SERMÃO DE SANTA CATARINA VIRGEM E
MÁRTIR
Em ocasião que se festejava em
Lisboa uma grande vitória
Ne forte-Math.
CAPÍTULO I
Breve cláusula para tema; porém
grande para sermão! E tão grande e tão forte
a significação deste ne forte, que
com ela se sustentam e são fortes todas as fortalezas; e as que não são fortes nem se
defendem, só por falta dela se rendem e são
vencidas. E que quer dizer ne forte?
Quer dizer: para que não por algum engano;
para que não por alguma violência; para que não por algum descuido próprio ou diligência e indústria alheia. É o ne forte um advérbio, sempre vigilante, mas indeciso; é uma suspensão do que é; é uma
dúvida do que será; é um cuidado solícito
do que pode ser. É um receio temeroso do futuro, não esquecido do passado, nem divertido do presente; e neste
círculo de todos os tempos acautelado para
todos. Deriva-se a palavra ne forte daquela
que o mundo chama Fortuna, e é uma força
tão poderosa e tão forte, que desarma a mesma Fortuna de todos os seus poderes; por que a quem sempre estiver
cuidadoso do que ela pode fazer ou desfazer,
nunca lhe acontecerá que diga—não cuidei—, que é a primeira máxima da prudência.
De prudentes e néscias se compõe
toda a história do nosso Evangelho, gloriosa
para umas e trágica para outras. As prudentes foram as aventurosas, porque
disseram: Ne forte: as néscias as sem
ventura, porque o não souberam dizer. As prudentes com as lâmpadas acesas
entraram às vodas; as néscias às escuras e com elas apagadas, ficaram de fora.
Cuidaram as néscias que se lhes não apagariam as lâmpadas, cuidaram que seriam
socorridas das companheiras, cuidaram que ainda que chegassem tarde, se lhes
abririam as portas; e depois de tanto cuidar, acharam que não tinham cuidado;
porque não cuidaram quanto, e como convinha, nem souberam dizer a tempo — ne forte. Três vezes o disseram as
prudentes; na consideração, na prevenção e na resolução. Na consideração,
considerando que por falta do sustento natural do óleo se podia apagar o fogo e
morrer a luz das lâmpadas; na prevenção, porque se preveniram de o levar nas
redomas, para delas o suprir, quando faltasse; na resolução, porque faltando às
companheiras, resolutamente lhe responderam, que não as podiam socorrer, porque
podia não bastar para todas: Ne forte non
sufficiat nobis et vobis (Math. XXV—9).
Oh virgem fortíssima e
prudentíssima Catarina, que bem retratada vos vejo nas cinco prudentes do Evangelho, como Juno
pelo pincel de Zeusis nas cinco escolhidas
de Argentina! Ofereceu o imperador Maximino a Catarina tudo o que podia dar neste Mundo a Fortuna, que eram as
vodas e coroa imperial; mas porque a
virgem prudentíssima, ainda com prudência humana, considerou nesta grande oferta, não o que era, senão o que podia ser,
desprezou a coroa da Terra sujeita à roda
da Fortuna, e segurou a que hoje goza no Céu, que a mesma Fortuna nem pode dar, nem tirar: Ne forte. Este será o argumento do meu discurso, tão próprio do tempo presente, como das graças que devemos a
Deus pelas fortunas do mesmo tempo. Mas
como para acertar a dar estas graças é necessário que o mesmo Deus nos assista
com a sua, peçamo-la primeiro, por intercessão da cheia de graça. Ave Maria. Ne forte.
CAPÍTULO II
Todos os títulos que nos obrigam
a dar graças a Deus pelos triunfos do tempo presente, me parece que estou vendo copiados e
divididos nas gloriosas insígnias daquela
sagrada imagem. Está adornada a imagem de Santa Catarina com os três instrumentos ou troféus da sua vitória —uma
palma, uma espada, uma roda. Os oradores
evangélicos, que, entre salvas, repiques e luminárias celebraram até agora a felicidade de nossas armas na campanha deste
ano, uns tomaram por assunto a palma,
outros a espada: na palma, fazendo panegíricos à vitória; na espada, ao valor dos capitães e soldados. E porque nenhum
até agora falou na roda, ela será o meu
assunto. As palmas, que têm as raízes na Terra, todas se podem secar, ou murchar; só são perpetuamente verdes aquelas
que viu S. João no seu Apocalipse: Et palma in manibus eorum (Apoc. VII—9).
As espadas também têm os seus reveses na
Terra, ainda que sejam descidas do Céu. Do Céu trouxe a alma do profeta Jeremias a espada que meteu na mão a
Judas Macabeu; mas depois de tantas
vitórias, enfim, pode dizer com Davide aquele valorosíssimo capitão: Gladius meus non salvabit me (Psalm.
XLIII —7); porque na trágica batalha contra Báquides e Alcimo não defendeu ao
grande Macabeu a sua espada, e com ela na mão caiu morto. Tudo isto são avisos
às palmas, rebates às espadas e desenganos a todo o vencedor, que no meio dos
maiores triunfos podem temer a roda. Esta roda, pois, como prometi, será o meu
argumento, o qual sobre os eixos dela se revolverá em dois discursos, quanto
for possível, breves. Ne forte.
CAPÍTULO III
Variamente pintaram os antigos a
que eles chamaram Fortuna. Uns lhe puseram
na mão o Mundo, outros uma cornucópia, outros um leme; uns a formaram de ouro, outros de vidro e todos a fizeram
cega, todos em figura de mulher, todos com
asas nos pés e os pés sobre uma roda. Em muitas coisas erraram, como gentios; em outras acertaram como
experimentados e prudentes. Erraram no nome de Fortuna, que significa caso, ou
fado; erraram na cegueira dos olhos; erraram nas insígnias e poderes das mãos;
porque o governo do Mundo, significado no leme e a distribuição de todas as
coisas, significada na cornucópia, pertence somente à Providencia Divina, a
qual não cegamente, ou com os olhos tapados, mas com a perspicácia de sua
sabedoria e com a balança de sua justiça na mão, é a que reparte a cada um e a todos,
o que para os fins da mesma Providência com altíssimo conselho tem ordenado e
disposto. Acertaram, porém, os mesmos gentios na figura que lhe deram de
mulher, pela inconstância; nas asas dos pés, pela velocidade com que se muda; e
sobretudo em lhos porem sobre uma roda; porque nem no próspero, nem no adverso,
e muito menos no próspero, teve jamais firmeza. Dos que a fizeram de ouro
diremos depois; o que agora somente me parece dizer, é que os que a fingiram de
vidro pela fragilidade, fingiram e encareceram pouco; porque ainda que a
formassem de bronze, nunca lhe podiam segurar a inconstância da roda.
Em uma das fábricas particulares
e famosas do Templo, diz o texto sagrado, que fez Salomão dez bases de bronze,
quadradas e iguais por todas as partes: Fecit
decem bases aneas, quatuor cubitorum longitudinis, bases singulas et quatuor
cubitorum latitudinis (3. Reg. VII-27). Diz mais (o que se o não dissera,
não se imaginara) que estas dez bases se assentara cada uma sobre quatro rodas: Et quatuor rota per bases singulas
(Ibid.—3o): acrescentando para maior clareza, que as rodas eram propriamente
como as das carroças, com seus eixos, raios e tudo o mais fundido também no
mesmo bronze: Tales autem rotæ erant
quales solent in curru fieri; et axes earum, et radii, et canthi, et modioli,
omniu fusilia (Ibid. —33). Toda esta miudeza foi necessário que se
explicasse, para que se entendesse a obra, da qual se não fora o autor Salomão,
quem haveria que ao menos não estranhasse tal modo de arquitetura? As bases são
o fundamento e firmeza de toda a fábrica; a figura quadrada, entre todas as
figuras a mais firme; o bronze, entre todos os metais o mais forte. Pelo
contrário, as rodas com eixos, e todos os outros instrumentos de se moverem,
são entre todas as cousas a menos constante, a menos estável, a menos firme.
Pois porque assenta a sabedoria de Salomão toda a firmeza e fortaleza das suas
bases sobre rodas? Assentadas as bases sobre rodas, ficam sendo as rodas bases
das bases; e isto, que não faria, não digo eu Vitrúvio, senão o arquiteto mais
imperito, que o fizesse Salomão?!—Sim, e com tanta arte como mistério. Aquela
obra era o chamado mar Éneo, fabricado antes de espelhos, e para espelho dos
que nele se fossem ver e compor. Quis pois o mais sábio de todos os homens, que
na mesma traça, disposição e ordem da fábrica, vissem e reconhecessem todos,
que não há não pode haver neste Mundo coisa alguma tão sólida, tão forte, tão
firme, nem ainda tão santa (qual aquela era), que, como se estivera fundada
sobre rodas, não esteja sempre sujeita às voltas, declinações e mudanças de
qualquer impulso, impressão ou movimento contrário. Tudo o que se diz da
Fortuna, e seus poderes, é fingido e falso; só uma coisa há nela certa e
verdadeira, que é a roda.
E para que nos vamos chegando ao
nosso caso, deixados os vidros e bronzes, que são nomes metafóricos, falemos
agora com o próprio do homem, e de todas as coisas humanas, que é o barro.
