SERMÃO DO MANDATO
Concorrendo no mesmo dia o da
Encarnação. Ano de 1655.
Pregado na Misericórdia de
Lisboa, às 11 da manhã
Sciens quia a Deo exivit, et ad Deum vadit: Cum dilexisset suos, in
finem dilexit eos.
CAPÍTULO I
No ano presente concorrem e se
ajuntam no mesmo dia os dois maiores mistérios e os dois maiores dias: o dia da
Encarnação do Verbo e o dia da partida do mesmo Verbo Encarnado. O que dizem os
dias e o que declaram as noites. A competição do Amor divino consigo mesmo e a
justa dos gigantes. Argumento do sermão: foi maior o amor de Cristo no dia da
Encarnação ou no dia da partida?
Grande dia! Grande amor! Depois
que o Eterno se fez temporal, também o amor divino tem dias. O evangelista S.
João querendo-nos declarar a grandeza e grandezas do mesmo amor neste dia, a
primeira coisa que ponderou, com tão alto juízo como o seu, foi ser um dia
antes de outro dia: Ante diem festum
Paschae. Tanto pode acrescentar quilates ao amor a reflexão ou
circunstância dos dias! E que farei eu? Dois dias hei de combinar também hoje,
mas não o dia de antes com o dia de depois, senão o dia de depois com o dia de
antes; e não livremente ou por eleição própria e minha, senão por obrigação
forçosa dos mesmos dias. Assim como depois de longo círculo de anos se encontram
e ajuntam dois planetas a fazer uma conjunção magna, assim no ano presente
concorrem e se ajuntam hoje no mesmo dia os dois maiores mistérios e os dois
maiores dias: o dia da Encarnação do Verbo, e o dia da partida do mesmo Verbo
encarnado. O dia da Encarnação do Verbo: Sciens
quia a Deo exivit - que foi o princípio com seu amor para com os homens: cum dilexisset suos - e a partida do
mesmo Verbo encarnado: Et ad Deum vadit - que foi o fim sem fim do mesmo amor: In finem dilexit eos. 0 real profeta
Davi, antevendo em espírito estes dois dias, diz que o dia de hoje fala com o
dia da Encarnação, e o dia da Encarnação com o dia de hoje, e que ambos se
entendem entre si, e se respondem um ao outro: Dies diei eructat verbum. Assim explica este famoso texto Santo
Agostinho. E se perguntarmos que é o que falam estes dias, que devem de ser
coisas muito dignas de se ouvir e saber, responde o mesmo Davi que as noites
dos mesmos dias nos dirão e declararão o que eles falam: Dies diei eructat Verbum, et nox nocti indicat scientiam. Pois as
noites, que são escuras, nos hão de declarar o que dizem os dias? Sim. Porque
os mistérios do dia de hoje, e do dia da Encarnação, ambos se celebraram nas
noites dos mesmos dias. Tanto silêncio e reverência era devido à majestade de
tão divinos mistérios! Os do dia da Encarnação de noite: Cum quietum silentium contineret omnia, et nox in suo cursu medium iter
haberet - e os do dia de hoje também de noite: Et coena facta. As luzes a que se há de ver toda esta famosa
representação são as da fé; os lugares, um cenáculo grande em Jerusalém, e uma
casa humilde, mas real, em Nazaré. E a questão ou problema, qual será? Se foi
maior o amor de Cristo no dia da Encarnação ou no dia de hoje.
Posto, pois, um dia defronte do
outro dia, e um mistério à vista de outro mistério, e um amor competindo com
outro amor, é certo que nunca o amor divino se viu em mais glorioso teatro,
pois sai a competir consigo mesmo. Nas outras comparações do amor divino com o
amor dos homens, ou seja com o amor dos irmãos, ou com o amor dos pais, ou com
o amor dos filhos, ou com o amor dos esposos, ou com o amor dos amigos - que
deve ser o maior de todos ainda que saia vencedor o amor de Cristo, sempre fica
agravado na vitória, porque entra afrontado na competência. Só hoje, se vencer,
será vencedor glorioso, porque tem competidor igual, e se vencerá a si mesmo.
Quando Davi saiu a desafio com o gigante, mediu-lhe o gigante com os olhos a
estatura, e, posto que não duvidava da vitória, na desigualdade de tão inferior
combatente teve por injuriosa a batalha. Do mesmo modo, e com mais verdade,
Cristo. Quando o seu amor se compara com outro amor, compete o gigante com
Davi; mas quando se compara o amor de Cristo com o amor do mesmo Cristo, como
fazemos hoje, é competir o gigante com o gigante. Assim o disse ou cantou o
mesmo Davi: Exultavit ut gigas ad
currendam viam. Entrou Cristo na estacada como gigante. E que fez? Justou
consigo mesmo. A primeira carreira foi do céu para a terra: A summo caelo egressio ejus; a Segunda
carreira foi da terra para o céu: Et
occursus ejus usque ad summum ejus: e neste encontro se cerrou a justa, e
se quebraram as lanças um e outro amor. É em verso de Davi o mesmo que diz a
prosa do nosso Evangelho. A primeira carreira: A summo caelo egressio ejus - foi no dia da Encarnação, quando o
Verbo saiu do Padre: a Deo exivit; a segunda carreira: Et occursus ejus usque ad summum ejus - foi no dia de hoje, quando
o mesmo Verbo tornou para o Padre: Et ad
Deum vadit. Na primeira carreira, amor: Cum
dilexisset suos; e na segunda também amor: In finem dilexit eos. O dilexisset
e o dilexit distingue os dias: o dilexisset declara um amor, e o dilexit
outro; mas nem juntos, nem divididos sinalam a vitória, nem resolvem qual foi
maior. Esta famosa decisão entre os maiores combatentes que jamais se viram,
havemos de ver hoje. Assistir-nos-á com a graça quem foi presente em um e outro
dia, e quem teve a maior parte em um e outro mistério, que foi a Mãe do mesmo
amor: Mater pulchrae dilectionis. Mas
como invocaremos seu favor e patrocínio? Com as mesmas palavras com que também
hoje a invocou o anjo: Ave gratia plena.
CAPÍTULO II
O amor de Cristo quanto à
substância e quanto aos efeitos. Os extremos do amor de Cristo no dia da
Encarnação e no dia da partida. Comparando-se os efeitos Deuses dois dias,
afirma o autor que maiores foram os extremos do dia da partida que os do dia da
Encarnação.
Cum dilexisset, dilexit.
Nestas palavras - como dizia -
deixou o Evangelista indecisa a nossa questão, porque não disse: como amasse mais amou menos, nem como amasse
menos amou mais, senão como amasse amou.
Distinguiu somente os tempos, e
pelos tempos o amor, sem preferência porém, ou vantagem nem do amor passado ao
presente, nem do presente ao passado. Falou S. João como divino teólogo, e não
só como quem tecia a história, mas como quem compunha o panegírico do amor de
Cristo. Quanto à substância do amor, Cristo, Senhor nosso, tanto nos amou no
dia da Encarnação, como no dia de hoje, e em todos os dias da sua vida, porque
o seu amor é amor perfeito, e não fora seu, se assim não fora. O amor dos
homens, ou míngua,ou cresce, ou pára; o de Cristo nem pode minguar, nem
crescer, nem parar, porque é, foi, e será sempre amor perfeito, e por isso
sempre o mesmo, e sem alteração nem mudança. Ama Cristo enquanto homem, como
ama enquanto Deus. Perguntam os teólogos: como ama Deus a uns mais e a outros
menos, se o seu amor - o qual se não distingue da sua essência - é sempre um só
e o mesmo, infinito, simplicíssimo e imutável? E respondem que a diferença ou
desigualdade não está no amor, senão nos efeitos, porque a uns sujeitos faz Deus maiores bens
que a outros. Os homens amamos os objetos pelo bem que tem: Deus ama-os pelo
bem que lhes faz. E assim como julgamos a maioria do amor de Deus belos
efeitos, assim havemos de julgar também a do amor de Cristo. Este é o
fundamento sólido e certo sobre que excitamos a nossa questão, e estes os
termos de igual certeza, com que a havemos de resolver. Nem daqui deve inferir
ou cuidar a rudeza do nosso entendimento que seria menos afetuoso, ou menos
amoroso, este modo de amar de Cristo, porque assim como em Deus o fazer o bem
se chama amor efetivo, e o querê-lo fazer amor afetivo, assim no amor de Cristo
os afetos foram a causa dos efeitos que veremos, e os efeitos a demonstração
dos afetos.
Vindo, pois, aos efeitos e
demonstrações de um e outro amor no dia de hoje e no dia da Encarnação, parece
que assim no número, como no modo, os esteve medindo e proporcionando o mesmo
amor, que neles se quis igualar e vencer. O Concílio Niceno, no Símbolo da Fé,
ponderando o amor de Cristo na Encarnação, reduz os efeitos dele a dois
extremos: descer do céu e fazer-se homem: Qui
propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis. Et
incarnatus est ex Maria Virgine, et homo facctus est. Isto diz o Espírito
Santo no Concílio, falando do dia da Encarnação. E falando do dia de hoje, que
é o que diz e pondera o mesmo Espírito Santo no Evangelho? Outros dois efeitos
e outros dois extremos: lavar os pés aos homens, e deixar-se no Santíssimo
Sacramento: Et coena facta, coepit lavare
pedes discipulorum. Supostos de uma e outra parte este par de extremos, uns
e outros não só admiráveis mas estupendos, comparando-se o amor de Cristo, e
competindo-se em uns e outros, que diremos ou que podemos dizer? Sem temeridade
nem temor, digo e afirmo que maiores foram os extremos do dia de hoje que os do
dia da Encarnação. E por quê? Porque, se no dia da Encarnação foi grande
extremo de amor descer Deus do céu à terra: Descendit
de coelis - muito maior extremo foi no dia de hoje lavar Cristo os pés aos
homens : Coepit lavare pedes discipulorum.
