SERMÃO DO QUARTO SÁBADO DA
QUARESMA (1640)
Pede o autor a todos os que
tomarem este livro nas mãos que, por amor de Deus e de si, leiam este primeiro
sermão, do pecador resoluto a nunca mais pecar, com a atenção e paciência que a
matéria requer.
Jam amplius noli peccare.
CAPÍTULO I
O maior mal de todos os males —
não digo bem — o mal que só é mal, e sumo mal, é o pecado. Porque assim como
Deus, por essência é o sumo bem, assim o pecado, por ser ofensa de Deus, é o
sumo mal. Mas se entre pecado e pecado, pelo que toca a nós, pode haver
comparação e diferença, o pecado futuro é o pior e mais perigoso mal. O passado
e o presente, porque foi e é pecado, é a suma miséria; mas o futuro, porque
ainda há de ser, sobre ser a suma miséria, é o sumo perigo.
Esta é, fiéis, a importantíssima
doutrina que Cristo, soberano Mestre e Senhor nosso, nos deixou recomendada
como documento final da última cláusula do presente Evangelho. Trouxeram uma
pecadora a Cristo, achada em flagrante delito, para que o Senhor, como intérprete
da lei, a sentenciasse. E qual seria a sentença? Foi aquela que se podia
esperar da piedade e misericórdia de um Deus feito homem por amor dos homens.
Confundiu os acusadores com lhes mostrar escritos seus pecados — que só Deus
sabe livrar a uns pelos processos de outros — e depois de absolver a pecadora
do pecado de que era acusada, e de todos, o documento breve, maravilhoso e
divino, com que a despediu consolada, foram as palavras que propus: Jam amplius noli peccare (Jo. 8,11): Não
queiras mais pecar.
Isto é o que encomendou Cristo
àquela venturosa pecadora, em cuja maravilhosa história se nos representa, com
grande propriedade, o juízo sacramental a que todos somos chamados ou citados
no termo peremptório destes quarenta dias. Todos somos pecadores, e todos temos
obrigação neste santo tempo de nos presentar em pessoa, e não por outrem,
naquele sagrado tribunal, onde o mesmo Cristo é o juiz, e preside
invisivelmente. Ali, sendo nós mesmos os réus e os acusadores, confessamos
espontaneamente todas nossas culpas, e se o fazemos com a verdadeira detestação
e arrependimento que devemos a um Deus infinitamente bom e infinitamente
ofendido, o mesmo Senhor, que hoje escreveu pecados, manda riscar os nossos de
seus livros, e totalmente perdoados e absoltos, nos recolhe entre os braços de
sua misericórdia, e nos recebe em sua graça. Tal é o felicíssimo estado a que,
por virtude do Sacramento da penitência, se restituem todos aqueles que
dignamente o recebem, bem assim como a pecadora do Evangelho, quando ouviu da
boca do Redentor: Nec ego te condemnabo.
Mas porque a absolvição e a graça, posto que livre dos pecados passados, não
segura do perigo para os futuros, sobre
este grande risco de tornarmos a adoecer depois de sãos e a cair depois de
levantados, nos avisa e acautela o Divino Oráculo, exortando-nos a todos e a
cada um, como à mesma pecadora, a nunca mais pecar: Jam amplius noli peccare.
Este foi o ponto único da
doutrina de Cristo — que não só é conselho, mas preceito — e neste mesmo
determino também insistir unicamente hoje, pois, sendo sua a eleição do
assunto, nem eu posso tomar outro, nem devo. A matéria, pois, de todo o sermão,
sumamente necessária e sumamente útil, será esta. O pecador resoluto a nunca
mais pecar. Na primeira parte do discurso lhes descobrirei a falsidade e engano
de todas as razões ou pretextos com que o demônio facilita a continuar os
pecados; na segunda lhes inculcarei um novo motivo — que porventura nunca
ouvistes — o mais eficaz, o mais forte e o mais terrível que pode haver, para
nunca jamais pecar: Jam amplius noli peccare. À Virgem Santíssima, em quem
nunca houve pecado, peçamos muito de coração, que como Mãe e Advogada de
pecadores, nos alcance para esta tão importante resolução a graça que havemos
mister. Ave Maria.
CAPÍTULO II
Jam amplius noli peccare.
Para não pecar mais, nem ter
pecado jamais, bastava ser o pecado ofensa de Deus, e ser Deus quem é: infinita
e inefável bondade, infinita e imensa grandeza, infinita e incompreensível
majestade, infinita sabedoria, infinita onipotência, infinito, incriado, eterno
e imutável ser, que só ele é de si mesmo, e por tudo isto digno de ser
infinitamente amado, como ele, que só se compreende, se ama, e não por outra
causa ou respeito, senão por ser quem é. Mas, como a vileza do nosso barro,
para subir tão alto é muito pesada, e para amar tão fina e desinteressadamente
muito grosseira, acomodando-se o Espírito Santo à incapacidade de nossa fraca
natureza e à corrupção em que a deixou o primeiro pecado, nos ensinou para não
pecar aqueles quatro motivos de temor, tão fortes e tão sabidos, como de nós
mal aplicados: Memorare novissima tua, et
in aeternum non peccabis (Eclo. 7, 40): Lembra-te, homem, dos teus
novíssimos, e não pecarás jamais. — E, verdadeiramente, que homem haverá, se
não tem perdido o juízo e uso da razão, que sabendo de certo que há de morrer
sem levar desta vida mais que as suas boas ou más obras, e que com elas se há
de presentar diante do tribunal da Divina justiça, para ser severissimamente
julgado, e que dada a sentença, de que não há apelação nem embargos, ou há de
gozar de Deus para sempre na glória, ou carecer de Deus para sempre, e penar
sem remissão no fogo do inferno, que homem haverá, torno a dizer, se não tem
perdido o juízo e uso da razão, que com a fé e consideração viva destes quatro
motivos, seja tão temerário e cego, que se atreva a cometer um pecado?
Sendo pois esta verdade tão certa
e infalível, e a conseqüência dela tão racional, tão útil e tão conforme por
uma parte ao temor, e por outra ao desejo e esperança humana, qual é ou pode
ser a causa por que a experiência de cada dia nos mostre o contrário, e seja
coisa tão ordinária nos homens, que isto mesmo crêem e confessam, o pecar, o
ter pecado e o tornar a pecar? A causa ou ocasião não é outra, senão que assim
como o Espírito Santo nos deu quatro motivos para espertadores da memória,
assim o demônio inventou e nos dá outros quatro para adormentadores do
esquecimento; aqueles espertam o entendimento, para que sempre vigilante, e com
os olhos abertos, nos não consinta pecar; e estes adormentam a vontade, para
que frouxa, descuidada e cega nos facilite o pecado. E que motivos infernais
são estes quatro? Para serem mais infernais vão todos fundados na verdade da fé
e experiência. O primeiro é a dilação do castigo, o segundo a confiança na
misericórdia, o terceiro o propósito do arrependimento, o quarto a facilidade e
prontidão do remédio. Como o Espírito Santo nos refreia do pecado com a memória
e consideração dos quatro novíssimos, diz assim o demônio ao pecador, e o
pecador a si mesmo: os novíssimos da glória e do inferno não hão de vir senão
depois do juízo; o novíssimo do juízo não há de vir senão depois da morte; o
novíssimo da morte não vem senão no fim da vida. Logo, enquanto dura a vida,
quero fazer a minha vontade e viver a meu gosto; e para que seja sem perigo da
salvação, desse me asseguram quatro motivos e fundamentos tão certos como os
que já referimos e agora veremos.
CAPÍTULO III
Anima-se primeiramente o homem e
facilita-se a pecar pela dilação do castigo, porque, ainda que crê pela fé que
Deus nunca deixa de castigar o pecado, vê contudo pela experiência ordinária,
que Deus não castiga logo. Daqui nasceu um notável pensamento em que deu Davi
para tirar os pecados do mundo. Sentia tanto o santo rei a facilidade com que
se quebravam as leis de Deus e os homens não reparavam em pecar, que este
sentimento quase lhe tirava a vida: Defectio
tenuit me, pro peccatoribus derelinquentibus legem tuam. O primeiro
pensamento com que acordava, e a sua primeira meditação, era cuidar e excogitar
como se podia tirar do mundo todos os pecados: In matutino interficiebam omnes
peccatores terrae. E, finalmente, veio a dar em um meio, o mais eficaz e
efetivo que podia haver, e como tal o presentou a Deus em uma proposta. —
Senhor, diz Davi, eu não posso dar conselho, nem vossa infinita sabedoria o há
mister: mas não pode o meu zelo deixar de vos representar um meio em que tenho
dado para que não haja pecados nem vossa divina Majestade seja ofendido. — Que
diferente alvitre era este, dos que ordinariamente se costumam inventar e pagar
com grandes mercês, todos para utilidade dos príncipes e para destruição dos
vassalos. Porém este de Davi, tão útil era para Deus como para os homens, e
mais ainda para os homens que para Deus, porque Deus não seria ofendido se os
homens não fossem pecadores. Mas que meio era ou podia ser este, que tirasse os
pecados do mundo e não houvesse nele quem não observasse as leis de Deus? As
palavras da proposta o dizem: Exurge,
Domine, in ira tua: exurge inpraecepto quod mandasti, et synagoga populorum
circumdabit te. Mostre-se Vossa Majestade irado todas as vezes que for ofendido, e assim
como a cominação da pena anda junta com o preceito, ande também a execução do castigo junta com o
pecado, porque tanto que os homens virem que o castigo não tarda nem se dilata, logo todos
obedecerão prontamente, e servirão a Deus, e nenhum haverá que se atreva a pecar: Exurge in ira tua, exurge in praecepto quod
mandasti, et synagoga populorum
circumdabit te. Lá disse o poeta: Si quoties peccant homines, sua fulmina mutat
Jupiter exiguo tempore inermis erit:
Se todas as vezes que os homens pecam caísse sobre o delinqüente um raio do
céu, acabar-se-iam os raios. — Mas não disse nem inferiu bem. Se todas as vezes
que os homens pecam caísse logo do céu um raio que abrasasse o pecador, não se
acabariam, antes sobejariam os raios. Os que se acabariam ou seriam os homens
ou os pecadores: mas o certo é que seriam os pecados, e não os homens, porque,
tanto que o castigo andasse junto com o pecado, nenhum homem havia de ser tão
cego que se arrojasse a pecar. Esta foi a proposta e o alvitre de Davi. E que
lhe respondeu Deus? O mesmo Davi o disse logo. Ainda que o coração de Davi era
semelhante ao coração de Deus, o de Davi era tão pequeno que cabia no seu
peito, e o de Deus é tão grande como sua mesma imensidade. Respondeu Deus
aquilo mesmo que dizem os que, fiados na dilação do castigo, se animam a
continuar no pecado: Deus judex justus,
fortis et patiens, nunquid irascitur per singulos dies ? Deus — diz o
pecador usando das palavras divinas a sabor do seu apetite — Deus, ainda que é
justo juiz, e tão forte, que nenhum culpado ou réu lhe pode escapar das mãos,
contudo o seu coração é muito largo, e a
sua paciência muito sofrida; e ainda que os nossos pecados são cotidianos, a
sua ira não é de cada dia: Nunquid
irascitur per singulos dies?