Mandou Deus Nosso Senhor ao profeta Jeremias, que fosse à oficina de um oleiro,
e que depois de ver o que aquele homem fazia, lhe declararia o por que lá o
mandava. Foi o profeta, e diz que achou o oleiro trabalhando sobre a sua roda: Et ecce ipse faciebat opus super rotam
(Jerom. XVIII—3). E notando então com particular advertência o que fazia, viu
que ao princípio estava formando um vaso muito polido, o qual, como se lhe
descompusesse e desmanchasse entre as mãos, desfê-lo, e, como irado contra ele,
tornou a amassar e pôr na roda o mesmo barro, e fez outro vaso muito diferente,
como lhe veio à fantasia. Aqui falou então Deus ao profeta, e lhe disse desta
maneira:—Assim como o oleiro tem nas suas mãos o barro, e dele faz uns vasos e
desfaz outros; assim tenho eu nas minhas mãos o Mundo, e posso desfazer uns
reinos e fazer outros ao meu arbítrio. E se ele com a ponta de um pé dá estas
voltas a sua roda, julga tu, se o poderei fazer eu. Vai a Jerusalém, conta-lhe
o que viste e dize-lhe que o primeiro vaso tão polido que o oleiro fazia, é o
reino de Israel, tão amado e favorecido da minha providência, o qual com a sua
rebeldia se me descompõe entre as mãos; e que ainda estou aparelhado para lhe
perdoar e arrepender do que tenho determinado; mas que se ele se não quiser
emendar, darei volta à roda, e do mesmo barro farei outro vaso. Jerusalém
passará para Babilônia, e o reino, que aqui é de El-Rei Joaquim com liberdade,
lá será de Nabucodonosor com perpétuo cativeiro. E assim foi.
Oh que facilmente se engana o
juízo humano nas apreensões de qualquer sucesso próspero? Por isso disse sábia
e prudentissimamente o grande senador romano, Severino Boécio, que melhor e
mais útil é ao homem a fortuna adversa, que a próspera: Plus reor hominibus adversam, quam prosperam prodesse fortunam. E
dá a razão; porque a próspera mente e a adversa desengana: Illa enim semper specie felicitatis, cum videtur b1anda, mentitur; hæc
semper vera est, cum se instabilem mutatione demonstrat. Illa fallit, hæc instruit. Quem se não quiser enganar com as lisonjas da Fortuna próspera,
olhe para a roda. Nela, e do mesmo barro faz Deus reinos e desfaz reinos;
desfaz Jerusaléns e acrescenta Babilônias; cativa os livres e restitui a
liberdade aos cativos. Assim o fez a benignidade divina, dando outra volta à
roda, e restituindo os cativos de Babilônia a liberdade, de que poucos já se
lembravam, no fim de setenta anos: caso bem parecido ao nosso.
CAPÍTULO IV
Lá, depois de setenta anos; cá,
depois de sessenta, uns e outros profetizados:
mas nem por isso cuide alguém, que para todas estas voltas da roda são necessários tantos espaços ou tantos
vagares do tempo. As rodas do carro de Ezequiel, em que Deus se lhe mostrou
governando todo este Mundo, eram cada uma composta de duas, uma roda
atravessada e outra cruzada com ela pelo meio. Isso quer dizer: Rota in medio rotæ (Ezeq. X—10). E que
rodas eram e são estas?— Uma é a roda da Fortuna, outra a roda do Tempo. Mas de
tal maneira unidas e travadas entre si, e tão independentes uma do curso da
outra, que para a roda do Fortuna dar uma volta inteira, não é necessário que a
de também inteira o Tempo. As voltas da roda do Tempo são as mesmas que as do
Sol. O Sol dá uma volta maior cada ano, e uma maior cada dia. Porém, para a
Fortuna dar uma volta inteira aos maiores impérios não são necessários anos nem
dias.
O maior império e monarquia que
tinha havido no Mundo, era a dos assírios e caldeus. E quantas horas houve
mister a roda da Fortuna para derribar esta e levantar sobre ela outra maior?
Diga-o a Escritura Sagrada por boca de Daniel, que se achou presente: Eadem nocte intrfectus est Baltassar rex
chaldæus, et Darius Medus successit in regnum (Dan. V—3º e 3I): Na mesma
noite fatal em que o rei com mil magnates da sua monarquia, convidados para um
solene banquete, estavam brindando aos seus deuses, foi morto—diz
Daniel—Baltazar, rei caldeu, e lhe sucedeu no império Dario medo. De sorte que
tanto mais depressa deu volta a roda da Fortuna que a roda do Tempo, que, não
tendo o Tempo em ausência do Sol andado um dia natural, nem meio dia, a
Fortuna, morto Baltazar e sucedendo-lhe na coroa Dario, já tinha posto por
terra a monarquia dos assírios e caldeus, e levantado até as nuvens a dos
persas e medos.
Caiu a monarquia, mas não caiu a
corte; porque ficaram em pé os famosos muros
de Babilônia, com os seus jardins cultivados no ar, por isso chamados hortos pensiles; onde, porém, até as flores não
escaparam de ficar tristemente murchas e secas, servindo a mãos estranhas, que as não
tinham regado. E para que alguém não
imagine da roda da Fortuna, que, não perdoando às coroas, ao menos dá quartel às pedras; passando do maior império
da Ásia à melhor cidade da Europa, ouçamos
em outra coisa não menos trágica, quão precipitada é a sua volta também em estas ruínas.
Fala Sêneca da antiga Lugduno, que anoitecendo cidade,
amanheceu cinza, e escreve assim: Tot
pulcherrima opera, quæ singula illustrare urbes singulas possent, una nox stravit. Et in tanta pace,
quantum ne bello quidem timeri potest, accidit. Quis credat? Lugdunum, quod
ostendebatur in Gallia, quæritur. Omnibus fortuna, quos publice
affixit, quod passuri erant, timere permisit. Nulla res magna non aliquod
habuit ruinæ suæ spatium. In hac una nox interfuit inter urbem maximum, et
nullam. Denique diutius illam periisse, quam periit, narro (Sénec.
Epist.). É lástima haver de afrontar com a tradução de qualquer outra língua a
elegância destas palavras. "Aqueles famosos edifícios—diz Sêneca—que cada
um deles pudera enobrecer e ilustrar uma cidade, todos igualou com a terra uma
noite; e aconteceu na bela paz, o que nem da mais furiosa guerra se pudera
temer. Quem tal crera? Aquela Lugduno,
que se mostrava por maravilha na Gália, busca-se nela, e não se acha. A todos
os que a Fortuna afligiu publicamente, permitiu que temessem o que haviam de
padecer, e a nenhum coisa grande deixou de dar o tempo algum espaço à sua
própria ruína. Só nesta, entre a cidade máxima e o nada, não houve mais que uma
noite. Ainda acabou mais depressa do que eu o escrevo". Até aqui a
narração e ponderação do grande filósofo. E como para as maiores voltas e
mudanças da roda da Fortuna não são necessários anos, nem dias inteiros, e da
metade de um dia sobejam ainda horas e essas as mais ocultas à vista; que
segurança pode haver tão confiada, que entre os abraços mais lisonjeiros da
felicidade não tema os seus reveses? E que reino ou república, que rei ou
capitão prudente, que entre os maiores triunfos lhe não esteja sempre batendo
às portas do coração aquela voz duvidosa: Ne
forte?
CAPÍTULO V
Não é minha tenção com este
discurso querer que a muito nobre cidade de Lisboa entristeça a sua alegria,
nem ponha silêncio aos seus aplausos; porque seria ser ingrata ao Céu e negar
os públicos pregões da fama aos que com o seu esforço e sangue tão honradamente lhos mereceram. O
que só desejo é que toda esta Monarquia
de Portugal se não deixe tanto inchar do vento da Fortuna que se fie dela e a
creia. Ouvi debaixo de um paradoxo o mais sisudo juízo da prudência militar.
Como na guerra não há coisa mais para estimar que o vencer, assim não há outra
mais para temer que a mesma vitória. Quando o sábio capitão se vir mais
vitorioso e triunfante na carroça de Marte e da Fortuna, então é que mais se
deve temer da volta das suas rodas.
Vencedor Abraão de quatro reis,
que tinham vencido outros cinco, e levado cativo com parte deles a Lote seu sobrinho,
fizeram mais famosa esta interpresa três circunstâncias notáveis: uma da parte
dos reis vencidos, outra da parte de Abraão vencedor, e a terceira da parte de
Deus, que neste acontecimento lhe apareceu e falou. Notável da parte dos reis
vencidos; porque naquela mesma noite em que contentes e divertidos estavam
brindando a sua vitória, deu sobre eles Abraão, com que a não chegaram a lograr
quatro horas inteiras, bastando tão pouco espaço de tempo para dar volta a
roda, e de vitoriosos e triunfantes se verem vencidos. Notável da parte de
Abraão vencedor; porque, voltando triunfante com parabéns e aplausos de
Melquisedeque, rei de Salem, nenhuma demonstração fez de festejar o seu próprio
triunfo. Não havia então salvas de artilharia, nem repiques, nem luminárias,
mas conforme o uso daquele tempo, pudera levantar troféus, que eram árvores,
desgalhados os ramos, e penduradas deles as armas e despojos dos inimigos que
Abraão desprezou generosamente. Notável enfim da parte de Deus; porque naquela
mesma ocasião lhe apareceu o Senhor dos exércitos e lhe disse estas notáveis
palavras: Noli timere, Abraham, ego
protector tuus (Gen. XV —I); ou, como se lê no texto original: Ego scutum tuum: Não temas, Abraão, que
eu sou o teu protetor e o teu escudo. Aqui é o meu reparo, e primeiro que tudo,
naquele noli timere: Não temas. Não é
este Abraão aquele mesmo, que pouco há tão animoso e destemido, com resolução
quase temerária se atreveu a acometer quatro reis vitoriosos e triunfantes só
com trezentos e dezoito homens de sua casa? Não é aquele mesmo que com tanta
arte, disposição e ordem militar soube repartir os seus, e de tal modo, e a tal
tempo investiu os inimigos que, sem lugar de se defenderem, os pôs a todos em
fugida? Pois se antes não temeu a batalha, sendo tão arriscada; como agora
teme, depois de a vencer, e tão venturosamente? Dantes podia temer os inimigos
por muitos e vitoriosos; mas agora, depois de destratados e vencidos, a quem
teme, ou de quem se teme?—Teme-se da sua própria vitória. Por isso Deus que, para
vencer a batalha, lhe não deu a espada, para conservar e defender a vitória lhe
promete o escudo: Ego scutum tuum.
