SERMÃO DO ESPÍRITO SANTO
Ille vos docebil omnia, quaecumque dixero vobis.
CAPÍTULO I
A sexta vez é hoje, que no ano
presente e nos dois passados me ouvis pregar este mesmo mistério. Mas não será
esta somente a sexta vez em que vós e eu experimentamos o pouco fruto com que
esta terra responde ao que se devera esperar de tão continuada cultura. Se a
doutrina que se semeia nela fora nossa, achada estava a causa na fraqueza de
nossas razões, no desalento de nossos afetos e na eficácia mal viva de nossas palavras;
mas não é assim: Sermonem quem audistis
non est meus, sed ejus qui misit me, Patris (Jo. 14, 24): O sermão que
ouvistes não é meu, senão do Eterno Padre que me mandou ao mundo — diz Cristo
neste Evangelho — e o mesmo podem dizer todos os pregadores, ao menos os que
ouvis deste lugar. Os sermões, as verdades, a doutrina que pregamos não é
nossa, é de Cristo. Eles a disse, os evangelistas a escreveram, nós a
repetimos. Pois, se estas repetições são tantas e tão continuadas, e a doutrina
que pregamos não é nossa, senão de Cristo, como fazem tão poucos progressos
nela, e como aprendem tão pouco os que a ouvem? Nas palavras que propus temos a
verdadeira resposta desta tão nova admiração.
Ille vos docebit omnia quaecumque dixero vobis: O Espírito Santo —
diz Cristo — vos ensinará tudo o que eu vos tenho dito. — Notai a diferença dos
termos, e vereis quanto vai de dizer a ensinar. Não diz Cristo: o Espírito
Santo vos dirá o que eu vos tenho dito; nem diz: o Espírito Santo vos ensinará
o que eu vos tenho ensinado; mas diz: O Espírito Santo vos ensinará o que eu
vos tenho dito, porque o pregador, ainda que seja Cristo, diz: o que ensina é o
Espírito Santo. Cristo diz: Quaecumque
dixero vobis; o Espírito Santo ensina: Ille
vos docebit omnia. O mestre na cadeira diz para todos, mas não ensina a
todos. Diz para todos, porque todos ouvem; mas não ensina a todos, porque uns
aprendem, outros não. E qual é a razão desta diversidade, se o mestre é o mesmo
e a doutrina a mesma? Porque, para aprender, não basta só ouvir por fora: é
necessário entender por dentro. Se a luz de dentro é muita, aprende-se muito;
se pouca, pouco; se nenhuma, nada. O mesmo nos acontece a nós. Dizemos, mas não
ensinamos, porque dizemos por fora; só o Espírito Santo ensina, porque alumia
por dentro: Ministeria forinsecus
adjutoria sunt, cathedram in caelo habet, quia corda docet, diz Santo
Agostinho. Por isso até o mesmo Cristo, pregando tanto, converteu tão pouco. Se
o Espírito Santo não alumia por dentro, todo o dizer, por mais divino que seja,
é dizer: Quaecumque dixero vobis; mas
se as vozes exteriores são assistidas dos raios interiores da sua luz, logo
qualquer que seja o dizer, e de quem quer que seja, é ensinar, porque só o
Espírito Santo é o que ensina: Ille vos
docebit.
Por que vos parece que apareceu o
Espírito Santo hoje sobre os apóstolos, não só em línguas, mas em línguas de
fogo? Porque as línguas falam, o fogo alumia. Para converter almas, não bastam
só palavras: são necessárias palavras e luz. Se quando o pregador fala por fora,
o Espírito Santo alumia por dentro, se quando as nossas vozes vão aos ouvidos,
os raios da sua luz entram ao coração, logo se converte o mundo. Assim sucedeu
em Jerusalém neste mesmo dia. Sai S. Pedro do cenáculo de Jerusalém, assistido
deste fogo divino, toma um passo do profeta Joel, declara-o ao povo, e, sendo o
povo a que pregava aquele mesmo povo obstinado e cego, que poucos dias antes
tinha crucificado a Cristo, foram três mil os que naquela pregação o
confessaram por verdadeiro Filho de Deus e se converteram à fé. Oh! admirável
eficácia da luz do Espírito Santo! Oh! notável confusão vossa e minha! Um
pescador, com uma só pregação e com um só passo da Escritura, no dia de hoje
converte três mil infiéis, e eu, no mesmo dia, com cinco e com seis pregações,
com tantas Escrituras, com tantos argumentos, com tantas razões, com tantas
evidências, não posso persuadir um cristão. Mas a causa é porque eu falo e o
Espírito Santo, por falta de disposição nossa, não alumia. Divino Espírito, não
seja a minha indignidade a que impida a estas almas, por amor das quais
descestes do céu à terra, o fruto de vossa santíssima vinda: Veni Sancte Spiritus, et emitte caelitus
lucis tuae radium: Vinde, Senhor, e mandai-nos do céu um raio eficaz de
vossa luz — não pelos nossos merecimentos, que conhecemos quão indignos são,
mas pela infinita bondade vossa, e pela intercessão de vossa esposa santíssima.
Ave Maria.
CAPÍTULO II
Ille vos docebit omnia. Diz Cristo aos apóstolos que o Espírito
Santo os ensinará. E ser Cristo, ser o Filho de Deus o que diz estas palavras,
faz segunda dificuldade à inteligência e razão delas. Ao Filho de Deus, que é a
segunda Pessoa da Santíssima Trindade, atribui-se a sabedoria; ao Espírito
Santo, que é a terceira Pessoa, o amor; e suposto isto parece que a Pessoa do
Espírito Santo havia de encomendar o ofício de ensinar à Pessoa do Filho, e não
o Filho ao Espírito Santo. Que o amor encomende o ensinar à sabedoria, bem
está; mas a sabedoria encomendar o ensinar ao amor: Ille vos docebit? Neste caso sim. Porque para ensinar homens
infiéis e bárbaros, ainda que é muito necessária a sabedoria, é muito mais
necessário o amor. Para ensinar, sempre é necessário amar e saber, porque quem
não ama não quer, e quem não sabe não pode; mas esta necessidade de sabedoria e
amor não é sempre com a mesma igualdade. Para ensinar nações fiéis e políticas,
é necessário maior sabedoria que amor; para ensinar nações bárbaras e incultas,
é necessário maior amor que sabedoria. A segunda Pessoa, o Filho, e a terceira,
o Espírito Santo, ambas vieram ao mundo a ensinar e salvar almas; mas a missão
do Filho foi a uma nação fiel e política, e a missão do Espírito Santo foi
principalmente a todas as nações incultas e bárbaras. A missão do Filho foi só
a uma nação fiel e política, porque foi só aos filhos de Israel, como o mesmo
Senhor disse: Non sum missus nisi ad oves
quae perierunt domus Israel. A missão do Espírito Santo foi principalmente
às nações incultas e bárbaras, porque foi para todas as nações do mundo, que
por isso desceu e apareceu em tanta diversidade de línguas: Apparuerunt dispertitae linguae. E como
a primeira missão era para uma nação política, e a segunda para todas as nações
bárbaras, por isso foi muito conveniente que à primeira viesse uma Pessoa
divina, a quem se atribui, não o amor, senão a sabedoria, e que à segunda
viesse outra pessoa, também divina, a quem se atribui, não a sabedoria, senão o
amor. Para ensinar homens entendidos e políticos, pouco amor é necessário:
basta muita sabedoria; mas para ensinar homens bárbaros e incultos, ainda que
baste pouca sabedoria, é necessário muito amor.
Desceu hoje o Espírito Santo em
línguas, para formar aos apóstolos mestres e pregadores, mas mestres e
pregadores de quem? O mesmo Cristo que os mandou pregar o disse: Euntes in mundum universum, praedicate
Evangelium omni creaturae (Mc. 16,15): Ide por todo o mundo, e pregai a
toda a criatura. — A toda a criatura, Senhor? — É reparo de S. Gregório papa. —
Bem sei eu que são criaturas os homens, mas os brutos animais, as árvores e as
pedras também são criaturas. Pois, se os apóstolos hão de pregar a todas as
criaturas, hão de pregar também aos brutos? Hão de pregar também aos troncos?
Hão de pregar também às pedras? Também, diz Cristo: Omni creaturae; não porque houvessem os apóstolos de pregar às
pedras, e aos troncos, e aos brutos, mas porque haviam de pregar a todas as
nações e línguas bárbaras e incultas do mundo, entre as quais haviam de achar
homens tão irracionais como os brutos, e tão insensíveis como os troncos, e tão
duros e estúpidos como as pedras. E para um apóstolo se pôr a ensinar e
abrandar uma pedra, para se pôr a ensinar e moldar um tronco, para se pôr a
ensinar e meter em juízo um bruto, vede se é necessário muito amor de Deus. Em
um deles o veremos.