Este é o fundamento com que disse
judiciosamente Tertuliano que Deus padece na sua mesma paciência: Deus sua sibi patientia detrahit —
porque dá ocasião o seu sofrimento a que se perca o temor de sua justiça e o
respeito à sua autoridade. Atreveu-se Osa, posto que com boa tenção, a tocar na
Arca do Testamento, e no mesmo ponto pagou aquela temeridade, caindo de repente
morto. Oh! se Deus o fizesse assim sempre ou muitas vezes, e os pecados se
pagassem logo e de contado, como haviam os homens de ir atentos em pecar, e
como se lhes haviam de atar as mãos, ainda quando o pecado fosse duvidoso! Por
que cuidais que pecou Adão e comeu da fruta vedada, tendo-lhe Deus cominado a
morte, se comesse? Porque viu que Eva tinha comido e não morreu. O preceito e a
pena do preceito foi posta a ambos: pois, se Eva comeu e não morreu, também eu
— diz Adão — não morrerei, ainda que coma. — Venha a fruta, farte-se o apetite,
e vivamos a nosso gosto. — Isto é o que fez Adão, e isto o que fazem seus
filhos. O pensamento, diz o texto sagrado com que, depois de ter pecado, se
animam os homens a tornar a pecar, é este: Peccavi,
et quid mihi accidit triste (Eclo. 5, 4)? Eu pequei, e nem por isso me
sucedeu mal ou desgraça alguma: Estava vivo, e estou vivo; estava são, e tenho
a mesma saúde; tornei para casa, e nem por isso a achei caída, e meus filhos
mortos debaixo dela, como Jó; os gados não mos roubaram os inimigos, nem me
mataram os escravos; às lavouras não lhes faltou a chuva que as regasse, nem o
sol que as amadurecesse; se meti os frutos no celeiro, conservaram-se; se os
naveguei, chegaram a salvamento; tudo me sucedeu tão prosperamente que, no
mesmo dia em que pequei, se fui à casa do jogo, ganhei; se pleiteava, tive
sentença por mim; se tinha algum requerimento, saí despachado, e se fui beijar
a mão ao rei, olhou-me com bons olhos. Pois, se na vida, na fazenda, na honra,
em nada me empeceu o pecado, por que não hei de tornar a pecar? Quero pecar
como dantes, e mais ainda.
Este é o discurso, ou mais ou
menos expresso, com que os homens se precipitam a continuar no pecado. Mas vede
o que lhes diz o Espírito Santo: Ne
dixeris: peccavi, et quid mihi accidit triste? Altissimus est enim patiens
redditor (Ecl. 5, 4): Não digas: pequei, e não me sucedeu nenhum mal,
porque a paciência do Altíssimo, ainda que dissimule muito tempo, e se não
pague logo do que lhe deves, no cabo puxa pelo capital e mais pelos réditos. —
Réditos lhes chamou Tertuliano: peccati
censum. E S. Gregório, declarando quão grandes e quão custosos serão estes
réditos, diz que será tão estreita e insofrível a execução do juízo, quão larga
foi a paciência e sofrimento de Deus na dilação do castigo: Tanto strictiorem justitiam in judicio exiget,
quanto largiorem patientiam ante judicium
praerogavit. — Oh! como nos enganamos os homens com a paciência e
sofrimento de Deus, que quanto mais dilata menos perdoa. Sofreu Deus o
fratricídio de Caim, e não o castigou logo com a morte; mas, depois de andar
desterrado e fugitivo por esse mundo, e aborrecido de todos em suma confusão e
miséria, veio a morrer desastradamente em um bosque, reputado por fera, a mãos
de seu próprio neto, Lamec. Sofreu Deus as desobediências de Saul, e a
usurpação do ofício sacerdotal, e as invejas e ingratidões com que
perseguiu a inocência e pagou os merecimentos de Davi, a quem devia a honra, a
vida e a coroa. Mas, perguntei aos montes de Gelboé, qual foi o triste fim do
mesmo Saul, afrontosamente vencido, morto com sua própria espada, e depois
pendurado de uma ameia nos muros de seus inimigos. Sofreu Deus as ambições e
loucuras de Absalão, rebelde a seu rei e a seu pai, e as políticas ímpias de
Aquitofel, alheias de toda a lei divina e humana; mas a uns vereis enforcado
por suas próprias mãos em uma trave da sua casa, e ao outro preso por seus
próprios cabelos nos braços de uma
enzinheira, com o coração, que lhe não cabia no peito, passado com três lanças.
Sofreu Deus as idolatrias del-rei Acab e de sua mulher Jesabel, as perseguições
dos profetas e os falsos testemunhos levantados contra Nabot, e o roubo perjuro
da sua herdade; mas no cabo, ele e ela infamemente privados do reino: ele foi
ferido e morto de uma seta perdida, e ela precipitada de uma janela de seu
palácio; a ela lhe roeram os cães os ossos, e a ele lhe lamberam o sangue.
Deixo os exemplos de Nabuco soberbo, de Antíoco sacrílego, e de Judas traidor:
um convertido em bruto, outro comido vivo de bichos, e o terceiro rebentado
pelo meio, vomitando a infeliz alma juntamente com as entranhas, todos três
longamente sofridos, mas depois severissimamente castigados, para que ninguém se fie na dilação do castigo, que, se
tarda, sempre chega, e recompensa com o rigor as usuras da tardança.
CAPÍTULO IV
O segundo motivo que facilita, e
quase parece que convida os homens a perseverar na continuação do pecado, é a
confiança na misericórdia divina. Nenhum atributo pregam e apregoam mais em
Deus todas as Escrituras que a sua misericórdia, grande, infinita, imensa. Não
só chamam a Deus misericordioso, senão misericordiador: Misericors et miserator
(Sl. 110, 4). E como se Deus se multiplicara a si mesmo para multiplicar as
misericórdias, dizem que é multus ad ignoscendum.
À mesma misericórdia, sendo uma, dão nome de multidão: Secundum multitudinem miserationum tuarum. E, finalmente, porque a
multidão se compõe de números, acrescentam que a misericórdia de Deus não tem
número: Cujus misericordiae non est
numerus. Que muito, logo, que se Deus se multiplica para perdoar,
multipliquem também os homens a matéria do perdão, que são os pecados, e que
não reparem em acumular uns pecados sobre outros, pois, ainda que o número e
multidão deles seja grande, o número inumerável e a multidão sem conta das
misericórdias de Deus, sempre é maior? Tão assentado está este desprezo do
pecado na confiança da misericórdia divina, que se eu — diz Santo Agostinho,
falando de si — se eu quiser persuadir aos homens que temam a Deus e o rigor de
sua justiça, para que se abstenham de
pecar, haverá algum que, fundado nas Escrituras, se levante contra mim, e não duvide dizer-me na cara: Quid me terres de Deo nostro? Ille
misericors est, et miserator, et multum misericors: Que medos são estes, Agostinho,
que cá nos quereis meter com o nosso Deus? Ele é misericordioso, e mais
misericordioso, e muito mais misericordioso; e sendo tanta e tal a sua
misericórdia, como é de fé, ainda que nós pequemos, e mais pequemos, e tornemos
a pecar, sempre seremos perdoados.
Isto dizem muitos pecadores, e
isto fazem todos, ainda que o não digam. E é coisa sobre toda a admiração e
sobre todo o encarecimento notável, que prometendo Deus o céu e a
bem-aventurança, e não podendo o demônio dar senão o que tem, que é o inferno,
sendo Deus tão bom e o demônio tão mau, Deus tão formoso e o demônio tão feio,
haja, contudo, tantas almas enganadas e cegas que, deixando a Deus, se amiguem
com o demônio. Palácios, doutíssimo expositor das Escrituras Sagradas, e tão
pio como douto, respondendo a esta admiração, diz uma coisa a que, pelo nome
com que a declara, duvidei se a referiria deste lugar. Mas porque outros
comentadores, que vieram depois dele, a alegam como muito digna de se saber e
dizer, eu a não devo calar. Diz pois este grave autor que a causa de muitas
almas deixarem a Deus e se amigarem com o demônio, é porque tem o demônio uma
terceira, solicitada pelos mesmos homens, com a qual é tão sagaz, tão astuto,
tão enganador e lisonjeiro o demônio, que com suas artes, promessas e carícias,
afeiçoa, rende e traz a si as almas. E que ministra é esta, que terceira tão
poderosa, para o demônio enganar os juízos e cativaras liberdades? É,
porventura, alguma Circes ou alguma Medéia, que com feitiços e encantos
alucineos homens? É alguma fúria do inferno, transfigurada em anjo de luz, que
com adulações e falsas esperanças lhes tire o medo do mesmo inferno? Não é do
inferno, nem da terra, nem só do céu, mas tirada do seio e das entranhas do
mesmo Deus, que criou o céu e a terra. E — quem tal imaginara — é a mesma
misericórdia divina, a qual os homens, por suma temeridade e impudência, fazem
terceira do demônio, para se amigarem com ele: Immane flagitium est misericordiam Dei lenam facere diaboli, et quod
per misericordiam, per quam Deo conjungi debueras, diaboli conjugaris: Não
pode haver mais enorme e mais atroz sacrilégio, nem mais horrendo
descomedimento de maldade ímpia e cega, que fazer a misericórdia de Deus
terceira do demônio, e que por ocasião da mesma misericórdia, pela qual o homem
se havia de unir mais a Deus, se ajunte com o demônio e se amigue com ele. Isto
pois é, e nada menos, o que fazem todos aqueles que, confiados na misericórdia
de Deus, em lugar de lhe pedir perdão dos pecados, se animam e facilitam sem
temor a continuar neles.