Vede quanta razão e quantas
razões tinha Abraão para temer e se temer da sua vitória: Noli timere. Considerava Abraão que ele era um, e os reis que
vencera quatro: e na comparação de um a
muitos, que coração haverá tão agigantado, que com os pés na campanha não tema? O gigante
Golias coberto de ferro, e maior na sua soberba que na sua estatura, nunca se
atreveu em quarenta dias a desafiar mais que a um: Ad singulare certamen (I Reg. XVII-10). De Hércules, cujas forças e
façanhas é mais certo que foram fabulosas do que verdadeiras, é contudo
verdadeiro o provérbio que: Nec Hercules contra duos. E posto que as de Judas
Macabeu, canonizadas na Escritura Sagrada, não admitem dúvida, também a não há,
de que na última batalha, que teve quase vencida, acabou sem remédio, nem
resistência, não vencido no valor, mas oprimido da multidão. Considerava mais
Abraão que o poder menor, competindo com o grandemente maior, ainda quando
vence sempre fica desigual: e é tal a diferença nesta desproporção defensiva,
que o maior, ainda perdendo muitas batalhas, facilmente se conserva na sua
mesma grandeza; e o menor, tendo necessidade de muitas vitórias para se conservar,
bastará perder só uma para se perder. Finalmente, temia Abraão a sua vitória;
porque não olhava para ela só, senão juntamente para a dos mesmos inimigos, a
quem vencera. E se eles—dizia consigo—não lograram a sua vitória quatro horas
inteiras; que segurança posso eu ter de me sustentar sempre na minha?
Porventura pregou ela algum cravo na roda da Fortuna, para que não dê aquelas
voltas que continuamente está dando o Mundo, sem jamais parar?
Oh como pudera o mesmo Abraão
confirmar este seu temor depois da vitória dos quatro reis, com o exemplo de
outros quatro do Egito, onde já no tempo de Abraão se começavam a coroar os
homens! Sesóstris, rei do Egito, depois de vencer outros quatro reis vizinhos,
se desvaneceu a tanta soberba, que em lugar de outros tantos cavalos, mandou
que os quatro reis vencidos tirassem pela sua carroça. Assim se fez. Em um dia,
porém, de grande celebridade, advertiu que um dos reis vencidos de tal maneira
caminhava ao compasso dos outros, que o rosto e os olhos sempre os levava
voltados, e postos no rodar da mesma carroça. E como Sesóstris lhe perguntasse
com que pensamento o fazia, respondeu:—Intueor
volumen hoc assiduum rotæ in qua vicissim ima summa, et summa ima fiunt:
Levo sempre postos os olhos nesta roda; porque vejo nela, que assim como esta
parte que agora está em baixo, esteve já em cima, assim a que está em cima, com
meia volta só, torna a estar em baixo. Entendeu o mistério o rei vitorioso e
soberbo, e mandou logo tirar do jugo aos vencidos. As vitórias próprias, sem os
olhos na roda, ensoberbecem; com os olhos nela, humilham. Com os olhos na roda,
aos vencidos causaram esperança, e aos vencedores temor. Por isso Abraão temia
a sua vitória, e todos os grandes capitães temeram sempre as suas.
Ouvi isto mesmo admiravelmente
discursado por Sêneca, o poeta, e com a mesma propriedade representado por
El-Rei Agaménon, rei e general do exército grego, depois de abrasada Tróia: Stat avidus ira victor, et lentum Ilium
metitur oculis: Olhava para Tróia vencida o vencedor Agaménon; e porque a
não podia ver toda de uma vez, lentamente e pouco a pouco ia medindo com os
olhos sua grandeza. A primeira coisa que deve fazer o prudente vencedor, é
tomar bem as medidas ao país vencido: Et
lentum Ilium metitur oculis. E que se seguirá de aqui? O que aconteceu a
Agaménon: Victamque quamvis videat, haud
credit sibi potuisse vinci: e ainda que Agaménon estava vendo vencida a
Tróia, não acabava de crer, nem de se persuadir a si mesmo, que ele a tivesse
vencido. Não se podia louvar mais nem encarecer melhor a grandeza da vitória.
Na opinião invencível, aos olhos vencida. E passando da terra à coroa, da
metrópole ao rei, e de Tróia a Príamo, a conclusão do juízo de Agaménon foi
esta: Tu me superbum, Priame, tu timidum
facis: Tu, ó Príamo, me fazes soberbo e tu me fazes tímido. Quando vejo que
venci um tão grande rei como Príamo, monarca e senhor de toda a Ásia, vêem-me
pensamentos de soberba: Tu me superbum,
Priame. Mas quando no mesmo Príamo me vejo a mim, como em espelho, e quando
considero e reconheço que, assim como eu o venci a ele, outro me pode vencer a
mim; e dando volta a Fortuna, como hoje me vejo vencedor, amanhã me posso ver
vencido, todos os ardores da soberba se me convertem em frios de temor: Tu me superbum, tu timidum facis.
Este foi o juízo de Abraão em
temer a sua vitória: e este o de Agaménon em temer a sua: e o meu no nosso caso qual
será?—Porque não me persuado a temer nem quero persuadir temores, e por outra
parte quisera prometer segurança às nossas vitórias, sujeitas todas aos reveses
da roda da Fortuna; só no escudo que Deus prometeu a Abraão, que é círculo
permanente, as acho. Escreve Plínio, que em Roma no pórtico de Pompeu se via
com admiração a pintura de um soldado sem mais armas que um escudo, obra de
Pelignoto, famoso naquela arte, e o que nela se admirava era estar pintado o
soldado em tal ação no meio de uma escada, que ninguém podia divisar se subia,
ou descia: Hujus (Pelignoti) est tabula
in porticus Pompei, in qua dubitatur ascendentem cum clypeo pinxerit, an
descendentem. Toda a escada, senhores meus, ainda que em diferente figura,
é também roda; porque pelos mesmos degraus se pode subir ou descer. No meio
desta escada vejo aos nossos soldados armados também de escudo à defensiva,
qual é a nossa guerra; e posto que na presente vitória parece que estão em ação
de subir, como igualmente é sem questão que podem descer, nesta dúvida ou
contingência não lhes posso afirmar coisa certa. É verdade que estou vendo
muitos arcos triunfais levantados; mas estes, ainda que não tiveram as bases na
terra, não podem segurar firmeza ao que significam. Nas íris ou arcos celestes,
não só observaram os matemáticos, mas experimentam os rústicos, que quando o
Sol sobe, os arcos descem, e quando o Sol desce, os arcos sobem. E se nas
voltas que dá o Sol ao Mundo, se vê esta diferença naqueles espelhos; se quando
os arcos se abatem, é sinal que sobe o Sol ao Zénite, e quando os arcos crescem
e se levantam, é sinal que o mesmo príncipe dos planetas desce ao ocaso; que
juízo se pode formar do aparente destes triunfais meteoros, para segurar o
aumento das monarquias ou sua declinação? A que hoje parece que sobe, amanhã
pode descer, e a que hoje desce, amanhã pode subir; e só no escudo, que embraça
o braço de Deus (e é círculo, como dizia, permanente), se pode segurar o
prudente temor, para que não diga: Ne
forte.
CAPÍTULO VI
Temos satisfeito neste primeiro
discurso ao Evangelho, ao tema, ao tempo e caso presente, e ao ne forte das virgens prudentes. Agora vejamos como a virgem prudentíssima que nos deu a roda, com o
exemplo e sucessos gloriosos das suas vitórias nos ensina o que devemos
desprezar, temer ou assegurar em todas as voltas, que à da Fortuna e à do
próprio alvedrio pode dar o Mundo.
Primeiramente, assim como é
prudência nas coisas duvidosas e contingentes dizer—Ne forte; assim nas certas, e que não podem ter dúvida, dizer—Ne forte, é a maior imprudência. A mais
imprudente mulher (também virgem) que houve no Mundo, foi a destruidora dele—
Eva. E porque?—Porque sobre a verdade mais certa e a certeza mais infalível, da
qual se não podia duvidar, disse: Ne
forte. Tinha Deus notificado a Adão, e nele a Eva, que no dia em que
comessem da árvore vedada ficariam
sujeitos à morte. E sendo as palavras expressas do preceito—In quocum die comederis ex eo, morte
morieris. Eva respondendo à pergunta do demônio, e referindo o mesmo
preceito, acrescentou-lhe um ne forte:
præcepit nobis Deus, ne comederemus et ne
tangeremus illud, ne forte moriamur. E que se seguiu deste ne forte da
virgem néscia do Paraíso?—Seguiu-se o erro que emendou o ne forte das virgens prudentes do Evangelho. O ne forte da néscia
pôs dúvida onde não podia haver dúvida; o ne
forte das prudentes não admitiu dúvida, onde podia haver muitas.