Poucos dias antes de Cristo
mandar aos apóstolos a pregar pelo mundo, fez esta pergunta a S. Pedro: Simon Joannis, diligis me plus his (Jo.
21,15)? Pedro, amas-me mais que todos estes? Respondeu o santo: Etiam, Domine, tu scis quia amo te:
Senhor, bem sabeis vós que vos amo. Ouvida a resposta, torna Cristo a fazer
segunda vez a mesma pergunta: Simon Joannis,
diligis me plus his? Pedro, amas-me mais que todos estes? Respondeu S.
Pedro, com a mesma submissão e encolhimento, que bem sabia o Senhor, que o
amava: Tu scis quia amo te. Ouvida a mesma resposta segunda vez, torna Cristo
terceira vez a repetir a mesma pergunta, e diz o texto que se entristeceu São
Pedro: Contristatus est Petrus, quia
dixit ei tertio, amas me? Entristeceu-se Pedro, porque Cristo lhe perguntou
a terceira vez se o amava. — E verdadeiramente que a matéria e a instância era
muito para dar cuidado. Quando eu li estas palavras a primeira vez, pareceu-me
que seria este exame de amor tão repetido, para Cristo mandar a S. Pedro que
fosse a Jerusalém, que entrasse pelo palácio de Caifás, e que, no mesmo lugar
onde o tinha negado, se desdissesse publicamente, e confessasse a vozes que seu
Mestre era o verdadeiro Messias e Filho de Deus verdadeiro, e, que se por isso
o quisessem matar e queimar, que se deixasse tirar a vida e fazer em cinza.
Para isto cuidava eu que eram estas perguntas e estes exames tão repetidos do
amor de S. Pedro. Mas depois que o santo respondeu na mesma forma a terceira
vez, que amava, o que o Senhor lhe disse foi: Pasce oves meas (Jo. 21,17): Pois, Pedro, já que me amas tanto,
mostra-o em apascentar as minhas ovelhas. -Agora me admiro eu deveras. Pois,
para apascentar as ovelhas de Cristo tanto aparato de exames de amor de Deus?
Uma vez, se me amas, e outra vez, se me amas, e terceira vez, se me amas? E não
só, se me amas, senão, se me amas mais que todos? Sim. Ora vede.
As ovelhas que S. Pedro havia de
apascentar, eram as nações de todo o mundo, as quais Cristo queria trazer e
ajuntar de todo ele, e fazer de todas um só rebanho, que é a Igreja, debaixo de
um só pastor, que é S. Pedro: Et alias
oves habeo, quae non sunt ex hoc ovili, et illas opportet me adducere, et vocem
meam audient, et fiet unum ovile et unus pastor. De maneira que o rebanho
que Cristo encomendou a S. Pedro não era rebanho feito, senão que se havia de
fazer, e as ovelhas não eram ovelhas mansas, senão que se haviam de amansar:
eram lobos, eram ursos, eram tigres, eram leões, eram serpentes, eram dragões,
eram áspides, eram basiliscos, que por meio da pregação se haviam de converter
em ovelhas. Eram nações bárbaras e incultas, eram nações feras e indômitas,
eram nações cruéis e carniceiras, eram nações sem humanidade, sem-razão, e
muitas delas sem lei, que por meio da fé e do Batismo se haviam de fazer
cristãs; e para apascentar e amansar semelhante gado, para doutrinar e cultivar
semelhantes gentes, é necessário muito cabedal de amor de Deus, é necessário
amar a Deus: Diligis me, e mais amar
a Deus: Diligis me, e mais amar a
Deus: Diligis me, e não só amar a Deus
uma, duas e três vezes, senão amá-lo mais que todos: Diligis me plus his?
Quando as ovelhas que Cristo
encomendava a S. Pedro foram mansas e domésticas, ainda era necessário muito
amor para suportar o trabalho de as guardar. Exemplo seja Jacó, pastor de Labão
e amante de Raquel, de quem diz a Escritura que sofria tão levemente o que
sofria, porque amava tão grandemente como amava: Prae amoris magnitudine (Gên. 29,20). E se, para guardar ovelhas
mansas, é necessário amor, e muito amor, que será para ir tirar das brenhas
ovelhas feras, para as amansar e afeiçoar aos novos pastos, para as acostumar à
voz do pastor e à obediência do cajado, e sobretudo para desprezar os perigos
de se confiar de suas garras e dentes, enquanto são ainda feras, e não ovelhas.
Se é necessário amor para ser pastor de ovelhas que comem no prado e bebem no
rio, que amor será necessário para ser pastor de ovelhas, que talvez comem os
pastores e lhes bebem o sangue? Por isso Cristo examina três vezes de amor a S.
Pedro, por isso o Espírito Santo, Deus de amor, vem hoje a formar estes
pastores e estes mestres, e por isso o Mestre divino passa hoje os seus
discípulos da Escola da Sabedoria para a Escola do Amor: Ille vos docebit.
CAPÍTULO III
Aplicando agora esta doutrina
universal ao particular da terra em que vivemos, digo que, se em outras terras
é necessário aos apóstolos, ou aos sucessores do seu ministério, muito cabedal
de amor de Deus para ensinar, nesta terra, e nestas terras é ainda necessário
muito mais amor de Deus que em nenhuma outra. E por quê? Por dois princípios: o
primeiro, pela qualidade das gentes; o segundo, pela dificuldade das línguas.
Primeiramente, pela qualidade da
gente, porque a gente destas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais
inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no
mundo. Bastava por prova a da experiência, mas temos também — quem tal cuidara!
— a do Evangelho. A forma com que Cristo mandou pelo mundo a seus discípulos,
diz o evangelista S. Marcos que foi esta: Exprobavit
incredulitatem eorum, et duritiam cordis, quia iis, qui viderant eum
resurrexisse, non crediderunt, et dixit illis: Euntes in mundum universum
praedicate Evangelium omni creaturae (Mc. 16,14 s): Repreendeu Cristo aos
discípulos da incredulidade e dureza de coração, com que não tinham dado
crédito aos que o viram ressuscitado, e sobre esta repreensão os mandou que
fossem pregar por todo o mundo. — A S. Pedro coube-lhe Roma e Itália; a S.
João, a Ásia Menor; a São Tiago, Espanha; a S. Mateus, Etiópia; a S. Simão,
Mesopotâmia; a S. Judas Tadeu, o Egito; aos outros, outras províncias, e
finalmente a Santo Tomé esta parte da América em que estamos, a que vulgar e
indignamente chamaram Brasil. Agora pergunto eu: e por que nesta repartição
coube o Brasil a Santo Tomé e não a outro apóstolo? Ouvi a razão.
Notam alguns autores modernos que
notificou Cristo aos apóstolos a pregação da fé pelo mundo, depois de os
repreender da culpa da incredulidade, para que os trabalhos que haviam de
padecer na pregação da fé fossem também em satisfação e como em penitência da
mesma incredulidade e dureza de coração que tiveram em não quererem crer: Exprobavit incredulitatem eorum, et duritiam
cordis, et dixit illis: Euntes in mundum universum. E como Santo Tomé,
entre todos os apóstolos, foi o mais culpado da incredulidade, por isso a Santo
Tomé lhe coube, na repartição do mundo, a missão do Brasil, porque, onde fora
maior a culpa, era justo que fosse mais pesada a penitência. Como se dissera o
Senhor: os outros apóstolos, que foram menos culpados na incredulidade, vão
pregar aos gregos, vão pregar aos romanos, vão pregar aos etíopes, aos árabes,
aos armênios, aos sarmatas, aos citas; mas Tomé, que teve a maior culpa, vá
pregar aos gentios do Brasil, e pague a dureza de sua incredulidade com ensinar
à gente mais bárbara e mais dura. Bem o mostrou o efeito. Quando os portugueses
descobriram o Brasil, acharam as pegadas de Santo Tomé estampadas em uma pedra,
que hoje se vê nas praias da Bahia; mas rasto, nem memória da fé que pregou
Santo Tomé, nenhum acharam nos homens. Não se podia melhor provar e encarecer a
barbaria da gente. Nas pedras, acharam-se rastos do pregador, na gente não se
achou rasto da pregação; as pedras conservaram memórias do apóstolo, os
corações não conservaram memória da doutrina.
A causa por que as não
conservaram, diremos logo, mas é necessário satisfazer primeiro a uma grande
dúvida, que contra o que imos dizendo se oferece. Não há gentios no mundo que
menos repugnem à doutrina da fé, e mais facilmente a aceitem e recebam, que os
brasis; como dizemos logo, que foi pena da incredulidade de Santo Tomé o vir
pregar a esta gente? Assim foi — e quando menos, assim pode ser — e não porque
os brasis não creiam com muita facilidade, mas porque essa mesma facilidade com
que crêem faz que o seu crer, em certo modo, seja como o não crer. Outros
gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são
incrédulos. Em outros gentios a incredulidade é incredulidade, e a fé é fé; nos
brasis a mesma fé ou é, ou parece incredulidade. São os brasis como o pai
daquele lunático do Evangelho, que padecia na fé os mesmos acidentes que o
filho no juízo. Disse-lhe Cristo: Omnia
possibilia sunt credenti (Mc. 9,22): Que tudo é possível a quem crê. — E
eles respondeu: Credo, Domine, adjuva
incredulitatem meam: Creio, Senhor, ajudai minha incredulidade.
