SERMÃO DO BOM LADRÃO (1655)
Domine, memento mei, cum veneris in regnum tuum: Hodie mecum eris in
Paradiso.
CAPÍTULO I
Este sermão, que hoje se prega na
Misericórdia de Lisboa, e não se prega na Capela Real, parecia-me a mim que lá
se havia de pregar, e não aqui. Daquela pauta havia de ser, e não desta. E por
quê? Porque o texto em que se funda o mesmo sermão, todo pertence à majestade
daquele lugar, e nada à piedade deste. Uma das coisas que diz o texto é que
foram sentenciados em Jerusalém dois ladrões, e ambos condenados, ambos
executados, ambos crucificados e mortos, sem lhes valer procurador nem
embargos. Permite isto a misericórdia de Lisboa? Não. A primeira diligência que
faz é eleger por procurador das cadeias um irmão de grande autoridade, poder e
indústria, e o primeiro timbre deste procurador é fazer honra de que nenhum
malfeitor seja justiçado em seu tempo. Logo esta parte da história não pertence
à Misericórdia de Lisboa. A outra parte — que é a que tomei por tema — toda
pertence ao Paço e à Capela Real. Nela se fala com o rei: Domine; nela se trata
do seu reino: cum veneris in regnum tuum;
nela se lhe presentam memoriais: memento mei; e nela os despacha o mesmo
rei logo, e sem remissão, a outros tribunais: Hodie mecum eris in Paradiso. O que me podia retrair de pregar
sobre esta matéria, era não dizer a doutrina com o lugar. Mas deste escrúpulo,
em que muitos pregadores não reparam, me livrou a pregação de Jonas. Não pregou
Jonas no paço, senão pelas ruas de Nínive, cidade de mais longes que esta
nossa, e diz o texto sagrado que logo a sua pregação chegou aos ouvidos do rei:
Pervenit verbum ad regem (Jon. 3,6).
Bem quisera eu que o que hoje determino pregar chegara a todos os reis, e mais
ainda aos estrangeiros que aos nossos. Todos devem imitar ao Rei dos reis, e
todos têm muito que aprender nesta última ação de sua vida. Pediu o Bom Ladrão
a Cristo que se lembrasse dele no seu reino: Domine, memento mei, cum veneris in regnum tuum. E a lembrança que
o Senhor teve dele foi que ambos se vissem juntos no Paraíso: Hodie mecum eris in Paradiso. Esta é a
lembrança que devem ter todos os reis, e a que eu quisera lhes persuadissem os
que são ouvidos de mais perto. Que se lembrem não só de levar os ladrões ao
Paraíso, senão de os levar consigo: Mecum. Nem os reis podem ir ao paraíso sem
levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo
os reis. Isto é o que hei de pregar. Ave Maria.
CAPÍTULO II
Levarem os reis consigo ao
Paraíso ladrões não só não é companhia indecente, mas ação tão gloriosa e
verdadeiramente real, que com ela coroou e provou o mesmo Cristo a verdade do
seu reinado, tanto que admitiu na cruz o título de rei. Mas o que vemos
praticar em todos os reinos do mundo é tanto pelo contrário que, em vez de os
reis levarem consigo os ladrões ao Paraíso, os ladrões são os que levam consigo
os reis ao inferno. E se isto é assim, como logo mostrarei com evidência,
ninguém me pode estranhar a clareza ou publicidade com que falo e falarei, em
matéria que envolve tão soberanos respeitos, antes admirar o silêncio, e
condenar a desatenção com que os pregadores dissimulam uma tão necessária
doutrina, sendo a que devera ser mais ouvida e declamada nos púlpitos. Seja,
pois, novo hoje o assunto, que devera ser muito antigo e mui freqüente, o qual
eu prosseguirei tanto com maior esperança de produzir algum fruto, quanto vejo
enobrecido o auditório presente com a autoridade de tantos ministros de todos
os maiores tribunais, sobre cujo conselho e consciência se costumam descarregar
as dos reis.
CAPÍTULO III
E para que um discurso tão
importante e tão grave vá assentado sobre fundamentos sólidos e irrefragáveis,
suponho primeiramente que sem restituição do alheio não pode haver salvação.
Assim o resolvem com Santo Tomás todos os teólogos, e assim está definido no
capítulo Si res aliena, com palavras tiradas de Santo Agostinho, que são estas:
Si res aliena propter quam peccatum est,
reddi potest, et non redditur, poenitentia non agitur sed simulatur. Si autem
veraciter agitur non remittitur peccatum, nisi restituatur ablatum, si, ut
dixi, restitui potest. Quer dizer: Se o alheio, que se tomou ou retém, se
pode restituir, e não se restitui, a penitência deste e dos outros pecados não
é verdadeira penitência, senão simulada e fingida, porque se não perdoa o
pecado sem se restituir o roubado, quando quem o roubou tem possibilidade de o
restituir. — Esta única exceção da regra foi a felicidade do Bom Ladrão, e esta
a razão por que ele se salvou, e também o mau se pudera salvar sem restituírem.
Como ambos saíram do naufrágio desta vida despidos e pegados a um pau, só esta
sua extrema pobreza os podia absolver dos latrocínios que tinham cometido,
porque, impossibilitados à restituição, ficavam desobrigados dela. Porém, se o
Bom Ladrão tivera bens com que restituir, ou em todo, ou em parte o que roubou,
toda a sua fé e toda a sua penitência, tão celebrada dos santos, não bastara a
o salvar, se não restituísse. Duas coisas lhe faltavam a este venturoso homem
para se salvar: uma como ladrão que tinha sido, outra como cristão que começava
a ser. Como ladrão que tinha sido, faltava-lhe com que restituir; como cristão
que começava a ser, faltava-lhe o Batismo; mas assim como o sangue que derramou
na cruz lhe supriu o Batismo, assim a sua desnudez e a sua impossibilidade lhe
supriu a restituição, e por isso se salvou. Vejam agora, de caminho, os que
roubaram na vida, e nem na vida, nem na morte restituíram, antes na morte
testaram de muitos bens e deixaram grossas heranças a seus sucessores, vejam onde
irão ou terão ido suas almas, e se se podiam salvar.