Podiam duvidar, sendo companheiras,
como eram, se seria contra as leis da verdadeira e fiel companhia não ser comum
de todas, o que era particular de algumas. Podiam duvidar, sendo amigas, se era
obrigação em tal aperto oferecerem-lhe elas o óleo, ainda que o não pedissem,
quanto mais não lhe negar, tendo-o pedido. Podiam duvidar se nas circunstâncias
de um caso tão preciso, era lícito descomporem o acompanhamento e desfazerem o
aparato das vodas, para o qual foram escolhidas em tal número, e para tantas
parelhas. Podiam duvidar se sentiriam, como era razão, o desar daquela falta o
esposo e esposa, que eram os senhores a quem serviam, e de cujo agrado e favor
dependia o seu bem e toda a sua esperança. Podiam duvidar, enfim, se era contra
o primor, contra a cortesia, contra a nobreza, contra o crédito e reputação e
contra todos os outros respeitos e pontos de honra, que tão escrupulosamente
observam nas ações públicas os que as fazem nos olhos do mundo, e sujeitas aos
seus juízos. Pois se em dar ou não aquele socorro havia tantas duvidas, como se
resolveram as prudentes a o negar, principalmente sendo muito pouco o que
haviam de despender, sabendo que o Esposo já vinha: Ecce sponsus venit? (Math. XXV—6) .
A razão deste tão bem fundado
reparo, é muito mal praticada nas cortes, e por isso necessário que a nossa,
com quem falo, a ouça. O que importava à prevenção das virgens prudentes e o
que dependia de ela bastar ou não bastar para todas, não era menos
infalivelmente que o entrar às vodas ou não entrar; o ganhar o Céu ou perde-lo;
o salvar ou não salvar: e em matéria de salvação não se há de admitir dúvida,
nem contingência, por menor ou mínima que seja. Todos os pontos do primor, do
crédito, da reputação e honra humana, em chegando a este ponto, são nada. Todas
as obrigações e finezas da amizade e do amor, ainda que seja o que mais cega,
que é dos pais para com os filhos, a qualquer sombra deste perigo se devem
converter em ódio; este só respeito há de vencer todos os respeitos, esta só
dependência todas as dependências, este só interesse todos os interesses. Cuide
o Mundo, murmure a vaidade, diga a fama o que quiser; arrisque-se enfim tudo o
que se pode arriscar, perca-se tudo o que se pode perder, contanto que se não
arrisque ou ponha em dúvida a salvação.
Tão sisudo e tão forte como isto
foi o ne forte das virgens prudentes.
Mas por isso mesmo não só parece desumano, senão contrário a toda a razão e
proximidade. Se tanto reparo e tanto escrúpulo fazeis neste ponto, por ser da
salvação, porque não reparais na de vossas companheiras? Não vedes que,
seguindo o vosso conselho, vão arriscadas a se lhes fecharem as portas do Céu,
e o perderem e se perderem para sempre? Assim o viam como sábias e o sentiam
como amigas. Mas esta é a obrigação precisa e indispensável, e este o
privilégio soberaníssimo da salvação própria. Se a dúvida ou risco da minha
salvação em qualquer caso se encontra com a alheia, seja a alheia de quem for e
de quantos for; sou obrigado a tratar tão unicamente da minha salvação, que me
salve eu, ainda que se perca todo o Mundo. Não é menos divino este tremendo
documento, que da boca da mesma verdade Qui
prodest homini, si mundum universum lucretur, animæ vero suæi detrimentum
patiatur? (Ibid. XVI—26). Que lhe aproveita a um homem— diz o Salvador dos
homens—salvar ele, ou que por seu meio se salvem, todas as almas do Mundo, se
ele perder a sua? Aqui não há senão dar um ponto na boca. E este foi o fecho
com que as prudentes acabaram de concluir, não a desculpa, senão a obrigação
que tiverem de não acudir à salvação das companheiras, pois era com dúvida e
risco, da própria. Ne forte non sufficiat nobis et vobis (Ibid.XXV-9).
CAPÍTULO VII
Em confirmação desta notável
verdade, que é bem saibam todos, para que nos fiemos das diligencias próprias,
e não de dependências alheias, seguiu-se o alegre e triste fim da história do
Evangelho. As prudentes entraram às vodas, as portas do Céu tornaram a se
fechar, e posto que as néscias vieram e bateram, ficaram de fora. Cuidava eu
que as virgens prudentes, vendo-se já dentro do Céu, sem dúvida não perigo da
salvação própria, ao menos se lembrassem de interceder pelas companheiras; mas
este foi o segundo e novo desengano, para que cada um se fie de si. Lá vão
chorando as tristes e miseráveis néscias, que nem na terra tiveram remédio, nem
no Céu o acharam. E que efeitos causaria esta lastimosa vista no coração, no
zelo e no valor de Catarina?—Com assombro dos outros santos, dos anjos e do
mesmo Evangelho, resolve-se a fazer abrir outra vez as portas do Céu, já
fechadas, e que entrem também as néscias.
Já vejo que reparam os doutos na
proposição; mas notem o sólido fundamento dela. As néscias do Evangelho são
aquelas, cujas lâmpadas se apagaram por falta de óleo, e por esta falta não
entraram as vodas. E estas néscias, que semente o são em parábola e semelhança,
em realidade e verdade significam aquelas almas a quem falta o lume da fé e o
óleo da caridade, sem o qual, ainda que haja fé, é fé morta, e o lume da mesma
fé apagado, sendo que só com ele ardente, e ela viva, se pode entrar no Céu. Tais
eram, e pela maior parte idólatras, os que habitavam a grande cidade de
Alexandria , pátria da nossa santa, onde então residia o imperador Maximino, o
maior inimigo de Cristo, o mais cruel tirano e perseguidor dos cristãos. Estava
ali Catarina cheia de fé entre infiéis, estava cheia de sabedoria entre
ignorantes, estava cheia de luz entre os cegos, estava cheia de piedade entre
tiranos. E que fariam dentro daquele generoso coração, e como rebentando nele
todas estas heróicas virtudes e cada uma delas?—A fé o incitava a converter a
infidelidade, a sabedoria a ensinar a ignorância, a luz a alumiar a cegueira, a
piedade a abrandar e amansar a tirania; e sobre tudo o abrasava a vista da
perdição de tantas almas. Se Catarina fora uma das dez virgens, com dúvida e
contingência de salvação, diria com as prudentes da parábola: Ne forte; mas como depois de o mesmo
Cristo lhe dar o anel de esposo, ela era a esposa, que não podia deixar de
entrar às vodas: Exierunt obviam sponso,
et sponsæ (Ibid. XXV—I); por isso em lugar de dizer: Ne forte; (notai muito) em lugar de dizer: Ne forte. disse: Si forte.
Si forte—disse com novidade inaudita em lugar de ne forte, e é bem que reparemos muito na
diferença destes dois advérbios, porque em tão pequena mudança de letras têm a significação
totalmente contrária. O ne forte
significa—para que não, como já vimos; o si
forte quer dizer—se porventura; o ne
forte é advérbio seguro e frio; o si
forte animoso e ardente; o ne forte
fecha as portas ao temor; o si forte abre-as à esperança; o ne forte é freio para a cautela; o si forte é espora para a ousadia: o ne forte diz: Não te arrisques; o si forte diz: Aventura-te; finalmente o ne forte tem por efeito evitar o mal
que suspeita; e o si forte tem pôr
objeto empreender e conseguir o bem a que aspira. Mas este bem não há de ser
qualquer bem ordinário e vulgar, senão grande, senão árduo, senão heróico, e
que tenha mais graus de dificultoso, que de possível. Para prova do ne forte, basta o das virgens do
Evangelho, que deixamos tão debatido. Para declaração e exemplo do si forte, temos dois famosos no
Testamento Velho, e tão medonhos, como atrevidos. Tendo os filisteus com
inumerável exército posto em tal aperto os filhos de Israel, que para
guarnecerem as vidas, se escondiam pelas covas e grutas dos montes, veio ao
pensamento de Jonatas, filho de el-rei Saúl, que se ele rompesse as sentinelas
na hora mais secreta do sono, o desacordo do mesmo sono e a escuridade da
noite, podia por os inimigos em tal confusão, que, sentindo-se ferir e matar,
sem saber por quem, eles mesmos voltassem as armas uns contra os outros e se
desbaratassem e fugissem. Assim o imaginou aquele príncipe, assim o executou e
assim sucedeu, sendo os autores desta prodigiosa façanha o mesmo Jonatas e o
seu pajem de lança somente. Mas com que motivo racional em caso tão
dificultoso?—Sem outro motivo ou impulso mais que a ousadia de um animoso si forte. Assim o disse o mesmo Jonatas,
quando acometeu a empresa, deixando-a toda a Deus e à ventura: Veni, transeamus, ad stationem incircumcisorum
horum, si forte faciat Dominus pro nobis (I Reg. XIV—6). O segundo exemplo
ainda foi maior, se pode ser; porque não teve parte nele o socorro da noite.
Quando Josué repartia as conquistas da Terra de Promissão, pediu-lhe seu antigo
companheiro Calebe um sítio chamado o Monte dos Gigantes, em que eles se
mantinham inexpugnavelmente fortificados: Da
mi montem istum, in quo Enacim (idest Gigantes) sunt, et urbes magnæ atque munitæ (Jos. XIV—I2). Mas se os homens
de ordinária estatura em comparação dos gigantes são pigmeus e os muros que
defendiam as suas cidades eram tão agigantados como eles, com que confiança
Calebe, que já contava oitenta e cinco anos de idade, se atreve a tão desigual
e dificultosa conquista?—Com a mesma confiança e impulsos de um intrépido e
valoroso si forte: Si forte sit Dominus mecum et potuero delere
eos (Ibid.).