— Reparam muito os santos nos
termos desta proposição, e verdadeiramente é muito para reparar. Quem diz:
creio, crê e tem fé; quem diz: ajudai minha incredulidade, não crê e não tem
fé. Pois como era isto? Cria este homem, e não cria; tinha fé, e não tinha fé
juntamente? Sim, diz o Venerável Beda: Uno
eodemque tempore his, qui nondum perfecte crediderat, simul et credebat, et
incredulus erat: No mesmo tempo cria e não cria este homem, porque era tão
imperfeita a fé com que cria, que por uma parte parecia e era fé, e por outra
parecia e era incredulidade: Uno eodemque
tempore, et credebat, et incredulus erat. Tal é a fé dos brasis: é fé que
parece incredulidade, e é incredulidade que parece fé; é fé, porque crêem sem
dúvida e confessam sem repugnância tudo o que lhes ensinam, e parece
incredulidade, porque, com a mesma facilidade com que aprenderam, desaprendem,
e com a mesma facilidade, com que creram, descrêem.
Assim lhe aconteceu a Santo Tomé
com ele. Por que vos parece que passou Santo Tomé tãobrevemente pelo Brasil,
sendo uma região tão dilatada e umas terras tão vastas? É que receberam os
naturais a fé que o santo lhes pregou com tanta facilidade e tão sem resistência
nem impedimento, que não foi necessário gastar mais tempo com ele. Mas tanto
que o santo apóstolo pôs os pés no mar —que este, dizem, foi o caminho por onde
passou à Índia — tanto que o santo apóstolo — digamo-lo assim — virou as
costas, no mesmo ponto se esqueceram os brasis de tudo quanto lhes tinha
ensinado, e começaram a descrer ou a não fazer caso de quanto tinham crido, que
é gênero de incredulidade mais irracional, que se nunca creram. Pelo contrário,
na Índia pregou Santo Tomé àquelas gentilidades, como fizera às do Brasil:
chegaram também lá os portugueses dali a mil e quinhentos anos, e que acharam?
Não só acharam a sepultura e as relíquias do santo apóstolo, e os instrumentos
de seu martírio, mas o seu nome vivo na memória dos naturais, e o que é mais, a
fé de Cristo, que lhes pregara, chamando-se cristãos de Santo Tomé todos os que
se estendem pela grande costa de Coromandel, onde o santo está sepultado.
E qual seria a razão por que nas
gentilidades da Índia se conservou a fé de Santo Tomé, e nas do Brasil não? Se
as do Brasil ficaram desassistidas do santo apóstolo pela sua ausência, as da
Índia também ficaram desassistidas dele pela sua morte. Pois, se naquelas
nações se conservou a fé por tantos centos de anos, nestas por que se não
conservou? Porque esta é a diferença que há de umas nações a outras. Nas da
Índia, muitas são capazes de conservarem a fé sem assistência dos pregadores;
mas nas do Brasil nenhuma há que tenha esta capacidade. Esta é uma das maiores
dificuldades que tem aqui a conversão. Há-se de estar sempre ensinando o que já
está aprendido, e há-se de estar sempre plantando o que já está nascido, sob
pena de se perder o trabalho e mais o fruto. A estrela que apareceu no Oriente
aos Magos guiou-os até o presépio, e não apareceu mais. Por quê? Porque muitos
gentios do Oriente, e doutras partes do mundo, são capazes de que os
pregadores, depois de lhes mostrarem a Cristo, se apartem dele e os deixem.
Assim o fez S. Filipe ao eunuco da rainha Candace, de Etiópia: explicou-lhe a
Escritura de Isaías, deu-lhe notícia da fé e divindade de Cristo, batizou-o no
rio de Gaza, por onde passavam, e tanto que esteve batizado, diz o texto que
arrebatou um anjo a S. Filipe, e que o não viu mais o eunuco: Cum autem ascendissent de aqua, Spiritus Domini
rapuit Philippum, et amplius non vidit eum eunuchus (At. 8, 39).
Desapareceu a estrela, e permaneceu a fé nos Magos; desapareceu S. Filipe, e
permaneceu a fé no eunuco; mas esta capacidade, que se acha nos gentios do
Oriente, e ainda nos de Etiópia, não se acha nos do Brasil. A estrela que os
alumiar não há de desaparecer, sob pena de se apagar a luz da doutrina; o
apóstolo que os batizar, não se há de ausentar, sob pena de se perder o fruto
do Batismo. É necessário, nesta vinha, que esteja sempre a cana da doutrina
arrimada ao pé da cepa, e atada à vide, para que se logre o fruto e o trabalho.
Os que andastes pelo mundo, e
entrastes em casas de prazer de príncipes, veríeis naqueles quadros e naquelas
ruas dos jardins dois gêneros de estátuas muito diferentes, umas de mármore,
outras de murta. A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e
resistência da matéria; mas, depois de feita uma vez, não é necessário que lhe
ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta
é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é
necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se
deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo que lhe atravessa os
olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem dois que de cinco dedos lhe
fazem sete, e o que pouco antes era homem, já é uma confusão verde de murtas.
Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé. Há
umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente
recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas,
duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam,
argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma vez
rendidos, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como
estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras
nações, pelo contrário — e estas são as do Brasil —, que recebem tudo o que
lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar,
sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e
a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga
enatural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a
estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos,
para que creiam o que não vêem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as
orelhas, para que não dêem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez,
que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações
e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre
contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas
plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos.
Eis aqui a razão por que digo que
é mais dificultosa de cultivar esta gentilidade, que nenhuma outra do mundo: se
os não assistis, perde-se o trabalho, como o perdeu Santo Tomé; e para se
aproveitar e lograr o trabalho, há de ser com outro trabalho maior, que é
assisti-los; há-se de assistir e insistir sempre com ele, tornando a trabalhar
o já trabalhado e a plantar o já plantado, e a ensinar o já ensinado, não
levantando jamais a mão da obra, porque sempre está por obrar, ainda depois de
obrada. Hão-se de haver os pregadores evangélicos na formação desta parte do
mundo, como Deus se houve ou se há na criação e conservação de todo. Criou Deus
todas as criaturas no princípio do mundo em seis dias, e, depois de as criar,
que fez e que faz até hoje? Cristo o disse: Pater
meus usque modo operatur et ego operor: Desde o princípio do mundo até hoje
não levantou Deus mão da obra, nem por um só instante; e com a mesma ação com
que criou o mundo, o esteve sempre, e está, e estará conservando até o fim
deles. E se Deus o não fizer assim, se desistir, se abrir mão da obra por um só
momento, no mesmo momento perecerá o mundo, e se perderá tudo o que em tantos
anos se tem obrado. Tal é no espiritual a condição desta nova parte do mundo, e
tal o empenho dos que têm à sua conta a conversão e reformação dela. Para
criar, basta que trabalhem poucos dias; mas para conservar, é necessário que
assistam, e continuem, e trabalhem, não só muitos dias e muitos anos, mas
sempre. E já pode ser que esse fosse o mistério com que Cristo disse aos
apóstolos: Praedicate omni creaturae
(MC. 16,15). Não disse: Ide pregar aos que remi, senão: Ide pregar aos que
criei, porque o remir foi obra de um dia, o criar é obra de todos os dias.
Cristo remiu uma só vez, e não está sempre remindo; Deus criou uma vez, e está
sempre criando. Assim se há de fazer nestas nações: há-se-lhes de aplicar o
preço da Redenção, mas não pelo modo com que foram remidas, senão pelo modo com
que foram criadas. Assim como Deus está sempre criando o criado, assim os
mestres e pregadores hão de estar sempre ensinando o ensinado, e convertendo o
convertido, e fazendo o feito: o feito para que se não desfaça; o convertido,
para que se não perverta; o ensinado, para que se não esqueça; e, finalmente,
ajudando a incredulidade não incrédula, para que a fé seja fé não infiel: Credo, Domine: adjuva incredulita
tem meam. E sendo tão forçosamente necessária a assistência com estas
gentes, e no seu clima, e no seu trato, e na sua miséria, e em tantos outros
perigos e desamparos da vida, da saúde, do alívio, e de tudo o que pede ou
sente o natural humano, vede se é necessário muito cabedal de amor divino para
esta empresa, e se com razão entrega Cristo o magistério dela a um Deus, que,
por afeto, e por efeitos, todo é amor: Ille
vos docebit omnia.