Era tão rigoroso este preceito da
restituição na lei velha, que, se o que furtou não tinha com que restituir,
mandava Deus que fosse vendido, e restituísse com o preço de si mesmo: Si non habueritquod pro furto reddat, ipse
venundabitur (Êx. 22,3). De modo que, enquanto um homem era seu, e
possuidor da sua liberdade, posto que não tivesse outra coisa, até que não
vendesse a própria pessoa, e restituísse o que podia com o preço de si mesmo,
não o julgava a lei por impossibilitado à restituição, nem o desobrigava dela.
Que uma tal lei fosse justa não se pode duvidar, porque era lei de Deus, e
posto que o mesmo Deus na lei da graça derrogou esta circunstância de rigor,
que era de direito positivo; porém na lei natural, que é indispensável, e manda
restituir a quem pode e tem com que, tão fora esteve de variar ou moderar coisa
alguma, que nem o mesmo Cristo na cruz prometeria o Paraíso ao ladrão, em tal
caso, sem que primeiro restituísse. Ponhamos outro ladrão à vista deste, e
vejamos admiravelmente no juízo do mesmo Cristo a diferença de um caso a outro.
Assim como Cristo, Senhor nosso,
disse a Dimas: Hodie mecum eris in
Paradiso: Hoje serás comigo no Paraíso — assim disse a Zaqueu: Hodie salus domui huic facta est (Lc.
19,9): Hoje entrou a salvação nesta tua casa. — Mas o que muito se deve notar é
que a Dimas prometeu-lhe o Senhor a salvação logo, e a Zaqueu não logo, senão
muito depois. E por que, se ambos eram ladrões, e ambos convertidos? Porque
Dimas era ladrão pobre, e não tinha com que restituir o que roubara; Zaqueu era
ladrão rico, e tinha muito com que restituir: Zacheus princeps erat publicanorum, et ipse dives, diz o evangelista.
E ainda que ele o não dissera, o estado de um e outro ladrão o declarava assaz.
Por quê? Porque Dimas era ladrão condenado, e se ele fora rico, claro está que
não havia de chegar à forca; porém Zaqueu era ladrão tolerado, e a sua mesma
riqueza era a imunidade que tinha para roubar sem castigo, e ainda sem culpa. E
como Dimas era ladrão pobre, e não tinha com que restituir, também não tinha
impedimento a sua salvação, e por isso Cristo lha concedeu no mesmo momento.
Pelo contrário, Zaqueu, como era ladrão rico, e tinha muito com que restituir,
não lhe podia Cristo segurar a salvação antes que restituísse, e por isso lhe
dilatou a promessa. A mesma narração do Evangelho é a melhor prova desta
diferença.
Conhecia Zaqueu a Cristo só por
fama, e desejava muito vê-lo. Passou o Senhor pela sua terra, e como era
pequeno de estatura, e o concurso muito, sem reparar na autoridade da pessoa e
do ofício: Princeps publicanorum,
subiu-se a uma árvore para o ver, e não só viu, mas foi visto, e muito bem
visto. Pôs nele o Senhor aqueles divinos olhos, chamou-o por seu nome, e
disse-lhe que se descesse logo da árvore, porque lhe importava ser seu hóspede
naquele dia: Zachee, festinans descende,
quia hodie in domo tua oportet me manere. Entrou, pois, o Salvador em casa
de Zaqueu, e aqui parece que cabia bem o dizer-lhe, que então entrara a
salvação em sua casa; mas nem isto, nem outra palavra disse o Senhor. Recebeu-o
Zaqueu e festejou a sua vinda com todas as demonstrações de alegria: Excepit illum gaudens, e guardou o
Senhor o mesmo silêncio. Assentou-se à mesa abundante de iguarias, e muito mais
de boa vontade, que é o melhor prato para Cristo, e prosseguiu na mesma
suspensão. Sobretudo disse Zaqueu que ele dava aos pobres a metade de todos
seus bens: Ecce dimidium bonorum meorum
do pauperibus. E sendo o Senhor aquele que no dia do Juízo só aos
merecimentos da esmola há de premiar com o reino do céu, quem não havia de
cuidar que a este grande ato de liberalidade com os pobres responderia logo a
promessa da salvação? Mas nem aqui mereceu ouvir Zaqueu o que depois lhe disse
Cristo. — Pois, Senhor, se vossa piedade e verdade tem dito tantas vezes que o
que se faz aos pobres se faz a vós mesmo, e este homem na vossa pessoa vos está
servindo com tantos obséquios, e na dos pobres com tantos empenhos, se vos
convidastes a ser seu hóspede para o salvar, e a sua salvação é a importância
que vos trouxe à sua casa, se o chamastes, e acudiu com tanta diligência, se
lhe dissestes que se apressasse: Festinans
descende, e ele se não deteve um momento, por que lhe dilatais tanto a
mesma graça que lhe desejais fazer, por que o não acabais de absolver, por que
lhe não segurais a salvação?
Porque este mesmo Zaqueu, como
cabeça de publicanos: Princeps
publicanorum, tinha roubado a muitos, e como rico que era: Et ipse dives, tinha com que restituir o
que roubara, e enquanto estava devedor e não restituía o alheio, por mais boas
obras que fizesse, nem o mesmo Cristo o podia absolver, e por mais fazenda que
despendesse piamente, nem o mesmo Cristo o podia salvar. Todas as outras obras,
que depois daquela venturosa vista fazia Zaqueu, eram muito louváveis; mas
enquanto não chegava a fazer a da restituição, não estava capaz da salvação.
