de Deus, nem lhe estranha que a medida dois dias em uns e outros homens seja tão desigual, muito menos se deve admirar que a dos pecados o seja também, principalmente bastando um só, e o primeiro pecado, para ter Deus justíssimo direito de lançar logo no inferno a quem o cometeu. E a razão fundamental de uma e outra justiça e providência é o supremo domínio de Deus, igualmente autor da graça e da natureza. E assim como enquanto autor da natureza pode limitar à vida certo número de dias, sem injúria do homem, assim, sem injúria do mesmo homem pode limitar ao perdão certo número de pecados. Donde se segue, que assim como aquele dia, que encheu o número dos vossos dias, necessariamente é o último, e chegado a ele não podeis deixar de morrer, assim aquele pecado, que encheu o número dos pecados, também é o último, e, cometido ele, não podeis deixar de vos condenar, porque se cerrou a medida, e já não há lugar de perdão.

Ouvi ao mesmo Deus, por boca do profeta Amós: Haec dicit Dominus: Super tribus sceleribus Juda, et super quatuor non convertam eum; super tribus sceleribus Israel, et super quatuor non convertam eum. O mesmo anuncia a Damasco, a Tiro, a Moab, a Edom e a outros. E quer dizer. Cometeram o primeiro pecado, e perdoei-lhes; cometeram o segundo, e perdoei-lhes; cometeram o terceiro, e também lhes perdoei; mas porque cometeram o quarto, não lhes hei de perdoar. Pois Deus, infinitamente misericordioso, não perdoa mais que três pecados? Sim, perdoa. Perdoa trezentos, e perdoa três mil, e, se o pecador se arrepende de todo coração, perdoa três milhões. Mas nestas sentenças põe-se o número certo pelo incerto, para que por este exemplo e suposição se entenda melhor o que se quer dizer. Reduzida, pois, a medida ou número dos pecados a quatro, diz Deus que perdoará o primeiro, e perdoará o segundo, e perdoará o terceiro, e que para perdoar todos estes pecados converterá em todos ao pecador; porém, que se ele cometer o quarto que o não há de  converter nem lhe há de perdoar, porque o quarto pecado, neste caso, é o que acaba de encher a medida, e o pecado que acaba de encher a medida é pecado sem remédio e sem perdão, porque nem Deus o há de perdoar, nem o pecador se há de converter: Et super quatuor non convertam eum.

Daqui se entenderá facilmente um dificultosíssimo lugar da primeira Epístola de S. João, em grande prova do que dizemos. As palavras do santo apóstolo, entre todos, por antonomásia, o Teólogo, no capítulo quinto são estas: Qui scit fratrem suum peccare peccatum non ad mortem, petat, et dabitur ei vita, peccanti non ad mortem. Est peccatum ad mortem: non pro illo dico ut roget quis (1 Jo. 5,16): Se algum cristão souber que seu próximo peca, rogue por ele, e dar-se-lhe-á a vida, se o pecado não for pecado ad mortem; mas se for pecado ad mortem, não digo que rogue por ele pessoa alguma. — A dificuldade deste texto é tão grande que os expositores e teólogos, na inteligência dele, se dividem em mais de quinze opiniões, não concordando em que pecado seja o que S. João chama pecado ad mortem, e pelo qual se não deve orar, como incapaz de perdão, irremissível e sem remédio. Alguns dizem que é o pecado do homicídio, outros o do adultério, e Santo Agostinho e Beda não duvidaram dizer que era o da inveja. E porque estes delitos não parecem tão enormes, outros, subindo mais alto, dizem que é o pecado da blasfêmia, outros o da infidelidade, outros o da apostasia, outros o da obstinação, e outros, sem nomearem a espécie, dizem em geral que é algum pecado gravíssimo. Mas, contra todas estas sentenças, está que não há pecado algum, por grave e gravíssimo que seja, que Deus não perdoe. Que pecado é logo este incapaz de perdão e irremissível, que S. João chama pecado ad mortem? Respondo que não é nenhum pecado particular, nem de sua natureza mais grave que os outros, senão qualquer pecado mortal, ainda de muito inferior malícia aos referidos, contanto que seja o último, e o que acaba de encher a medida que Deus tem taxado a cada homem; porque, tanto que a medida se encheu com qualquer pecado que seja, já não há lugar de perdão nem de conversão: Et super quatuor non convertam eum. E essa é a propriedade com que São João lhe chama peccatum ad mortem: pecado que leva sem remédio à morte eterna; porque, ainda que todo o pecado mortal mata a  alma, dos outros pode a alma ressuscitar e tornar a viver, e deste não, como claramente distingue o  mesmo texto: Et dabitur ei vita, peccanti non ad mortem.