CAPÍTULO IV
A segunda circunstância que pede
grande cabedal de amor de Deus é a dificuldade das línguas. Se o Espírito Santo
descera hoje em línguas milagrosas, como antigamente, não tinha tanta dificuldade
o pregar aos gentios; mas haverem-se de aprender essas línguas com estudo e com
trabalho é uma empresa muito dificultosa, e que só um grande amor de Deus a
pode vencer. Apareceu Deus em uma visão ao profeta Ezequiel, e, dando-lhe um
livro, disse-lhe que o comesse, e que fosse pregar aos filhos de Israel tudo o
que nele estava escrito: Comede volumen
istud, et vadens loquere ad filios Israel (Ez. 3,1). Abriu a boca o
profeta, não se atrevendo a tocar no livro por reverência, comeu-o, e diz que
lhe soube bem, e que o achou muito doce: Comedi
illud, et factum est in ore meo sicut mel dulce (Ez 3,3). Se os homens
pudessem comer os livros de um bocado, que facilmente se aprenderiam as
ciências, e se tomaram as línguas? Oh! que fácil modo de aprender! Oh! que doce
modo de estudar! Tal foi o modo com que Deus, em um momento, antigamente
ensinava os profetas, e com que hoje o Espírito Santo, em outro momento,
ensinou os apóstolos, achando-se de repente doutos nas ciências, eruditos nas
Escrituras, prontos nas línguas, que tudo isto se lhes infundiu naquele repente
em que desceu sobre eles o Espírito Santo: Factus
est repente de caelo sonus, tanquam advenientis Spiritus. Mas haver de
comer os livros folha a folha, haver de levar as ciências bocado a bocado, e às
vezes com muito fastio, haver de mastigar as línguas nome por nome, verbo por
verbo, sílaba por sílaba, e ainda letra por letra, por certo que é coisa muito
dura e muito desabrida, e muito para amargar, e que só o muito amor de Deus a
pode fazer doce. Assim o aludiu Deus ao mesmo profeta Ezequiel neste mesmo
lugar, com termos bem particulares e bem notáveis.
Vade ad domum Israel, et loqueris verba mea ad eos, non enim ad populum
profundi sermonis et ignotae linguae tu mitteris, neque ad populos multos profundi
sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones (Ez. 3,4
ss): Ide, Ezequiel, pregai o que vos tenho dito aos filhos de Israel, e, para
que não repugneis a missão, nem vos pareça que vos mando a uma empresa muito
dificultosa, adverti aonde ides e aonde não ides. Adverti que ides pregar a um
povo da vossa própria nação e de vossa própria língua, que o entendeis e vos
entende: Ad domum Israel; e adverti
que não ides pregar a gente de diferente nação e diferente língua, nem menos a
gentes de muitas e diferentes nações, e muitas e diferentes línguas, o que nem
vós as entendais, nem elas vos entendam: Non
enim ad populum profundis sermonis et ignotae linguae tu mitteris, neque ad
populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire
sermones. De sorte — se bem advertis — que distingue Deus no ofício de
pregar três gêneros de empresas: uma fácil, outra dificultosa, outra
dificultosíssima. A fácil é pregar à gente da própria nação e da própria
língua: Vade ad filios Israel; a
dificultosa é pregar a uma gente de diferente língua e diferente nação: Ad populum projundi sermonis et ignotae
linguae; a dificultosíssima é pregar a gentes não de uma só nação e uma só
língua diferente, senão de muitas e diferentes nações, e muitas e diferentes
línguas, desconhecidas, escuras, bárbaras, e que se não podem entender: Ad populos multos profundi sermonis et
ignotae linguae, quorum non possis audire sermones.
À primeira destas três empresas
mandou Deus ao profeta Ezequiel, e a todos os outros profetas antigos, os quais
todos — exceto quando muito Jonas e Jeremias — pregaram a gente da sua nação e
da sua língua. A segunda e a terceira empresa ficou guardada para os apóstolos
e pregadores da lei da graça, e entre eles particularmente para os portugueses,
e entre os portugueses, mais em particular ainda, para os desta conquista, em
que são tantas, tão estranhas, tão bárbaras e tão nunca ouvidas, nem
conhecidas, nem imaginadas as línguas. Manda Portugal missionários ao Japão,
onde há cinqüenta e três reinos, ou sessenta, como outros escrevem; mas a
língua, ainda que desconhecida, é uma só: Ad
populum profundi sermonis et ignotae linguae. Manda Portugal missionários à
China, império vastíssimo, dividido em quinze províncias, capaz cada uma de muitos
reinos; mas a língua, ainda que desconhecida, é também uma: Ad populum profundi sermonis et ignotae
linguae. Manda Portugal missionários ao Mogor, à Pérsia, ao Preste João,
impérios grandes, poderosos, dilatados, e dos maiores do mundo; mas cada um de uma
só língua: Ad populum profundi sermonis
et ignotae linguae. Porém os missionários que Portugal manda ao Maranhão,
posto que não tenha nome de império nem de reino, são verdadeiramente aqueles
que Deus reservou para a terceira, última e dificultosísssima empresa, porque
vem pregar a gentes de tantas, tão diversas e tão incógnitas línguas, que só
uma coisa se sabe delas, que é não terem número: Ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non
possis audire sermones.
Pela muita variedade das línguas,
houve quem chamou ao Rio das Almazonas rio Babel; mas vem-lhe tão curto o nome
de Babel, como o de rio. Vem-lhe curto o nome de rio, porque verdadeiramente é
um mar doce, maior que o Mar Mediterrâneo no comprimento e na boca. O Mar
Mediterrâneo no mais largo da boca tem sete léguas, e o Rio das Almazonas
oitenta; o Mar Mediterrâneo, do Estreito de Gilbraltar até as praias da Síria,
que é a maior longitude, tem mil léguas de comprido, e o Rio das Almazonas, da
cidade de Belém para cima, já se lhe tem contado mais de três mil, e ainda se
lhe não sabe princípio. Por isso os naturais lhe chamam Pará, e os portugueses
Maranhão, que tudo quer dizer mar, e mar grande. E vem-lhe curto também o nome
de Babel, porque na Torre de Babel, como diz S. Jerônimo, houve somente setenta
e duas línguas, e as que se falam no Rio das Almazonas são tantas e tão
diversas, que se lhes não sabe o nome nem o número. As conhecidas até o ano de
639, no descobrimento do Rio de Quito, eram cento e cinqüenta. Depois se descobriram
muitas mais, e a menor parte do rio, de seus imensos braços, e das nações que
os habitam, é o que está descoberto. Tantos são os povos, tantas e tão ocultas
as línguas, e de tão nova e nunca ouvida inteligência: Ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non
possis audire sermones.
Nesta última cláusula do profeta:
Quorum non possis audire sermones, a
palavra ouvir significa entender, porque o que se não entende é como se não se
ouvira. Mas em muitas das nações desta conquista se verifica a mesma palavra no
sentido natural, assim como soa, porque há línguas entre elas de tão escura e
cerrada pronunciação, que verdadeiramente se pode afirmar que se não ouvem: Quorum non possis audire sermones. Por
vezes me aconteceu estar com o ouvido aplicado à boca do bárbaro, e ainda do
intérprete, sem poder distinguir as sílabas, nem perceber as vogais ou
consoantes de que se formavam, equivocando-se a mesma letra com duas e três
semelhantes, ou compondo-se — o que é mais certo — com mistura de todas elas:
umas tão delgadas e sutis, outras tão duras e escabrosas, outras tão interiores
e escuras, e mais afogadas na garganta que pronunciadas na língua; outras tão
curtas e subidas, outras tão estendidas e multiplicadas, que não percebem os
ouvidos mais que a confusão, sendo certo, em todo rigor, que as tais línguas
não se ouvem, pois se não ouve delas mais que o sonido, e não palavras
desarticuladas e humanas, como diz o profeta: Quorum non possis audire sermones.
De José, ou do povo de Israel no Egito,
diz Davi por grande encarecimento de trabalho: Linguam, quam non noverat, audivit: que ouvia a língua que não
entendia. — Se é trabalho ouvir a língua que não entendeis, quanto maior
trabalho será haver de entender a língua que não ouvis? O primeiro trabalho é
ouvi-la; o segundo, percebê-la; o terceiro, reduzi-la a gramática e a
preceitos; o quarto, estudá-la: o quinto — e não o menor, e que obrigou a S.
Jerônimo a limar os dentes — o pronunciá-la. E depois de todos estes trabalhos,
ainda não começastes a trabalhar, porque são disposições somente para o
trabalho. Santo Agostinho intentou aprender a língua grega, e, chegando à
segunda declinação, em que se declina ophis, que quer dizer serpente, não foi
mais por diante, e disse com galantaria: Ophis me terruit: a serpente me meteu
tal medo, que me fez tornar atrás. -Pois se a Santo Agostinho, sendo Santo
Agostinho, se à águia dos entendimentos humanos se lhe fez tão dificultoso
aprender a língua grega, que está tão vulgarizada entre os latinos, e tão facilitada
com mestres, com livros, com artes, com vocabulários, e com todos os outros
instrumentos de aprender, que serão as línguas bárbaras e barbaríssimas de umas
gentes, onde nunca houve quem soubesse ler nem escrever? Que será aprender o
nheengaiba, o juruuna, o tapajó, o teremembé, o mamaiana, que só os nomes
parece que fazem horror?