Restitua, e logo será salvo: e assim foi. Acrescentou Zaqueu que tudo o que
tinha mal adquirido restituía em quatro dobros: Et si aliquem defraudavi, reddo quadruplum. E no mesmo ponto o
Senhor, que até ali tinha calado, desfechou os tesouros de sua graça e lhe
anunciou a salvação: Hodie salus domui
huic facta est. De sorte que, ainda que entrou o Salvador em casa de
Zaqueu, a salvação ficou de fora, porque, enquanto não saiu da mesma casa a
restituição, não podia entrar nela a salvação. A salvação não pode entrar sem
se perdoar o pecado, e o pecado não se pode perdoar sem se restituir o roubado:
Non dimittitur peccatum, nisi restituatur
ablatum.
CAPÍTULO IV
Suposta esta primeira verdade
certa e infalível, a segunda coisa que suponho com a mesma certeza é que a
restituição do alheio, sob pena da salvação, não só obriga aos súditos e
particulares, senão também aos cetros e às coroas. Cuidam ou devem cuidar
alguns príncipes que, assim como são superiores a todos, assim são senhores de
tudo, e é engano. A lei da restituição é lei natural e lei divina. Enquanto lei
natural obriga aos reis, porque a natureza fez iguais a todos; e enquanto lei
divina também os obriga, porque Deus, que os fez maiores que os outros, é maior
que eles. Esta verdade só tem contra si a prática e o uso. Mas por parte deste
mesmo uso argumenta assim Santo Tomás, o qual é hoje o meu doutor, e nestas
matérias o de maior autoridade: Terrarum
principes multa a suis subditis violenter extorquent, quod videtur ad rationem
rapinae pertinere; grave autem
videtur dicere, quod in hoc peccent, quia sic fere omnes principes damnarentur.
Ergo rapina in aliquo quo casu est licita.
Quer dizer: A rapina ou roubo é tomar o alheio violentamente contra a vontade
de seu dono; os príncipes tomam muitas coisas a seus vassalos violentamente, e
contra sua vontade: logo, parece que o roubo é lícito em alguns casos, porque,
se dissermos que os príncipes pecam nisto, todos eles, ou quase todos se
condenariam: Fere omnes principes
damnarentur. Oh! que terrível e temerosa conseqüência, e quão digna de que
a considerem profundamente os príncipes, e os que têm parte em suas resoluções
e conselhos! Responde ao seu argumento o mesmo Doutor Angélico, e, posto que
não costumo molestar os ouvintes com latins largos, hei de referir as suas
próprias palavras: Dicendum, quod si
principes a subditis exigunt quod eis secundum justitiam debetur propter bonum commune
conservandum, etiam si violentia adhibeatur; non est rapina. Si vero aliquid
principes idebite extorqueant, rapina est, sicut et latrocinium. Unde ad restitutionem tenentur sicut et latrones. Et tanto
gravius peccant quam latrones, quanto periculosius et communius contra publicam
justitiam agunt, cujus custodes sunt positi: Respondo — diz Santo Tomás —
que se os príncipes tiram dos súditos o que segundo justiça lhes é devido para
conversação do bem comum, ainda que o executem com violência, não é rapina ou
roubo. Porém, se os príncipes tomarem por violência o que se lhes não deve, é
rapina e latrocínio. Donde se segue que estão obrigado à restituição, como os
ladrões, e que pecam tanto mais gravemente que os mesmos ladrões, quanto é mais
perigoso e mais comum o dano com que ofendem a justiça pública, de que eles
estão postos por defensores.
Até aqui acerca dos príncipes o
Príncipe dos Teólogos. E por que a palavra rapina e latrocínio, aplicada a
sujeitos da suprema esfera, é tão alheia das lisonjas que estão costumados a
ouvir, que parece conter alguma dissonância, escusa tacitamente o seu modo de
falar, e prova a sua doutrina o santo Doutor com dois textos alheios, um
divino, do profeta Ezequiel, e outro pouco menos que divino, de Santo
Agostinho. O texto de Ezequiel é parte do relatório das culpas por que Deus
castigou tão severamente os dois reinos de Israel e Judá, um com o cativeiro
dos assírios, e outro com o dos babilônios; e a causa que dá, e muito pondera,
é que os seus príncipes, em vez de guardarem os povos como pastores, os
roubavam como lobos: Principes ejus in
medio illius, quasi lupi rapientes praedam. Só dois reis elegeu Deus por si
mesmo, que foram Saul e Davi, e a ambos os tirou de pastores, para que, pela
experiência dos rebanhos que guardavam, soubessem como haviam de tratar os
vassalos; mas seus sucessores, por ambição e cobiça, degeneraram tanto deste
amor e deste cuidado que, em vez de os guardar e apascentar como ovelhas, os
roubavam e comiam como lobos: Quasi lupi
rapientes praedam.
O texto de Santo Agostinho fala
geralmente de todos os reinos, em que são ordinárias semelhantes opressões e
injustiças, e diz que, entre os tais reinos e as covas dos ladrões — a que o
santo chama latrocínios — só há uma diferença. E qual é? Que os reinos são
latrocínios, ou ladroeiras grandes, e os latrocínios, ou ladroeiras, são reinos
pequenos: Sublata justitia, quid sunt
regna, nisi magna latrocinia? Quia et latrocinia quid sunt, nisi parva regna?
É o que disse o outro pirata a Alexandre Magno.Navegava Alexandre em uma
poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e como fosse trazido à
sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o
muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém, ele, que não era medroso nem
lerdo, respondeu assim.
— Basta, senhor, que eu, porque
roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois
imperador? — Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o
roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas
Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações,
a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem
loco pone latronem et piratam, quo regem animum latronis et piratae habentem.
Se o Rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata,
o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.