E se foi grande extremo de amor no dia da Encarnação fazer-se Deus homem: Et homo factus est - muito maior extremo
foi no dia de hoje deixar Cristo seu corpo no Sacramento para que o comessem os
homens, como fez na Ceia: Et coena facta.
– Estes serão os dois pontos do nosso discurso, em que ele descobrirá muito
mais do que aparece no que está dito.
CAPÍTULO III
Estranheza da exclamação de Jacó
quando viu em sonhos aquela famosa escada que chegava da terra até o céu, pela
qual subiam e desciam anjos. Como se há de entender o dito de Davi, quando
afirma que Deus tinha feito o homem pouco menor que os anjos. O estupendo
prodígio que fez Deus por amor de el-rei Ezequias em benefício de sua saúde, e
o prodígio da Encarnação.
Tão grande e tão prodigiosa coisa
foi descer Deus em Pessoa do céu à terra que, visto de muito longe este
mistério, não só causava admiração e espanto ao entendimento, mas horror e
assombro à mesma fé. Viu Jacó em sonhos aquela famosa escada que chegava da
terra até o céu, pela qual subiam e desciam anjos, encostado e inclinado Deus
no alto dela, e, assombrado do que via, acordou com um grito, dizendo: Terribilis est locus iste (Gen. 28, 17)!
Ó que terrível, ó que temeroso lugar!
— De vários modos se costuma
ponderar a estranheza deste dito. Eu só noto que nem a vista podia causar
horror, nem a novidade espanto. O que só poderia causar horror a Jacó era ver que
os que subiam e desciam fossem somente anjos, e que nem ele, que estava no
baixo da escada, subisse, nem Deus, que estava no alto, descesse, com que se
demonstrava uma grande separação entre Deus e o homem, como aquela de que disse
Abraão ao avarento: Inter nos et vos
chaos magnum firmatum est. E posto que hoje esta apreensão seria para nós
de grande horror, porque sabemos o contrário, naquele tempo nem podia causar
horror pela vista, nem espanto pela novidade, como dizia, porque tudo o que
Jacó viu, e tudo o que mostrava significar o que via, era o mesmo que ele e os
demais supunham. Até o tempo de Jacó, e ainda depois, no tempo da lei escrita,
nunca Deus prometeu aos homens o céu, senão tudo prêmios da terra. E daqui
nasceu aquela parêmia ou provérbio: Caelum
caeli Domino; terram autem dedit Filiis hominum: que o céu era para Deus, e
a terra para os homens. Logo não se podia assombrar nem espantar Jacó de que
ele, sendo homem, e estando na terra, não subisse pela escada, e, muito menos,
de que Deus, sendo Deus, e estando no céu, não descesse. Pois, se Jacó não
tinha que admirar nem que estranhar no seu sonho, de que acordou com tanto
horror e tão notável assombro?
Acordou assombrado Jacó, não do
que vira, senão do que na mesma visão Deus lhe revelara.Revelou Deus a Jacó que
naquela escada era significado o mistério altíssimo da Encarnação do Verbo, e
que para ele, Jacó, os outros homens poderem subir ao céu, ele, Deus, havia de
descer do céu à terra: Qui propter nos
homines, et propter nostram salutem descendit de caelis. E vendo Jacó que a
majestade suprema de Deus, deixando do modo que o podia deixar o trono do
empíreo, havia de descer em pessoa do céu à terra, a revelação desta estupenda
novidade, que nunca entrou na imaginação humana, lhe causou no mesmo sono tal
horror e assombro, que acordou tremendo e gritando: Terribilis est locus iste! Duas coisas viu Jacó no que viu, que
muito e com muita razão lhe assombraram, não a vista, senão o entendimento. E
quais foram? A primeira que, sendo a escada para descer Deus, a descida era
muito maior que a escada. Pois a descida maior que a escada? Sim. Porque a
escada chegava da terra ao céu, que é distância limitada, e a descida era de
Deus ao homem, que é distância infinita. E vendo unir dois extremos infinitamente
distantes, quem, ainda estando muito em si, não ficaria atônito e assombrado? A
segunda causa, e não menor, do mesmo assombro, foi que por meio da Encarnação
do Verbo, assim revelada a Jacó, vinha a conseguir muito mais o menor anjo do
que a soberba de Lúcifer tinha afetado. Porque Lúcifer quis ser igual a Deus, e
fazendo-se Deus homem, ficava Deus por este lado sendo inferior ao menor anjo.
Este foi o grande mistério - diz
Santo Agostinho - por que os anjos da escada uns desciam, outros subiam. Como
Deus estava no alto da escada, e Jacó ao pé dela, os anjos que ficavam da parte
de Deus desciam, e os que ficavam da parte de Jacó subiam, e este subir e
descer não era ato ou movimento da vontade dos mesmos anjos, senão ordem e
constituição da sua própria natureza. Os da parte superior da escada, onde
estava Deus, desciam, porque todos os anjos são muito inferiores a Deus; e os
da parte inferior, onde estava Jacó, subiam, porque estes mesmos são muito
superiores ao homem. E como os anjos são superiores ao homem, e Deus não havia
de tomar a natureza angélica, senão a humana, isto era o que assombrava a Jacó,
e lhe parecia coisa terrível: que Deus houvesse de descer, e abater-se tanto,
que ficasse por esta parte muito inferior a qualquer anjo.
Lá disse Davi que Deus tinha
feito ao homem pouco menor que os anjos: Minuisti
eum paulo minus ab angelis ( Sl 8, 6 ). Mas isto se entende no domínio, e
não na natureza, porque deu Deus a Adão o senhorio e império de todos os
animais da terra, do mar e do ar, como logo declarou o mesmo profeta: Minuisti eum paulo minus ab angelis; gloria
et honore coronasti eum; et constituisti eum super opera manuum tuarum. Omnia
subjecisti sub pedibus ejus, oves et boves, insuper et pecora campi, volucres
caeli, et pisces maris. De maneira que no domínio e uso de todas as coisas
criadas para serviço seu nos três elementos, é o homem pouco menor que os
anjos; porém, no ser e nobreza natural, não só quanto à parte do barro, em que
aparentamos com os brutos, senão ainda quanto à parte espiritual da alma e suas
potências, em que imitamos a natureza angélica, não é o homem pouco menor,
senão muito menor e muito inferior a qualquer anjo, e tanto quanto for de mais
superior hierarquia. A escada de Jacó tinha nove degraus, que são as nove ordens
de criaturas racionais que há entre Deus e o homem, as quais por outro nome
chamamos nove coros dos anjos, e todos estes degraus desceu Deus, e os deixou e
passou por eles, para se unir com a natureza humana, que jazia em Jacó,
abaixo de todos.
É o que ponderou S. Paulo
naquelas palavras: Nusquam angelos
apprehendit, sed semen Abrahae apprehendit, cujo fundo e energia não acho
tão declarada nos expositores como ele pede.
Dizem que nusquam é o mesmo que nunquam
ou nequaquam, mas nusquam não é simples negação, nem
advérbio de tempo, senão de lugar, e propriamente quer dizer: em nenhuma parte.
Pois, por que diz S. Paulo que não tomou Deus a natureza angélica em nenhuma
parte, nusquam? Porque tinha Deus
nove partes em que a tomar: três na primeira hierarquia, três na segunda e três
na terceira. E essa foi a maravilha do mistério da Encarnação, que por tomar
Deus a natureza humana, deixasse em tantas partes a angélica. Na primeira
hierarquia deixou serafins, querubins, tronos; na segunda deixou potestades,
principados, dominações; na terceira deixou virtudes, arcanjos, anjos; e no
homem, que era o décimo, último e ínfimo lugar, onde jazia Jacó, ali tomou a
nossa natureza caída, para a levantar, e enferma, para lhe dar saúde, que foi o
fim para que tanto se abateu e desceu.
Estando el-rei Ezequias
mortalmente enfermo, prometeu-lhe o profeta Isaías a vida em nome de Deus; e em
testemunho de que a promessa era divina, deu-lhe, por sinal no céu, que o sol
tornaria atrás dez linhas, ou dez degraus, e assim sucedeu: Et reversus est sol decem lineis per gradus
quos descenderat. E por que tornou o sol atrás dez linhas, ou dez degraus,
e não onze, ou nove, senão dez, nem mais nem menos sinaladamente? Porque
naquele prodígio, verdadeiramente grande, se significava outro maior, que era o
da Encarnação do Verbo, na qual, assim como o sol, estando no zênite - que não
podia ser de outra sorte — tornou atrás dez linhas, até se pôr nos horizontes
da terra, assim Deus, desde o mais alto de sua majestade infinita, desceu outras
dez linhas até se pôr na última e ínfima da natureza humana, e assim como fez
aquele estupendo prodígio por amor de Ezequias, e em benefício da sua saúde,
assim obrou o da Encarnação muito mais estupendo, por amor dos homens e para
saúde dos homens: Qui propter nos
homines, et propter nostram salutem descendit de caelis, et incarnatus est.
CAPÍTULO IV
O pasmo e o horror dos discípulos
de Cristo no Cenáculo. O assombro de Jacó e a reverência de Pedro. Quando se
fez Deus homem e quando se fez servo? As duas metáforas ou comparações de São
Paulo. Por que diz o apóstolo do terceiro céu que quando Cristo se fez servo
não cuidou nem teve para si que a sua divindade não era sua?
Isto é o que neste dia se obrou
em Nazaré. Mudemos agora a cena, e ponhamo-nos no Cenáculo de Jerusalém, e
veremos com quanta maior razão se pode dizer daquele lugar: Terribilis est locus iste! Despe-se
Cristo das roupas exteriores, cinge-se com uma toalha, deita água em uma bacia
com suas próprias mãos: entende-se destas ações, que quer lavar os pés aos
discípulos. E qual foi, com esta vista, o assombro, o pasmo, o horror com que
as mesmas paredes do Cenáculo parece que tremiam? Não estava aqui Jacó, mas
estava Pedro, o qual mais fora de si que no Tabor, exclamou, dizendo: Domine, tu mihi lavas pedes (Jo 13, 6)? Vós, Senhor, a mim lavar os pés? –
Eternamente.