CAPÍTULO IX

Suposta esta verdade tão assentada e este estilo da Providência e justiça divina, tantas vezes revelado pelo mesmo Deus, veja agora cada um de nós se pode haver, como no princípio prometi, meio ou motivo algum, nem mais eficaz, nem mais forte, nem mais terrível, para que um homem que tem juízo, e um cristão que tem fé, não só se resolva firmissimamente, mas nem tenha nem possa ter atrevimento para jamais pecar: Jam amplius noli peccare. Os outros motivos ou pretextos sempre deixavam alguma esperança depois do pecado; porém este de tal modo a jarreta e corta totalmente, que só quem se quiser condenar de contado e ir resolutamente ao inferno se atreverá a pecar. Porque, se eu sei que Deus me tem taxado certo número e talhado certa medida aos pecados, e sei que cerrado este número e cheia esta medida, já não há lugar de perdão, senão de condenação sem remédio, quem me diz a mim, ou me pode assegurar, que aquele pecado que quero cometer não seja o último, e o que só falta à medida para se encher de todo? Direis que assim como pode ser o último, pode também não ser. E se for? E se for? Quase estive deliberado a acabar aqui o sermão, e vos despedir só com esta pergunta. Mas é bem que saibais, para maior assombro, o que Deus faz naquele mesmo ponto em que o homem, pelo último pecado, acaba de encher a medida. O que Deus faz no ponto em que o pecador acabou de encher a medida, ou é matá-lo logo, ou abrir dele a mão e deixá-lo para sempre. Vede que disjuntiva esta igualmente terrível por ambas as partes. Ou ir para o inferno logo, ou ir alguns dias depois, mas ir infalivelmente. Quanto à primeira parte, de que Deus tira logo a vida aos que acabaram de encher a medida de seus pecados, é sentença expressa de Santo Agostinho: Sed hoc magis sentire nos convenit, tandiu unumquemque Dei patientia sustentari, quandiu nondum peccatorum suorum terminum, finemque compleverit, quo consumato, eum illico percuti, nec illi ullam veniam jam reservari: esse autem certum peccatorum modium, atque mensuram Dei ipsius testimonio comprobatur. Quer dizer, começando pelo fim, que Deus, como consta por seu próprio e divino testemunho, tem determinado aos pecados de cada homem certo número e medida, a qual, enquanto não está cheia, o sofre com sua infinita paciência; porém, tanto que ele a encheu, logo no mesmo ponto lhe tira a vida, sem mais remédio nem lugar de perdão. Assim aconteceu a el-rei Baltasar, cuja sentença de morte, estando à mesa, lhe apareceu escrita na parede em três palavras. A primeira dizia: Numeravit (Dan. 5,26), contou, porque fez Deus a conta aos pecados de Baltasar. E como naquela noite e naquela hora cometeu ele o último pecado, com que acabou de encher o número e medida dos que Deus lhe tinha determinado, na mesma hora se escreveu a sentença: Eadem hora apparuerunt digiti, e na mesma noite foi morto: Eadem nocte interfectus, est Balthasar (Dan. 5,30). Mas se então se encheu e cerrou o número dos pecados de Baltasar, como diz a mesma Escritura que se achou que tinha menos: Inventus es minus habens? Por isso mesmo, e porque assim foi. Quando Baltasar se assentou à mesa, tinha menos um só pecado dos que eram necessários para encher o número, e, como ele, na mesma mesa, mandou vir a ela os vasos sagrados do Templo, para que fossem profanados, este pecado de sacrilégio foi o que acabou de cerrar o número e encher a medida; e tanto que ela esteve cheia, logo ele foi morto violentamente: Interfectus est.