Quando li isto em Sêneca, não me
admirei tanto de que um filósofo estóico se atrevesse a escrever uma tal
sentença em Roma, reinando nela Nero; o que mais me admirou, e quase
envergonhou, foi que os nossos oradores evangélicos, em tempo de príncipes
católicos e timoratos, ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma
doutrina. Saibam estes eloqüentes mudos que mais ofendem os reis com o que
calam, que com o que disserem, porque a confiança com que isto se diz é sinal
que lhes não toca e que se não podem ofender; e a cautela com que se cala é
argumento de que se ofenderão, porque lhes pode tocar. Mas passemos brevemente
à terceira e última suposição, que todas três são necessárias para chegarmos ao
ponto.
CAPÍTULO V
Suponho finalmente que os ladrões
de que falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua
fortuna condenou a este gênero de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa,
ou alivia o seu pecado, como diz Salomão: Non
grandis est culpa, cum quis furatus
fuerit: furatur enim ut esurientem impleat animam. O ladrão que furta para
comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu
trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais
debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio
Magno: Non est intelligendum fures esse
solum bursarum incisores, vel latrocinantes in balneis; sed et qui duces
legionum statuti, vel qui commisso sibi regimine civitatum, aut gentium, hoc
quidem furtim tollunt, hoc vero vi et publice exigunt: Não são só ladrões,
diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes
colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título
são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das
províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com
força, roubam e despojam os povos. — Os outros ladrões roubam um homem: estes
roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem
temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e
enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu
que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns
ladrões, e começou a bradar: — Lá vão os ladrões grandes a enforcar os
pequenos. — Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações,
se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas vezes se viu Roma
ir a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado
em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E quantos
ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um, chamado
Seronato, disse com discreta contraposição Sidônio
Apolinar: Nou cessat simul furta, vel punire, vel facere: Seronato está
sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. — Isto não era
zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar
ele só.
CAPÍTULO VI
Declarado assim por palavras não
minhas, senão de muito bons autores, quão honrados e autorizados sejam os
ladrões de que falo, estes são os que disse e digo que levam consigo os reis ao
inferno. Que eles fossem lá sós, e o diabo os levasse a eles, seja muito na má
hora, pois assim o querem; mas que hajam de levar consigo os reis é uma dor que
se não pode sofrer, e por isso nem calar. Mas se os reis tão fora estão de
tomar o alheio, que antes eles são os roubados, e os mais roubados de todos,
como levam ao inferno consigo estes maus ladrões a estes bons reis? Não por um
só, senão por muitos modos, os quais parecem insensíveis e ocultos, e são muito
claros e manifestos. O primeiro, porque os reis lhes dão os ofícios e poderes
com que roubam; o segundo, porque os reis os conservam neles; o terceiro,
porque os reis os adiantam e promovem a outros maiores; e, finalmente, porque,
sendo os reis obrigados, sob pena de salvação, a restituir todos estes danos,
nem na vida, nem na morte os restituem. E quem diz isto já se sabe que há de
ser Santo Tomás. Faz questão Santo Tomás, se a pessoa que não furtou, nem
recebeu ou possui coisa alguma do furto, pode ter obrigação de o restituir. E
não só resolve que sim, mas, para maior expressão do que vou dizendo, põe o
exemplo nos reis. Vai o texto: Tenetur
ille restituere, qui non obstat, cum obstare teneatur. Sicut principes, qui
tenentur custodire justitiam in terra, si per eorum defectum latrones
increscant, ad restitutionem tenentur, quia redditus, quos habent, sunt quasi
stipendia ad hoc instituta, ut justitiam conservent in terra: Aquele que
tem obrigação de impedir que se não furte, se o não impediu, fica obrigado a restituir
o que se furtou. E até os príncipes, que por sua culpa deixarem crescer os
ladrões, são obrigados à restituição, porquanto as rendas, com que os povos os
servem e assistem, são como estipêndios instituídos e consignados por eles,
para que os príncipes os guardem e mantenham em justiça. — É tão natural e tão
clara esta teologia, que até Agamenão, rei gentio, a conheceu, quando disse: Qui non vetat peccare, cum possit, jubet
.
E se nesta obrigação de restituir
incorrem os príncipes pelos furtos que cometem os ladrões casuais e
involuntários, que será pelos que eles mesmos, e por própria eleição, armaram
de jurisdições e poderes, com que roubam os mesmos povos? A tenção dos
príncipes não é nem pode ser essa; mas basta que esses oficiais, ou de Guerra,
ou de Fazenda, ou de Justiça, que cometem os roubos, sejam eleições e feituras
suas, para que os príncipes hajam de pagar o que eles fizeram. Ponhamos o
exemplo da culpa, onde a não pode haver. Pôs Deus a Adão no Paraíso, com
jurisdição e poder sobre todos os viventes, e com senhorio absoluto de todas as
coisas criadas, excepta somente uma
árvore. Faltavam-lhe poucas letras a Adão para ladrão, e ao fruto para furto
não lhe faltava nenhuma. Enfim, ele e sua mulher — que muitas vezes são as
terceiras — aquela só coisa que havia no mundo que não fosse sua, essa
roubaram. Já temos a Adão eleito, já o temos com ofício, já o temos ladrão. E
quem foi o que pagou o furto? Caso sobre todos admirável! Pagou o furto quem
elegeu e quem deu o ofício ao ladrão. Quem elegeu e quem deu o ofício a Adão
foi Deus: e Deus foi o que pagou o furto tanto à sua custa, como sabemos. O
mesmo Deus o disse assim, referindo o muito que lhe custara a satisfação do
furto e dos danos dele: Quae non rapui,
tunc exolvebam. Vistes o corpo humano de que me vesti, sendo Deus; vistes o
muito que padeci, vistes o sangue que derramei, vistes a morte a que fui
condenado, entre ladrões. Pois, então, e com tudo isso, pagava o que não
furtei. Adão foi o que furtou, e eu o que paguei: Quae non rapui, tunc exolvebam.