Ouçam agora estes enganados com a
misericórdia, o que lhes diz o mesmo Pai das misericórdias: Ne adjicias peccatum super peccatum, et ne
dicas: Miseratio Domini magna est, multitudinis peccatorum meorum miserebitur
(Eclo. 5,5 s): Não acrescentes pecados sobre pecados, e não digas que a
misericórdia de Deus é grande e perdoará todos os pecados, ainda que sejam
muitos. — E por que razão, Senhor? Se os nossos pecados foram muitos e a vossa
misericórdia pouca ou pequena, então tínhamos fundamento para desconfiar do
perdão; mas, se a misericórdia é grande, e sempre maior que os nossos pecados,
por mais e mais que os acrescentemos, por que não havemos de confiar e estar
muito seguros que sempre nos perdoará vossa misericórdia? O mesmo Deus dá a razão,
e é tão divina como sua: Misericordia
enim et ira ab illo cito proximant (Ibid. 7): Não vos fieis demasiadamente
da minha misericórdia, diz Deus, porque a misericórdia e a justiça em mim estão
muito perto uma da outra. — Admirável sentença! Em Deus, cuja natureza e
essência é simplicíssima, tudo é a mesma coisa, porque tudo é Deus. Mas nenhuma
coisa há em Deus mais unida entre si, nem mais identificada e mais uma, e mais
a mesma, que a misericórdia e a justiça. Em Deus o Pai é Deus, o Filho é Deus,
o Espírito Santo é Deus, a misericórdia é Deus e a justiça é Deus; mas o Padre,
o Filho e o Espírito Santo, ainda que sejam Deus, e o mesmo Deus, distinguem-se
realmente: porém, a misericórdia e a justiça não têm distinção alguma. O Padre
é Deus, mas não Filho; o Filho é Deus, mas não é Padre; o Padre e o Filho são
Deus, mas não são Espírito Santo; o Espírito Santo é Deus, mas não é Padre nem
Filho. Porém a misericórdia e a justiça em Deus de tal maneira são Deus, que a
mesma justiça é misericórdia, e a mesma misericórdia é justiça.
Daqui se entenderá aquela
sentença famosa de Davi, que mais parece enigma que sentença: Semel locutus est Deus, duo haec audivi
(SI. 61, 12): Deus — diz Davi — disse uma coisa, e eu ouvi duas. — Aquilo que se ouve, se se ouve bem, é o
mesmo que se diz; pois, se Deus disse uma só coisa, Davi, que era muito bom ouvinte, como ouviu duas? O
mesmo Davi se explicou, e não sei se nos implicou mais: Duo
haec audivi, quia potestas Dei est, et tibi, Domine, misericordia: quia tu
reddes unicuique juxta opera sua
(Ibid. 12): O que ouvi — diz Davi — é que Deus todo-poderoso tem misericórdia e
justiça, com que dá a cada um segundo o
merecimento de suas obras. — Bem ouviu logo Davi, e bem diz que ouviu duas coisas, pois ouviu que Deus
tem misericórdia e justiça. Mas se ele ouviu estas duas coisas: Duo haec audivi — como disse Deus uma só: Semel locutus est Deus? Porque esta é a diferença que há de Deus
para com os homens na realidade ou apreensão da misericórdia e justiça divina:
para conosco, e na apreensão com que consideramos a misericórdia e justiça
divina, são duas coisas, e por isso: Duo haec audivi; porém na realidade com
que a mesma misericórdia e justiça divina
está em Deus, é uma só coisa, e por isso:
Semel locutus est Deus. Para conosco, a misericórdia e a justiça são duas coisas, porque
apreendemos a misericórdia como misericórdia distinta da justiça, e a justiça
como justiça distinta da misericórdia; mas para com Deus e em Deus são a mesma
coisa, sem distinção alguma, porque em Deus a justiça é misericórdia, e a
misericórdia justiça. Sendo, pois, tão inseparável e tão íntima, não digo a
união, senão a unidade destes dois atributos divinos, dos quais depende o
perdão ou condenação de todos os que pecam, vede agora se é bom conselho, e
digno de Deus, aquele com que o mesmo Deus tanto nos exorta e admoesta, que não
acrescentemos pecados sobre pecados, fiados na sua misericórdia, porque a
misericórdia e a justiça em Deus estão muito perto uma da outra: Ne adjicias peccatum super peccatum, et ne
dicas: MiseratioDomini magna est: misericordia enim et ira ab illo cito
proximant. É contudo tal a cegueira e malícia humana, que estando a
misericórdia e justiça divina tão perto uma da outra, não só os hereges, senão
também os católicos têm achado invenção com que as dividir. Os hereges
marcionistas diziam que Deus tinha misericórdia e não tinha justiça, por ser
coisa alheia da sua bondade o castigar, como se
Deus fora bom, para que os homens
fossem maus, como bem os argüi Tertuliano. E os católicos, ainda com maior
incoerência, conhecendo e confessando que Deus é misericordioso e justo: Misericors Dominus et justus (Sl. 114,5)
— que fizeram, ou que fazem? Partem a Deus pelo meio — diz S. Basílio: — Deum ex dimidia tantum parte agnoscunt.
Donde vem que, pecando facilmente contra a metade de Deus, que reconhecem por
misericordioso, da outra a metade não fazem caso, como se não creram que é
justo. Oh! que sisudos seriam os homens, já que fazem esta divisão, se a
fizessem às avessas! Assim a fazia Davi,
depois que o seu mesmo pecado o fez sisudo: Domine,
memorabor justitiae tuae solius (SI. 70, 16): Senhor, eu daqui por diante
só me hei de lembrar de vossa justiça. — E da sua misericórdia, por que não,
tendo vós recebido tantos favores da misericórdia divina? Por isso mesmo: para
não abusar dela. Quem se lembra só da justiça de Deus, como se não tivera
misericórdia, teme de pecar, e salva-se;
pelo contrário, os que só se lembram da misericórdia de Deus, como se não tivera justiça, não reparam em pecar, e
condenam-se. E isto é o que acontece a todos os que pecam em confiança da misericórdia divina.
CAPÍTULO V
O terceiro motivo com que o homem
se facilita a pecar mais, e a continuar ou multiplicar os pecados, é o
propósito do arrependimento. Eu, diz o pecador, peco e pecarei agora, sim: mas
não com resolução de perseverar sempre no pecado, senão com intento e propósito
firme de me arrepender depois, e de me pesar e doer de todo o coração disto
mesmo que agora faço. Este é o modo e a suposição com que se delibera a pecar
todo o homem que tem fé da outra vida, e assim o declarou maravilhosamente um
deles, bem experimentado nos pecados, e muito mais nos arrependimentos.
Ecce parturiit injustitiam: concepit dolorem, et peperit iniquitatem
(SI. 7,15): O pecador — diz Davi —
quando se deliberou a pecar, concebeu a dor e pariu o pecado. — Na produção e
nascimento das coisas animadas, a
conceição sempre precede o parto, e o parto se segue à conceição. No pecado
sucede o mesmo. Quando o homem se delibera a pecar, então concebeu o pecado, e
quando o cometeu e efetuou, então o pariu: Concepit
dolorem, et peperit iniquitatem. Mas, se bem repararmos nestas palavras,
parece que envolvem uma implicação natural. A conceição e o parto sempre são da
mesma espécie. Se o parto é homem, o que se concebeu também foi homem; se o
parto é leão, o que se concebeu também foi leão; e se o parto acaso é monstro,
como é todo o pecado, também o que se concebeu foi monstro. Pois, se Davi diz
que o pecador pariu o pecado: peperit
iniquitatem, por que não diz coerentemente que concebeu o pecado, senão que
concebeu a dor: concepit dolorem?
Porque este é o modo e a suposição com que todo o homem que tem fé se delibera
a pecar. Primeiro concebeu a dor, e depois pare o pecado; primeiro faz conceito
do arrependimento futuro, e propõe de se doer e arrepender do mesmo pecado que
está deliberado a cometer, e sobre este propósito de dor e arrependimento, que
já tem concebido, como sobre carta de seguro e imunidade da pena, então peca
confiadamente e sem receio. Bem conhece o pecador cristão que o pecado mata a
alma e a condena ao inferno; mas, lisonjeado e vencido do apetite, como se
tomara a salva e se desculpara com a sua alma, lhe diz dentro em si mesmo: —
Alma minha, eu bem sei que te mato e te condeno; mas se agora te mato e te
condeno com o pecado, eu te ressuscitarei depois, e te livrarei com a dor: Concepit dolorem, et peperit iniquitatem.
Este é aquele concerto ou pacto,
mal considerado e pior entendido, que o profeta Isaías diz fazem os homens com
a morte e com o inferno: Audite verbum
Domini, viri illusores: dixistis enim: Percussimus foedus cum morte, et cum
inferno fecimus pactum. Aos que assim pacteiam com o demônio, e se
deliberam a pecar, chama-lhes Deus, não ilusos,
senão ilusores: Viri illusores, porque não só o demônio os engana a eles, mas eles
cuidam que enganam ao demônio. Dão-lhe agora a alma pelo pecado, para depois
lha tornarem a tirar pela dor e arrependimento. E desta maneira, ou por esta
traça, o demônio é o que ficaria iluso,
e não eles. Mas vamos às condições. O que os homens podem temer, e o que temem
todos os timoratos, é que pelo pecado, morrendo nele, vão ao inferno; e por
isso o contrato e pacto que fazem com o demônio é sobre a morte e sobre o
inferno: Percussimus foedus cum morte, et
cum inferno fecimus pactum. Pelo contrato sobre a morte promete-lhes o
demônio que antes da morte terão tempo para cumprir os seus propósitos, e se
doer e arrepender do pecado; e pelo contrato sobre o inferno, assegura-os o mesmo
demônio, que de nenhum modo poderão ir para lá, porque todo o que se arrepende
verdadeiramente de seus pecados antes da morte, é certo que não vai ao inferno.
Pois, se estas condições assim praticadas são tão úteis ao homem, e o demônio
nelas fica perdido, como o mesmo demônio, que é tão sábio e astuto, pacteia tão
facilmente com tais condições? Porque debaixo delas, o que vai enganado e
totalmente perdido não é ele, senão o homem. A razão de estado do demônio nos
seus contratos com os homens — diz S. Basílio — é com condição da nossa parte,
que nós lhe demos o presente, e com promessa da sua, que ele nos dará o futuro:
peca agora, e depois te arrependerás; e como o presente é o fácil e o certo, e
o futuro o contingente e dificultoso, daqui se segue que agora, que era o tempo
da emenda, todos pecam, e depois, que é o tempo da conta, em castigo do mesmo
pecado, poucos ou nenhum se arrepende.