Tal era o fortíssimo si forte, de que estava armada a nossa
valorosíssima aventureira para assaltar outro monte mais alto e conquistar
outras muralhas mais impenetráveis e abrir as portas do Céu às néscias da sua
pátria, tanto mais néscias e ignorantes, que não sabiam chorar, nem ainda
conhecer a miserável cegueira que as tinha fora dele então, e para sempre.
Sendo tão grande a dificuldade da empresa, ainda a dificultou com outra maior
naquela mesma ocasião a tirania do imperador Maximino. Lançou bando que todos
os súditos do seu império, agradecidos as mercês com que os deuses imortais o
favoreciam, lhe viessem oferecer sacrifício público, sob pena da vida, e da sua
indignação aos que assim o não obedecessem. A indignação do tirano significava
os esquisitos tormentos, com que a morte, por si só terrível, se fazia muito
mais formidável. E aqui se viu Catarina metida entre dois extremos os mais
repugnantes à natureza e ainda à mesma graça. De uma parte o Céu, da outra o
Inferno; de uma parte a morte temporal própria, da outra a eterna alheia; de
uma parte a perdição, da outra a salvação de tantas almas. Mas naquele sublime
espírito não foram necessários muitos discursos para a mais heróica
deliberação. A morte—diz Catarina—é certa, a salvação duvidosa; mas a morte é
minha, a salvação é dos próximos; aventure-se pois Catarina a conseguir a
salvação alheia, e perca embora de contado a vida própria.
Em toda a Escritura Sagrada há só
uma deliberação que tenha alguma semelhança com esta. Tinha passado el-rei
Assuero um decreto, por indústria e vingança de seu grande privado Amã, para
que em certo dia assinalado, nas cento e vinte e sete províncias sujeitas a seu
império morressem todos os hebreus que nelas se achavam. Teve esta noticia
Ester, que também era hebréia, resolve-se a procurar a salvação do seu povo;
porém, querendo falar ao rei, soube que havia outro novo e segundo decreto seu,
em que proibia, que nenhum homem, nem mulher pudessem entrar à sua presença sob
pena de perder no mesmo instante a vida: Quod
sive vir, sive mulier, non vocatus, interius atrium regis, absque ulla
cunctatione interficiatur (Est. IV—II). Tudo eram traças do mesmo Amã, para
que a execução da morte universal dos hebreus se não pudesse revogar. E aqui
temos a Ester metida entre as duas pontas de um fatal dilema, por ambas as
partes mortal. Se não entra ao rei, executa-se o primeiro decreto e morre o
povo; se atreve a entrar, executa-se o segundo e morre Ester. Que faria pois a
generosa heroína, vendo-se expressamente compreendida nas palavras do decreto:
Sive vir, sive mulier?— Execute-se embora—diz—a morte em mim, com tanto que
nesse mesmo risco me aventure eu a conseguir a salvação do meu povo. Isto disse
a famosa resolução de Ester, e nisto parece que se igualou o seu si forte com o si forte de Catarina. Mas não consinto eu tal igualdade; nem foi
assim. Porque?—Porque no mesmo decreto se acrescentava esta condição: Nisi forte rex auream virgam ad eum
tetenderit pro signo clementiæ (Ibid.): Exceto somente o caso em que o rei
estenda o cetro de ouro sobre quem entrar, em sinal de clemência. De sorte que
o si forte de Ester tinha por si o ne forte de Assuero; porém, o de
Catarina era si forte sem ne forte. Aquele tinha por si a
condicional do rei, este tinha contra si a condição do tirano; aquele tinha por
si a clemência, este a crueldade inexorável; aquele o cetro de ouro, este não o
cetro, senão a espada. não o ouro, senão o ferro, tantas vezes tinto no sangue
cristão e insaciável dele. Em suma, que o bando era absoluto e sem exceção; a
morte certa e sem dúvida os tormentos esquisitos e iguais à sevícia e crueldade
do tirano; e a tudo isto se ofereceu uma donzela, que ainda não tinha idade para
se chamar mulher, com a esperança incerta, duvidosa e somente possível, da
salvação alheia à ventura e contingência de se poder ou não poder conseguir
seguir: Si forte.
CAPÍTULO VIII
Mas porque é mais fácil o desejar
que o fazer, e menos difícil o resolver que o executar; passemos do pensamento
às mãos, e vejamos como a nossa conquistadora do Céu e das almas entra e se
empenha bizarra nas suas aventuras. O primeiro tiro que fez, foi a cabeça.
Presenta-se ao imperador, armada da sua eloqüência e acompanhada só de si
mesma. Estranha-lhe a publicidade do bando, o terror das ameaças, o sacrilégio
das sacrifícios, a falsidade dos deuses com nome de imortais, sendo paus e
pedras: e sobre este exórdio passou à doutrina da verdadeira fé Pesma Maximino de tal audácia e
atrevimento na fraqueza daquele sexo e idade, e cumprindo-se no ímpio idólatra
a discreta maldição de Davide, que sejam semelhantes aos ídolos os que os
adoram: Similes illis fiant qui faciunt
ea (Psal. CXIII—8), ele ficou mais ídolo que idólatra. Os ídolos têm olhos,
e não vêem— ele ficou cego; os ídolos tem ouvidos, e não ouvem—ele ficou surdo,
os ídolos tem língua, e não falam—ele ficou mudo, cego à luz, surdo à voz, mudo
à força da razão, a que não podia resistir, nem queria ceder.
Não há cabeças mais duras de
penetrar e converter que as coroadas; e se o rei ou tirano, por dentro é mau e
vicioso, e por fora hipócrita e devoto, estas aparências de religião, com que
se justificam, os endurecem e obstinam mais. Tais hão de ser as artes do Anti-Cristo
na falsa introdução da sua divindade; e tais eram em Maximino, sem artifício, o
zelo e veneração da que cria nos seus deuses e negava e blasfemava em Cristo.
Com tão pouca esperança de vencer, começou a primeira aventura de Catarina, o
que ela não estranhou, porque na empresa do seu heróico si forte, sempre levou os olhos postos nas duas faces da
contingência, uma alegre, outra adversa; uma vencedora, outra não. Contudo,
depois que o imperador falou e ouviu, se não alcançou dele a inteira vitória,
conseguiu parte dela. E qual foi, porque nem o mesmo imperador o entendeu?—Foi
que se o não fez católico da nossa fé, fê-lo herege da sua. Alcançou dele
modesta e sabiamente a santa, que entre ela e seus filósofos se disputasse
publicamente a questão da verdadeira ou falsa divindade dos deuses. E aqui
fraquejou a astúcia do imperador e se viu a sutileza de Catarina; porque o que
se põe em questão e disputa, igualmente se põe em dúvida; e quem duvida da sua
fé, qualquer que seja, já é herege dela.
Apareceram enfim os filósofos em
uma sala, que era o teatro da famosa disputa, não menos em número que
cinqüenta, e tão vários cada um nos trajos e no mesmo aspecto, como nas seitas.
Não se viam ali armas, posto que todas as universidades tinham destinado àquela
campanha os seus Aquiles. Afrontaram-se eles de haver de contender em letras
com uma mulher, não desmaiando porém ela de vencer a tantos homens de tanta
fama e tanta presunção, que todos se estimavam banhados na lagoa Estígia. Assim
tinha cada um por invulnerável a sua seita e inexpugnável as outras. Para
abreviar pois o conflito, e não ter suspensa a expectação dos circunstantes,
todos se comprometeram na sabedoria de um, o mais velho e venerável, de mais
celebrada opinião. Falou este, e com igual arrogância e eloqüência ostentou por
largo espaço quanto sabia. Mas Catarina, sem desprezar a pompa das palavras,
nem temer o estrondo dos argumentos, com modestas e vivas razões desfez e
desbaratou tudo com tal evidência, que o filósofo compromissário do duelo,
atônito e pasmado, se rendeu e convencido se lançou a seus pés. Os demais, já
convencidos nele, com o mesmo assombro do que ouviram e ignoravam, não só reconheceram
inteiramente a verdade, mas, não podendo reprimir com o silêncio os impulsos
dela, sem pejo do imperador presente e de toda Alexandria, e com afronta de
todas as escolas da Grécia, confessaram publicamente a falsidade dos deuses e a
única divindade do Crucificado Jesus Cristo.
Esta publica confissão foi o
maior triunfo da vitória de Catarina, maior contra Demócritos e Diógenes sem
espada, que se fora contra Cipiões armados. As batalhas mais invencíveis são as
do entendimento; porque onde as feridas não tiram sangue, nem a fraqueza se vê
pela cor nenhum sábio se confessa vencido. Diz S. Pedro que a ciência incha: Scientia inflat (I Cor. VIII—I). E não
só é difícil, sem graça muito singular, ciência sem inchação, mas sempre a
inchação é maior que a ciência. A maior ciência e o maior entendimento, que
Deus criou entre homens e anjos, foi o de Lúcifer; mas ainda foi maior a sua
inchação e soberba: Similis Altissimo
(Isai. XIV—I4). Contra esta rebelião se deu no Céu aquela grande batalha de
entendimentos: Factum m est præilium
magnum in cælo (Apoc. XII—7). Saiu vencedor Miguel, ficou vencido Lúcifer;
mas de que modo vencido?—Com tal inchação e soberba do seu saber, e tão
namorado do mesmo entendimento que o cegou, que antes quis cair do Céu, que
descer-se da sua opinião. Há mais de seis mil anos que arde no Inferno Lúcifer,
e há de arder por toda a eternidade, só por não admitir um instante, em que
confesse que errou.