Não consentirei tal coisa: Non lavabis mihi pedes in aeternum (Jo
13, 8). Já neste primeiro movimento se vê quanto vai de dia a dia, e de
mistério a mistério. Comparai-me a S. Pedro com Jacó. Jacó, depois que viu a
escada, e que Deus havia de descer por ela, desejava sumamente que descesse, e
enquanto tardava a vir, lhe parecia uma eternidade: Donec veniret desiderium collium aeternorum. Pelo contrário, Pedro,
vendo que Cristo lhe quer lavar os pés, não sofre nem consente em tal ação,
antes diz resolutamente que a não consentirá por toda a eternidade: Non lavabis mihi pedes in aeternum. Se
isto era amor e reverência de Cristo em Pedro, também Jacó o reverenciava e amava
muito. Pois, se Jacó deseja que Deus desça e se abata a se fazer homem, por que
não consente Pedro que se abata a lhe lavar os pés? Por isso mesmo. Porque
tanto vai de um abatimento a outro abatimento. Encarnar Deus, era fazer-se
homem; lavar os pés aos homens era fazer-se servo; encarnar era vestir-se da
nossa humanidade; fazer-se servo dos homens era despir-se da sua divindade.
Não me atrevera a dizer tanto se
S. Paulo o não tivera dito, e ainda muito mais. É passo muitas vezes ouvido,
mas que terá que explicar até o fim do mundo: Qui cum in forma Dei esset, non rapinam arbitratus est esse se aequalem
Deo, sed semetipsum exinanivit formam servi accipiens, in similitudinem hominum
factus, et habitu inventus ut homo. Quer dizer: que sendo o Verbo Eterno
igual ao Padre em tudo, se fez, e se desfez. Se fez porque, sendo Deus, se fez
homem: ln similitudinem hominum factus,
et habitu inventus ut homo; e se desfez porque, sendo Deus e homem, se fez
servo, e, fazendo-se servo, se desfez e aniquilou a si mesmo: Exinanivit semetipsum, formam servi
accipiens. Agora pergunto: quando se fez Deus homem, e quando se fez servo?
Fez-se homem na Encarnação, e fez-se servo no lavatório dos pés. Logo, na
Encarnação se fez e no lavatório se desfez. Muitos autores entendem todo este texto
só da Encarnação, e que o fazer-se Deus homem foi juntamente fazer-se servo.
Mas esta interpretação é imprópria, por não dizer injuriosa à natureza humana.
O ser homem é indiferente, ou para ser servo ou para ser senhor; e Cristo,
enquanto homem, não só foi Senhor, senão grande Senhor.
Assim o disse o anjo no mesmo dia
da Encarnação, anunciando que, enquanto Deus, seria Filho do Altíssimo, e,
enquanto homem, herdeiro do cetro de seu pai Davi. Nesta suposição falou sempre
o mesmo Cristo: Non est servus major
domino suo. Si me persecuti sunt, et
vos persequentur; e hoje, depois do mesmo ato do lavatório: Vos vocatis me Magister et Domine, et bene
dicitis: sum etenim. Nem encontram, antes confirmam esta distinção as
mesmas palavras de São Paulo, as quais dizem que tomou o Senhor a forma de
servo, não fazendo-se, senão feito homem: Formam
servi accipiens, in similitudinem hominum factus - porque, feito homem na
Encarnação, tomou a forma de servo, lavando os pés aos homens. Expressa e
esquisitamente Dioniso Alexandrino: Jesus
Christus, Dominus et Deus apostolorum, cum accipisset, formam servi, surgit a
coena, et ponit vestimenta sua, et linteo praecinxit se: haec est forma servi.
A baixeza do servo não é obra ou injúria da natureza, senão da fortuna. A natureza
a todos os homens fez iguais: a fortuna é a que fez os altos, os baixos e os
baixíssimos, quais são os servos. E esta foi a fineza do amor de Cristo hoje
sobre a do dia e obra da Encarnação. Quando se fez homem tomou as condições da
natureza; quando se fez servo e lavou os pés aos homens, tomou as baixezas da
fortuna. Aquilo foi fazer-se, e isto desfazer-se:
Exinanivit semetipsum, formam servi accipiens.
Com duas comparações ou
metáforas, declara S. Paulo este fazer-se e desfazer-se: com metáfora da roupa
que se veste e se despe, e com metáfora do vaso que se enche e se vaza. Com
metáfora da roupa que se veste e se despe: Habitu
inventus ut homo; com metáfora do vaso que se enche e vaza: Exinanivit semetipsum e ambas as
metáforas parece que as tomou S. Paulo do mesmo ato do lavatório em que
estamos. . A da roupa enquanto se despe: Ponit
vestimenta sua - e a do vaso enquanto se vaza: Mittit aquam in pelvim. E por que usou S. Paulo destas duas
metáforas e destas duas comparações? Porque só com elas podia mostrar a
diferença deste ato e deste dia ao ato e ao dia da Encarnação. No dia e ato da
Encarnação, fazendo-se Deus homem, Deus vestiu-se da humanidade, porque a uniu
a si, e se cobriu com ela; e a humanidade, que era um vaso de barro pequeno e
estreito, ficou cheia de Deus, porque Deus a encheu com toda a imensidade de
seu ser: Quia ín ipso inhabitat omnis
plenitudo divinitatis corporaliter. E, sendo isto o que se fez no dia da
Encarnação, tudo isto - quanto à vista dos olhos humanos se desfez no dia e no
ato de hoje.
Porque, lançando-se Cristo aos
pés dos homens, e tais homens, e fazendo-se servo seu, e servo em ministério
tão vil e tão abatido, parece que Deus se despira outra vez da humanidade de
que estava vestido, desunindo-se dela, e que a mesma humanidade, que estava
cheia de Deus, perdida a união com a divindade, ficara totalmente vazia: Exinanivtt semetipsum, formam servi
accipiens. E foi isto assim como parece? Não. Mas, posto que a humanidade
de Cristo por este ato não perdeu a união com a divindade, nem deixou de estar
tão cheia de Deus como dantes estava, abaixar-se, porém, e pôr-se em estado tão
abatido, que o parecesse ou pudesse parecer aos homens, foi uma diferença tão
notável e tão estupenda, que só o mesmo S. Paulo a pode ponderar e encarecer.
Agora entra o mais profundo pensamento das suas palavras.
Non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum
exinanivit, formam serv accipiens (Flp 2, 6 s). O fazer-se Cristo servo,
sendo Deus diz S.Paulo - não foi porque cuidasse ou tivesse para si o mesmo
Cristo que a sua divindade não era sua, senão alheia, como se a tivesse roubado
ao Padre. Pois Cristo podia cuidar nem ter para si que a sua divindade não era
sua? Claro está que não podia ter para si uma coisa tão contrária à verdade,
nem cuidar o que era tão alheio de todo o pensamento. Por que diz logo o
Apóstolo do terceiro céu que, quando Cristo se fez servo, não cuidou nem teve
para si que a sua divindade não era sua? Porque foi tal ato o de Cristo se
abater aos pés dos homens, que podiam os mesmos homens cuidar que Cristo o
cuidara assim. Homem que tanto se abate, ou não é Deus, ou, se foi Deus alguma
hora, tem deixado de o ser, ou, se ainda é Deus, deve de cuidar sem dúvida que
o não é, porque, sendo Deus, e tendo para si que é Deus, não se podia abater a
coisa tão baixa. E como o ato foi alheio de quem o fazia, que os homens podiam
entrar em tal pensamento, que, ou cuidassem que Cristo não era Deus, ou
cuidassem que o mesmo Cristo cuidou que o não era, por isso pondera e adverte
S. Paulo primeiro que tudo que, quando Cristo se abateu à baixeza de servo, não
foi porque cuidasse ou tivesse para si que não era Deus: Non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum
exinanivit, formam servi accipiens. É o que também advertiu e ponderou o
nosso evangelista, na prefação com que entrou a narrar este mesmo ato. Por isso
disse que, quando o Senhor começou a lavar os pés dos discípulos, sabia que era
Deus, e que nas mesmas mãos com que lhes lavava os pés, tinha o poder de tudo:
Sciens quia a Deo exivit, et ad Deum vadit, et quia omnia dedit ei
Pater in manus, caepit lavarepedes discipolorum. Crendo pois S. Pedro
firmissimamente esta verdade - que por isso disse:
Domine, tu mihi? que muito é que, sendo aquele grande piloto, que
nunca perdeu o tino nas maiores tempestades, e se atreveu a caminhar a pé sobre
as mesmas ondas do mar, agora areasse e se afogasse em tão pouca água, como a
daquela bacia, e não pudesse tomar pé na profundidade imensa de tão tremendo
mistério?
CAPÍTULO V
Que importa que Pedro diga tu mihi, se de si conhece pouco, e de
Cristo nada? Se S. Pedro antes desse dia
foi capaz de entender perfeitamente o mistério
da Encarnação, como agora não estava ainda capacitado para entender o
mistério do lavatório dos pés? Por que
Deus não é humilde, nem pode ser humilde? A voz
dos dois abismos. Cristo na Encarnação fez-se homem, e no lavar os pés
aos homens fez-se não homem. Cristo aos
pés de Judas. No Cenáculo de Jerusalém, os
dois degraus ou dois estados mais abaixo do não ser.
Sossegou Cristo o assombro e
resistência de S. Pedro. Mas como? Quod
ego facio, tu nescis modo, scies autem
postea (Jo 13, 7): Pedro, o que eu agora faço, tu não o sabes nem o entendes, mas sabê-lo-ás
depois. - Depois, Senhor? E quando?