As letras dos chinas e dos japões
muita dificuldade têm, porque são letras hieroglíficas, como as dos egípcios;
mas, enfim, é aprender língua de gente política, e estudar por letra e por
papel. Mas, haver de arrostar com uma língua bruta, e de brutos, sem livro, sem
mestre, sem guia, e no meio daquela escuridade e dissonância haver de cavar os
primeiros alicerces, e descobrir os primeiros rudimentos dela, distinguir o nome,
o verbo, o advérbio, a proposição, o número, o caso, o tempo, o modo, e modos
nunca vistos nem imaginados, como de homens enfim tão diferentes dos outros nas
línguas, como nos costumes, não há dúvida que é empresa muito árdua a qualquer
entendimento, e muito mais árdua à vontade que não estiver muito sacrificada e
muito unida com Deus. Receber as línguas do céu milagrosamente, em um momento,
como as receberam os apóstolos, foi maior felicidade; mas aprendê-las e
adquiri-las dicção por dicção, e vocábulo por vocábulo, à força de estudo, de
diligência e de continuação, assim como será maior merecimento, é também muito
diferente trabalho, e para um e outro se requer muita graça do Espírito Santo e
grande cabedal de amor de Deus. Maior rigor usa neste caso o amor de Deus com
os pregadores do Evangelho, do que usou a justiça de Deus com os edificadores
da Torre de Babel. Aos que edificavam a Torre de Babel condenou-os a justiça de
Deus a falar diversas línguas, mas não a aprendê-las; aos que pregam a fé entre
as gentilidades, condena-os o amor de Deus, não só a que falem as suas línguas,
senão a que as aprendam, que, se não fora por amor, era muito maior castigo. E
que amor será necessário para um homem, e tantos homens, se condenarem
voluntariamente, não só cada um a uma língua — como os da Torre -mas muitos a
muitas?
Vejo, porém, que me perguntais:
Pois, se a Deus é tão fácil infundir a ciência das línguas em um momento, e se
antigamente deu aos apóstolos o dom das línguas, para que pregassem a fé pelo
mundo, agora, por que não dá o mesmo dom aos pregadores da mesma fé,
principalmente em cristandades ou gentilidades novas, como estas nossas? Esta
dúvida é mui antiga, e já lhe respondeu S. Gregório Papa e Santo Agostinho,
posto que variamente. A razão literal é porque Deus regularmente não faz
milagres sem necessidade: quando faltam as forças humanas, então suprem as
divinas. E como Cristo queria converter o mundo só com doze homens, para
converter um mundo tão grande, tantas cidades, tantos reinos, tantas províncias,
com tão poucos pregadores, era necessário que milagrosamente se lhes
infundissem as línguas de todas as nações, porque não tinham tempo nem lugar
para as aprender; porém, depois que a fé esteve tão estendida e propagada, como
está hoje, e houve muitos ministros que a pudessem pregar, aprendendo as
línguas de cada nação, cessaram
comumente as línguas milagrosas,
porque não foi necessária a continuação do milagre. Vede-o nas línguas do
Espírito Santo.
Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque supra singulos
eorum (At. 2,3): Apareceram sobre os apóstolos muitas línguas de fogo, o
qual se assentou sobre eles. Não sei se reparais na diferença: diz que
apareceram as línguas, e que o fogo se assentou. E por que se não assentaram as
línguas, senão o fogo? Porque as línguas não vieram de assento, o fogo sim. Os
dons que o Espírito Santo trouxe hoje consigo sobre os apóstolos foram
principalmente dois: o dom das línguas e o dom do amor de Deus. O dom das
línguas não se assentou, porque não havia de perseverar: acabou geralmente com
os apóstolos: Apparuerunt dispertitae
linguae. Apareceram as línguas e desapareceram. Porém o dom do fogo, o dom
do amor de Deus, esse se assentou: Sedit
supra singulos eorum, porque veio de assento, e perseverou não só nos
apóstolos, senão em todos os seus sucessores. E assim vimos em todas as idades,
e vemos também hoje tantos varões apostólicos, em que está tão vivo este fogo,
tão fervoroso este espírito, e tão manifesto e tão ardente este amor. Aos
apóstolos deu-lhes Deus línguas de fogo, aos seus sucessores deu-lhes fogo de
línguas. As línguas de fogo acabaram, mas o fogo de línguas não acabou, porque
este fogo, esse Espírito, esse amor de Deus faz aprender, estudar e saber essas
línguas. E quanto a esta ciência das línguas, muito mais à letra se cumpre nos
varões apostólicos de hoje a promessa de Cristo, que nos mesmos apóstolos
antigos, porque Cristo disse: Ille vos
docebit: que o Espírito Santo os ensinaria. E aos apóstolos da Igreja
primitiva não lhes ensinou o Espírito Santo as línguas: deu-lhas e
infundiu-lhas; aos apóstolos de hoje não lhes dá o Espírito Santo as línguas:
vem-lhas infundir e ensinar-lhas: Ille
vos docebit. As primeiras línguas foram dadas com milagre, as segundas são
ensinadas sem milagre; mas eu tenho estas por mais milagrosas, porque menos
maravilha é em Deus podê-las dar sem trabalho, que no homem querê-las aprender
com tanto trabalho: em Deus argúi um poder infinito, que em Deus é natureza; no
homem argúi um amor de Deus excessivo, que é sobre a natureza do homem. Com
razão comete logo Cristo este ofício de ensinar ao Espírito Santo, e passa os
seus discípulos da Escola da Sabedoria para a Escola do Amor: Ille vos docebit.
CAPÍTULO V
Está dito e está provado. Mas que
se tira ou colhe daqui? Parecerá porventura aos ouvintes que esta doutrina é só
para os pregadores da fé, para os religiosos, para os missionários, para os
pastores e ministros da Igreja? Assim será noutras terras: nestas nossas é para
todos. Nas outras terras uns são ministros do Evangelho, e outros não; nas
conquistas de Portugal todos são ministros do Evangelho.Assim o disse Santo
Agostinho pregando na África, que também é uma das nossas conquistas. Explicava
o santo aquela sentença de Cristo: Ubi
sum ego, illic et minister meus erit
(Jo. 12,26), em que o Senhor promete que, onde ele está, estarão também seus
ministros. E convertendo-se o grande doutor para o povo, disse desta maneira: Cum auditis, fratres, Dominum dicentem illic
et minister meus erit, nolite tantummodo bonos episcopos et clericos cogitare;
etiam vos pro modulo vestro ministrate Christo: Quando ouvis os prêmios que
Cristo promete a seus ministros, não cuideis que só os bispos e os clérigos são
ministros seus: também vós, por vosso modo, não só podeis, mas deveis ser
ministros de Cristo. E por que modo será ministro de Cristo um homem leigo, sem
letras, sem ordens e sem grau algum na Igreja? O mesmo santo o vai dizendo:
Bene vivendo: vivendo bem, e dando bom exemplo; Eleemosynas faciendo: fazendo esmolas, e exercitando as outras
obras de caridade; Nomem doctrinamque
ejus, quibus potuerit, praedicando: e pregando o nome de Cristo, e
ensinando a sua fé e doutrina a todos aqueles a quem puder; Unusquisque paterfamilias pro Christo et pro
vita aeterna suos omnes admoneat, doceat, hortetur, corripiat, impendat
benevolentiam, exerceat disciplinam: Cada um dos pais de famílias em sua
casa, por amor de Cristo e por amor da vida eterna, ensine a todos os seus o
que devem saber, encaminhe-os, exorte-os, repreenda-os, castigue-os, tire-os
das más ocasiões, e já com amor, já com rigor, zele, procure e faça diligência
por que vivam conforme a lei de Cristo.
Este tal pai de famílias, que
será? Ouvi, cristãos, para consolação vossa o que conclui Agostinho: Ita in domo sua ecclesiasticum et quodammodo
episcopale implebit officium, ministrans Christo, ut in aeternum sit cum ipso:
Por este modo um pai de famílias, um homem leigo fará em sua casa não só ofício
eclesiástico, mas ofício episcopal, e não só será qualquer ministro de Cristo,
senão o maior de
todos os ministros, quais são os
bispos, servindo e ministrando nesta vida a Cristo, para reinar eternamente com
eles: Ministrans Christo, ut in aeternum
sit cum ipso. Isto dizia Santo Agostinho aos seus povos da África, e o
pudera dizer com muito maior razão aos nossos da América.