Pois, Senhor meu, que culpa teve
vossa divina Majestade no furto de Adão? — Nenhuma culpa tive, nem a tivera,
ainda que não fora Deus, porque na eleição daquele homem, e no ofício que lhe
dei, em tudo procedi com a circunspecção, prudência e providência com que o
devera e deve fazer o príncipe mais atento a suas obrigações, mais considerado
e mais justo. Primeiramente, quando o fiz, não foi com império despótico, como
as outras criaturas, senão com maduro conselho, e por consulta de pessoas não
humanas, senão divinas: Faciamus hominem
ad imaginem et similitudinem nostram, et praesit. As partes e qualidades
que concorriam no eleito eram as mais adequadas ao ofício que se podiam desejar
nem imaginar, porque era o mais sábio de todos os homens, justo sem vício, reto
sem injustiça, e senhor de todas suas paixões, as quais tinha sujeitas e
obedientes à razão. Só lhe faltava a experiência, nem houve concurso de outros
sujeitos na sua eleição, mas ambas estas coisas não as podia então haver,
porque era o primeiro homem, e o único. — Pois, se a vossa eleição, Senhor, foi
tão justa e tão justificada, que bastava ser vossa para o ser, por que haveis
vós de pagar o furto que ele fez, sendo toda a culpa sua? — Porque quero dar
este exemplo e documento aos príncipes, e porque não convém que fique no mundo
tão má e perniciosa conseqüência, como seria, se os príncipes se persuadissem
em algum caso que não eram obrigados a pagar e satisfazer o que seus ministros
roubassem.
CAPÍTULO VII
Mas estou vendo que com este
mesmo exemplo de Deus se desculpam ou podem desculpar os reis, porque, se a
Deus lhe sucedeu tão mal com Adão, conhecendo muito bem Deus o que ele havia de
ser, que muito é que suceda o mesmo aos reis, com os homens que elegem para os
ofícios, se eles não sabem nem podem saber o que depois farão? A desculpa é
aparente, mas tão falsa como mal fundada, porque Deus não faz eleição dos
homens pelo que sabe que hão de ser, senão pelo que de presente são. Bem sabia
Cristo que Judas havia de ser ladrão; mas quando o elegeu para o ofício em que
o foi, não só não era ladrão, mas muito digno de se lhe fiar o cuidado de
guardar e distribuir as esmolas dos pobres. Elejam assim os reis as pessoas, e
provejam assim os ofícios, e Deus os desobrigará nesta parte da restituição.
Porém as eleições e provimentos que se usam não se fazem assim. Querem saber os
reis se os que provêem nos ofícios são ladrões ou não? Observem a regra de
Cristo: Qui non intral per ostium, jur
est et latro. A porta por onde legitimamente se entra ao ofício, é só o
merecimento. E todo o que não entra pela porta, não só diz Cristo que é ladrão,
senão ladrão e ladrão: Fur est latro.
E por que é duas vezes ladrão? Uma vez porque furta o ofício, e outra vez
porque há de furtar com ele. O que entra pela porta poderá vir a ser ladrão,
mas os que não entram por ela já o são. Uns entram pelo parentesco, outros pela
amizade, outros pela valia, outros pelo suborno, e todos pela negociação. E
quem negocia não há mister outra prova: já se sabe que não vai a perder. Agora
será ladrão oculto, mas depois ladrão descoberto, que essa é, como diz S.
Jerônimo, a diferença de fur a latro.
Coisa é certo maravilhosa ver a
alguns tão introduzidos e tão entrados, não entrando pela porta nem podendo
entrar por ela. Se entraram pelas janelas, como aqueles ladrões de que faz
menção Joel: Per fenestras intrabunt
quasi fur, grande desgraça é que, sendo as janelas feitas para entrar a luz
e o ar, entrem por elas as trevas e os desares. Se entraram minando a casa do
pai de famílias, como o ladrão da parábola de Cristo: Si sciret pater familias qua hora fur veniret, non sineret perfodi
domum suam, ainda seria maior desgraça que o sono, ou letargo do dono da
casa fosse tão pesado que, minando-se-lhe as paredes, não o espertassem os
golpes. Mas o que excede toda a admiração é que haja quem, achando a porta
fechada, empreenda entrar por cima dos telhados, e o consiga, e mais sem ter
pés, nem mãos, quanto mais asas. Estava Cristo, Senhor nosso, curando
milagrosamente os enfermos dentro em uma casa, e era tanto o concurso que, não
podendo os que levavam um paralítico entrar pela porta, subiram-se com ele ao
telhado, e por cima do telhado o introduziram. Ainda e mais admirável a
consideração do sujeito, que o modo e lugar da introdução. Um homem que
entrasse por cima dos telhados, quem não havia de julgar que era caído do céu: Tertius e caelo cecidit Cato? E o tal homem era um paralítico que não tinha
pés, nem mãos, nem sentido, nem movimento, mas teve com que pagar a quatro
homens, que o tomaram às costas, e o subiram tão alto. E como os que trazem às
costas semelhantes sujeitos estão tão pagos deles, que muito é que digam e
informem — posto que sejam tão incapazes — que lhes sobejam merecimentos por
cima dos telhados. Como não podem alegar façanhas de quem não tem mãos, dizem
virtudes e bondades. Dizem que, com seus procedimentos, cativa a todos. E como
não havia de cativar, se os comprou? Dizem que, fazendo sua obrigação, todos
lhe ficam devendo dinheiro: e como lho não hão de dever, se lho tomaram? Deixo
os que sobem aos postos pelos cabelos, e não com as forças de Sansão, senão com
os favores de Dalila. Deixo os que, com voz conhecida de Jacó, levam a bênção
de Esaú, e não com as luvas calçadas, senão dadas ou prometidas. Deixo os que,
sendo mais leprosos que Naamã Siro, se alimparam da lepra, e não com as águas
do Jordão, senão com as do Rio da Prata. É isto, e o mais que se podia dizer,
entrar pela porta? Claro está que não. Pois se nada disto se faz: Sicut fur in nocte, senão na face do
sol, e na luz do meio-dia, como se pode escusar quem ao menos firma os
provimentos de que não conhecia serem ladrões os que por estes meios foram
providos? Finalmente, ou os conhecia, ou não: se os não conhecia, como os
proveu sem os conhecer? E se os conhecia, como os proveu conhecendo-os? Mas
vamos aos providos com expresso conhecimento de suas qualidades.