Quando vires no céu, revestido de sua própria majestade, o mesmo que
agora vês meio despido e cingido com
este pano servil. Neste sentido entendem
o scies autem postea, Santo Agostinho,
S. Crisóstomo, Beda, Ruperto, Teofilato, Eutímio.
E com razão. Assim como as
semelhanças se não podem conhecer senão de
perto, assim as distâncias não se podem medir senão de longe. — Que
importa que digas tu mihi, se de ti
conheces pouco, e de mim nada? Quando vires o tudo que sou, então entenderás o muito que faço. Se
falas pelo que viste no Tabor, este é o
excesso que se havia de cumprir em Jerusalém, de que Moisés e Elias,
mais assombrados do que tu, falavam.
Agora deixa-te lavar, sob pena de me não veres
eternamente, nem chegares a saber o que estás vendo e não sabes: Quod ego
facio, tu nescis modo.
Assim disse com graves e
temerosas palavras o Senhor, e se dissera o
mesmo a outro apóstolo, não me admirara tanto, mas a S. Pedro? Isto é o
que me admira muito, e muito mais na
memória e concurso dos dois dias em que estamos. Perguntou Cristo noutra ocasião aos
discípulos, que também estavam juntos: Quem dicunt homines esse Filium hominis (Mt
16, 13)? Quem dizem os homens que é o
Filho do homem? - Os outros referiram vários ditos, porém S. Pedro respondeu: Tu
es Christus, Filius Dei vivi ( Mt 16, 16 ): Vós, Senhor, sois
Cristo, Filho de Deus vivo. —Ajuntai
agora esta resposta de S. Pedro com a pergunta de Cristo, e vereis como o príncipe dos Apóstolos, em tão poucas
palavras, compreendeu e resumiu todo o
mistério da Encarnação: Filium
hominis: Filius Dei vivi. No Filium
e no Filius compreendeu as duas gerações, uma eterna e
outra temporal; no hominis e no
Dei vivi compreendeu as duas naturezas,
divina e humana; e no tu es,
compreendeu a união hipostática, com que
uma indissoluvelmente se uniu à outra. Pois, se S. Pedro antes deste dia, estando na terra, foi capaz
de entender e saber tão perfeitamente o
mistério da Encarnação, como agora, com muito mais tempo e estudo da
escola de Cristo, não estava ainda com
suficiente capacidade para entender e penetrar o mistério do lavatório dos pés: Quod ego facio, tu nescis? E se pela confissão
do mesmo mistério da Encarnação se deram ao mesmo Pedro as chaves do
céu, como se lhe reserva para o céu a ciência
do que estava vendo e admirando Scies autem postea? Aqui vereis quanto maior
profundidade de mistérios e de amor se
encerra na ação tremenda de Cristo se prostrar aos pés dos homens, do que
no mesmo mistério altíssimo de Deus se
fazer homem. A alteza do primeiro com luz do
céu pode-a alcançar na terra um pescador: a profundidade deste segundo
não a pode sondar em tão pouca água o
maior apóstolo. A alteza do mistério da
Encarnação revelou-a o Padre, que está no céu, a Pedro estando na terra.
Caro et
sanguis non revelavit tibi, sed Pater meus, qui in caelis est ; mas
a profundidade do lavatório dos pés não
a revelará ao mesmo Pedro o Filho, senão quando o Filho e Pedro ambos estiverem no céu: Scies autem postea.
Parece-me que S. Paulo falou com
o espírito de S. Pedro, quando disse: Neque altitudo, neque profundam poterit nos
separare a charitate Christi. Esta
caridade de Cristo, conforme dizem os intérpretes, ou se pode entender
do amor com que nos amamos a Cristo, ou
do amor com que Cristo nos ama a nós, e neste
segundo sentido diz S. Paulo que nem a alteza nem o profundo pode fazer
que Cristo nos não amasse, porque na
alteza da Encarnação, sendo Deus, nos amou
fazendo-se homem, e no profundo do lavatório dos pés, sendo já homem,
nos amou pondo-se aos pés dos homens.
Mas o eloqüentíssimo apóstolo, depois de por o alto, então pos o profundo: Neque altitudo, neque profundum — porque mais pondera e mais encarece o amor de Cristo o profundo do
lavatório, onde se abateu aos pés dos
homens, que o alto da Encarnação, donde desceu a ser homem.
Isto é o que eu sou obrigado a
ponderar nesta profundíssima ação; mas,
quando Cristo diz a Pedro:
Quod ego facio, tu nescis - onde Pedro não sabe entender, quem
saberá falar? À vista, contudo, da sua
ignorância, me atreverei eu a dizer as minhas, mas no concurso e comparação somente de um dia com
outro dia. O que todos encarecem no dia
da Encarnação é humilhar-se Deus a se fazer homem, mas é certo que este ato não foi de humildade; o lavar Cristo os
pés dos homens, sim, é a maior humildade
de todas. E por que não foi humildade o fazer-se Deus homem? Porque Deus não é humilde, nem pode ser humilde.
Humildade essencialmente é o
conhecimento da própria dependência, da própria imperfeição e da própria
miséria, e, sendo Deus suma
independência, suma perfeição e suma felicidade, nem e nem pode ser humilde. Como dizem logo todos os
santos que Deus se humilhou neste grande
ato? Porque se humilhou por humilhação, e não por humildade. De el-rei Acab disse Deus ao profeta: Nonne vidisti humiliatum Achab (3 Rs 21,
29)? Não viste humilhado a Acab ? - E
Acab não era humilde, nem tinha humildade, mas
estava naquele caso humilhado não por humildade, senão por humilhação. A
este modo - mas por modo diviníssimo e
santíssimo - se humilhou também Deus quando
se fez homem, porque até então nem era nem podia ser humilde. Porém, no
primeiro instante da Encarnação, ou no
segundo depois de encarnado – como querem outros teólogos - então começou também a ser humilde,
e sumamente humilde, como hoje mostrou
mais que nunca. Onde se deve notar que este grande extremo de humildade, depois da humilhação de se fazer
homem, não só foi conseqüência do novo
estado, senão obrigação. Porque se Deus, antes de ser humilde, se humilhou tanto que se abateu a ser homem, segue-se
que, depois de ser humilde, tinha
obrigação de se humilhar muito mais. Obrigado, pois, Deus a se humilhar
mais do que se tinha humilhado, que
havia de fazer? Só lhe restava o que hoje fez. Ajoelha-se diante dos homens, e
lava-lhes os pés com suas próprias mãos, porque, só prostrado aos pés dos
homens, se podia humilhar mais do que se tinha humilhado fazendo-se homem.
Esta conseqüência, como forçosa,
a que a humilhação do primeiro mistério obrigou e empenhou a Cristo para a
humildade do segundo, reconheceu profeticamente Davi, quando disse: Abyssus abyssum invocat ( Sl 41 , 8 ):
que um abismo chama outro abismo. — Abismo já sabeis que é um pego imenso e
profundíssimo, como aquele de que fala a Escritura na primeira criação dos elementos: Et tenebrae erant super faciem abyssi . E que dois abismos
foram estes, em que o primeiro chamou
pelo segundo? Não dissemos ao princípio que o dia da Encarnação se falava com o
dia de hoje: Dies diei eructat verbum?
Pois, quando estes dois dias se falaram,
então chamou o mistério da Encarnação pelo
mistério do lavatório dos pés, e estes foram os dois abismos. O primeiro
abismo foi a Encarnação do Verbo, porque, fazendo-se Deus homem, se abismou e
sumiu de tal sorte a divindade na natureza humana, que desapareceu totalmente,
e por isso, estando dentro nela, não aparecia. O segundo abismo foi o lavatório
dos pés, porque, tendo-se Cristo sumido na Encarnação, enquanto Deus, lançado
depois aos pés dos homens, também se sumiu ali, enquanto homem. O mesmo Cristo
o disse: Ego sum vermis, et non homo;
opprobrium hominum, et abjectio plebis (Sl 21, 7): Eu sou um bichinho da
terra, e não sou homem, porque sou o opróbrio dos homens, e o abjeto da plebe.
- E quem é esta plebe, e quem é este abjeto? A plebe eram os apóstolos, por
natureza, por geração e por ofício plebe, porque eram uns pobres pescadores; e
o abjeto desta plebe era Cristo posto a seus pés e lavando-lhos, porque não
pode haver ato mais abjeto e vil, e mais inferior à mesma plebe, que
ajoelhar-se diante dela e lavar-lhe os pés. A água era somente a de uma bacia,
mas o abismo da ação era tão profundo
que nele se abismou e sumiu de tal sorte Cristo, ainda enquanto homem, que já não parecia nem
aparecia nele sinal do que era, senão
uma negação do que tinha sido: Non homo:
um não homem. Muito mais se desfez logo
Cristo sem comparação, e muito mais fez o seu amor no ato do lavatório dos pés que na obra da Encarnação, porque na
Encarnação fez-se homem, no lavar os pés
aos homens fez-se não homem: Non homo.
E se assim se sumiu Cristo
lavando os pés a Pedro e aos outros discípulos,
que direi eu, ou que posso imaginar, quando o vejo prostrado aos pés de
Judas? Aqui se somem também até os
entendimentos dos serafins, e emudecem de pasmo
as línguas dos anjos.
— Se Pedro, Senhor, vos disse
assombrado: Tu mihi: Vós a mim? —
com quanto maior assombro vos podemos
nós dizer — Tu Judae: Vós a Judas? A
Judas, aquele traidor endemoninhado, de
quem diz S. João: Cum diabolus jam
misisset in cor ut traderet eum Judas?
A Judas, aquele precito infernal e maior de todos os precitos, do qual vós mesmo dissestes: Bonum erat ei, si natus non fuisset homo
ille? Não quero outra ponderação que estas vossas mesmas palavras.