Mais faz o demônio, como ainda
não ponderamos, nas palavras de Davi: Concepit
dolorem, et peperit iniquitatem. A natureza pôs o deleite na conceição e a
dor no parto; e o demônio, às avessas, põe o deleite no parto e a dor na
conceição: põe o deleite no parto, que é o pecado, porque a todo o pecado, em
qualquer gênero, sempre acompanha o deleite; e põe a dor na conceição, porque
na deliberação de pecar nos sugere e faz conceber a dor para depois de ter
pecado. E como o apetite humano se leva tão cegamente do deleitável, por isso
ao pecado, em que está o deleite e a perdição, damos o tempo presente, e a dor,
em que estava o remédio e a salvação, deixamo-la para o futuro. Desta sorte, os
nossos mesmos propósitos, que nós chamamos de arrependimento, são de
condenação, e os mesmos pecados, que em confiança deles nos deliberamos a
cometer, nos deveram desenganar da sua falsidade. Ou estes propósitos são
falsos ou são verdadeiros. Se são falsos, por que nos fiamos deles? E se são
verdadeiros, e são propósitos de arrependimento, por que nos não arrependemos
logo, enquanto temos tempo de não pecar? O certo é que nem os propósitos são
propósitos, nem os arrependimentos hão de ser arrependimentos, e porque são
propósitos de arrependimento que não hão de ser, nem eles são propósitos.
Mas, suposto que este pacto é
feito com o inferno: Cum inferno fecimus pactum, desçamos
ao mesmo inferno, e vejamos como lá se
guarda. Há neste cárcere infernal, há nesta masmorra escuríssima algum homem que fosse cristão?
Muitos. Responda-me algum homem desventurado, quem quer que sejas, se foste
cristão, ainda hoje o és, porque o caráter do batismo impresso na alma, nunca se perde. Pois, se és e foste cristão,
e crias tudo o que crê a Santa Madre Igreja, como te não aproveitaste da fé e
dos sacramentos, como te não aproveitaste da doutrina e exemplos do Evangelho,
que tantas vezes ouvistes, e como enfim te condenaste? — Por meus pecados. — E
sabias tu que os pecados, e um só pecado, basta para levar ao inferno? — Bem
sabia tudo isso; mas também sabia que basta o verdadeiro arrependimento dos
mesmos pecados para Deus os perdoar; e por este conhecimento que eu tinha,
todas as vezes que me resolvia a pecar, era com grandes propósitos de depois me
arrepender. — Pois, se fazias tantos propósitos de arrependimento, por que te
não arrependeste? — Porque esse é o engano que cá nos traz a todos. Estes dois,
que aqui estão ardendo junto a mim, foram os dois irmãos Ofni e Finéias, filhos
do Sumo Sacerdote Heli, e como tais, muito bem doutrinados e instruídos em
todos os mistérios da fé e da salvação. Repreendia-os seu pai, e dizia-lhes que
se emendassem e arrependessem de seus pecados; e eles respondiam: Cum senuerimus, tunc poenitebimus: que
eram moços e queriam viver com liberdade, que depois se arrependeriam. Mas a
morte veio antes do depois, os arrependimentos e os propósitos ficaram no ar, e
as almas desceram ao inferno. Aqui estão ardendo há dois mil e setecentos anos,
e arderão, e eu com eles, porque fiz a mesma conta, enquanto Deus for Deus.
Cristãos, tomemos exemplos neste,
e não nos fiemos de semelhantes propósitos. Quando o propósito do
arrependimento se ajunta com a resolução do pecado, nem é arrependimento, nem é
propósito, porque a resolução do pecar contradiz o propósito da emenda, e o
pecado presente desfaz o arrependimento futuro. Se os propósitos de não pecar,
ainda feitos em graça de Deus, são pouco seguros, os propósitos de arrepender
do pecado, que se fazem querendo pecar e pecando atualmente, que firmeza podem
ter? Os mais valentes propósitos que se fizeram neste mundo foram os de S.
Pedro: valentes não só na boca, mas, o que poucas vezes se ajunta, na boca e
mais na espada. E que disse Pedro? Et si
omnes scandalizati fuerint in te, ego nunquam scandalizabor (Mt. 26,33):
Ainda que todos, Senhor, faltem à fidelidade e amor que vos devem, eu nunca hei
de faltar. — Que mais disse? Etiamsi
oportuerit me mori tecum, non te negabo (Ibid. 35). E quando seja
necessário dar a vida e morrer convosco, primeiro morrerei, que negar-vos. —
Podia haver mais animosos e mais resolutos propósitos que estes, e mais
bizarramente declarados? Não podia. E com serem tão repetidos, tão constantes,
e feitos, como verdadeiramente eram, de todo coração, não se tinham passado
seis horas, quando o mesmo Pedro, caindo, recaindo e tornando a cair, tinha
negado a seu Mestre, não menos que três
vezes. E se os propósitos de não pecar acabam negando a Cristo, os que começam pecando e negando a Cristo, que se
pode esperar deles? Ao pecado de Pedro seguiu-se depois o arrependimento,
porque foram propósitos de não pecar, estando em graça; mas a quem peca com
propósitos de se arrepender depois, donde lhe há de vir o arrependimento, se o
nega e desmerece com o mesmo pecado? Pecareis, como pecais, mas não vos
arrependereis, como prometeis.
CAPÍTULO VI
O quarto e último motivo com que
os homens se cegam e não temem continuar no pecado, posto que conheçam ser
enfermidade mortal, é a facilidade e prontidão do remédio. O remédio que
Cristo, Senhor nosso, condescendendo com a fraqueza humana, deixou para os
pecados que depois do Batismo se cometessem, foi a confissão dos mesmos pecados.
Por isso o sacramento da Penitência se chama segunda tábua em que o homem
depois do naufrágio se pode salvar. Mas assim como seria temeridade mais que
grande a daquele que voluntariamente se lançasse ao mar, mui seguro de chegar
ao porto sobre uma tábua, e maior temeridade ainda, se em confiança da mesma
tábua, se fosse sempre engolfando mais e mais, assim o fazem os que, debaixo do
pretexto da Confissão, se precipitam a pecar, e dizendo: eu me confessarei,
multiplicam pecados sobre pecados.
Não pretendo negar com isto que o
remédio da confissão não seja muito pronto e muito fácil. Não é muito fácil
remédio o de curar com palavras, ou fosse inventado pela superstição ou pela
arte? Pois deste gênero é, e com muito grandes vantagens, o remédio da
Confissão. Não só cura de algumas feridas, senão de todas, ainda que sejam
mortais; não só cura de poucas ou de muitas, senão de todas, ainda que sejam
inumeráveis; e de tal maneira cura de todas quantas padece o enfermo, que se
uma só se lhe excetuasse, não curaria de nenhuma. E tudo isto faz a confissão,
não em largo tempo, senão em um instante, e sem outra aplicação da nossa parte
mais que palavras. O profeta Oséias, exortando aos homens a que se convertam a
Deus, diz assim: Convertimini ad Dominum,
et dicite ei: omnem aufer iniquitatem (Os. 14,3): Convertei-vos a Deus, e
dizei-lhe que vos tire todos vossos pecados. — Pois, não há mais que dizer a
Deus que nos tire nossos pecados, e não alguns, senão todos: Omnem aufer iniquita tem? E se Deus da
sua parte nos há de tirar todos os pecados, nós da nossa que havemos de fazer
para que ele no-los tire? O mesmo profeta o diz, e é coisa bem notável: Tollite vobiscum verba (Os. 14,3): Levai
convosco palavras. — Bem diferentemente falavam os outros profetas no mesmo
tempo de Oséias, que era o da lei velha. O que diziam os outros profetas era: Tollite hostias: levai a Deus
sacrifícios, para que por meio deles aplaqueis sua justa ira, e vos perdoe os
pecados. Pois, se os outros profetas dizia: Tollite
hostias, por que diz Oséias: Tollite
verba? Porque Oséias, neste texto, como diz a glosa com Ruperto, fala
profeticamente do Sacramento da Confissão, que Cristo havia de instituir na lei
da graça; e para conseguir o perdão dos pecados por meio da Confissão, não são
necessárias da nossa parte mais que as palavras — não informes, mas formadas —
com que os confessamos. Excelentemente Ruperto:
Non dico: Tollite vobiscum multitudinem hircorum, aut vitulorum, sed verba,
quae consequi potestis sine dispendio rerum. Verba confessionis Deo pro salute
vestra sufficiunt, pro iniquitatibus vestris satisfaciunt: Não vos digo que
tragais convosco ao sacrifício multidão de bezerros ou de cordeiros, senão
somente palavras, para as quais todos tendes cabedal, sem dispêndio da fazenda
ou necessidade dela, porque virá tempo em que bastem para com Deus as palavras
da vossa Confissão, e só com essas palavras se dê por satisfeito de todos
vossos pecados. Pode haver maior facilidade que esta?
É tão grande que, como refere
Santo Agostinho, os gentios do seu tempo o lançavam em rosto aos cristãos,
dizendo que não podia ser boa aquela lei, em que tão facilmente se perdoavam os
pecados, pois era dar licença para pecar. Assim o diziam ignorantemente os
bárbaros, e puderam provar a blasfêmia do seu pensamento com o exemplo ou
escândalo de muitos cristãos, os quais de tal modo abusam da facilidade da
Confissão, como se fora licença ou imunidade dada por Deus para poderem pecar
quanto quisessem. Mas o mesmo Santo Agostinho ensinou aos gentios, que tão fora
está a Confissão de facilitar o pecado, que antes é um novo freio com que mais
se dificulta, porque, como na Confissão só se perdoam os pecados de quem leva
resolução de nunca mais pecar, se no pecado se quebra a lei com que Deus nos
manda que não pequemos, na Confissão não só se torna a ratificar a mesma lei de
Deus, mas nós mesmos nos pomos outra lei de novo, com que nos obrigamos a não
reincidir naquele pecado, nem cometer algum outro. Foi tão engenhosa a traça da
Confissão, ou verdadeiramente tão divina, que quando por uma parte abre a porta
ao perdão, por outra fecha a porta ao pecado. Se duas casas têm as entradas
juntas, com a mesma porta com que se abre uma, se pode fechar a outra. E isto é
o que fez Deus no sacramento da Confissão. E como a Confissão verdadeira inclui
essencialmente detestação dos pecados cometidos, e resolução firme de nunca
mais pecar, com a detestação abriu a porta ao perdão dos pecados passados, e
com a resolução fechou a porta à continuação dos futuros.