Quantas vezes se vê isto no mundo sem se entender. Mataram esta noite a fulano, vindo de tal parte. E quantas noites tinha ele ido e vindo dessa mesma parte? Muitas. Pois, por que o não mataram então, senão agora? A ofensa de Deus e o agravo dos homens era o mesmo, e muitas vezes público: pois, por que o dissimulou Deus, e o não vingaram os homens, senão neste dia e nesta hora? Porque os pecados antecedentes iam enchendo a medida, o deste dia e desta hora foi o que a acabou de encher. O mesmo passa nas mortes e acidentes repentinos, ainda que pareçam naturais, e em outros desastres e casos que parecem fortuitos, e as mais das vezes são efeito e execução do pecado último e decretório que, ajuntando-se aos outros, e acrescendo sobre eles, acabou de encher a medida. Tanto assim — diz o grande Dionísio Cartusiano, tão alumiado no espírito, como insigne em todo o gênero de letras — tanto assim que aquele mesmo homem, que segundo as leis da natureza e disposição da saúde e idade, havia de viver ainda muitos anos, só porque acabou de encher a medida dos pecados, acabou juntamente, e sem remédio, os dias da vida: Saepe enim homines, propter peccata intempestive moriuntur, quando videlicet impletae sunt iniquitates eorum. Unde de peccatore apud Job scriptum est: Antequam impleantur dies ejus, peribit. Diz Jó que o pecador morrerá antes de encher os seus dias, e a causa não é outra senão porque antes de encher o número dos dias encheu o número dos pecados: Quando videlicet impletae sunt iniquitates eorum. E quem assegurou aos que neste dia e nesta hora estão vivos e sãos, que o primeiro pecado que se deliberarem a cometer não seja também o último? Aquele hebreu e aquela madianita, aos quais matou o zelo de Finéias no pecado atual, bem mal cuidavam que no mesmo ato se lhes havia de acabar a vida, como tem acontecido a outros muitos. Mas como só aquele pecado faltava a ambos para encherem a medida dos pecados, a vida e o pecado tudo se acabou juntamente, para que temam e tremam todos de se resolver mais a  pecar, pois não sabem se aquele pecado será o último.

Mas quando com o último pecado se não acabe juntamente a vida — que era a segunda parte da nossa disjuntiva — nem por isso ficam de melhor condição os que já encheram a medida dos pecados, porque deixados da mão de Deus, só lhes servirão esses dias que viverem de maior inferno: Vae eis, cum recessero ab eis (Os. 9.12): Ai deles — diz Deus pelo profeta Oséias — ai deles, quando eu me apartar deles! — Oh! Se os homens pudessem alcançar e compreender a significação de um ai de Deus! Oh! que alto e que profundo ai! Tão alto que chega ao céu empíreo, donde o pecador é lançado e deserdado para sempre; tão profundo que penetra até os abismos do inferno, onde o pecador será metido e aferrolhado para arder enquanto Deus for Deus. A este ai responderão por toda a eternidade infinitos ais, mas ais de dor sem arrependimento, ais de tormento sem alívio, ais de desesperação sem remédio. Antes disto basta um ai de verdadeira contrição, para Deus perdoar todos os pecados; mas, depois de cheia a medida e a alma ser deixada de Deus, já não terão lugar esses ais, ou serão sem fruto, porque ninguém se pode converter a Deus sem Deus. Como tornará a alma a Deus, se o mesmo Deus a deixou já: Cum recessero ab eis? Ruperto, e com ele a glosa, comentam assim estas palavras de Oséias: Postquam recessero ab eis, sequitur adhuc vae, id est, judicium aeternae damnationis: Depois de Deus deixar a alma, segue-se ainda o ai do mesmo Deus, e este ai não é nem significa menos que a eterna condenação. — Santo Isidoro diz o mesmo: Dei secreto et justo judicio, deseritur homo, et perdendus in potestate daemonum relinquitur nam re vera, quem Deus deserit, daemones suscipiunt: Quando Deus por seus secretos e justos juízos deixa uma alma, logo o demônio toma posse dela para sua perdição eterna, porque demiti-la Deus de si, é entregá-la ao demônio.

Os teólogos, vindo a declarar rigorosamente em que consiste deixar Deus uma alma, alguns disseram que em a privar totalmente dos auxílios, ainda ordinários, em pena dos pecados antecedentes. E verdadeiramente, deixados outros lugares da Escritura, um do capítulo quinto de Isaías parece que o diz assim à letra: Et nunc ostendam vobis quid faciam vineae meae: Auferam sepem ejus, et erit in direptionem; diruam maceriam ejus, et erit in conculcationem; et ponam eam desertam: non putabitur et non fodietur, et ascendent vepres et spinae, et nubibus mandabo ne pluant super eam imbrem (Is. 5,5 s): Deixarei a minha vinha — diz Deus — por me responder com labruscas em vez de uvas: Ponam eam desertam. E que lhe farei então? Arrancar-lhe-ei as sebes e derrubar-lhe-ei o muro, para que homens e animais entrem por ela e a pisem; não a podarei nem cavarei, nem lhe farei outro benefício ou cultura; já não será vinha, senão mato, e em lugar de brotarem nela as vides, crescerão abrolhos e espinhas; e, sobretudo, mandarei ao céu e às nuvens que não chovam sobre ela: Et nubibus mandabo, ne pluant super eam imbrem. Se isto não é privar a alma de todo o auxílio, ninguém negará que o parece. E para Deus no tal caso justificar a sua Providência, basta a definição do Concílio Tridentino: Nunquam Deus deserit hominem, nisi prius ab homine deseratur: que nunca Deus deixa o homem, se o homem não deixa primeiro a Deus. Mas porque a sentença mais pia, mais recebida e aprovada comumente por certo é que Deus em nenhum estado desta vida falta ao homem com os auxílios suficientes. Que se segue daqui depois de cheia a medida dos pecados, senão, como dizia, maior inferno? Ou o pecador encheu a medida dos pecados, ou não: Se a não encheu, salvou-se; se a encheu, condenou-se. E que importa que se condenasse com auxílios, se não usou bem deles?