— Diz Cristo que em Judas era
melhor o não ser que o ser, e não se pudera
mais encarecer, nem a ínfima miséria de Judas, nem o ínfimo abatimento
de Cristo posto a seus pés. Eu bem sei
as sutilezas com que a filosofia disputa se em Judas e em qualquer outro condenado fora melhor o não
ser que o ser; mas, onde temos uma
conclusão absoluta de Cristo, não valem nada as argúcias dos filósofos. Salomão faz três classes de homens: os vivos,
os mortos e os que não nasceram; e só na
consideração dos males temporais desta vida antepõe os mortos aos vivos, e os que não nasceram a uns e outros. Que diria
se fizera a comparação com os males
eternos que esperavam a Judas, e com o pecado em que estava obstinado, que é o maior de todos os males? Por todas as
razões era melhor em Judas o não ser que
o ser. E que se pusesse Cristo aos pés de um homem, cujo ser era pior que o não ser? Do ser, qualquer que seja, ao não
ser, há infinita distância; e sendo esta
distância infinita, hoje se viram no Cenáculo de Jerusalém dois degraus,
ou dois estados mais abaixo do não ser.
O primeiro em Judas, que estava mais abaixo do
não ser, porque lhe fora melhor não ser que ser; e o segundo em Cristo
que, estando Judas mais abaixo do não
ser, ele estava aos pés de Judas. Medi agora,
começando de Deus, a baixeza em que esta posto o Filho do mesmo Deus,
por amor dos homens. Abaixo de Deus, com
infinita distância, está todo o criado; abaixo
de todo o criado, com distância também infinita, está o não ser; abaixo
do não ser está Judas, e abaixo de Judas
está Cristo. Tanta diferença vai de Deus no dia da Encarnação feito homem, a Cristo no dia de
hoje, posto aos pés de tal homem! Aquele
foi o cum dilexisset, este é o in finem
dilexit.
CAPÍTULO VI
O Sacramento do Altar e o
mistério da Encarnação. Se Cristo, Senhor nosso, se chamou Jesus, como diz o profeta Isaías
que o Filho que nascesse de uma Virgem
se havia de chamar Emanuel?
No caso em que Adão não pecasse,
se havia de encarnar Deus?
Tarde chego, sacramentado Senhor,
à comparação desse sacrossanto e
diviníssimo mistério com o mistério de vossa Encarnação, também
diviníssimo; mas esse mesmo trono de
majestade, em que vos vemos e adoramos, ou vos adoramos sem vos ver, nos está publicando os triunfos
de vosso amor neste dia, em que por ser
o último de vossa visível presença, vos deixastes conosco. Seja esta a
primeira prova.
Profetizando Isaías o mistério da
Encarnação do Verbo com palavras mais
expressas e circunstâncias mais singulares que todos os outros profetas,
disse que uma Virgem conceberia e
pariria um Filho, o qual se chamaria Emanuel: Ecce Virgo concipiet, et pariet
Filium, et vocabitur nomen ejus Emmanuel (Is 7, 14). Nesta última palavra reparam muito os pouco versados na
frase da Escritura.
Cristo, Senhor nosso, não se
chamou Emanuel, chamou-se Jesus: como diz
logo o profeta que o Filho que nascesse de uma Virgem se havia de chamar
Emanuel? Mas este reparo, como digo, é
por ignorância da frase hebréia. Na língua hebraica, assim como as coisas se chamam palavras: verba,
assim o chamar-se significa ser, e isso
quer dizer vocabitur. Da mesma
frase usou o anjo, no mesmo dia e mistério da
Encarnação, anunciando à Virgem que o que de suas puríssimas entranhas
havia de nascer se chamaria Filho do
Altíssimo: Filius Altissimi vocabitur
( Lc 1, 32 ) - sendo assim que Cristo,
por humildade, não se chamava Filho do Altíssimo, senão: Filius hominis: Filho do
homem.
Mas falaram por esta frase, assim
o profeta como o anjo no mesmo caso, porque vocabitur quer dizer será. Suposto,
pois, que o chamar- se significa ser, e o nome se toma pelo significado, que
quis significar o profeta quando disse que o Filho que nasceria de uma Virgem
se havia de chamar Emanuel? Emanuel quer dizer: Nobiscum Deus: Deus
conosco, e isto é o que anunciou e prometeu Isaías nesta famosa profecia, dando
por nova aos homens, tão admirável como certa, que aquele mesmo Deus, cuja
majestade se conservou sempre tão retirada e longe de nós, sem jamais se abalar
nem sair do céu, agora se havia de humanar tanto, que se fizesse homem, e
descesse à terra para nela morar e estar conosco: Nobiscum Deus.
Disse, sem se abalar jamais nem
sair do céu, porque quando se diz nas
Escrituras que Deus formou o barro de Adão, e que desceu a impedir a
fábrica de Babel, e que apareceu a
Moisés na sarça, e lhe deu a lei no Monte Sinai, e outras ações semelhantes, os que obravam
visivelmente estas coisas - segundo o mais
provável sentir dos doutos - eram anjos que representavam a Deus, e não
o mesmo Deus em pessoa. Por isso Deus
naquele tempo dizia: Caelum mihi sedes
est. E Davi contava e cantava por
grande maravilha que, estando Deus tão alto, se
dignasse de olhar cá para baixo e por os olhos na terra: Quis sicut Dominus Deus noster, qui in altis habitat, et humilia
respicit in caelo et in terra? Porém, como o amor não se contenta de longes, e sofre mal
ausências, pode tanto o amor dos homens
com Deus que o trouxe do céu à terra, e o fez homem, não tanto para nos remir e salvar - como muitos cuidam - quanto
pelo desejo que tinha e pelo gosto que
havia de ter de estar conosco: Nobiscum
Deus.
É celebérrima questão entre os
teólogos, no caso em que Adão não pecasse,
se havia de encarnar Deus? Santo Tomás e a sua escola dizem que não.
Scoto, com a sua, afirma que sim.
Distingo e concordo ambas as opiniões. Porque Adão pecou, encarnou Deus em carne passível,
porque era mais proporcionado à culpa, e
mais conveniente à satisfação o padecer e morrer. Porém, se Adão não
pecara, havia de encarnar contudo Deus,
mas em carne impassível, porque onde não havia
culpa, não era necessária a pena, e fazia-se homem no tal caso, não para
satisfação do nosso pecado, senão para
satisfação do seu amor. Não é esta distinção minha, senão do mesmo Concílio Niceno: Qui propter nos homines, et propter
nostram salutem incarnatus est:
Encarnou Deus por amor de nós e por amor de nossa saúde.
-Onde se vê claramente que o
mistério da Encarnação teve dois motivos distintos: um motivo o remédio, e outro motivo o amor,
mas o amor primeiro que o remédio. De
sorte que, se o remédio não fora necessário, pelo motivo só do amor dos homens
havia de encarnar Deus, porque esse foi o primeiro motivo, e o primário: Qui propter
nos homines. Íeis visitar um amigo, soubestes no caminho que estava
ferido, e visitastes-lo como amigo e
como ferido, mas com tal pressuposto, que, se não estivera ferido, só por amigo o havíeis de
visitar, que este foi o vosso primeiro
intento. O mesmo sucedeu no mistério da Encarnação, ao qual Zacarias
chamou visita de Deus: Visitavit nos, oriens ex alto. O
primeiro decreto de Deus se fazer homem,
antes da previsão do pecado, foi unicamente o amor dos homens, e para morar e estar com eles, como já então
dizia: Deliciae meae esse cum filiis hominum. Aconteceu depois o pecado de
Adão, e a ferida mortal do gênero
humano, com que ao motivo do amor se ajuntou o motivo do remédio, e
Deus, que só nos havia de visitar por
amigo, nos visitou também por feridos. Propter
nos homines, et propter nostram salutem.
E assim como ao outro amigo na visita
que só fazia por amor e por gosto, lhe acresceu a dor e a pena, assim
Deus, que havia de vir homem impassível,
veio passível. Em suma, que o intento e fim da
Encarnação, como dizia, não foi tanto para Deus nos remir e salvar, que foi
o segundo motivo, quanto para satisfazer
a seu amor e estar conosco, que foi o
primeiro; e por isso Isaías, que com tanta expressão de circunstâncias
revelou os arcanos da Encarnação do
Verbo, podendo dizer que o Filho que havia de nascer da Virgem se chamaria Jesus, que quer dizer
Salvador, não disse senão que se
chamaria Emanuel, que quer dizer Deus conosco, porque o principal motivo
de Deus se fazer homem não foi tanto o
remédio de salvar os homens, quanto o amor e
desejo de estar com eles: Nobiscum
Deus.
CAPÍTULO VII
A essência do amor na Encarnação
e no Sacramento. Por que não diz S. João
que o Verbo se fez homem, senão carne, e por que não disse que habitou conosco, senão em nós? O desejo de Cristo de
estar conosco e o desejo de estar em
nós. As gramáticas do amor em que o Verbo se fez passivo. O dobrado
vínculo de amor de união recíproca nos
testamentos de Cristo.
Este foi o motivo mais afetuoso,
este o afeto mais fino, esta a fineza mais
subida de ponto, com que o amor divino no dia da Encarnação, e logo em
seu princípio, mostrou o fim com que
trouxera a Deus à terra. Fim desde o primeiro
decreto, e de sua própria origem, pura e sinceramente amoroso, sem
mistura de outro intento, ou outro
afeto, porque o remir foi amor com misericórdia, o estar conosco puro amor. Mas que direi no dia de
hoje, encarnado e sacramentado Deus? Por
mais que vosso divino amor no dia da Encarnação se mostrasse tão fina e tão puramente amoroso, nem eu posso deixar de
dizer, nem ele pode negar que no dia de
hoje foi amoroso sobre amoroso, e amor sobre amor. Por que? Porque, se naquele dia encarnastes para estar conosco: Nobiscum Deus – neste dia vos sacramentastes, não só para estar conosco,
senão também para estar em nós: conosco nesse altar onde vos adoramos, e em nós
entrando em nossos peitos, onde vos
recebemos. O amor – vede se é maior este - o amor essencialmente é união,
e quanto mais une ou procura unir os que
se amam, tanto maiores efeitos tem, e tanto
maiores afetos mostra de amor. Estar conosco é assistência de fora,
estar em nós é presença íntima; estar
conosco é estar perto, estar em nós é estar dentro; estar conosco é companhia, estar em nós é
identidade: logo, menos fez o amor da
Encarnação em estar Cristo conosco, que o amor do Sacramento em estar
conosco, e mais em nós.