Já daqui começarão a entender os
que tanto se confiam no remédio da Confissão quão enganada e enganosa é esta
sua confiança. A Confissão verdadeira e efetiva há de levar consigo ao
confessado, e pô-lo todo, e para sempre, aos pés de Deus. Se não leva consigo
ao confessado, não é Confissão. Olhai o que dizia Oséias, e ainda não notastes:
Tollite vobiscum verba, ei dicite: omnem
aufer iniquitatem. Para que Deus vos perdoe os pecados, não só diz que
leveis as palavras à Confissão, senão que as leveis convosco: Tollite vobiscum verba. Porque se vós
não levais as palavras da Confissão convosco, e elas vos não levam consigo, a
Confissão não é Confissão, são palavras. O sacrifício de Abel, por que
contentou a Deus? Porque levou consigo o mesmo Abel. E o de Caim, por que não lhe contentou? Porque não
levou consigo a Caim. Davi disse a Natã: Peccavi,
e Saul também disse a Samuel: Peccavi
(1 Rs. 15,24). E sendo as palavras as mesmas, Davi ficou absolto do seu pecado,
e Saul não, porque a Davi levou-o consigo a sua Confissão, e a Saul não o levou
a sua. Vejam agora os que guardam a Confissão para a hora da morte, as suas
palavras os podem levar consigo, quando eles já não estão em si? Eis aqui por
que vemos morrer tantos sem Confissão, ou com Confissões que não são
Confissões. Porque é justo castigo de Deus que a quem pecou em confiança da
Confissão, essa mesma Confissão lhe falte ou lhe não aproveite.
Os moradores de Jerusalém pecavam
dissoluta e desaforadamente, como se para eles não houvera lei nem castigo, e
toda a sua confiança se fundava em que Deus tinha o seu Templo na mesma
Jerusalém. Deus, diziam eles, tem o seu Templo na nossa cidade? Pois ele
defenderá as nossas casas, por não perder a sua. Mas vede o que lhes disse
então o profeta Jeremias: Nolite
confidere in verbis mendacii, dicentes: Templum Domini, templum Domini, templum
Domini est. Vós, fiados no Templo de Deus, matais, roubais, adulterais,
como se no mesmo Templo tivéreis licença e imunidade de Deus para pecar
livremente: pois sabei que toda essa vossa confiança é falsa e enganosa, e que
no cabo vos há de mentir: Nolite
confidere in verbis mendacii, porque a quem peca em confiança do Templo,
não lhe vale o Templo. E assim sucedeu. O mesmo digo da Confissão, porque Deus,
e sua justiça, sempre é o mesmo e a mesma. Assim como não vale o Templo a quem
peca em confiança do Templo, assim é justo castigo de Deus que não aproveite a
Confissão aos que pecam fiados na Confissão. Deus fez a Confissão para remédio
da fraqueza, e não para estímulo da malícia. É medicina para sarar, e não carta
de seguro para adoecer. Por isso permite Deus justissimamente, que ou falte a
confissão, ou não aproveite a muitos, porque não é razão que o remédio seja
proveitoso a quem foi injurioso ao mesmo remédio.
Aqui parara eu já, e me dera por
satisfeito, se não tivera notícia, que anda muito valida pela terra uma nova proposição ou teologia, a qual eu não
posso crer, senão que o Norte a trouxe de Holanda a Pernambuco, e o Nordeste de
Pernambuco à Bahia. E que proposição é esta? Que para um cristão ir ao céu,
basta ter confessor e dinheiro: o confessor para os pecados, o dinheiro para os
sufrágios; o confessor para as culpas, com que vos livreis do inferno, e o
dinheiro para as penas, com que vos livrais do purgatório. Ainda agradeço aos
que isto dizem, crerem que há purgatório e inferno; mas assim começam as
heresias. Pobres dos pobres que não têm dinheiro, e mais pobres dos ricos que
nele se fiam. Mas eu lhes concedo que tenham confessor e dinheiro, e, deixado o
exemplo de Judas, ainda lhes mostro com outro mais apertado, que com dinheiro e
confessor podem morrer sem Confissão. No tempo da primitiva Igreja todos os
cristãos levavam o dinheiro que tinham aos pés dos apóstolos, porque viviam em
comunidade, como hoje os religiosos. Houve, contudo, dois casados, Ananias e
Safira, que vendendo uma sua herdade, contra o voto que tinham feito,
reservaram escondidamente parte do preço. Chamou Pedro a Ananias, fez-lhe cargo
do seu pecado e de ter mentido ao Espírito Santo, quando estava em sua mão
lograr o que tinha, e no mesmo ponto, sem dizer palavra, caiu Ananias morto
(At. 5,1-10). Veio depois do mesmo modo Safira, chamada a juízo: argüiu-a S.
Pedro da mesma culpa, como meeira da mesma fazenda e cúmplice na reserva do
dinheiro, e também caiu de repente muda e morta. Agora pergunto: E estes dois
desventurados tiveram confessor e dinheiro? Uma e outra coisa tiveram. Tiveram
confessor, e tal confessor como S. Pedro, Sumo Pontífice da Igreja; tiveram
também dinheiro, que para isso o esconderam e reservaram, e confessou-se algum
deles? Nenhum. De maneira que ambos tiveram dinheiro, ambos tiveram confessor,
ambos morreram aos pés do confessor, e ambos morreram sem Confissão. Levai lá
as novas aos da nova teologia, porque não quero afrontar a nenhum dos presentes
com presumir dele tal ignorância.
Não basta ter confessor na hora
da morte para a alma se salvar, porque, com o confessor à cabeceira, a uns
falta a Confissão, e outros faltam a ela. Aos que falta vida, a fala e o juízo,
falta a Confissão; e os que têm vida, fala e juízo, faltam eles à Confissão
muitas vezes, porque em pena de a guardarem para aquela hora, e pecarem em
confiança dela, permite justamente Deus que por falta de verdadeira disposição
— que pode ser de muitos modos — lhes não aproveite a Confissão. Dizei-me: se
um homem, por suas próprias mãos se dera uma estocada penetrante, e sobre esta,
outras e outras, não o teríeis por doido? E se ele respondesse que fazia tudo
aquilo porque tinha uma redoma de óleo de ouro muito provado, com que
facilmente se curaria, não o teríeis por mais doido ainda? Pois isto é o que
fazem os que, fiados na facilidade da Confissão, continuam a pecar. E a doidice
e loucura deles é muito mais rematada, porque nem a Confissão nem o efeito dela
está na sua mão. Por isso há tantos que se condenaram sem Confissão, e tantos
que se condenaram confessados, para que ninguém, finalmente, se fie na
facilidade deste remédio.
CAPÍTULO VII
Temos visto mais largamente do
que quisera, posto que com a maior brevidade que me foi possível, quão enganosos
são os motivos e quão falsos os pretextos do nosso apetite, com que o demônio
nos anima a pecar e a continuar nos pecados, contra o preceito e conselho de
quem tanto nos deseja salvar, que deu por isso a vida: Jam amplius noli peccare. Vimos que todos são falsos e enganosos,
porque nem a dilação do castigo o diminui, antes o acrescenta; nem a confiança
na misericórdia divina nos assegura da sua justiça, antes a provoca; nem os
propósitos do arrependimento têm firmeza alguma na vida, nem ainda na vontade;
nem, finalmente, a facilidade do remédio é tão desembaraçada e pronta que não
tenha tantas dificuldades como perigos, bastando o menor deles para que a alma
se perca e se condene. Mas porque este ponto de não haver de pecar mais é tão
árduo, a natureza tão corrupta e o hábito de cair e tornar a cair tão comum na
cegueira humana, desejando eu algum meio que vos propor mais poderoso que tudo
isto, foi Deus servido por sua bondade de me descobrir e inspirar um tão forte,
tão eficaz e ainda tão terrível, que depois de ouvido e sabido como é em si
mesmo, nenhum homem haverá que se atreva a cometer um pecado mortal, se não for
tão obstinado e tão precito que se queira condenar sem remédio. Este é o meio
que porventura nunca ouvistes, como ao princípio prometi; e agora torno a pedir
de novo àquele Senhor crucificado, pelo preço infinito de seu sangue e pela
intercessão de sua Santíssima Mãe, me assista e nos assista a todos neste
ponto, com a eficácia e força de sua graça, que a importância dele requere. Se
em algum discurso me destes atenção, seja neste que, para que o leveis na
memória, todo será substância, e muito breve.
Por primeiro fundamento de tudo,
havemos de saber e supor que Deus, na sua mente divina, tem certa medida
destinada aos pecados de cada um, a qual medida, enquanto não está cheia, tem
remédio, e podem ter perdão os pecados, mas tanto que se encheu, não tem nenhum
remédio. A primeira vez que Deus revelou este segredo da sua Providência e
justiça, foi nos pecados dos reinos, das repúblicas e das cidades, que também é
muito boa suposição e doutrina para o tempo, estado e contingências em que se
acha o Brasil. Prometeu Deus a Abraão, que a ele e a seus descendentes daria as
terras dos amorreus, por isso chamadas da Promissão, mas que não seria logo,
senão dai a muitos anos: Nec dum enim
completae sunt iniquitates Amorrhaeorum usque ad praesens tempus (Gên.
15,16): Porque os amorreus, até o tempo presente, não encheram ainda a medida
dos pecados que eu tenho decretado e taxado para seu castigo. E essa foi uma
das razões por que os filhos de Israel andaram tanto tempo aos bordos pelo
deserto, até tomarem porto no Rio Jordão, para que entretanto se acabasse de
encher a medida dos pecados dos amorreus. Este mesmo foi o sentido em que
Cristo, Senhor nosso, disse aos escribas e fariseus, depois de repreender suas
impiedades e injustiças, que enchessem a medida de seus pais: Implete mensuram patrum vestrorum,
porque nos corpos políticos, quais são as repúblicas, que duram em muitas
vidas, os pecados dos pais, filhos e netos, todos concorrem a encher a medida.
No profeta Zacarias temos uma
ilustre representação desta verdade por todas suas circunstâncias. Apareceu um anjo a Zacarias, e
disse-lhe que levantasse os olhos, e visse o que saía pelas portas de Jerusalém.