Este é o estado infelicíssimo da impenitência final, a qual se consuma na outra vida, mas começa nesta. Oh! quantos condenados vivem ainda, e andam entre nós, não porque absolutamente não o pudessem, mas porque se não hão de converter! Estão atados aos pecados, de que já encheram a medida: Funes peccatorum circumplexi sunt me. Cuidam que se hão de desatar do último, como porventura se desataram dos outros, mas engana-os o seu pensamento, como enganou a Sansão. Três vezes rompeu Sansão as ataduras com que os filisteus o queriam prender; mas quando veio a quarta, depois de cortados os cabelos, nota a Escritura que, acordando, disse consigo: — Também desta vez me desatarei, como das outras, porque não sabia que Deus o tinha deixado: Dixit in animo suo: egrediar sicut ante feci, et me excutiam, nesciens quod recessisset ab eo Dominus (Jz. 16,20). Tinha Deus deixado a Sansão, e porque o tinha deixado não se desatou como dantes: prenderam-no os filisteus, tiraram-lhe os olhos e levaram-no a moer em uma atafona. O mesmo acontece à alma deixada de Deus: prendem-na os demônios, e tomam posse dela, como dizia Santo Isidoro: tiram-lhe os olhos, com que fica cega, obstinada e impenitente, e levam-na a moer e arder na atafona do inferno, cuja roda em qualquer parte pode ter princípio, e em nenhuma tem fim, porque é a roda da eternidade. E se isto faz ou acaba de fazer o último pecado, que enche a medida, e ninguém sabe qual seja, nem há pecado que o não possa ser, quem haverá que se atreva a cometer qualquer pecado, e se não resolva firmemente a nunca mais pecar: Jam amplius noli peccare?


CAPÍTULO X

Por fim quero responder a duas dúvidas que podem ocorrer, para que nos não enganemos com elas. A primeira é se os pecados já confessados e perdoados entram também na conta para encher a medida? Respondo que sim, porque, ainda que estejam perdoados quanto à culpa e satisfeitos quanto à pena, para encherem o número e perfazerem a conta basta haverem sido. Assim como os dias, que todos passam, ou fossem bem ou mal gastados, enchem a conta e a medida da vida, assim os pecados, ou perdoados ou não, enchem a sua, a qual se determinou e compôs de todos os que cada um cometesse: De propitiato peccato noli esse sine metu (Eclo. 5,5): O pecado já perdoado — diz o Espírito Santo — não deixes de o temer. — E por que, se já está perdoado? Porque, ainda que o pecado perdoado já não é quanto à culpa, e pode também ser que já não seja quanto à pena, quanto ao número e à soma com que já entrou na conta com os demais, basta ter sido pecado para ajudar a encher a medida. E como o chegar a medida dos pecados a se encher é coisa tão temerosa e de sumo perigo, por isso todo o pecado, ainda que nos conste moralmente, ou nos constasse por outra via mais certa, que estaria perdoado, sempre, contudo, nos deve causar temor: Depropitiato peccato noli esse sine metu.