CAPÍTULO VIII
Dom Fulano — diz a piedade
bem-intencionada — é um fidalgo pobre: dê-se-lhe um governo.
— E quantas impiedades, ou
advertidas ou não, se contém nesta piedade? Se é pobre, dêem-lhe uma esmola
honestada com o nome de tença, e tenha com que viver. Mas por que é pobre, um
governo, para que vá desempobrecer à custa dos que governar? E para que vá
fazer muitos pobres à conta de tornar muito rico? Isto quer quem o elege por
este motivo. Vamos aos do prêmio, e também aos do castigo. Certo capitão mais
antigo tem muitos anos de serviço: dêem-lhe uma fortaleza nas conquistas. Mas
se estes anos de serviço assentam sobre um sujeito que os primeiros despojos
que tomava na guerra, eram a farda e a ração dos seus próprios soldados,
despidos e mortos de fome, que há de fazer em Sofala ou em Mascate? Tal
graduado em leis leu com grande aplauso no Paço; porém,em duas judicaturas e
uma correição não deu boa conta de si: pois vá degradado para a Índia com uma
beca. E se na Beira e Além-Tejo, onde não há diamantes nem rubis, se lhe
pegavam as mãos a este doutor, que será na relação de Goa?
Encomendou el-rei D. João, o
Terceiro, a S. Francisco Xavier o informasse do estado da Índia, por via de seu
companheiro, que era mestre do Príncipe; e o que o santo escreveu de lá, sem
nomearofícios nem pessoas, foi que o verbo
rapio na Índia se conjugava por todos os modos. A frase parece jocosa em
negócio tão sério, mas falou o servo de Deus como fala Deus, que em uma palavra
diz tudo. Nicolau de Lira, sobre aquelas palavras de Daniel: Nabucodonosor rex misit ad congregandos
satrapas, magistratus et judices, declarando a etimologia de sátrapas, que
eram os governadores das províncias, diz que este nome foi composto de sat e de rapio: Dicuntur satrapae quasi
satis rapientes, quia solent bona inferiorum rapere: Chamam-se sátrapas,
porque costumam roubar assaz. E este assaz é o que especificou melhor S.
Francisco Xavier, dizendo que conjugam o verbo rapio por todos os modos. O que
eu posso acrescentar, pela experiência que tenho, é que não só do Cabo da Boa
Esperança para lá, mas também das partes daquém, se usa igualmente a mesma
conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo
rapio, porque furtam por todos os modos da arte, não falando em outros
novos e esquisitos, que não conheceu Donato nem Despautério.
Tanto que lá chegam, começam a
furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos
é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam
pelo modo imperativo, porque, como têm o mero e misto império, todo ele aplicam
despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque
aceitam quanto lhes mandam, e, para que mandem todos, os que não mandam não são
aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem e,
gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia, sem vontade, as
fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com
o daqueles que manejam muito, e basta só que ajuntem a sua graça, para serem
quando menos meeiros na ganância. Furtam pelo modo potencial, porque, sem
pretexto nem cerimônia, usam de potência. Furtam pelo modo permissivo, porque
permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo
infinitivo, porque não tem o fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá
deixam raízes em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam
por todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os
seus criados, e as terceiras quantas para isso têm indústria e consciência.
Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente — que é o seu tempo —
colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e
futuro, do pretérito desenterram crimes, de que vendem os perdões, e dívidas
esquecidas, de que se pagam inteiramente, e do futuro empenham as rendas e
antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas
mãos. Finalmente, nos mesmos tempos, não lhes escapam os imperfeitos,
perfeitos, plus quam perfeitos, e
quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de
furtar mais, se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda esta rapante
conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar. E quando
eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado
toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados
de despojos e ricos, e elas ficam roubadas e consumidas.
É certo que os reis não querem
isto, antes mandam em seus regimentos tudo o contrário; mas como as patentes se
dão aos gramáticos destas conjugações, tão peritos ou tão cadimos nelas, que
outros efeitos se podem esperar dos seus governos? Cada patente destas, em
própria significação, vem a ser uma licença geral in scriptis, ou um passaporte para furtar. Em Holanda, onde há
tantos armadores decorsários, repartem-se as costas da África, da Ásia e da
América com tempo limitado, e nenhum pode sair a roubar sem passaporte, a que
chamam carta de marca. Isto mesmo valem as provisões, quando se dão aos que
eram mais dignos da marca que da carta. Por mar padecem os moradores das
conquistas a pirataria dos corsários estrangeiros, que é contingente; na terra
suportam a dos naturais, que é certa e infalível. E se alguém duvida qual seja
maior, note a diferença de uns a outros. O pirata do mar não rouba aos da sua
república: os da terra roubam os vassalos do mesmo rei, em cujas mãos juraram
homenagem; do corsário do mar posso me defender: aos da terra não posso
resistir; do corsário do mar posso fugir: dos da terra não me posso esconder; o
corsário do mar depende dos ventos; os da terra sempre têm por si a monção;
enfim, o corsário do mar pode o que pode: os da terra podem o que querem, e por
isso nenhuma presa lhes escapa. Se houvesse um ladrão onipotente, que vos
parece que faria a cobiça junta com a onipotência? Pois isso é o que fazem
estes corsários.