Olhou, e viu que saía uma ânfora, que era certo gênero de medida, quadrada por
todas as partes, de que usavam naquele tempo, assim hebreus como latinos; após
a ânfora, saiu uma pasta grossa de chumbo, a qual pesava um talento, que do
nosso peso vem a ser três arrobas; e atrás destes dois instrumentos ou figuras
inanimadas, viu o profeta que saía pela mesma porta uma mulher, a qual
encaminhando-se para a ânfora, se assentou sobre ela; porém o anjo, declarando
que aquela mulher era a impiedade: Haec est
impietas, a lançou e meteu dentro da mesma ânfora, e a fechou e tapou com a
pasta de chumbo, que, como cortada para o mesmo efeito, se ajustou naturalmente
com ela. Feito isto, tornei a olhar, diz o profeta, e vi sair da cidade outras
duas mulheres, voando com asas de minhoto, as quais levantaram a ânfora por uma
e outra parte, e a levaram pelos ares à terra de Senar. Até aqui, palavra por
palavra e letra por letra, a visão de Zacarias, na qual lhe representou Deus a
destruição de Jerusalém e Reino de Judá, quando, sitiada e devastada a cidade
pelos exércitos de Nabucodonosor, todos presos e cativos foram levados à
Babilônia. Isso quer dizer a terra de Senar, porque nesta terra foi edificada a
Torre de Babel, donde Babilônia tomou o nome. Mas se todo o intento desta visão
era significar Deus a Zacarias o cativeiro e transmigração do seu povo, que se
podia declarar em tão poucas palavras como eu o digo, para que o fez a divina
Sabedoria com tantas cerimônias, tantos aparatos, tantas figuras, e com tal ordem
e sucessão de umas depois das outras, e com tão notáveis circunstâncias em cada
ato ou cena da mesma representação? Porque assim quis revelar Deus ao seu
profeta, e nele a todos nós, quais são os estilos ocultos de sua justiça, e as
causas da assolação das cidades, reinos e nações, quando contra elas se procede
ao extremo castigo.
A primeira coisa que aparece em
juízo é a ânfora ou medida que Deus tem destinado aos pecados, a qual, enquanto
não está cheia, dilata-se e suspende-se o castigo, mas, tanto que se encheu,
executa-se sem remédio. Este foi o mistério com que o anjo meteu dentro na
ânfora a mulher chamada impiedade, em que eram significados os pecados de
Jerusalém e de toda a nação, ímpia contra Deus nas idolatrias e sacrilégios, e
ímpia contra o próximo nos roubos, nos homicídios, nos adultérios, e em todo o
gênero de injustiças e crueldades. E porque estes pecados tinham já cheia a
medida de sorte que não podia levar mais, por isso o anjo, como cheia e
arrasada a tapou logo com aquela cobertura de chumbo tão pesada e tão justa,
que nem para diminuir nem para acrescentar se podia abrir. Cheia assim até cima
a medida, o que só restava era a execução do castigo, sem demora ou momento de
dilação. E esta foi a conseqüência com que no mesmo ponto saíram as duas
mulheres com asas, as quais, não por terra e andando, senão pelo ar e voando,
tomando sobre os ombros a ânfora, a passaram de Jerusalém a Babilônia. E se
perguntarmos que duas mulheres eram estas, que não tocaram a terra, respondem
os melhores intérpretes, fundados nos oráculos dos profetas, que eram a
misericórdia e a justiça divina: a misericórdia, para justificar o castigo, e a
justiça, para o executar. Porque, se os homens suspendessem o curso e
multiplicação dos pecados, sempre a misericórdia divina, que a isso os exortava
pelos profetas, esteve pronta para os perdoar; mas porque eles não quiseram
desistir, e chegaram a encher a medida, já não podia a justiça deixar de
executar, como executou, o castigo. Só resta saber por que as asas destas duas
executoras eram de minhoto; mas isso declarou admiravelmente o mesmo sucesso,
porque o minhoto foi Nabusardão, general dos exércitos de Nabuco, o qual dando
um e outro cerco à cidade de Jerusalém, como fazem as aves de rapina,
finalmente empolgou em todo o povo, e o levou nas unhas à Babilônia.
De maneira que, por esta e outras
revelações alegadas, nos consta — o que doutro modo se não podia saber — que
Deus na sua mente divina, como dizíamos, e nos decretos altíssimos da sua
Providência tem taxado a cada cidade, reino, província e nação certa medida de
pecados, aos quais infalivelmente se segue o castigo tanto que se encheu, e
antes de estar cheia, não. E neste caso do cativeiro de Babilônia, notam graves
autores, e fazem uma advertência, a qual eu não devo passar em silêncio, pelo
muito que nos pode importar. Durou aquele cativeiro setenta anos, depois dos
quais foram os judeus restituídos à pátria, mas tão pouco emendados e lembrados
do primeiro castigo, que dali a pouco tempo começaram outra vez a encher a
medida com tal excesso que, depois de estar cheia de todo, os castigou Deus com
outro cativeiro e transmigração universal, não de setenta, nem de setecentos
anos, mas dos que ainda hoje vão continuando, e são já mil e quinhentos e
setenta e sete, sem se saber quantos serão ainda. Disse que essa advertência
nos podia também importar a nos, e já creio me tereis entendido. No ano de 1624
castigou Deus a Bahia com a entregar aos holandeses, posto que não passou o
cativeiro de um ano, como já passa de nove o de Pernambuco. De então para cá é
certo — ainda mal — que os pecados começaram outra vez a encher a segunda
medida, e se dão tanta pressa, que não sei como não está já cheia. Na nossa mão
está fazer que se não encha de todo, porque as asas do minhoto andam já tão
perto, que não será necessário à divina Justiça mandá-las vir de Amsterdão.
CAPÍTULO VIII
Mas, passando da medida dos
pecados comuns à dos particulares de cada um, assim como Deus tem sinalado
certa medida aos pecados de cada cidade ou reino, assim a tem sinalado também
aos pecados de cada homem. Quanto seja mais para temer esta segunda medida,
ninguém o pode duvidar, porque as cidades e os reinos não vão ao inferno: os
homens sim, e que Deus o tenha determinado e taxado a cada um de nós, é coisa
não só manifesta, senão manifestíssima, diz Santo Agostinho. Traz o santo os
exemplos da Escritura já alegados, e outros, e conclui assim no livro De Vita Christiana: Manifestissime instruimur et docemur; singulos secundum peccatorum
suorum multitudinem consummari, et tandiu, ut convertantur sustineri, quandiu
cumulum suorum non habuerint delictorum consum matum: Manifestissimamente
nos ensina e declara Deus, diz Agostinho, que a cada homem tem sinalado certa
medida ou número de pecados, o qual, enquanto não está cheio e consumado, nos
espera, para que nos convertamos; mas, tanto que a dita medida se encheu, e o
numero ou cúmulo dos
pecados chegou ao último, então
não espera Deus mais, e se segue sem remédio a condenação. — O mesmo afirma
Santo Ambrósio por estas palavras: Dei
verba sunt, non sunt completa peccata Amorrhaeorum, per quod ostendit mensuram
quamdam esse delictorum, quam cum impleverint peccatores, vita digni minime
judicentur. E porque este é o comum sentir dos expositores da Escritura Sagrada,
contento-me com referir o mais prático e versado em todos, o doutíssimo e
diligentíssimo Cornélio a Lápide. Sobre a ânfora de Zacarias diz assim: Amphora est mensura peccatorum cujusque, tum
hominis tum populi, qua impleta, Dei vindicta prosilit ad ultionem. E sobre
as palavras de S. Paulo aos tessalonicenses, que abaixo hei de alegar, diz: Hinc patet Deum urbibus, regnis, et a pari
proportione impiis privatis certum statuisse peccatorum cumulum, ad quem paenam
vel vindictam differt, donec impleatur ut ilLo impleto, omnia simul et perfecte
vindicet et castiget. E o mesmo comento e declaração faz sobre outros
lugares, assim do Velho como do Novo Testamento, colhendo sempre das revelações
divinas, expressas nos mesmos textos, que a cada homem tem Deus sinalado certa
medida e taxado certo número de pecados, o qual, quando se acaba de encher pelo
último, já não há lugar de perdão, senão de
castigo.
Nem deve parecer nova ou
admirável, e muito menos alheia da justiça ou misericórdia divina a determinação
antecedente desta medida, decretada aos pecados de cada homem, porque, se nos
castigos dos reinos e das cidades se ajuntam os pecados dos presentes e vivos,
que acabaram de encher a medida, com os dos passados e mortos, que a começaram
a encher, que muito é que cada homem com os seus, que ele mesmo cometeu, e
ultimamente comete, encha também a sua? Nem acrescenta a dificuldade que a
medida dos pecados seja maior para uns homens, e menor e de menos número para
outros, porque esta mesma, que a nosso fraco entender pode parecer
desigualdade, no arbítrio da Providência divina é suma justiça. E se não,
respondei-me. Deus também põe medida aos dias da vida de cada homem. Por onde
disse Davi: Ecce mensurabiles posuisti
dies meos. E esta medida é tão certa e determinada, que chegado o último
dia, não tem nenhum remédio, como disse Jó: Constituisti
terminos ejus, qui praeteriri non poterun. Pois, assim como ninguém se
queixa de Deus, nem lhe estranha que a medida dois dias em uns e outros homens
seja tão desigual, muito menos se deve admirar que a dos pecados o seja também,
principalmente bastando um só, e o primeiro pecado, para ter Deus justíssimo
direito de lançar logo no inferno a quem o cometeu. E a razão fundamental de
uma e outra justiça e providência é o supremo domínio de Deus, igualmente autor
da graça e da natureza. E assim como enquanto autor da natureza pode limitar à
vida certo número de dias, sem injúria do homem, assim, sem injúria do mesmo
homem pode limitar ao perdão certo número de pecados. Donde se segue, que assim
como aquele dia, que encheu o número dos vossos dias, necessariamente é o
último, e chegado a ele não podeis deixar de morrer, assim aquele pecado, que
encheu o número dos pecados, também é o último, e, cometido ele, não podeis
deixar de vos condenar, porque se cerrou a medida, e já não há lugar de perdão.
Ouvi ao mesmo Deus, por boca do
profeta Amós: Haec dicit Dominus: Super
tribus sceleribus Juda, et super quatuor non convertam eum; super tribus
sceleribus Israel, et super quatuor non convertam eum. O mesmo anuncia a
Damasco, a Tiro, a Moab, a Edom e a outros. E quer dizer. Cometeram o primeiro
pecado, e perdoei-lhes; cometeram o segundo, e perdoei-lhes; cometeram o
terceiro, e também lhes perdoei; mas porque cometeram o quarto, não lhes hei de
perdoar. Pois Deus, infinitamente misericordioso, não perdoa mais que três
pecados? Sim, perdoa. Perdoa trezentos, e perdoa três mil, e, se o pecador se
arrepende de todo coração, perdoa três milhões. Mas nestas sentenças põe-se o
número certo pelo incerto, para que por este exemplo e suposição se entenda
melhor o que se quer dizer. Reduzida, pois, a medida ou número dos pecados a
quatro, diz Deus que perdoará o primeiro, e perdoará o segundo, e perdoará o
terceiro, e que para perdoar todos estes pecados converterá em todos ao
pecador; porém, que se ele cometer o quarto que o não há de converter nem lhe há de perdoar, porque o
quarto pecado, neste caso, é o que acaba de encher a medida, e o pecado que
acaba de encher a medida é pecado sem remédio e sem perdão, porque nem Deus o há de perdoar, nem o
pecador se há de converter: Et super
quatuor non convertam eum.