Oh! se o divino Espírito, que
hoje desceu sobre os apóstolos, descera eficazmente com um raio de sua divina
luz sobre todos os moradores deste Estado, para que dentro e fora de suas casas
acudiram às obrigações que devem à fé que professam, como é certo que ficariam
todos neste dia não só verdadeiros ministros mas apóstolos de Cristo? Que coisa
é ser apóstolo? Ser apóstolo nenhuma outra coisa é senão ensinar a fé e trazer
almas a Cristo; e nesta conquista ninguém há que o não possa, e, ainda, que o
não deva fazer. Primeiramente nesta missão do Rio das Almazonas, que amanhã
parte — e que Deus seja servido levar e trazer tão carregada de despojos do
céu, como esperamos, e com tanto remédio para a terra, como se deseja — que
português vai de escolta, que não vá fazendo ofício de apóstolo? Não só são
apóstolos os missionários, senão também os soldados e capitães, porque todos
vão buscar gentio e trazê-los ao lume da fé e ao grêmio da Igreja. A Igreja
formou-se do lado de Cristo, seu esposo, como Eva se formou do lado de Adão. E
formou-se quando do lado de Cristo na cruz saiu sangue e água: Exivit sanguis et aqua (Jo. 19, 34).O
sangue significava o preço da Redenção, e a água, a água do Batismo. E saiu o
sangue junto com a água, porque a virtude que tem a água é recebida do sangue.
Mas, pergunto agora, este lado de Cristo, donde se saiu e se formou a Igreja,
quem o abriu? Abriu-o um soldado com uma lança, diz o texto: Unus militum lancea latus ejus aperuit
(ibid). Pois também os soldados concorrem para a formação da Igreja? Sim,
porque muitas vezes é necessário que os soldados com suas armas abram e
franqueiem a porta, para que por essa porta aberta e franqueada se comunique o
sangue da Redenção e a água do Batismo: Et
continuo exivit sanguis et aqua. E quando a fé se prega debaixo das armas e
à sombra delas, tão apóstolos são os que pregam como os que defendem, porque
uns e outros cooperam à salvação das almas.
E se eu agora dissesse que nesta
conquista, assim como os homens fazem ofício de apóstolos na campanha, assim o
podem fazer as mulheres em suas casas? Diria o que já disseram grandes autores:
eles na campanha trazendo almas para a Igreja, fazem ofício de apóstolos; e
elas em suas casas, doutrinando seus escravos e escravas, fazem ofícios de
apóstolas. Não é o nome nem a gramática minha; é do doutíssimo Salmeirão, o
qual chamou às Marias: Apostolorum apostolas: Apóstolas dos apóstolos. E
por quê? Porque lhes anunciaram o mistério da Ressurreição de Cristo. Pois, se
aquelas mulheres, que anunciaram a homens, já cristãos e discípulos de Cristo,
um só mistério, merecem nome de apóstolas, aquelas que anunciam e ensinam a
seus escravos gentios e rudes todos os mistérios da salvação, quanto mais
merecem este nome? Põe-se uma de vós a ensinar por amor de Deus ao seu tapuia e
à sua tapuia o Creio-em-Deus-Padre, e que lhe ensina? Ensina-lhe o mistério
altíssimo da Santíssima Trindade, o mistério da Encarnação, o da Morte, o da
Ressurreição, o da Ascensão de Cristo, o da vinda do Espírito Santo, o do
Juízo, o da Vida Eterna, e todos os que cremos e professamos os cristãos. Vede
se merece nome de apóstola uma mestra destas?
Não há dúvida que homens e
mulheres todos são capazes deste altíssimo nome e deste divino ou diviníssimo
exercício. Faz duas parábolas Cristo no Evangelho, uma de um pastor que perdeu
uma ovelha, e a foi buscar e trazer dos matos aos ombros, outra de uma mulher
que perdeu uma dracma, ou moeda de prata, e acendeu uma candeia para a buscar,
e a buscou e achou em sua casa. Esta ovelha e esta moeda perdidas e achadas,
são as almas desencaminhadas e erradas que se convertem e encaminham a Deus;
quem buscou e achou a ovelha na primeira parábola, e quem buscou e achou a
moeda na segunda, são os ministros evangélicos, que trazem e reduzem a Deus
estas almas. Pois, se em uma e outra parábola significam estas duas pessoas os
ministros evangélicos que trazem almas a Deus, por que na primeira introduziu
Cristo um homem, que é o pastor, e na segunda uma mulher, que é a que acendeu a
candeia? Para nos ensinar Cristo que assim homens como mulheres todos podem
salvar almas: os homens no campo com o cajado, e as mulheres em casa com a
candeia; os homens no campo, entrando pelos matos com as armas, e as mulheres
em casa, alumiando e ensinando a doutrina.
Vede como estava isto profetizado
pelo profeta Joel, no mesmo capítulo segundo, que foi o que hoje declarou S.
Pedro ao povo de Jerusalém; Sed et super
servos meos, et ancillas in diebus illis effundam spiritum meum, et prophetabunt
(Jl. 2,29); Naqueles dias — diz Deus — derramarei o meu Espírito sobre os meus
servos e sobre as minhas servas, e todos pregarão. — Notai; não diz Deus que
derramará o seu Espírito só sobre os servos, senão sobre os servos e sobre as
servas: Super servos meos, et super
ancillas: porque não só os homens, senão os homens e também as mulheres
podem e devem, e hão de pregar, e dilatar a fé, cada um conforme seu estado: Et prophetabunt. Por isso hoje, com
grande mistério, no Cenáculo de Jerusalém, onde desceu o Espírito Santo, não só
se acharam homens, senão mulheres: Hiomnes
erant perseverantes unanimiter in oratione cum mulieribus. Estavam homens e
estavam mulheres no Cenáculo, porque a homens e a mulheres vinha o Espírito
Santo fazer mestres e mestras da doutrina do céu, e ensiná-los para que a
ensinassem: Ille vos docebit.
CAPÍTULO VI
Suposto pois que não só aos
eclesiásticos, senão também aos seculares, não só aos homens, senão também às
mulheres pertence, ou de caridade ou de justiça, ou de ambas estas obrigações,
ensinar a fé e a lei de Cristo aos gentios e novos cristãos naturais destas
terras em que vivemos, cada um conforme seu estado, não haja, de hoje em
diante, com a graça do Espírito Santo, quem se não faça discípulo deste divino
e soberano Mestre, para o poder ser ao menos dos seus escravos. Os que sabeis a
língua, tereis maior facilidade; os que a não sabeis, tereis maior merecimento.
E uns e outros, ou por nós mesmos — que sempre será o melhor — ou por outrem,
vos deveis aplicar a este tão cristão e tão devido exercício, com tal
diligência e cuidado, que nenhum falte com o pasto necessário da doutrina às
poucas ou muitas ovelhinhas de Cristo que o Senhor lhes tiver encomendadas,
pois todos nesta conquista sois pastores ou guardadores deste grande pastor.
Muitos o fazem assim com grande zelo, cristandade e edificação; mas é bem que o
façam todos.
E ninguém se escuse — como
escusam alguns — com a rudeza da gente, e com dizer, como acima dizíamos, que
são pedras, que são troncos, que são brutos animais, porque, ainda que
verdadeiramente alguns o sejam ou o pareçam, a indústria e a graça tudo vence,
e de brutos, e de troncos, e de pedras os fará homens. Dizei-me, qual é mais
poderosa, a graça ou a natureza? A graça, ou a arte? Pois o que faz a arte e a
natureza, por que havemos de desconfiar que o faça a graça de Deus, acompanhada
da vossa indústria? Concedo-vos que esse índio bárbaro e rude seja uma pedra:
vede o que faz em uma pedra a arte. Arranca o estatuário uma pedra dessas
montanhas, tosca, bruta, dura, informe, e, depois que desbastou o mais grosso,
toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem, primeiro membro a
membro, e depois feição por feição, até a mais miúda: ondeia-lhe os cabelos,
alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca,
avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe
as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga,
acolá recama, e fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no
altar. O mesmo será cá, se a vossa indústria não faltar à graça divina. É uma
pedra, como dizeis, esse índio rude? Pois, trabalhai e continuai com ele — que
nada se faz sem trabalho e perseverança — aplicai o cinzel um dia e outro dia,
dai uma martelada e outra martelada, e vós vereis como dessa pedra tosca e
informe fazeis não só um homem, senão um cristão, e pode ser que um santo.