CAPÍTULO IX
Dos que obram o contrário com
singular inteireza de justiça e limpeza de interesse, alguns exemplos temos,
posto que poucos. Mas folgara eu saber quantos exemplos há, não digo já dos que
fossem justiçados como tão insignes ladrões, mas dos que fossem privados do
governo por estes roubos. Pois, se eles furtam com os ofícios, e os consentem e
conservam nos mesmos ofícios, como não hão de levar consigo ao inferno os que
os consentem? O meu Santo Tomás o diz, e alega com o texto de São Paulo: Digni sunt morte, non solum qui faciunt, sed
etiam qui consentiunt facientibus. E porque o rigor deste texto se entende
não de qualquer consentidor, senão daqueles que, por razão de seu ofício ou
estado, tem obrigação de impedir, faz logo a mesma limitação o santo Doutor, e
põe o exemplo nomeadamente nos príncipes: Sed
solum quando incumbit alicui ex officio, sicut principibus terrae.
Verdadeiramente não sei como não reparam muito os príncipes em matéria de tanta
importância, e como os não fazem reparar os que no foro exterior, ou no da
alma, têm cargo de descarregar suas consciências. Vejam uns e outros como a
todos ensinou Cristo, que o ladrão que furta com o oficio, nem um momento se há
de consentir ou conservar nele.
Havia um senhor rico, diz o
divino Mestre, o qual tinha um criado, que com ofício de ecônomo ou
administrador, governava as suas herdades — tal é o nome no original grego, que
responde ao villico da Vulgata. —
Infamado pois o administrador de que se aproveitava da administração e roubava,
tanto que chegou a primeira notícia ao Senhor, mandou-o logo vir diante de si,
e disse-lhe que desse contas, porque já não havia de exercitar o ofício. Ainda
a resolução foi mais apertada, porque não só disse que não havia, senão que não
podia: Jam enim non poteris villicare.
Não tem palavra esta parábola que não esteja cheia de notáveis doutrinas a
nosso propósito. Primeiramente diz que este senhor era um homem rico: Homo quidem erat dives (Lc. 16,1),
porque não será homem quem não tiver resolução, nem será rico, por mais herdades
que tenha, quem não tiver cuidado, e grande cuidado, de não consentir que lhas
governem ladrões. Diz mais que, para privar a este ladrão do ofício, bastou
somente a fama, sem outras inquirições: Et
hic diffamatus est apud illum, porque se em tais casos houverem de mandar
buscar informações à Índia ou ao Brasil, primeiro que elas cheguem, e se lhes
ponha remédio, não haverá Brasil nem Índia. Não se diz, porém, nem se sabe quem
fossem os autores ou delatores desta fama, porque a estes há-lhes de guardar segredo
o senhor inviolavelmente, sob pena de não haver quem se atreva a o avisar,
temendo justamente a ira dos poderosos. Diz mais, que mandou vir o delatado
diante de si: Et vocavit eum, porque
semelhantes averiguações, se se cometem a outros, e não as faz o mesmo senhor
por sua própria pessoa, com dar o ladrão parte do que roubou, prova que está
inocente. Finalmente, desengana-o e notifica-lhe que não há de exercitar jamais
o ofício, nem pode: Jam enim non poteris
villicare, porque nem o ladrão conhecido deve continuar o ofício em que foi
ladrão, nem o senhor, ainda que quisesse, o pode consentir e conservar nele, se
não se quer condenar.
Com tudo isto ser assim, eu ainda
tenho uns embargos que alegar, por parte deste ladrão, diante do Senhor e autor
da mesma parábola, que é Cristo. Provará que nem o furto, por sua quantidade,
nem a pessoa, por seu talento, parecem merecedores de privação do ofício para
sempre. Este homem, Senhor, posto que cometesse este erro, é um sujeito de
grande talento, de grande indústria, de grande entendimento e prudência, como
vós mesmo confessastes, e ainda louvastes, que é mais: Laudavit Dominus villicum iniquitatis, quia prudenter fecisset;
pois, se é homem de tanto préstimo, e tem capacidade e talentos para vos
tornardes a servir dele, por que o haveis de privar para sempre do vosso
serviço: Jam enim non poteris villicare?
Suspendei-o agora por alguns meses, como se usa, e depois o tomareis a
restituir, para que nem vós o percais, nem ele fique perdido. Não, diz Cristo.
Uma vez que é ladrão conhecido, não só há de ser suspenso ou privado do ofício ad tempus, senão para sempre e para
nunca jamais entrar ou poder entrar: Jam
enim non poteris, porque o uso ou abuso dessas restituições, ainda que
parece piedade, é manifesta injustiça. De maneira que, em vez de o ladrão
restituir o que furtou no ofício, restitui-se o ladrão ao ofício, para que
furte ainda mais? Não são essas as restituições pelas quais se perdoa o pecado,
senão aquelas por que se condenam os restituídos, e também quem os restitui.
Perca-se embora um homem já perdido, e não se percam os muitos que se podem
perder e perdem na confiança de semelhantes exemplos.