Daqui se entenderá facilmente um
dificultosíssimo lugar da primeira Epístola de S. João, em grande prova do que
dizemos. As palavras do santo apóstolo, entre todos, por antonomásia, o Teólogo,
no capítulo quinto são estas: Qui scit
fratrem suum peccare peccatum non ad mortem, petat, et dabitur ei vita,
peccanti non ad mortem. Est peccatum ad mortem: non pro illo dico ut roget quis
(1 Jo. 5,16): Se algum cristão souber que seu próximo peca, rogue por ele, e
dar-se-lhe-á a vida, se o pecado não for pecado ad mortem; mas se for pecado ad mortem, não digo que rogue por ele
pessoa alguma. — A dificuldade deste texto é tão grande que os expositores e
teólogos, na inteligência dele, se dividem em mais de quinze opiniões, não
concordando em que pecado seja o que S. João chama pecado ad mortem, e pelo qual se não deve orar, como incapaz de perdão,
irremissível e sem remédio. Alguns dizem que é o pecado do homicídio, outros o
do adultério, e Santo Agostinho e Beda não duvidaram dizer que era o da inveja.
E porque estes delitos não parecem tão enormes, outros, subindo mais alto,
dizem que é o pecado da blasfêmia, outros o da infidelidade, outros o da
apostasia, outros o da obstinação, e outros, sem nomearem a espécie, dizem em
geral que é algum pecado gravíssimo. Mas, contra todas estas sentenças, está
que não há pecado algum, por grave e gravíssimo que seja, que Deus não perdoe.
Que pecado é logo este incapaz de perdão e irremissível, que S. João chama
pecado ad mortem? Respondo que não é
nenhum pecado particular, nem de sua natureza mais grave que os outros, senão
qualquer pecado mortal, ainda de muito inferior malícia aos referidos, contanto
que seja o último, e o que acaba de encher a medida que Deus tem taxado a cada
homem; porque, tanto que a medida se encheu com qualquer pecado que seja, já
não há lugar de perdão nem de conversão:
Et super quatuor non convertam eum. E essa é a propriedade com que São João
lhe chama peccatum ad mortem: pecado
que leva sem remédio à morte eterna; porque, ainda que todo o pecado mortal
mata a alma, dos outros pode a alma
ressuscitar e tornar a viver, e deste não, como claramente distingue o mesmo texto: Et dabitur ei vita, peccanti non ad mortem.
CAPÍTULO IX
Suposta esta verdade tão
assentada e este estilo da Providência e justiça divina, tantas vezes revelado
pelo mesmo Deus, veja agora cada um de nós se pode haver, como no princípio
prometi, meio ou motivo algum, nem mais eficaz, nem mais forte, nem mais
terrível, para que um homem que tem juízo, e um cristão que tem fé, não só se
resolva firmissimamente, mas nem tenha nem possa ter atrevimento para jamais
pecar: Jam amplius noli peccare. Os
outros motivos ou pretextos sempre deixavam alguma esperança depois do pecado;
porém este de tal modo a jarreta e corta totalmente, que só quem se quiser
condenar de contado e ir resolutamente ao inferno se atreverá a pecar. Porque, se
eu sei que Deus me tem taxado certo número e talhado certa medida aos pecados,
e sei que cerrado este número e cheia esta medida, já não há lugar de perdão,
senão de condenação sem remédio, quem me diz a mim, ou me pode assegurar, que
aquele pecado que quero cometer não seja o último, e o que só falta à medida
para se encher de todo? Direis que assim como pode ser o último, pode também
não ser. E se for? E se for? Quase estive deliberado a acabar aqui o sermão, e
vos despedir só com esta pergunta. Mas é bem que saibais, para maior assombro,
o que Deus faz naquele mesmo ponto em que o homem, pelo último pecado, acaba de
encher a medida. O que Deus faz no ponto em que o pecador acabou de encher a
medida, ou é matá-lo logo, ou abrir dele a mão e deixá-lo para sempre. Vede que
disjuntiva esta igualmente terrível por ambas as partes. Ou ir para o inferno
logo, ou ir alguns dias depois, mas ir infalivelmente. Quanto à primeira parte,
de que Deus tira logo a vida aos que acabaram de encher a medida de seus
pecados, é sentença expressa de Santo Agostinho: Sed hoc magis sentire nos convenit, tandiu unumquemque Dei patientia sustentari,
quandiu nondum peccatorum suorum terminum, finemque compleverit, quo consumato,
eum illico percuti, nec illi ullam veniam jam reservari: esse autem certum
peccatorum modium, atque mensuram Dei ipsius testimonio comprobatur. Quer
dizer, começando pelo fim, que Deus, como consta por seu próprio e divino
testemunho, tem determinado aos pecados de cada homem certo número e medida, a
qual, enquanto não está cheia, o sofre com sua infinita paciência; porém, tanto
que ele a encheu, logo no mesmo ponto lhe tira a vida, sem mais remédio nem
lugar de perdão. Assim aconteceu a el-rei Baltasar, cuja sentença de morte,
estando à mesa, lhe apareceu escrita na parede em três palavras. A primeira
dizia: Numeravit (Dan. 5,26), contou, porque fez Deus a conta aos pecados de
Baltasar. E como naquela noite e naquela hora cometeu ele o último pecado, com
que acabou de encher o número e medida dos que Deus lhe tinha determinado, na
mesma hora se escreveu a sentença: Eadem
hora apparuerunt digiti, e na mesma noite foi morto: Eadem nocte interfectus, est Balthasar (Dan. 5,30). Mas se então se
encheu e cerrou o número dos pecados de Baltasar, como diz a mesma Escritura
que se achou que tinha menos: Inventus es
minus habens? Por isso mesmo, e porque assim foi. Quando Baltasar se
assentou à mesa, tinha menos um só pecado dos que eram necessários para encher
o número, e, como ele, na mesma mesa, mandou vir a ela os vasos sagrados do
Templo, para que fossem profanados, este pecado de sacrilégio foi o que acabou
de cerrar o número e encher a medida; e tanto que ela esteve cheia, logo ele
foi morto violentamente: Interfectus est.
Quantas vezes se vê isto no mundo
sem se entender. Mataram esta noite a fulano, vindo de tal parte. E quantas
noites tinha ele ido e vindo dessa mesma parte? Muitas. Pois, por que o não
mataram então, senão agora? A ofensa de Deus e o agravo dos homens era o mesmo,
e muitas vezes público: pois, por que o dissimulou Deus, e o não vingaram os
homens, senão neste dia e nesta hora? Porque os pecados antecedentes iam
enchendo a medida, o deste dia e desta hora foi o que a acabou de encher. O
mesmo passa nas mortes e acidentes repentinos, ainda que pareçam naturais, e em
outros desastres e casos que parecem fortuitos, e as mais das vezes são efeito
e execução do pecado último e decretório que, ajuntando-se aos outros, e
acrescendo sobre eles, acabou de encher a medida. Tanto assim — diz o grande
Dionísio Cartusiano, tão alumiado no espírito, como insigne em todo o gênero de
letras — tanto assim que aquele mesmo homem, que segundo as leis da natureza e
disposição da saúde e idade, havia de viver ainda muitos anos, só porque acabou
de encher a medida dos pecados, acabou juntamente, e sem remédio, os dias da
vida: Saepe enim homines, propter peccata
intempestive moriuntur, quando videlicet impletae sunt iniquitates eorum. Unde
de peccatore apud Job scriptum est: Antequam impleantur dies ejus, peribit.
Diz Jó que o pecador morrerá antes de encher os seus dias, e a causa não é
outra senão porque antes de encher o número dos dias encheu o número dos
pecados: Quando videlicet impletae sunt
iniquitates eorum. E quem assegurou aos que neste dia e nesta hora estão
vivos e sãos, que o primeiro pecado que se deliberarem a cometer não seja também
o último? Aquele hebreu e aquela madianita, aos quais matou o zelo de Finéias
no pecado atual, bem mal cuidavam que no mesmo ato se lhes havia de acabar a
vida, como tem acontecido a outros muitos. Mas como só aquele pecado faltava a
ambos para encherem a medida dos pecados, a vida e o pecado tudo se acabou
juntamente, para que temam e tremam todos de se resolver mais a pecar, pois não sabem se aquele pecado será o
último.
Mas quando com o último pecado se
não acabe juntamente a vida — que era a segunda parte da nossa disjuntiva — nem
por isso ficam de melhor condição os que já encheram a medida dos pecados, porque
deixados da mão de Deus, só lhes servirão esses dias que viverem de maior
inferno: Vae eis, cum recessero ab eis
(Os. 9.12): Ai deles — diz Deus pelo profeta Oséias — ai deles, quando eu me apartar
deles! — Oh! Se os homens pudessem alcançar e compreender a significação de um
ai de Deus! Oh! que alto e que profundo ai! Tão alto que chega ao céu empíreo,
donde o pecador é lançado e deserdado para sempre; tão profundo que penetra até
os abismos do inferno, onde o pecador será metido e aferrolhado para arder
enquanto Deus for Deus. A este ai responderão por toda a eternidade infinitos
ais, mas ais de dor sem arrependimento, ais de tormento sem alívio, ais de
desesperação sem remédio. Antes disto basta um ai de verdadeira contrição, para
Deus perdoar todos os pecados; mas, depois de cheia a medida e a alma ser
deixada de Deus, já não terão lugar esses ais, ou serão sem fruto, porque
ninguém se pode converter a Deus sem Deus. Como tornará a alma a Deus, se o
mesmo Deus a deixou já: Cum recessero ab
eis? Ruperto, e com ele a glosa, comentam assim estas palavras de Oséias: Postquam recessero ab eis, sequitur adhuc
vae, id est, judicium aeternae damnationis: Depois de Deus deixar a alma,
segue-se ainda o ai do mesmo Deus, e este ai não é nem significa menos que a
eterna condenação. — Santo Isidoro diz o mesmo: Dei secreto et justo judicio, deseritur homo, et perdendus in potestate
daemonum relinquitur nam re vera, quem Deus deserit, daemones suscipiunt:
Quando Deus por seus secretos e justos juízos deixa uma alma, logo o demônio
toma posse dela para sua perdição eterna, porque demiti-la Deus de si, é
entregá-la ao demônio.