Não é menos que promessa e
profecia do maior de todos os profetas; Potens
est Deus de lapidibus istis suscitare filios Abrahae (Lc. 3,8): Poderoso é
Deus a fazer destas pedras filhos de Abraão. — Abraão é o pai de todos os que
têm fé; e dizer o Batista que Deus faria de pedras filhos de Abraão foi
certificar e profetizar que de gentios idólatras, bárbaros e duros como pedras,
por meio da doutrina do Evangelho havia Deus de fazer não só homens, senão
fiéis, e cristãos, e santos. Santo Ambrósio: Quid aliud quam lapides habebantur; qui lapidibus serviebant, similes
utique his qui fecerant eos? Prophetatur igitur saxo, sit gentilium fides
infundenda pectoribus, et futuros per fidem Abrahae filios oraculo pollicetur
— Assim o profetizou o Batista, e assim como ele
foi o profeta deste milagre, vós sereis o instrumento dele. Ensinai e doutrina
estas pedras, e fareis de pedras não estátuas de homens, senão verdadeiros
homens e verdadeiros filhos de Abraão por meio da fé verdadeira. O que se faz
nas pedras, mais facilmente se pode fazer nos troncos, onde é menor a
resistência e a bruteza.
Só para fazer de animais homens
não tem poder nem habilidade a arte; mas a natureza sim, e é maravilha que por
ordinário o não parece. Vede-a. Fostes à caça por esses bosques e campinas,
matastes o veado, a anta, o porco montês; matou o vosso escravo o camaleão, o
lagarto, o crocodilo; como ele com os seus praceiros, comestes vós com os
vossos amigos. E que se seguiu? Dali a oito horas, ou menos — se com menos se
contentar Galeno — a anta, o veado, o porco montês, o camaleão, o lagarto, o
crocodilo, todos estão convertidos em homens: já é carne de homem o que pouco
antes era carne de feras. Pois se isto pode fazer a natureza por força do calor
natural, por que o não fará a graça muito mais eficazmente por força do calor e
fogo do Espírito Santo? Se a natureza, naturalmente, pode converter animais
feros em homens, a graça, sobrenaturalmente, por que não fará esta conversão? O
mesmo Espírito autor da graça o mostrou assim, e o ensinou a S. Pedro. Estava
S. Pedro em oração na cidade de Jope; eis que vê abrir-se o céu, e descer um como
grande lençol — assim lhe chama o texto — suspendido por quatro pontas, e no
fundo dele uma multidão confusa de feras, de serpentes, de aves de rapina e de
todos os outros animais silvestres, bravos, asquerosos e peçonhentos, que na
lei velha se chamavam imundos. Três vezes na mesma hora viu S. Pedro esta
representação, cada vez mais suspenso e duvidoso do que poderia significar, e
três vezes ouviu juntamente uma voz que lhe dizia: Surge Petre, occide et manduca (At. 10,13): Eia, Pedro, matai e
comei. — As palavras não declaravam o enigma, antes o escureciam mais, porque
lhe parecia a S. Pedro impossível que Deus, que tinha vedado aqueles animais,
lhos mandasse comer. Batem à porta neste mesmo ponto, e era um recado ou
embaixada de um senhor gentio, chamado Cornélio, capitão dos presídios romanos
de Cesaréia, o qual se mandava oferecer a S. Pedro, para que o instruísse na
fé, e o batizasse. Este gentio, como diz Santo Ambrósio, foi o primeiro que
pediu e recebeu a fé de Cristo, e por este efeito, e pela declaração de um
anjo, entendeu então S. Pedro o que significava a visão. Entendeu que aquele
lençol tão grande era o mundo; que as quatro pontas por onde se suspendia eram
as quatro partes dele; que os animais feros, imundos e reprovados na lei, eram
as diversas nações de gentios, bárbaras e indômitas, que até então estavam fora
do conhecimento e obediência de Deus, e que o mesmo Senhor queria que viessem a
ela. Até aqui o texto e a inteligência dele.
Mas se aqueles animais
significavam as nações dos gentios, e estas nações queria Deus que S. Pedro as
ensinasse e convertesse, como lhe manda que as mate e que as coma? Por isso
mesmo: porque o modo de converter feras em homens, é matando-as e comendo-as, e
não há coisa mais parecida ao ensinar e doutrinar que o matar e o comer. Para
uma fera se converter em homem há de deixar de ser o que era e começar a ser o
que não era, e tudo isto se faz matando-a e comendo-a: matando-a, deixa de ser
o que era, porque, morta, já não é fera; comendo-a, começa a ser o que não era,
porque, comida, já é homem. E porque Deus queria que S. Pedro convertesse em
homens, e homens fiéis, todas aquelas feras que lhe mostrava, por isso a voz do
céu lhe dizia que as matasse e as comesse; Occide
et manduca — querendo-lhe dizer que as ensinasse e doutrinasse, porque o
ensinar e doutrinar havia de fazer nelas os mesmos efeitos que o matar e o
comer. Ouvi a S. Gregório Papa: Primo
pastori dicitur macta et manduca quod mactatur quippe a vita occiditur; id vero
quod comeditur in comedentis corpore commutatur: macta ergo, et manduca,
dicitur id est, a peccato eos qui vivunt interfice, et a se ipsis illos in tua
membra convertere.
Querendo Deus que S. Pedro
ensinasse a fé àqueles gentios, diz-lhe que os mate e que os coma, porque o que
se mata deixa de ser o que é, e o que se come converte-se na substância e nos
membros de quem o come. E ambos estes efeitos haviam de obrar a doutrina de S.
Pedro naqueles gentios feros e bárbaros. Primeiro haviam de morrer, porque
haviam de deixar de ser gentios; e logo haviam de ser comidos e convertidos em
membros de S. Pedro, porque haviam de ficar cristãos e membros da Igreja, de
que São Pedro é a cabeça. De maneira que, assim como a natureza faz de feras
homens, matando e comendo, assim também a graça faz de feras homens,
doutrinando e ensinando. Ensinastes o gentio bárbaro e rude, e que cuidais que
faz aquela doutrina? Mata nele a fereza, e introduz a humanidade; mata a
ignorância, e introduz o conhecimento; mata a bruteza, e introduz a razão; mata
a infidelidade, e introduz a fé; e deste modo, por uma conversão admirável, o
que era fera fica homem, o que era gentio fica cristão, o que era despojo do
pecado fica membro de Cristo e de S. Pedro; Occide et manduca. E como a graça
do Espírito Santo, por meio da doutrina da fé, melhor que a arte e melhor que a
natureza, de pedras e de animais sabe fazer homens, ainda que os destas
conquistas fossem verdadeiramente, ou tão irracionais como os brutos, ou tão
insensíveis como as pedras, não era bastante dificuldade esta, nem para
desculpar o descuido, nem para tirar a obrigação de os ensinar: Ille vos docebit.
CAPÍTULO VII
E para que ninguém falte a esta
obrigação e a este cuidado, só vos quero lembrar o grande serviço que fareis a
Deus, se o fizerdes, e a grande conta que Deus vos há de pedir, se vos
descuidardes. É passo, de que me lembro e tremo muitas vezes, o que agora vos
direi. Estavam os apóstolos no Monte Olivete em o dia da Ascensão, com os olhos
pregados no céu e com os corações dentro nele, porque já se lhes escondera da
vista o Mestre e o Senhor, que em si e após si lhos levara. Estavam enlevados,
estavam suspensos, estavam arrebatados, e quase não em si de amor, de
admiração, de glória, de júbilos, de saudades; eis que aparecem dois anjos e
lhes dizem estas palavras: Viri Galilaei,
quid statis aspicientes in caelum? Hic Jesus, qui assumptus est a vobis in
caelum, sic veniet: Varões galileus, que fazeis aqui olhando para o céu?
Este mesmo Senhor que agora se apartou de vós, há de vir outra vez, porque há
de vir a julgar. — Notáveis palavras por certo, e ditas a tais pessoas, em tal
lugar e em tal ocasião! De maneira que estranham os anjos aos apóstolos estarem
no Monte Olivete olhando para o céu de saudades de Cristo, e para os obrigarem
a que se vão logo dali — como se foram — os ameaçam com o dia do Juízo e com a
lembrança da conta? Pois, estar em um monte apartado das gentes, estar com os
olhos postos no céu, estar arrebatado na contemplação da glória, estar enlevado
no amor e saudades de Cristo, é coisa digna de se estranhar e de a estranharem
os anjos? Em tal caso, sim, porque se em todos os homens é digno de estranhar
não deixarem o mal pelo bem, nos apóstolos era digno de estranhar não deixarem
o bem pelo melhor. O ofício e obrigação dos apóstolos era pregar a fé e salvar
almas; a ordem que Cristo lhes tinha dado era que se recolhessem a Jerusalém a
preparar-se para a pregação com os dons do Espírito Santo, que lhes mandaria, e
deixar o Monte Olivete pelo Cenáculo, deixar a contemplação pela escola das línguas,
deixar de olhar para o céu para acudir às cegueiras da terra, deixar, enfim, as
saudades de Cristo pela saúde de Cristo, não era deixar o bem, senão
melhorá-lo, porque era trocar um bem grande por outro maior: era deixar um
serviço de Deus por outro maior serviço, uma vontade de Deus por outra maior
vontade, uma glória de Deus por outra maior glória. O contemplar em Deus é obra
divina, mas o levar almas para Deus é obra diviníssima.