A vista desta desventura do Céu,
triunfe mais, oh Catarina, o si forte
das vossas aventuras! Maiores circunstâncias teve esta vitória vossa, que a do
capitão general de Deus na batalha do Empíreo. A sua partiu-se entre o Céu e o
Inferno; a vossa inteiramente toda foi do Céu. Na sua ficaram só no Céu duas
partes das três hierarquias, que foram as vencedoras; e a terceira vencida foi
precipitada no Inferno. Na vossa só foram cinqüenta os que vieram à batalha, e
todos cinqüenta venceram, todos cinqüenta vos seguiram, todos cinqüenta pisaram
o Inferno e voaram ao Céu, cujas portas vós lhe abristes, e nenhum ficou de
fora. Mais ainda. Quando no Céu à voz de Miguel—Quis sicut Deus—se partiram os dois exércitos, um vitorioso, outro
caído, houve anjos e arcanjos, houve principados e potestades, houve querubins
e serafins, houve enfim em todos os nove coros dos espíritos celestiais muitos
que seguiram a seita de Lúcifer; porém voz de Catarina (que também foi contra
os deuses falsos): —Quem como o Deus verdadeiro?—, sendo tantas e tão várias as
seitas dos filósofos como eles mesmos, nenhum houve (fineza não vista no Céu)
que não deixasse a própria. Antes se viu naquela uniforme conversão ou divino metamorfose
uma singular maravilha ao entrar e ao sair do mesmo teatro. E foi, que ao
entrar, uns filósofos eram platônicos, outros peripatéticos, outros acadêmicos,
outros cínicos, outros estóicos, outros pitagóricos, outros epicúreos, outros
gnósticos e os demais, e ao sair, pelo nome da nova escola e da nova mestra,
todos eram e se podiam chamar catarinos. Tão forte e de um só rosto foi, nesta
segunda aventura, sem dúvida nem exceção, o seu glorioso si forte.
CAPÍTULO IX
Afrontado Maximino pelo seu
descrédito e muito mais pela injúria e ignomínia dos seus deuses conhecidos por
falsos; para se vingar da fraqueza dos filósofos e do valor da que os vencera,
resolveu barbaramente matar a todos, mas não com a mesma morte: os filósofos a
espada, Catarina à fome. Mandou-a meter ou sepultar em um cárcere subterrâneo,
escuro e medonho, com cominação e pena capital às guardas, que ninguém lhe
desse de comer. Tudo isto era acrescentar trombetas à fama e novos aplausos à
glória de Catarina. E desejando a mesma imperatriz conhecer e ver com seus
olhos, antes que morresse, uma mulher de tão sublimes espíritos, delibera-se a
ir em pessoa e descer secretamente ao mesmo cárcere.— Mas reparai, Senhora, no
que fazeis ; porque descer a essa masmorra não pode ser sem o mesmo perigo que
o profeta Daniel ao lago dos leões. Os leões de indústria estavam famintos, sem
a ração ordinária, para que mais raivosa a sua natural fereza com a fome, no
mesmo instante remetessem ao profeta, e espedaçado o comessem. Sabei, pois, que
essa mulher que quereis ver, com fome não menos que de quase doze dias, como
uma leoa esfaimada se há de enviar a vós e comer-vos. Mas antes do sucesso para
que não pareça fábula ou quimera este dito, vejamos quão certo é.
Estando S. Pedro no porto de Jope
em oração ao meio-dia, diz o evangelista S. Lucas, que teve fome: Cum esuriret (Act. X—I0); e enquanto se
lhe punha a mesa na casa onde estava hóspede, viu descer subitamente do Céu
outra mesa tão abundante de iguarias, como maravilhosa e nova: abundante de
iguarias, porque eram todas as aves do ar e animais da terra; e maravilhosa e
nova, porque não vinham mortas ou guisadas, senão vivas. Vivas? E como as há de
comer Pedro? Uma voz do Céu lho disse: Surge,
Petre, occide et manduca (Ibid. I 3): Eia, Pedro, mata e come. Nestas duas
palavras lhe descobriu Deus o mistério da visão, com semelhança e propriedade
verdadeiramente divina. O animal, quando o mata o homem, deixa de ser o que é,
e quando o come converte-se no que não é: morto, deixa de ser bruto; comido,
passa a ser homem. Da mesma maneira aqueles animais de todos os gêneros,
significavam os gentios de todas as nações, de todas as seitas e de todos os
estados. E como Pedro era a cabeça da Igreja e da cristandade, aquela voz— Occide et manduca, foi o mesmo—declara S.
Jerônimo— que dizer-lhe o Céu a Pedro: In
corpus ecclesiæ et tua membra ea converte: que matando-os e comendo-os, os
encorporasse na Igreja, e fizesse membros seus. De sorte que, assim como o
animal, matando-o o homem, deixa de ser bruto, e comendo-o, se converte em
homem; assim o gentio por meio da doutrina evangélica, que tem a eficácia de
matar e comer, morto, deixa de ser gentio, e comido, se converte em cristão e
membro da Igreja. Esta era a fome de Pedro, a quem o mesmo S. Jerônimo compara
neste passo ao leão, que só come o que mata; e esta a fome de Catarina, a quem
eu comparei à leoa esfaimada, como quem tanta fome tinha da salvação das almas,
e que por isso era certo que a imperatriz não escaparia de ser comida. E assim
foi.
Desceu a imperatriz ao cárcere,
imaginando que veria em Catarina a imagem da mesma fome, macilenta, seca e
consumida; porém a santa estava tão viva e tão a mesma nas forças, no vigor, na
cor e na formosura, como quando ali entrara. Mais desejo creio lhe viria então
à imperatriz de a comer a ela, que medo de que ela a comesse. Assim diziam os
que amavam muito a Jó: Quis det de
carnibus ejus ut saturemur? (Job, XXXI—3I). Afeiçoada com este primeiro
milagre, e ouvindo a celestial eloqüência de Catarina, cada palavra sua lhe
levava à imperatriz um bocado do coração, e de tal modo se deixou comer toda
que já não era gentia nem imperatriz, senão cristã e escrava de Cristo.
Sucedeu aqui a mútua
transubstanciação, que o mesmo Cristo afirma dos que comem seu corpo: In me manet et ego in illo (Joan.
VI—57). A imperatriz, por fé, transubstanciada em Catarina, e Catarina, por
doutrina, transubstanciada na imperatriz. Por isso a mesma imperatriz teve
resolução e constância para dali se ir apresentar a Maximino, declarando-lhe
que era cristã e exortando-o a que o fosse também. Oh como se pudera então
gloriar Catarina no seu cárcere, que, se dantes lhe não pode conquistar toda a
alma ao imperador, agora lhe tinha conquistado a metade! Mas ele, porque todo o
amor que devia a esta natural a metade, como esposa, era muito menor que o ódio
que tinha a Cristo, como mau marido a privou logo do tálamo; como mau
imperador, da coroa; e como péssimo e crudelíssimo tirano, da vida. Morreu a
imperatriz, trocou a sua coroa pela de mártir, abriram-se-lhe de par em par,
como a tão grande princesa, as portas do Céu, sendo, pouco antes, uma e a maior
das néscias. Esta foi a terceira aventura do animosíssimo si forte o qual eu considero tão admirado como triunfante
reconhecendo por ventura maior a vitória, que a mesma sua esperança.
Se a fome da salvação das almas
não fora insaciável em Catarina, já ela se dera por satisfeita com ter ganhado
para Cristo tantas, tão ilustres e tão alheias de sua fé. Mas como tivesse
cercado o seu cárcere um corpo da guarda de duzentos soldados romanos,
governados por Porfírio, capitão do imperador, as muitas almas deste grande
corpo lhe excitaram e animaram o fervoroso espírito, a que também empreendesse
a sua salvação. Eu confesso que lhe não aconselhara tão duvidosa empresa; porque
não pudesse acontecer, que a natural inconstância do si forte nunca segura, pusesse a última cláusula a proezas tão
ilustres com algum fim menos glorioso. Muito mais dificultoso é haver de vencer
soldados, que ter convencido filósofos. Os soldados não se vencem com
argumentos de palavras, senão com silogismos de ferro. Para os mais subtis de
entendimento, o capacete lhes defende a cabeça; e para os mais brandos de
vontade, a malha e o arnez lhes endurecem o peito. Toda a força que tem o
filósofo consiste em a razão, e toda a razão do soldado consiste na força. Só à
maior força, só à maior violência, só ao maior poder, se abatem as bandeiras e
rendem as armas. Alma e salvação são as duas cousas mais precisas, e por isso
as que causam maior medo de se perderem; mas para quem tem piedade de uma e fé
de outra: e do soldado diz o provérbio: NulIa
fides pietasque viris, qui castra sequuntur. Contudo, nenhuma destas
considerações foram parte, para que Catarina desistisse do seu pensamento,
maior que todas elas. S. Paulo dizia que as suas prisões, ainda que o atavam a
ele, não atavam nele a palavra: Laboro
usque ad vincula; sed verbum Dei non est alligatum (2 Tim. II—9). Assim
também Catarina. Ela estava presa; mas a palavra de Deus nela tão livre, tão
eficaz e tão poderosa, que a todos os soldados que guardavam a sua prisão, fez
seus prisioneiros. O menos que eles fariam, era por a santa em sua liberdade;
mas ela queria-lhes abrir a eles as portas do Céu, e não que eles lhe abrissem
a do cárcere. Todos se salvaram, todos renunciaram o imperador da terra, todos
se fizeram cristãos; maravilha que só pode encarecer, ponderando que eram
soldados e soldados romanos.