Os teólogos, vindo a declarar
rigorosamente em que consiste deixar Deus uma alma, alguns disseram que em a
privar totalmente dos auxílios, ainda ordinários, em pena dos pecados antecedentes.
E verdadeiramente, deixados outros lugares da Escritura, um do capítulo quinto
de Isaías parece que o diz assim à letra: Et
nunc ostendam vobis quid faciam vineae meae: Auferam sepem ejus, et erit in
direptionem; diruam maceriam ejus, et erit in conculcationem; et ponam eam desertam:
non putabitur et non fodietur, et ascendent vepres et spinae, et nubibus
mandabo ne pluant super eam imbrem (Is. 5,5 s): Deixarei a minha vinha —
diz Deus — por me responder com labruscas em vez de uvas: Ponam eam desertam. E
que lhe farei então? Arrancar-lhe-ei as sebes e derrubar-lhe-ei o muro, para
que homens e animais entrem por ela e a pisem; não a podarei nem cavarei, nem
lhe farei outro benefício ou cultura; já não será vinha, senão mato, e em lugar
de brotarem nela as vides, crescerão abrolhos e espinhas; e, sobretudo,
mandarei ao céu e às nuvens que não chovam sobre ela: Et nubibus mandabo, ne pluant super eam imbrem. Se isto não é
privar a alma de todo o auxílio, ninguém negará que o parece. E para Deus no
tal caso justificar a sua Providência, basta a definição do Concílio
Tridentino: Nunquam Deus deserit hominem,
nisi prius ab homine deseratur: que nunca Deus deixa o homem, se o homem
não deixa primeiro a Deus. Mas porque a sentença mais pia, mais recebida e
aprovada comumente por certo é que Deus em nenhum estado desta vida falta ao
homem com os auxílios suficientes. Que se segue daqui depois de cheia a medida
dos pecados, senão, como dizia, maior inferno? Ou o pecador encheu a medida dos
pecados, ou não: Se a não encheu, salvou-se; se a encheu, condenou-se. E que
importa que se condenasse com auxílios, se não usou bem deles?
Este é o estado infelicíssimo da
impenitência final, a qual se consuma na outra vida, mas começa nesta. Oh!
quantos condenados vivem ainda, e andam entre nós, não porque absolutamente não
o pudessem, mas porque se não hão de converter! Estão atados aos pecados, de
que já encheram a medida: Funes
peccatorum circumplexi sunt me. Cuidam que se hão de desatar do último,
como porventura se desataram dos outros, mas engana-os o seu pensamento, como
enganou a Sansão. Três vezes rompeu Sansão as ataduras com que os filisteus o
queriam prender; mas quando veio a quarta, depois de cortados os cabelos, nota
a Escritura que, acordando, disse consigo: — Também desta vez me desatarei,
como das outras, porque não sabia que Deus o tinha deixado: Dixit in animo suo: egrediar sicut ante
feci, et me excutiam, nesciens quod recessisset ab eo Dominus (Jz. 16,20).
Tinha Deus deixado a Sansão, e porque o tinha deixado não se desatou como
dantes: prenderam-no os filisteus, tiraram-lhe os olhos e levaram-no a moer em
uma atafona. O mesmo acontece à alma deixada de Deus: prendem-na os demônios, e
tomam posse dela, como dizia Santo Isidoro: tiram-lhe os olhos, com que fica
cega, obstinada e impenitente, e levam-na a moer e arder na atafona do inferno,
cuja roda em qualquer parte pode ter princípio, e em nenhuma tem fim, porque é
a roda da eternidade. E se isto faz ou acaba de fazer o último pecado, que
enche a medida, e ninguém sabe qual seja, nem há pecado que o não possa ser,
quem haverá que se atreva a cometer qualquer pecado, e se não resolva
firmemente a nunca mais pecar: Jam
amplius noli peccare?
CAPÍTULO X
Por fim quero responder a duas
dúvidas que podem ocorrer, para que nos não enganemos com elas. A primeira é se
os pecados já confessados e perdoados entram também na conta para encher a medida?
Respondo que sim, porque, ainda que estejam perdoados quanto à culpa e
satisfeitos quanto à pena, para encherem o número e perfazerem a conta basta
haverem sido. Assim como os dias, que todos passam, ou fossem bem ou mal
gastados, enchem a conta e a medida da vida, assim os pecados, ou perdoados ou
não, enchem a sua, a qual se determinou e compôs de todos os que cada um cometesse:
De propitiato peccato noli esse sine metu (Eclo. 5,5): O pecado já perdoado —
diz o Espírito Santo — não deixes de o temer. — E por que, se já está perdoado?
Porque, ainda que o pecado perdoado já não é quanto à culpa, e pode também ser
que já não seja quanto à pena, quanto ao número e à soma com que já entrou na
conta com os demais, basta ter sido pecado para ajudar a encher a medida. E
como o chegar a medida dos pecados a se encher é coisa tão temerosa e de sumo perigo,
por isso todo o pecado, ainda que nos conste moralmente, ou nos constasse por
outra via mais certa, que estaria perdoado, sempre, contudo, nos deve causar
temor: Depropitiato peccato noli esse sine
metu.
A outra dúvida ainda nos pode
enganar mais aparentemente, porque a matéria com que o demônio nos tentar, pode
ser muito menos grave que a de outros pecados, que já tenhamos cometido; e, se aqueles,
sendo muito maiores, não encheram a medida, muito menos parece que pode encher
este, com que agora sou tentado, sendo muito mais leve ou menos grave. Também
isto é engano, e se demonstra com autoridade de fé, e com o maior e mais
evidente exemplo que se podia excogitar. Fala São Paulo dos judeus que o
perseguiam e impediam a pregação do Evangelho, e sendo esta perseguição vinte
anos depois da morte de Cristo, diz o Apóstolo que com ela enchiam os judeus a medida
dos pecados, pelos quais totalmente haviam de ser destruídos com castigo,
assolação e extermínio final: Qui Dominum
occiderunt Jesum, et nos persecuti sunt, prohibentes nos gentibus loqui ut
salvae fiant, ut impleant peccata sua semper: pervenit enim ira Dei super illos
us que in finem. A morte de Cristo foi o maior pecado que nunca se cometeu
nem podia cometer, e a perseguição de Paulo, e o impedimento que com ela se
punha à pregação do Evangelho, ainda que grande pecado, era, sem comparação,
muito menor. Pois, como diz o mesmo S. Paulo, fazendo menção da morte de Cristo
pelos judeus, que eles, com a perseguição que lhe faziam, enchiam a medida dos
seus pecados: Ut impleant peccata sua?
Porque, para encher a medida dos pecados, não é necessário que o pecado que
acaba de encher seja maior nem igual aos pecados já cometidos, e basta que seja
muito menor. Nas coisas secas o último grão, e nas líquidas a última gota, são
as que acabam de encher a medida, e não pela grandeza ou quantidade de cada
uma, senão porque é a última. O mesmo passa em qualquer pecado, contanto que de
sua natureza seja mortal, para que temamos a todos e a cada um, e nos não fiemos
em ser ou parecer menor, para nos arriscarmos a o cometer.
Oh! praza à majestade e
misericórdia divina, que esta lição do céu se nos imprima dentro na alma, e no-la
penetre de tal sorte que, desta hora e deste momento em diante, nos resolvamos constantissimamente
a nunca mais pecar, por nenhum interesse, por nenhum gosto, por nenhum receio,
por nenhum caso ou sucesso da vida nem da morte. Vede quem vos diz que pequeis,
e quem vos diz que não pequeis. Quem vos diz que pequeis pode ser o mundo, pode
ser o demônio, pode ser a carne, três inimigos capitais, que só pretendem e
maquinam vossa eterna condenação. E quem vos diz que não pequeis é aquele mesmo
Deus que, depois de vos dar o ser, se fez homem por amor de vós, e aquele Deus
e Homem que só por vos salvar e vos fazer eternamente bem-aventurado, não
duvidou padecer tantos tormentos e afrontas, e morrer pregado em uma cruz. Este
Senhor tão poderoso, este conselheiro tão sábio, este amigo tão verdadeiro e
tão fiel, é o que vos diz que não pequeis: Jam
amplius noli peccare.
Considerai bem estas palavras do
amorosíssimo Jesus, que não só são para persuadir, senão para enternecer a quem
ainda tiver coração: Jam amplius, já
não mais. Baste já, cristão remido com o meu sangue, baste já o que tens
pecado, baste já o que tens vivido sem lei, sem razão, sem consciência, sem
alma; baste já o que me tens ofendido, baste já o que me tens desprezado, baste
já o que me tens crucificado. Se te não compadeces de mim, compadece-te ao
menos de ti, que a ti, e por amor de ti o digo. Se não basta que eu te mande
que não peques, eu to peço, eu to rego, e não só te represento a minha vontade, mas me valho e invoco os
poderes da tua: Noli, noli peccare.
Que não queiras pecar te advirto uma vez
e outra, por que não cuides que não podes. Na tua mão, no teu alvedrio, na tua vontade
está o salvar-te, se quiseres, para que vejas que cegueira, que loucura, que
infelicidade, que miséria e que eterna confusão e dor irremediável será a tua,
se por tua própria vontade, e por não resistires a um pecado, te condenares. Se
já estiveras no inferno, para onde corrias tão precipitadamente, e onde já
havias de estar ardendo, se eu não tivera mão na minha justiça, que havia de
ser de ti a esta hora? E se nesta mesma hora eu te oferecesse o partido de te
livrar do inferno e de te dar o céu, só com condição de não quereres mais
pecar, que havias de fazer e que graças me havias de dar? Pois, se por mercê e misericórdia
minha ainda estás em tempo, por que não tomarás muito deveras, e para sempre, a
mesma resolução? Por que te não livrarás dos males eternos, e segurarás os eternos
bens? Por que não ganharás a coroa e reino do céu, e te farás para sempre bem-aventurado?
E tudo isto só por ter uma vontade tão honesta, tão útil, e ainda tão
deleitável, como é o não querer pecar? Acaba, acaba já de ser inimigo de ti
mesmo, acaba já de ofender a quem tanto te ama, acaba já de querer antes o
inferno sem mim, que a glória comigo: Jam
amplius noli peccare.
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão do Quarto Sábado da Quaresma" (1640)
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão do Quarto Sábado da Quaresma" (1640)
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