Assim lhe chamou S. Dionísio
Areopagita: Opus Dei divinissimum. E
a obrigação dos apóstolos e varões apostólicos não é só buscar o divino, senão
o mais divino: é deixar o mundo pelo diviníssimo. Por isso lhes estranham os
anjos o estarem parados no monte, e com os olhos suspensos no céu; por isso
lhes dizem: Quid statis? Que estais aqui fazendo? — como se o que faziam
nenhuma comparação tivera com o que haviam de fazer. O que faziam e o que os
ocupava eram contemplações, admirações, êxtases, arrebatamentos; o que haviam
de fazer, e o em que se haviam de ocupar, era pregar, ensinar, doutrinar,
batizar, converter almas, e tudo aquilo em comparação disto, no juízo dos
anjos, que melhor que nós o entendem, que é? Um quid, uma coisa que se pode duvidar se é alguma coisa, um muito
menos do que devera ser, um estar parados, um não ir por diante: Quid statis? Vede, vede vós e vós — com
todos e com todas falo — quão grande serviço fazeis a Deus, quando ensinais os
vossos escravos, quando para isso aprendeis as línguas, quando escreveis e
estudais o catecismo, quando buscais o intérprete ou o mestre, e quando,
talvez, só para este fim o pagais e o sustentais. Oh! ditoso dispêndio! Oh!
ditoso estudo! Oh! ditoso trabalho! Oh! ditoso merecimento, e sem igual diante
de Deus! Em suma, cristãos, que é maior bem e maior serviço de Deus, e maior
glória sua estar ensinando um negrinho da terra, que se estivéreis enlevados e
arrebatados no céu: Quid statis
aspicientes in caelum?
E se é tão grande o serviço que
fazem a Deus os que têm este cuidado, os que o não têm, os que tão descuidados
e esquecidos vivem da doutrina, da cristandade e da salvação de seus escravos,
que rigorosa, que estreita e que estreitíssima conta vos parece que lhes pedirá
Deus? Ameaçam os anjos aos apóstolos com o dia do Juízo, e reparam-lhes em
momentos do Monte Olivete. Por quê? Porque eram homens que tinham à sua conta
almas alheias, e quem tem almas alheias à sua conta, até de um momento que não
cuidar muito delas há de dar muito estreita conta a Deus. Oh! que terrível
conta há de pedir Deus no dia do Juízo a todos os que vivemos neste Estado,
porque todos temos almas à nossa conta! Os pregadores todas, os pastores as das
suas igrejas, os leigos as das suas famílias. Se é tão dificultoso dar boa
conta de uma só alma, que será de tantas? S. Jerônimo, sobre tanto deserto,
sobre tantas penitências, sobre tantos trabalhos em serviço de Deus e da
Igreja, estava sempre tremendo da trombeta do dia do Juízo, pela conta que
havia de dar da sua alma. A alma de Santo Hilarião Abade, depois de oitenta
anos de vida eremítica, e de tantas e tão insignes vitórias contra o demônio,
tremia tanto da conta, que não se atrevia a sair do corpo, estando o santo para
expirar, e foi necessário que ele a animasse.
Pois, se os Jerônimos, se os
Hilariões, se as maiores colunas da Igreja temem de dar conta de uma alma
depois de vidas tão santas, vós, depois das vossas vidas, que é certo não foram
tão ajustadas com a lei de Deus como as suas, que conta esperais dar a Deus,
não de uma, senão de tantas almas? Uns de cinqüenta almas, outros de cem almas,
outros de duzentas almas, outros de trezentas, outros de quatrocentas, e alguns
de mil. Muitos há que tendes hoje poucas, mas naquele dia haveis de ter muitas,
porque todas as que morreram para o serviço, hão de ressuscitar para a conta.
As que tivestes, as que tendes, as que haveis de ter, todas naquele dia hão de
aparecer juntas diante do divino tribunal a dar conta cada uma de si, e vós de
todas. Certo que eu antes quisera dar conta pela sua parte que pela vossa. O
escravo escusar-se-á com o seu senhor; mas o senhor, com quem se há de escusar?
O escravo poder-se-á escusar com o seu pouco entendimento, com a sua
ignorância; mas o senhor, com que se escusará? Com a sua muita cobiça? Com a
sua muita cegueira? Com faltar à piedade? Com faltar à humanidade? Com faltar à
cristandade? Com faltar à fé? Oh! Deus justo! Oh! Deus misericordioso, que nem
em vossa justiça, nem em vossa misericórdia acho caminho para saírem estas
almas de tão intrincado labirinto! Se a justiça divina acha por onde condenar
um gentio, porque não foi batizado, como achará a misericórdia divina por onde
salvar um cristão, que foi causa de ele se não batizar?
Oh! que justiças pedirão sobre
vós naquele dia tantas infelizes almas, de cuja infelicidade eterna vós fostes
causa! Abel pedia justiça a Deus, e salvou-se Abel, e está no céu. Se Abel, se
um irmão pede justiça a Deus sobre o irmão que lhe tirou a vida temporal, um
escravo, e tantos escravos, que justiça pedirão a Deus sobre o senhor que lhes
tirou a vida eterna? Se Abel, se uma alma que se salvou, e que está hoje vendo
a Deus, pede justiça, uma alma, e tantas almas, que se condenaram e estão
ardendo no inferno, e estarão por toda a eternidade, que justiças pedirão, que
justiças clamarão, que justiças bradarão no céu, à terra, ao inferno, aos
homens, aos demônios, aos anjos, a Deus? Oh! que espetáculo tão triste e tão
horrendo será naquele dia ver a um português destas conquistas — e muito mais
aos maiores e mais poderosos — cercado de tanta multidão de índios, uns livres,
outros escravos, uns bem, outros mal cativos, uns gentios, outros com nome de
cristãos, todos condenados ao inferno, todos ardendo em fogo, e todos pedindo
justiça a Deus sobre aquele desventurado homem, que neste mundo se chamou seu
senhor?
Ai de mim, dirá um, que me
condenei por não ser batizado! Justiça sobre meu ingrato senhor, que me não
pagou o serviço de tantos anos, nem com o que tão pouco lhe custava, como a
água do batismo! Ai de mim, dirá outro, que me condenei por não conhecer a
Deus, nem saber os mistérios da fé! Justiça sobre meu infiel senhor que,
mandando-me ensinar tudo o que importava a seu serviço, só do necessário à
minha salvação nunca teve cuidado! Ai de mim, dirá outro, que me condenei por
passar toda a vida torpemente amigado contra a lei de Deus! Justiça sobre meu
desumano senhor, que por suas conveniências particulares me consentiu o pecado,
e não quis consentir o matrimônio! Ai de mim, dirá outro, que me condenei por
não me confessar nas quaresmas, ou não me confessar a quem me entendesse e me
encaminhasse! Justiça sobre meu avarento senhor, que por não perder dois dias
de serviço, me não quis dar nem o tempo, nem o lugar, nem o confessor que minha
alma havia mister! Ai de mim, dirá finalmente o outro, que me condenei por
morrer sem sacerdote nem sacramento! Justiça sobre meu tirano senhor, que por
me não chamar o remédio, ou não me mandar levar a ele, me deixou morrer como um
bruto! Cão me chamava sempre na vida, e como um cão me tratou na morte. Isto
dirá cada um daqueles miseráveis escravos ao supremo juiz, Cristo. E todos
juntos bradarão a seu sangue — de que por vossa culpa se não aproveitaram —
justiça, justiça, justiça. — Oh! como é sem dúvida que naquele dia conhecereis
quem vos dizia e pregava a verdade! Oh! como é sem dúvida que naquele dia do
Juízo haveis de mudar de juízo e de juízos! Hoje tendes por ditosos os que têm
muitos escravos, e por menos venturosos os que têm poucos: naquele dia os que
tiveram muitos escravos serão desventurados, e os que tiveram poucos serão os
ditosos, e mais ditoso o que não teve nenhum. Tende-os, cristãos, e tende
muitos, mas tende-os de modo que eles ajudem a levar a vossa alma ao céu, e vós
as suas. Isto é o que vos desejo, isto é o que vos aconselho, isto é o que vos
procuro, isto é o que vos peço por amor de Deus e por amor de vós, e o que
quisera que leváreis deste sermão metido na alma.
O Espírito Santo, que hoje desceu
sobre os apóstolos, e os ensinou para que eles ensinassem ao mundo, desça sobre
todos vós, e vos ensine a querer ensinar, ou deixar ensinar, aquele a quem
deveis a doutrina, para que ele por vós, e vós com ele, conseguindo nesta vida
— que tão cara vos custa — a graça, mereçais gozar na outra, com grandes
aumentos, a glória.
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão do Espírito Santo"
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão do Espírito Santo"
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