A outra dúvida ainda nos pode enganar mais aparentemente, porque a matéria com que o demônio nos tentar, pode ser muito menos grave que a de outros pecados, que já tenhamos cometido; e, se aqueles, sendo muito maiores, não encheram a medida, muito menos parece que pode encher este, com que agora sou tentado, sendo muito mais leve ou menos grave. Também isto é engano, e se demonstra com autoridade de fé, e com o maior e mais evidente exemplo que se podia excogitar. Fala São Paulo dos judeus que o perseguiam e impediam a pregação do Evangelho, e sendo esta perseguição vinte anos depois da morte de Cristo, diz o Apóstolo que com ela enchiam os judeus a medida dos pecados, pelos quais totalmente haviam de ser destruídos com castigo, assolação e extermínio final: Qui Dominum occiderunt Jesum, et nos persecuti sunt, prohibentes nos gentibus loqui ut salvae fiant, ut impleant peccata sua semper: pervenit enim ira Dei super illos us que in finem. A morte de Cristo foi o maior pecado que nunca se cometeu nem podia cometer, e a perseguição de Paulo, e o impedimento que com ela se punha à pregação do Evangelho, ainda que grande pecado, era, sem comparação, muito menor. Pois, como diz o mesmo S. Paulo, fazendo menção da morte de Cristo pelos judeus, que eles, com a perseguição que lhe faziam, enchiam a medida dos seus pecados: Ut impleant peccata sua? Porque, para encher a medida dos pecados, não é necessário que o pecado que acaba de encher seja maior nem igual aos pecados já cometidos, e basta que seja muito menor. Nas coisas secas o último grão, e nas líquidas a última gota, são as que acabam de encher a medida, e não pela grandeza ou quantidade de cada uma, senão porque é a última. O mesmo passa em qualquer pecado, contanto que de sua natureza seja mortal, para que temamos a todos e a cada um, e nos não fiemos em ser ou parecer menor, para nos arriscarmos a o cometer.

Oh! praza à majestade e misericórdia divina, que esta lição do céu se nos imprima dentro na alma, e no-la penetre de tal sorte que, desta hora e deste momento em diante, nos resolvamos constantissimamente a nunca mais pecar, por nenhum interesse, por nenhum gosto, por nenhum receio, por nenhum caso ou sucesso da vida nem da morte. Vede quem vos diz que pequeis, e quem vos diz que não pequeis. Quem vos diz que pequeis pode ser o mundo, pode ser o demônio, pode ser a carne, três inimigos capitais, que só pretendem e maquinam vossa eterna condenação. E quem vos diz que não pequeis é aquele mesmo Deus que, depois de vos dar o ser, se fez homem por amor de vós, e aquele Deus e Homem que só por vos salvar e vos fazer eternamente bem-aventurado, não duvidou padecer tantos tormentos e afrontas, e morrer pregado em uma cruz. Este Senhor tão poderoso, este conselheiro tão sábio, este amigo tão verdadeiro e tão fiel, é o que vos diz que não pequeis: Jam amplius noli peccare.

Considerai bem estas palavras do amorosíssimo Jesus, que não só são para persuadir, senão para enternecer a quem ainda tiver coração: Jam amplius, já não mais. Baste já, cristão remido com o meu sangue, baste já o que tens pecado, baste já o que tens vivido sem lei, sem razão, sem consciência, sem alma; baste já o que me tens ofendido, baste já o que me tens desprezado, baste já o que me tens crucificado. Se te não compadeces de mim, compadece-te ao menos de ti, que a ti, e por amor de ti o digo. Se não basta que eu te mande que não peques, eu to peço, eu to rego, e não só te represento a  minha vontade, mas me valho e invoco os poderes da tua: Noli, noli peccare. Que não queiras pecar te  advirto uma vez e outra, por que não cuides que não podes. Na tua mão, no teu alvedrio, na tua vontade está o salvar-te, se quiseres, para que vejas que cegueira, que loucura, que infelicidade, que miséria e que eterna confusão e dor irremediável será a tua, se por tua própria vontade, e por não resistires a um pecado, te condenares. Se já estiveras no inferno, para onde corrias tão precipitadamente, e onde já havias de estar ardendo, se eu não tivera mão na minha justiça, que havia de ser de ti a esta hora? E se nesta mesma hora eu te oferecesse o partido de te livrar do inferno e de te dar o céu, só com condição de não quereres mais pecar, que havias de fazer e que graças me havias de dar? Pois, se por mercê e misericórdia minha ainda estás em tempo, por que não tomarás muito deveras, e para sempre, a mesma resolução? Por que te não livrarás dos males eternos, e segurarás os eternos bens? Por que não ganharás a coroa e reino do céu, e te farás para sempre bem-aventurado? E tudo isto só por ter uma vontade tão honesta, tão útil, e ainda tão deleitável, como é o não querer pecar? Acaba, acaba já de ser inimigo de ti mesmo, acaba já de ofender a quem tanto te ama, acaba já de querer antes o inferno sem mim, que a glória comigo: Jam amplius noli peccare.

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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão do Quarto Sábado da Quaresma" (1640)

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