Admiravelmente uniu estes dois
extremos, e distinguiu estes dois amores o
mesmo Discípulo amado.
Depois de se remontar esta Águia
divina com aquele vôo altíssimo, igual à
voz ou ao trovão, com que disse: In
principio erat Verbum, cerra as asas, dá
consigo em terra, e diz que o mesmo Verbo se fez carne: Verbum caro factum est - e sem interpor palavra, acrescenta: Et habitavit in nobis: E morou em nós. Evangelista, que no alto e no baixo sempre
vos remontais, permiti que vos
entendamos. Se falais da união do Verbo com a humanidade, por que não
dizeis que se fez homem, senão que se
fez carne: Caro factum est? E se falais do tempo
em que o mesmo Verbo, por isso e para isso humanado, morou e habitou
conosco, por que dizeis que habitou em
nós: Habitavit in nobis? Não fora S.
João o mais amado e o mais amante de
Cristo, se não acudira por seu amor, e o deixara nas auroras da Encarnação, sem o subir ao zênite
do Sacramento. É agudeza de Santo
Agostinho, também águia. Não disse que o Verbo se fizera homem, senão
carne, porque na carne ex vi verborum, havia de instituir
Cristo o Sacramento de seu Corpo: Caro mea vere est cibus - e não disse
que habitou conosco, senão em nós,
porque se o amor da Encarnação se satisfez de estar conosco: Nobiscum Deus - o do Sacramento, mais ansioso, porque mais
amor não se satisfez de estar somente
conosco, senão também em nós: Et
habitavit in nobis.
Depois de Deus pela Encarnação se
fazer homem, a mesma carne e o mesmo corpo,
que tinha tomado, era novo impedimento para estar em nós, porque dois corpos não podem estar no mesmo lugar.
Pois, que remédio acharia o amor, para
facilitar este impossível tão repugnante ao seu desejo?
O remédio foi que a mesma carne,
que tinha tomado na Encarnação, se
fizesse manjar nosso no Sacramento: Caro
mea vere est cibus; e deste modo se
uniram juntamente ambos os fins de um e outro amor: o de estar conosco,
que fora o da Encarnação, e o de estar
conosco, e mais em nós, que é o de hoje.
Mas ainda neste estar sobre
estar, temos outra fineza sobre fineza, porque
não só quis o amor de hoje que Cristo estivesse conosco e estivesse em
nós, senão que nós também estivéssemos
nele. Este é o segundo efeito do Sacramento, e mais amoroso ainda que o primeiro, em quem o come:
Qui manducat meam carnem, in me manet, et ego in illo (Jo 6, 57): Quem
come a minha carne está em mim, e eu nele. Não só eu nele por uma união, mas eu
nele e ele em mim por união dobrada e modo de estar recíproco. É o que declarou
com um discreto solecismo Santo Agostinho: Si
manet, et manetur. Que diria Donato se tal ouvisse? Mas estas são as
gramáticas do amor, e mais em dia em que o Verbo se fez passivo. Até os
filósofos, para admitirem uma união perfeita, reconhecem duas: uma da parte da
forma, e a outra da parte do sujeito; uma da parte unida, e outra da parte a
que se une. E esta é a filosofia de Cristo.
Quando Cristo na cruz substituiu
em seu lugar a S.João, disse à Mãe Santíssima: Ecce filius tuus – e logo ao discípulo amado: Ecce Mater tua. Parece que tanto dizem neste caso as primeiras
palavras como as segundas, porque, se a Senhora era Mãe de João, já ficava
entendido que João era filho da Senhora. Porque repete logo Cristo o que tinha
já dito, e em tempo que as suas palavras eram tão contadas? Porque nos dois
primeiros legatários da sua última vontade, e recíprocos herdeiros de seu amor,
queria que o amor e as correspondências de uma e outra parte fossem também
recíprocas. O coração da Senhora e o de S. João eram os dois corações que
Cristo mais amava, e mais amavam a Cristo; e como o Senhor na substituição da
sua ausência testava neles de seu próprio amor, para que o mesmo amor, como
seu, não fosse amor, e grande amor, mas amor reciprocamente unido, com as primeiras
palavras uniu o coração da mãe ao novo
filho: Ecce filius tuus - e com as
segundas uniu o coração do filho à nova
Mãe: Ecce Mater tua.
E se os dois legados particulares
da Mãe e do discípulo os estabeleceu o
Senhor com dobrado vínculo de amor de união recíproca, como a não
dobraria também no testamento comum, em que nos fez herdeiros universais de seu
corpo e sangue: Hic calix novum testamentum
est in meo sanguine? Por isso, na ratificação do mesmo testamento, a
recomendação que fez aos discípulos foi esta: Manete in me, et ego in vobis ( Jo 15, 4 ): Estai em mim, e eu em
vós. – Tão recíproco quis que fosse este modo de estar. E tanto se empenhou o
amor de hoje em vencer o amor da Encarnação, não só com uma, senão com dobrada
vitória, e não só da parte de Cristo, senão da sua e mais da nossa. Para vencer
o amor de hoje ao da Encarnação, bastava estar Cristo no Sacramento conosco, e
mais em nós; mas para que a vitória não fosse como a de Jacó, vencedor com a
vitória claudicante, não só quis vencer o estar conosco com o estar em nós,
senão com ele estar em nós e nós estarmos nele: In me manet, et ego in illo.
CAPÍTULO VIII
Enquanto encarnado, se estava
Cristo em uma cidade não estava noutra;
enquanto sacramentado, não só está em todas as cidades, senão em tantas
partes da mesma cidade em quantas hoje o
temos. Cristo conosco no Sacramento e
conosco na Encarnação.
E por que não possa dizer o amor
da Encarnação, que ficou hoje vencido de
diferença a diferença, e não de semelhança a semelhança, deixada à parte
da diferença ou vantagem com que Cristo
no Sacramento está em nós e nós nele, e
tomando separadamente, e por si só, o ato de estar conosco, que foi o
primeiro motivo da Encarnação,
comparemos de igual a igual o como está Cristo conosco enquanto sacramentado, e o como esteve
conosco enquanto somente encarnado, e
ver-se-á, com novo e maior triunfo do amor de hoje, quanto vai de estar
conosco a estar conosco.
Enquanto encarnado esteve Cristo
conosco, mas onde esteve? Ou em Nazaré,
ou em Belém, ou em Jerusalém, ou em outras partes, de tal modo, porém, e com tal limitação de lugares, que quando
estava em um, faltava nos outros.
Quiseram os de além do Jordão deter a Cristo, para que estivesse alguns
dias com eles: Detinebant illum, ne discederet ab eis - diz S. Lucas. E que lhes
respondeu o Senhor? Quia et aliis civitatibus oportet me evangelizare regnum Dei (Lc 4,
43): Que se não podia deter mais ali,
porque lhe importava ir pregar a outras cidades. — Não admito, Senhor meu, a escusa, antes me
parece que desacredita o vosso poder e
desabona o vosso amor. Ide pregar a essas cidades, e ficai juntamente com
esses homens, que com tanta, devoção o
desejam. Não podeis vós estar no mesmo tempo
em diversas cidades? Sim, posso. Mas esses modos de estar, guardo eu
para quando estiver no Sacramento.
Enquanto encarnado, se estava Cristo em uma
cidade, não estava noutra: enquanto sacramentado, não só está em todas
as cidades, senão em tantas partes da
mesma cidade em quantas hoje o temos. Correi
as igrejas de Lisboa, e primeiro vos cansareis de as visitar do que o
Senhor se canse de esperar por vós, porque se pôs e expôs em tantas partes, só
para em todas estar convosco. Esta noite
vos espera com as portas abertas, e nas outras, em que as portas se fecham, nem por isso ele se
vai, porque sempre o detém ali seu amor,
solitário e saudoso, na esperança só de que amanheça, para estar com os que tanto ama.
Também encarnado amava, mas com
grande diferença de estar a estar.
Enfermou e morreu Lázaro, de quem testemunha o Evangelho que era muito
amado de Cristo, e disse o mesmo Senhor
aos discípulos que morrera Lázaro porque ele
não estava ali: Lazarus mortuus
est, ut credatis, quoniam non eram ibi. E Marta e Maria, ambas com as mesmas palavras,
disseram: Domine, si fuisses hic,
frater meus non fuisset mortuus (Jo
11, 21 ): Se vós, Senhor, estivéreis aqui, não morrera nosso irmão. — Isto dizia Cristo, e isto
diziam a Cristo, quando somente tinha
encarnado; mas, depois que se deixou no Sacramento, já nem Cristo pode
dizer: Non eram ibi - nem nós podemos dizer: Si fuisses hic - porque em Betânia e fora de Betânia, na vida e na morte, na saúde e na
enfermidade, sempre e em toda a parte o
temos, e está conosco. Só em uma parte do mundo não está Cristo conosco. E qual é? Onde nós não estivermos. Morem os
homens nas cidades, habitem os desertos,
subam aos montes, desçam aos vales, penetrem os bosques, fiem a vida a um madeiro inconstante sobre as ondas, e até
ali estará conosco. No mar andavam os
discípulos, e bem necessitados da presença de seu divino Mestre, e diz o evangelista que neste caso estava o Senhor só
em terra – Et ipse solus erat in terra (Mc 6, 47). Mas tal caso como este já se não
pode dar hoje, porque não só na terra,
senão também no mar, está e navega conosco Cristo Sacramentado. Noé
não sacrificou no tempo do dilúvio,
porque estava no mar, e quando desembarcou da
arca, então sacrificou. Porém hoje não espera nem sofre aquele amor que
os navegantes cheguem à terra: permite
que sacrifiquem, e o consagrem sobre as
ondas, para também sobre as ondas estar conosco.