Todos os soldados que concorreram
na paixão de Cristo, eram da família romana, que presidiavam a Judéia. E que
fizeram? No Horto os soldados e cabo da escolta de Judas prenderam a Cristo, e
atado o levaram a Anás: Cohors ergo et
tribunus comprehenderunt et ligaverunt eum et adduxerunt ad Annam (Joan. XVIII—
I2 e I3). No Pretório, os soldados da guarda de Pilatos convocaram contra
Cristo toda a esquadra: Milites præsidis
congregaverunt ad eum universam cohortem (Math. XXVII—27). No palácio de
Herodes, os soldados do seu exército e o mesmo rei o desprezaram e afrontaram: Sprevit illum Herodes cum exercito sua
(Luc. XXIII—I I). Remetido outra vez a Pilatos, os soldados lhe teceram a coroa
de espinhos, lhe vestiram a púrpura de escárnio, e puseram o cetro de cana na
mão, como aqueles que se prezam de ter na sua as púrpuras, os cetros e as
coroas dos reis: Et milites plectentes
coronam de spinis imposuerunt capiti ejus, etc. (Joan. XIX—2). No Calvário,
os soldados crucificaram a Cristo: Milites
ergo cum crucifixissent eum (Ibid.—23). Os soldados o blasfemavam com os
príncipes dos sacerdotes: Iludebant autem
ei et milites (Luc. XXIII—36). Os soldados lhe repartiram os vestidos e
jogaram a túnica, como gente que, para ter que jogar, despirá a Cristo e os
seus altares: Et dixerunt, non scindamus
eam, sed sortiamur de illa; et milites quidem hæc fecerunt (Joan. XIX—24).
Finalmente, depois de morto Cristo, o que se atreveu sobre toda a desumanidade
a lhe romper o peito com a lançada, também foi um dos soldados: Unus militum lancea latus ejus aperuit
(Ibid.— 34).
Isto foi o que obraram contra
Cristo em Jerusalém a impiedade e perfídia dos soldados romanos, e desta
infâmia os desafrontaram a eles e a si os soldados, também romanos, em
Constantinopla. Em Jerusalém o crucificaram, em Constantinopla o adoraram; em
Jerusalém negaram a Cristo, em Constantinopla o confessaram; em Jerusalém lhe
derramaram o sangue, em Constantinopla derramaram o seu por ele; em Jerusalém
lhe tiraram a vida, e em Constantinopla lhe sacrificaram, não uma, senão
duzentas vidas. O maior dia que houve no Mundo, foi o da paixão e morte de
Cristo; e no dia em que manava das suas veias e corria por cinco fontes a
salvação de toda a milícia romana se converteu só o centúrio, que disse: Vere Filius Dei erat iste (Math.
XXVII—54). Era capitão de uma companhia de cem soldados, que isso quer dizer
centúrio; mas de cem soldados nem um só se converteu em tal dia. E honrou o
mesmo Cristo tão admiravelmente, e quase incrivelmente, a morte de Catarina,
que no dia em que ela morreu, não só se converteu por seu meio Porfírio,
capitão de duas centúrias; mas, sendo duzentos os seus soldados, todos
receberam concordemente a doutrina da nossa fé, todos com o mesmo valor se
sujeitaram ao martírio, sem vacilar nos tormentos, todos deixaram escrito com o
próprio sangue o testemunho infalível da sua vitória, todos, enfim, sem faltar
um só, se salvaram.
CAPÍTULO X
Essa foi a famosa história, parte
natural e humana, parte sobrenatural e divina, que sobre o ne forte do Evangelho nos motivou a roda de Santa Catarina. Só nos
resta saber qual foi a mesma roda, e que volta deu. Atônito e raivoso Maximino
das vitórias de Catarina, para se vingar e as vingar nela, determinou inventar
um novo gênero de martírio e tormento, em que excedesse os de Nero e
Diocleciano, e os de todos os tiranos seus sucessores. Mandou pois fabricar a
máquina de uma roda, armada por toda a circunferência de dentes ou pontas de
ferro agudas, em forma de navalhas, as quais, movendo-se no mesmo tempo,
executassem em qualquer volta o que os braços de muitos algozes não podiam. As
primeiras voltas feririam com inumeráveis golpes o corpo da santa ; as que se
seguissem, depois que não houvesse nela parte sã, feririam as feridas, como
fala S. Cipriano; e as últimas, quando não restassem já mais que os ossos, os
cortariam e desfariam, de sorte que de todo aquele formoso composto, mais de
alabastro que de carne, nem ficasse a semelhança.
Oh cegueira humana, grande em
todos os homens, e nos tiranos e perseguidores dos bons, maior e mais rematada,
pois não tem olhos para ver que onde maquinam a ruína alheia, fabricam a sua!
Antigamente havia uma invenção ou artifício de arcos, cujas setas, depois de
despedidas, como se tivessem uso de razão, as suas penas voltavam com dobrada
força as pontas e feriam a quem as atirava. Assim o supõe Davide, chamando a
este instrumento arco pravo: Conversi
sunt in arcum pravum (Psal. LXXVII—57). E assim contesta com ele Oséas,
chamando-lhe arco doloso: Facti sunt
quasi arcus dolosus (Os. VII—I6). Eu não entendo a arte com que isto podia
ser, posto que nas histórias eclesiásticas se leiam muitos milagres
semelhantes; mas tenho para mim que é justa providência do governo divino, que
as traições e maldades sejam traidoras a seus próprios autores, e, voltando
retrogradamente, vão buscar a cabeça que as maquinou e lhe dêem a devida paga.
O mesmo profeta-rei, tão exercitado em todo o gênero de armas, o disse: Convertetur dolor ejus in caput ejus et in
verticem ipsius iniquitas ejus descendet (Psal. VII—I7). Todos sabemos que
a máquina da roda de Santa Catarina, sem impulso superior, e movimento contrário,
desarmou sobre seus inimigos. E se quando a santa estava posta em uma roda,
Maximino tivesse olhos para ver que estava em outra, pode ser que se não
atrevesse à santa. Estava Catarina na roda do seu tirano, que era o imperador;
estava o imperador na roda da sua tirana, que era a Fortuna; e quando cuidou
que a da santa lhe espedaçasse o corpo, a sua lhe espedaçou o império.
É esta uma observação, que me
admiro não fizessem aqui os historiadores na combinação dos tempos. Eu a farei,
para que acabemos com a roda da Fortuna, como começamos; e é, que no mesmo ano
foi martirizada Santa Catarina, no mesmo ano entrou a imperar Maximino, e no
mesmo ano começou a fatal declinação e ruína do Império romano. Imperando
Galério Maximiano em Roma, e conhecendo por muitas experiências que uma
monarquia tão vasta não podia ser bem governada por um só homem (o que já tinha
antevisto o mesmo Júlio César, seu fundador, quando lhe definiu certos
limites), determinou dividi-la em duas partes e duas cabeças, como com efeito a
dividiu em dois imperadores e dois impérios: um chamado ocidental, de que
continuou a ser cabeça Roma , outro chamado oriental, de que começou a ser
cabeça Constantinopla; e foram os dois novos imperadores, do ocidente Severo, e
do oriente Maximino, ambos tiranos, mas com os nomes trocados; porque Maximino
não só foi severo, senão o extremo da severidade e da sevícia.
Por esta ocasião a águia,
insígnia das bandeiras romanas, que até então tinha uma só cabeça, começou a
aparecer com duas, como hoje a vemos, posto que é mais fácil copiar o pintado,
que restaurar o verdadeiro. E como a divisão em todas as comunidades de homens
e de coroas é indício fatal de declinação e ruína, assim o foi no império e
águia romana a divisão daquelas duas cabeças. Já o profeta Daniel o tinha
mostrado na mesma divisão, não das cabeças da águia, senão dos pés da estátua.