Mas que digo eu sobre as ondas,
se no meio de mais furiosas tempestades
que as do mar, e quando vós, meu Senhor, devêreis fugir dos homens, não
pode acabar convosco o vosso amor que
deixeis de estar com eles! Encarnado, e pouco
depois de encarnado, porque vos perseguiu Herodes, fugistes para o
Egito; não admitido em Genezaré, e em
Samaria, deixastes samaritanos e genezarenos; e hoje que é o que faz vosso amor em Inglaterra, em
Holanda, em Dinamarca, em Suécia, e em
tantas outras partes setentrionais, onde nesse mesmo Sacramento sois tão perseguido da perfídia herética, e nem vos
crêem, nem vos querem? Assim perseguido
não fugis, assim não querido, nem crido, vos deixais estar entre eles, encoberto e escondido, e como homiziado de
vosso próprio amor, porque ele vos não
consente que haja parte alguma do mundo em que não estejais conosco. Não falo no que pudera dizer das nossas
ingratidões, e dos agravos que aquele Senhor
Sacramentado padece também entre os católicos, cujos pecados ocultos, e
cujas irreverências públicas a nossa
mesma fé faz muito mais sensíveis. Merecedoras
eram justamente, de que cansada de tanto sofrer sua paciência, dissesse,
como já disse: Eamus hinc; e como deixou outro templo e outro povo, que também
se chamava seu, nos deixasse a nós. Mas
foi tão firme a resolução com que empenhou
a Cristo o amor de hoje a estar conosco sempre que, para nunca se poder
apartar de nós — ainda que nós o
merecêssemos, e o mesmo Senhor quisesse —
encerrando-o nas voluntárias prisões daquele Sacramento, as chaves não
as deixou nas suas mãos, senão nas
nossas. Na Encarnação, porque tinha na sua mão as chaves, tornou-se para o céu; no Sacramento,
como as chaves estão na nossa mão, e
temos ao mesmo Senhor debaixo da chave, ainda que ele não quisesse, sempre há de estar conosco.
S. Loureço Justiniano, falando de
Cristo Sacramentado, com alusão ao texto
de Isaías, disse elegantemente: Dispar
modus, et idem Emmanuel: que assim
como na Encarnação foi Emanuel, também é Emanuel no Sacramento, só
com diferença no modo. E qual é a
diferença? Muitas, como já disse, mas a principal e maior de todas é que na Encarnação foi
Emanuel e Deus conosco, mas com liberdade de nos deixar, antes com pressuposto
de o fazer assim, como ele mesmo disse: Exivi
a Patre, et veni in mundum: iterum relinquo mundum, et vado ad Patrem.
Porém, no Sacramento é Emanuel e Deus conosco, não só sem liberdade para se
apartar de nós, mas com obrigação inviolável, fundada em sua própria
promessa, de nunca jamais nos deixar, e
estar conosco até o fim do mundo: Ecce
ego vobiscum sum usque ad consummationem
saeculi . Em suma, resumindo tudo a
duas palavras: na Encarnação foi Emanuel e Deus conosco em uma só terra:
no Sacramento em toda a parte; na
Encarnação para poucos: no Sacramento para
todos; na Encarnação só para os presentes: no Sacramento para os
presentes e para os futuros; na
Encarnação por tempo limitado e breve: no Sacramento sem limite de duração, enquanto durar o mundo e
houver homens: usque ad consummationem saeculi. Logo,não se pode
negar, ainda na precisa semelhança de
estar conosco, que muito mais fino, muito mais estremado, muito mais
amoroso, muito mais amorável, muito mais
amante, muito mais amigo e muito mais amor se
mostrou o de Cristo hoje que no dia da sua Encarnação.
CAPÍTULO IX
No dia da Encarnação, tomando
Deus a carne da Virgem Santíssima ,
encarnou em uma só humanidade, hoje, dando-nos Cristo sua própria
carne, encarnou em todos os homens, que
somos nós, os que a comungamos. O grande
mistério com que o Evangelista usou da palavra avulsus est quando Cristo se
apartou de seus discípulos, depois da última Ceia. As duas Encarnações,
figuradas nos dois sinais que Gedeão
pediu a Deus em dois dias diferentes. Onipotência das palavras da Consagração. Cristo, sacerdote
segundo a ordem de Melquisedec.
Mas, porque a Encarnação do Verbo
Eterno foi um ato tão heroicamente
divino, que infinitamente se levantou sobre todas as obras da
magnificência de Deus, para que nem por
esta parte possa parecer que aquele amor excedeu o deste dia, ouvi como o amor de hoje sujeitou ao seu
triunfo a mesma Encarnação, não só
quanto aos efeitos que vimos, e outros que deixo mas em sua própria
substância.
E de que modo foi isto, que
parece coisa impossível? Fazendo o mesmo amor
que, assim como Deus naquele dia encarnou em uma só humanidade,
hoje encarnasse em todos os homens. No
dia da Encarnação, tomando Deus a carne da Virgem Santíssima, encarnou em uma só
humanidade, que foi a de Cristo, e hoje,
dando-nos Cristo sua própria carne no Sacramento, encarnou em todos os
homens, que somos nós, os que a comungamos. É pensamento profundíssimo de S.
João Crisóstomo, a quem seguiu S. João Damasceno, S. Pascásio, Ruperto e.outros
Padres. As palavras do santo, que os autores latinos comumente, ou não referem,
ou alegam mutiladas por defeito dos tradutores, tiradas do original grego, em
que foram escritas, são estas: Vamos por
partes – Ex nostra — Deus — generatus est substantia: 0 Verbo, fazendo-se homem,
assim como fora gerado ab aeterno da
substância de Deus, assim, na Encarnação, foi gerado em tempo da nossa
própria substância. Sed nihil hoc — inquies — ad omnes pertinet: Mas, dir-me-eis —
insta Crisóstomo – que isto pertence
somente a Cristo, e não a todos nós: imo
ad omnes.
— Digo, e torno a dizer, que a
todos. E por que? Nam si ad naturam
nostram descendit, patet quod ad omnes: quod si ad
omnes, et ad unumquemque profecto:
Porque, se Deus tomou a nossa
natureza encarnando, segue-se que a mesma Encarnação se estendeu a todos, e, se
a todos, também a cada um. Quando aqui
cheguei, descontentou-me a razão e argumento de Crisóstomo, porque, se Deus se
unira à natureza humana em comum, então se seguia bem que a mesma união se comunicasse a todos os indivíduos;
mas Deus não uniu a si a natureza em comum, a qual não é assuntível, e só tomou
e uniu à subsistência divina a humanidade de Cristo, que é singular, e não
comum. Explica-se Crisóstomo admiravelmente, passando do mistério da Encarnação
ao do Sacramento: Singulis enim fidelibus per hoc mysterium se
commiscet, et quos peperit, non aliis nutriendos tradit, sed ipse studiosissime alit, hac
etiam retibi persuadens carnem illam tuam
assumpsisse: É verdade que Deus na Encarnação não tomou a natureza
humana em comum, senão uma humanidade
particular, mas essa mesma humanidade e
essa mesma carne, unida à divindade, fê-la Cristo universal e comum,
dando-a no Sacramento a todos os fiéis,
e unindo-os realmente consigo; e como ficam unidos, e encarnados com Cristo, a mesma Encarnação do
Verbo se estende e multiplica em todos
nós. As palavras de Ruperto também são dignas de se não passarem em silêncio: Assumpserat
hominem in Deum, quando Verbum caro factum est ut per eum essemus in illo; sed nec dum illi
admiscuerat, se per carnem suam nobis ut
singuli, membra in illo, unum essemus corpus. Quer dizer: quando
Deus se fez homem, foi para que por meio
da carne do Verbo nos unisse a si, e fossemos a
mesma coisa com ele. Mas isto não se efetuou no ato da Encarnação, em
que o corpo de Deus e os nossos eram
diversos, mas ficou reservado para a instituição do Sacramento, em que, unindo-se Cristo por meio
da sua carne a cada um de nós, todos
como membros seus ficamos um só corpo. Baste de autoridades, posto que tais e tão grandes, que elas só bastavam.
Vamos às Escrituras e à experiência.
Acabada a Ceia, parte Cristo,
Senhor nosso, para o Horto de Getsêmani, e,
apartando-se dos discípulos, diz o evangelista S. Lucas: Et ipse avulsus est ab eis (Lc 22, 41 ): que o Senhor se arrancou deles.
Ninguém haverá que não note a
singularidade desta palavra. Muitas outras vezes referem os evangelistas
que Cristo se apartou de seus discípulos,
e em todas dizem simplesmente que se apartara.
Pois, se então se apartava, por que agora se arrancou? Porque agora
tinha o Senhor acabado de instituir o
Santíssimo Sacramento, e os apóstolos tinham
acabado de comungar, e como por meio do Sacramento se tinha encarnado
Cristo neles, e eles em Cristo, por isso o apartar-se agora já não era
apartar-se, era arrancar-se: avulsus est. Ouvi ao grande Tertuliano
no livro de Carne Christi: Quid avellitur, nisi quod inhaeret, quod infixum,
et innexum est ei, a quo avellitur. E,
explicando-se ainda mais: Cum quid
extraneum ita convisceratur et concarnatur, ut
cum avellitur rapiat secum aliquid ex corpore, cui avellitur. De
maneira que a palavra avellitur, ou avulsus, só se diz propriamente de duas coisas diversas, as quais
não só estão pegadas e unidas -infixum,
et innexum - senão entranhadas e encarnadas
uma com a outra: convisceratur, et
concarnatur. E como esta era a primeira
comunhão que houve no mundo, usou o evangelista da palavra avulsus est com grande mistério,
para que a mesma propriedade da palavra mostrasse a eficácia e efeito do Sacramento, pois não se podia
apartar senão arrancando-se quem estava
entranhado e encarnado nos mesmos de quem se apartava: entranhado,
porque tinha entrado em suas entranhas: convisceretur - e encarnado, porque se
tinha unido com eles por meio de sua
própria carne: concarnatur. E esta
foi a diferença com que, ainda de
encarnado a encarnado, venceu o amor e dia de hoje ao amor e dia da Encarnação. No dia da Encarnação, encarnando
Cristo em uma só humanidade: no dia de
hoje, encarnando em todos os homens.
Dois sinais do céu pediu Gedeão a
Deus em dois dias diferentes, com modo
bem notável. Pôs um velo de lã no meio de uma eira, e no primeiro dia
pediu que o orvalho do céu caísse só no
velo, e não na eira, e no segundo que caísse na eira e não no velo, e assim sucedeu. O sinal do
primeiro dia é certo que significava o
mistério da Encarnação, porque o orvalho era o Verbo que desceu do céu,
e o velo de lã era a humanidade, de que
o mesmo Verbo se vestiu como Cordeiro de Deus
que vinha tirar os pecados do mundo: Agnus
qui tollit peccata mundi. Assim o
declararam depois não menos que dois profetas, Isaías e Davi: Isaías
pedindo a Encarnação, dizia que orvalhasse
o céu sobre a terra, para que nela nascesse o
Salvador: Rorate, caeli, desuper,
et nubes pluant justum, aperiatur terra, et germinet Salvatorem; e Davi, sinalando o modo com
que havia de vir, diz que desceria como
a chuva ou orvalho sobre um velo de lã, mansamente e sem ruído: Descendet
sicut pluvia in vellus, et sicut stillicidia stillantia super terram:
e destes dois profetas o tomou a Igreja,
quando canta da mesma Encarnação: Sicut
plavia in vellus descendisti, ut salvum
faceres genus humanum. Pois, se Gedeão no
orvalho que havia de cair do céu pedia a Encarnação no primeiro dia. por
que tornou a pedir no segundo dia ,a
mesma Encarnação, e no mesmo orvalho? E se no
primeiro dia pediu que caísse sobre o velo, e não sobre a eira, por que
no segundo pediu que caísse na eira e
não no velo? Porque Gedeão, como alumiado naquela hora com espírito profético, não só viu uma
Encarnação do Filho de Deus, senão duas
Encarnações em dois dias diferentes, uma no dia em que propriamente se chama da Encarnação e outra no dia de hoje. A
primeira, estreita e contraída, e por
isso em um velo: a segunda, estendida e dilatada, e por isso em uma
eira; a primeira no velo, onde se sumia o orvalho e se encobriu a divindade: a segunda
na eira, em que se recolhe o pão, onde se nos deu no Sacramento; a primeira
particular, em que se uniu Cristo a uma só humanidade: a segunda universal, em
que se uniu a todos os homens; a primeira, em que encarnou só em si, tomando a
nossa carne: a segunda em que encarnou
em nós, dando-nos a sua. Totus in
vellere, totus in area, diz S.
Bernardo: Todo no velo, e todo na eira - mas no velo todo só para sua Mãe, na eira todo para todos. É o maná, com
os tempos trocados. O maná que primeiro
chovia do céu nos campos, para que se sustentasse dele o povo, depois esteve encerrado na Arca do Testamento, onde
ninguém o comia. Porém cá, trocados os
dias, no dia da Encarnação estava encerrado no ventre virginal, que por isso se chama Arca do Testamento, mas no dia
de hoje se estendeu e difundiu pelo
mundo todo, para que todos o comam e o convertam em si. Enfim, parecido
o Sacramento ao mesmo amor com que hoje
foi instituído, como diz o Concílio Tridentino: In quo Salvator divitias divini
sui erga homines amoris velut effudit.
Só me podem opor e dizer os
doutos que todas as vantagens, ou finezas, em que o amor de hoje parece vencer o amor da
encarnação, se hão de referir à mesma Encarnação,
e ao amor daquele dia, porque a mesma Encarnação foi o princípio e fundamento de todas, pois, se Cristo não
encarnara, também se não pudera consagrar
nem deixar no Sacramento. Respondo que não se segue tal coisa. E ouvireis agora o que porventura nunca
ouvistes. Scoto, e outros grandes teólogos, dizem que é tal a força e eficácia das
palavras da Consagração, que se antes de Cristo encarnar, e antes de Deus criar o
mundo, criara um sacerdote somente e uma hóstia, sobre a qual pronunciasse as palavras
da Consagração, no mesmo ponto havia de
estar naquela hóstia o corpo de Cristo, tão real e inteiramente como está hoje na que temos e adoramos presente. Pois,
como havia de estar ali o corpo de
Cristo, se ainda não era nascido Cristo nem havia tal corpo? Porque assim como a onipotência daquelas palavras tem força para
reproduzir o corpo de Cristo no lugar onde
não estava, assim teriam também força neste caso para o produzir no tempo em que não era, porque não se requer maior
poder para um milagre que para outro. Daqui
se entenderá uma nova e excelente propriedade, com que S. Paulo, declarando o sacerdócio de Cristo pelo de
Melquisedec, nota que Melquisedec não teve
pai, nem mãe, nem genealogia: Sine patre,
sine matr.e, sine genealogia (Hebr. 7,
3). O sacerdócio de Cristo não foi segundo a ordem de Arão, que sacrificava cordeiros e bezerros, senão - como diz Davi -
segundo a ordem de Melquisedec, que sacrificava
em pão e vinho: Melchisedech, proferens
panem et vinum, erat enim sacerdos Dei
altissimi. E por isso mesmo Cristo, sendo juntamente o sacerdote e o sacrifício, consagrou e sacrificou seu
corpo e sangue debaixo das mesmas espécies
de pão e vinho. Mas Cristo, Senhor nosso, teve Mãe e Pai, e a mais estendida genealogia de quantas se lêem nas
Escrituras: Liber generationis Jesu Christi, filii David, filii Abraham, etc.
Pois, se Cristo teve uma genealogia tão grande
e tão declarada, como nota S. Paulo que o seu sacerdócio foi como o de Melquisedec, homem sem pai, nem mãe, nem
genealogia? Porque quando Cristo instituiu
o Sacrifício e Sacramento, em que se deixou a si mesmo, foi com tanta independência da sua própria Encarnação, como
se nunca fora gerado nem nascido. De
sorte que se Cristo ainda não encarnara nem nascera, e contudo se dissessem as palavras da Consagração sobre uma hóstia,
em qualquer tempo e em qualquer lugar
que fosse, ali havia de estar seu corpo infalivelmente. 12; verdade que o corpo
e sangue que Cristo consagrou hoje foi o
mesmo que na Encarnação tinha tomado, mas
consagrou-o por modo tão absoluto e tão independente da mesma Encarnação que , se dantes não houvera encarnado,
encarnara então sem mãe nem genealogia, e
existira sacramentado. Logo, ainda que o Senhor no dia de hoje nos deu a mesma carne e o mesmo sangue, que tinha recebido no
dia da Encarnação, nem por isso a grandeza
e suposição daquela obra diminui nada as vantagens desta, porque de tal modo a supôs, como se a não supusera.
Encarnado naquele dia sim, com
grande amor: Cum dilexisset suos -
mas Sacramentado hoje com maior amor: In finem dilexit eos .
CAPÍTULO X
Exortação e oração final.
Muito tempo há que devera ter
acabado. De um e outro amor recolho um só documento muito breve. E qual é? Que seja tal
o nosso amor na vida que o continuemos à
vista da morte. Que amou Cristo desde o instante de sua Encarnação? Aos homens: Cum dilexisset suos. E hoje, que foi o fim da sua vida, estando com a morte à vista - Sciens quia venit hora ejus - que amou?
Aos mesmos que tinha amado: In finem dilexit eos. Oh! que diferente viver, oh! que diferente morrer, oh! Que diferente amar foi este do que
é o nosso! Aqueles a quem a misericórdia
de Deus concede morrerem com eleição e com juízo, o que comumente fazem na hora da morte é arrependerem-se do
que têm amado na vida. Pode haver maior
loucura, pode haver maior cegueira, que amar aquilo mesmo de que sei que ou me hei de arrepender, ou me hei de
condenar? Oh! Senhor, quem vos tivera amado
desde o primeiro instante em que vos conheceu, sem nunca empregar ou esperdiçar o coração em outro amor? Se alguém
se pudera justamente arrepender do que
amou, éreis Vós, pois amastes umas criaturas tão vis, tão ingratas e tão merecedoras de ser aborrecidas, como somos os
homens. Mas, pois o vosso amor foi tão
fino e tão constante, que, amando~nos com tantos extremos desde o princípio, foram ainda muito maiores os com
que nos amastes até o fim, seja hoje, e neste
mesmo instante, o fim de todo o amor que não é vosso. Os que imitaram o Pródigo, e as que imitaram a Madalena, em amar
o que não deviam, assim como seguiram os
passos errados e cegos de seu falso amor, assim se resolvam hoje, e de hoje para sempre, a seguir a luz de seu
desengano, a verdade do seu arrependimento, e a firmeza e constância de só a
vós amar até a morte. Só a vós, amorosíssimo
senhor, só a vós. Só a vós, e não pelos interesses do céu, que vós deixastes por amor de nós; só a vós, e não por
temor do inferno, que Judas antes quis
que a vós; mas única e puramente por serdes vós quem sois, digno de ser infinita e eternamente amado. Assim propomos
de vos amar na vida, assim propomos de
vos amar até a morte, para que a vossa graça e o vosso amor nos faça dignos, não dizemos de vos gozar, senão de vos
amar por toda a eternidade. Amém.
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão do Mandato"
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão do Mandato"
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