Na estátua de Nabucodonosor, formada das quatro monarquias ou impérios, que
sucessivamente haviam de florescer no Mundo, a cabeça de ouro significava o império
dos assírios; o peito de prata, o império dos persas; o ventre de bronze, o
império dos gregos; e o resto de ferro até os pés, o império dos romanos. E
porque bastou que tocasse os mesmos pés uma pedra arrancada do monte sem mãos,
para que caísse toda a estátua, e o mesmo império romano, e as outras
monarquias, que nele por sucessão se continuavam, ficassem convertidas em pó?—
Porque naqueles dois pés, divididos entre si, e cada pé dividido em cinco
dedos, e cada dedo dividido em ferro e barro, teve o seu último complemento a
divisão do império romano. E assim como nas duas cabeças da águia, em que
começou a divisão do mesmo império, começou a sua declinação; assim na divisão
dos dois pés da estátua, em que teve o último complemento a sua divisão, teve também
o último fim a sua ruína. De sorte (reduzindo a conclusão aos termos da nossa
metáfora) que a roda da Fortuna do império romano, na divisão das duas cabeças
da águia, começou a voltar, e na divisão dos dois pés da estátua, acabou a
volta. Agora havemos de ouvir a Plutarco, o famoso filósofo grego, que não é
dos que convenceu Santa Catarina, porque floresceu muito antes; mas eu o quero
convencer a ele, digno de se ouvir neste caso. Excitando Plutarco e disputando
uma questão sobre a fortuna do império romano, diz assim: Fortuna persis et aissyriis desertis, cum leviter pervolasset
Macedoniam et celeriter abjecisset Alexandrum. ægyptiosque, deinde et Syriam
peragrando regna extulisset et sæpe conversa carthaginenses tulissett, postquam
transmisso Tiberi ad palatium appropinquavit, alas deposuit, talaria exuit, ac
infideli et versatili globo misso, Romam intravit mansura. Quer dizer: A
Fortuna, depois de deixar os persas e assírios, depois de voar levemente pela
Macedônia e rejeitar Alexandre e os que no Egito lhe sucederam, depois de andar
pela Síria levantando e desfazendo reinos, e se deter, já próspera, já adversa,
com os cartagineses, passando finalmente o Tibre, chegou ao capitólio romano, e
ali arrancou dos ombros as asas maiores e descalçou dos pés as menores, ali se
despojou e desarmou do globo, ou roda variável e inconstante, e ali, isto é, em
Roma, fez o seu perpétuo assento, para nela perseverar e morar sempre firme e
sem mudança. Isto é o que disse Plutarco, e isto o que criam os imperadores romanos,
os quais sobre esta fé fundaram de ouro uma estátua da sua Fortuna e a
colocaram no mesmo aposento onde eles dormiam, como que pudessem dormir
seguros, pois a Fortuna lhe guardava o sono; e quando algum imperador morria,
passava e era levada a mesma estátua ao sucessor, mostrando a vaidade e
superstição dos que chegavam a alcançar a coroa romana, que podiam restar da
Fortuna, como de patrimônio hereditário e próprio. Estava isto escrito nos seus
Anais, como oráculo dos deuses; isto celebravam os seus poetas, os bucólicos
com flautas pastoris à sombra das faias ; os heróicos com trombetas marciais em
assombro das outras nações; e assim o cantou com elegante mentira o maior de
todos, quando disse:
Higo ego nec metas rerum, nec tempora pono, Imperium sine fine dedi.
Agora pudera eu perguntar aos
imperadores romanos, ou dormindo ou acordados, onde está aquela sua Fortuna de
ouro, ou o ouro daquela Fortuna? Foi volta da mesma Fortuna, verdadeiramente
lastimosa. Quando Alarico sitiou a Roma, viram-se os romanos tão apertados, que
houveram de remir a dinheiro o levantar-se o sitio, e então entre o ouro e
prata das outras estátuas dos seus deuses, foi também batido em moeda o ouro da
sua Fortuna. Assim dormiam seguros os que se fiavam da fé de uma traidora e da
vigilância de uma cega.
Mas eu só quero confundir e
envergonhar a Plutarco com as palavras da sua mesma lisonja. Diz que depôs a
Fortuna ao pé do capitólio a roda. E quantas vezes a tornou a tomar e lhe deu
tais voltas na Itália e dentro da mesma Roma, que meteu a que era cabeça do
Mundo debaixo dos pés de Atila e Totila, inundada de godos e hunos, de suevos e
alanos, e de tantos outros bárbaros? Diz do mesmo modo, que também depôs ali a
Fortuna as asas. E quantas vezes as tornou a tomar e voou às Germanias, às
Gálias e às Espanhas, que Roma imaginava pacificamente sujeitas com os
presídios das suas legiões, contra as quais, porém, se levantaram então aquelas
mesmas nações, como tão altivas e belicosas, não só restituindo-se cada uma ao
que era seu, mas cortando às águias romanas as unhas com que lho tinham
roubado? Diz mais, que em Roma fez a Fortuna o seu assento, para nela morar
perpetuamente. E se no interior da mesma Roma recorrermos às cousas de maior
duração, quais são os mármores; quantos anos, e quantos séculos há, que dos
mesmos mármores levantados em obeliscos e arcos triunfais, se vêem só as
miseráveis ruínas, ou meio sepultadas já ou cobertas de hera? Finalmente,
aquele império sem fim, a que a fortuna não pôs metas ou limites alguns, nem à
grandeza, nem ao tempo, diga-nos a mesma Fortuna onde está, e onde o tem
escondido? Busque-se em todo o Mundo o império romano, e não se achará dele
mais que o nome, e este não em Roma, senão muito longe dela.
Acabaram-se as guerras e vitórias
romanas, não só fechados, mas quebrados para sempre os ferrolhos das portas de
Jano; acabaram-se os capitólios; acabaram-se os consulados; acabaram-se as
ditaduras; acabaram-se para os generais as ovações e os triunfos; acabaram-se
para os capitães famosos as estátuas e inscrições; acabaram-se para os soldados
as coroas cívicas, murais e rostratas; acabaram-se enfim com o império os
mesmos imperadores, e só vivem e reinam, ao revés da roda da Fortuna, os que
eles quiseram acabar. Acabou Nero; e vivem e reinam Pedro e Paulo; acabou
Trajano, e vive e reina Clemente; acabou Marco Aurélio, e vive e reina
Policarpo; acabou Vespasiano, e vive e reina Apolinar; acabou Valeriano, e vive
e reina Lourenço; acabou enfim Maximino, e vive e reina Catarina; ele, e os
outros imperadores, porque se fiaram falsamente do império sem fim: Imperium sine fine dedi; e ela com os
seus e com os outros mártires, porque reinam e hão de reinar por toda a
eternidade com Cristo, no Reino que verdadeiramente não há de ter fim: Cujus regni non erit finis.
CAPÍTULO XI
Bem acabava aqui o sermão, se nos
não faltara uma circunstância tão essencial de todo o assunto, como é a ação de
graças. Não posso deixar de dizer sobre este ponto uma palavra, e será só uma,
para emenda da brevidade mal observada, que prometi ao princípio. Mas qual
parte ou qual pessoa da nossa história nos dará este documento? Para maior0
exemplo do agradecimento e maior horror da ingratidão, não quero que seja Santa
Catarina, nem os filósofos ou soldados convertidos, não a mesma imperatriz,
senão de quem menos se podia esperar—o imperador Maximino. Já vimos como o
primeiro motivo desta gloriosa tragédia foi o bando e edito de Maximino, em
que, sob pena da vida, mandou que todos os súditos do seu império, pelos
benefícios com que os deuses o tinham favorecido e prosperado, lhes viessem dar
graças e oferecer sacrifícios. E que diremos de tal edito? Em quanto ímpio,
cruel e sacrílego, foi de tirano, gentio, bárbaro e idólatra; mas em quanto
reconhecido a uma mão superior e divina, de quem confessava haver recebido os
benefícios, foi de homem racional, prudente e religioso, posto que enganado.
E seria bem que na ocasião da
vitória presente se contentasse a nossa fé com as demonstrações e aplausos
exteriores, sem dar muito de coração as devidas graças aquela Soberana
Majestade, que, sendo Senhor de todas as cousas, tomou por nome particular o de
Senhor dos Exércitos: Dominus exercituum?
Oh quanto importa em semelhantes casos o sermos agradecidos a Deus, e quanto se
pode arriscar, se lhe formos ingratos! Quando os filhos de Israel, da outra
parte do Mar Vermelho, nos despojos do exército de Faraó, que o mesmo mar
lançava a ribeira, reconheceram a sua vitória e a segurança da sua liberdade; o
que fez Moisés com todos os homens e Maria, irmã do mesmo Moisés, com todas as
mulheres, foi, repartidos em dois coros, cantar publicamente a Deus os louvores
de tamanha vitória, e dar-lhe as devidas graças e glórias, como único autor
dela. Ditosos eles, se assim perseveraram agradecidos! Mas indignos e inimigos
da sua própria felicidade (porque pouco depois trocaram o verdadeiro
agradecimento na mais ímpia, mais bárbara, e mais cega ingratidão), do mesmo
ouro de que tinham despojado o Egito, fundiram o ídolo fatal do bezerro, e
esquecidos do que, pouco antes tinham visto e confessado, com novas festas e
músicas roubaram outra vez a Deus as graças e louvores que lhe tinham dado,
atrevendo-se a dizer e apregoar sem nenhum pejo: Hi sunt dii tui, qui te eduxerunt de terra Ægypti (Exod.
XXXII—4):—Estes são os deuses que te deram a vitória e te libertaram do poder
dos egípcios. E quantos hoje em Portugal (para que nos espantemos mais de nós)
estão dando as graças desta vitória cada um ao seu ídolo? Uns à sua ciência
militar, outros à sua disposição, outros ao seu conselho, outros aos seu valor,
outros aos seus socorros, e confirmando todos isto com certidões, que, ainda
que por uma parte não sejam falsas, por outra são blasfemas, pois é verdadeira
blasfêmia tirar a Deus o que é de Deus. Dizia Jó que pelas mercês recebidas de
Deus não se beijava a mão a si mesmo: Si
osculatus sum manum meam (Job, XXXI—27). E quem beija as suas mãos, posto
que tivessem muita parte na vitória, saiba que as suas mãos assim beijadas
perdem, quando menos, o fruto dela, como o perderam os filhos de Israel.
Depois daquela vitória podiam
chegar em poucos dias à Terra da Promissão, e porque a não atribuíram a Deus,
cuja era, de seiscentos mil que saíram do Egito, só dois, que foram Josué e
Calebe, conseguiram o fim da jornada; e todos os outros em espaço de quarenta
anos ficaram sepultados no deserto. Se formos agradecidos a Deus, por esta
vitória nos dará outras vitórias, e por esta graça outras graças: Gratiam pro gratia. E se pelo contrário
formos ingratos, não só perderemos a mercê recebida, mas ela, como diz S.
Bernardo, nos perderá a nós: Studete
potius gloriam vestram referre ad illum, a quo est, si non vultis eam perdere,
aut certe perdi ab ea .
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão de Santa Catarina Virgem e Mártir"
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão de Santa Catarina Virgem e Mártir"
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