Suposto que este primeiro artigo
dos meus embargos não pegou, passemos a outro. Os furtos deste homem foram tão
leves, e a quantidade tão limitada, que o mesmo texto lhes não dá nome de
furtos absolutamente, senão de quase furtos: Quasi dissipasset bona ipsius. Pois em um mundo, Senhor, e em um
tempo em que se vêm tolerados nos ofícios tantos ladrões, e premiados, que é
mais, os plus quam ladrões, será bem
que seja privado do seu ofício, e privado para sempre, um homem que só chegou a
ser quase ladrão? — Sim, torna a dizer Cristo, para emenda dos mesmos tempos, e
para que conheça o mesmo mundo quão errado vai. Assim como nas matérias do
sexto Mandamento teologicamente não há mínimos, assim os deve não haver
politicamente nas matérias do sétimo, porque quem furtou e se desonrou no
pouco, muito mais facilmente o fará no muito. E se não, vede-o nesse mesmo
quase ladrão. Tanto que se viu notificado para não servir o ofício, ainda teve
traça para se servir dele e furtar mais do que tinha furtado. Manda chamar
muito à pressa os rendeiros, rompe os escritos das dívidas, faz outros de novo
com antedatas, a uns diminui a metade, a outros a quinta parte, e por este
modo, roubando ao tempo os dias, às escrituras a verdade, e ao amo o dinheiro,
aquele que só tinha sido quase ladrão, enquanto encartado no ofício, com a
opinião que só tinha de o ter, foi mais que ladrão depois. Aqui acabei de
entender a ênfase com que disse a pastora dos Cantares: Tulerunt pallium meum mihi (Cânt. 5,7): Tomaram-me a minha capa a
mim — porque se pode roubar a capa a um homem, tomando-a não a ele, senão a
outrem. Assim o fez a astúcia deste ladrão, que roubou o dinheiro a seu amo,
tomando-o não a ele senão aos que lho deviam. De sorte que o que dantes era um
ladrão, depois foi muitos ladrões, não se contentando de o ser ele só, senão de
fazer a outros. Mas vá ele muito embora ao inferno, e vão os outros com ele, e
os príncipes imitem ao Senhor, que se livrou de ir também, com o privar do
ofício tão prontamente.
CAPÍTULO X
Esta doutrina em geral, pois é de
Cristo, nenhum entendimento cristão haverá que a não venere. Haverá, porém,
algum político tão especulativo que a queira limitar a certo gênero de
sujeitos, e que funde as exceções no mesmo texto. O sujeito em que se fez esta
execução, chama-lhe o texto villico:
logo, em pessoas vis, ou de inferior condição, será bem que se executem estes e
semelhantes rigores, e não em outras de diferente suposição, com as quais, por
sua qualidade e outras dependências, é lícito e conveniente que os reis
dissimulem. Oh! como está o inferno cheio dos que com estas e outras
interpretações, por adularem os grandes e os supremos, não reparam em os
condenar! Mas, para que não creiam a aduladores, creiam a Deus, e ouçam.
Revelou Deus a Josué que se tinha cometido um furto nos despojos de Jericó,
depois de lho ter bem custosamente significado, com o infeliz sucesso do seu
exército. E mandou-lhe que, descoberto o ladrão, fosse queimado. Fez-se
diligência exata, e achou-se que um, chamado Acã tinha furtado uma capa de grã,
uma regra de ouro, e algumas moedas de prata, que tudo não valia cem cruzados.
Mas quem era este Acã? Era porventura algum homem vil, ou algum soldadinho da
fortuna, desconhecido e nascido das ervas? Não era menos que do sangue real de
Judá, e por linha masculina, quarto neto seu. Pois, uma pessoa de tão alta
qualidade, que ninguém era ilustre em todo Israel, senão pelo parentesco que
tinha com ele, há de morrer queimado por ladrão? E por um furto, que hoje seria
venial, há de ficar afrontada para sempre uma casa tão ilustre? Vós direis que
era bem se dissimulasse; mas Deus, que o entende melhor que vós, julgou que
não. Em matéria de furtar não há exceção de pessoas, e quem se abateu a tais
vilezas, perdeu todos os foros. Executou-se com efeito a lei, foi justiçado e
queimado Acã, ficou o povo ensinado com o exemplo, e ele foi venturoso no mesmo
castigo, porque, como notam graves autores, comutou-lhe Deus aquele fogo
temporal pelo que havia de padecer no inferno, felicidade que impedem aos
ladrões os que dissimulam com eles.
E quanto à dissimulação que se
diz devem ter os reis com pessoas de grande suposição, de quem talvez depende a
conservação do bem público, e são mui necessárias a seu serviço, respondo com
distinção. Quando o delito é digno de morte, pode-se dissimular o castigo e
conceder-se às tais pessoas a vida; mas quando o caso é de furto, não se lhes
pode dissimular a ocasião, mas logo logo devem ser privadas do posto. Ambas
estas circunstâncias concorreram no crime de Adão. Pôs-lhe Deus preceito que
não comesse da árvore vedada, sob pena de que morreria no mesmo dia: In quocumque die comederis, morte morieris .
Não guardou Adão o preceito, roubou o fruto, e ficou sujeito, ipso facto, à
pena de morte. Mas, que fez Deus neste caso? Lançou-o logo do Paraíso, e
concedeu-lhe a vida por muitos anos. Pois, se Deus o lançou do Paraíso pelo
furto que tinha cometido, por que não executou também nele a pena de morte a
que ficou sujeito? Porque da vida de Adão dependia a conservação e propagação
do mundo, e quando as pessoas são de tanta importância, e tão necessárias ao
bem público, justo é que, ainda que mereçam a morte, se lhes permita e conceda
a vida. Porém, se juntamente são ladrões, de nenhum modo se pode consentir nem
dissimular que continuem no posto e lugar onde o foram, para que não continuem
a o ser. Assim o fez Deus, e assim o disse. Pôs um querubim com uma espada de
fogo à porta do Paraíso, com ordem que de nenhum modo deixasse entrar a Adão. E
por quê? Porque assim como tinha furtado da árvore da ciência, não furtasse
também da árvore da vida: Ne forte mittat
manum suam, et sumat etiam de ligno vitae, Quem foi mau uma vez, presume o
Direito que o será outras, e que o será sempre. Saia pois Adão do lugar onde
furtou, e não torne a entrar nele, para que não tenha ocasião de fazer outros
furtos, como fez o primeiro. E notai que Adão, depois de ser privado do
Paraíso, viveu novecentos e trinta anos. Pois, a um homem castigado e
arrependido, não lhe bastaram cem anos de privação do posto, não lhe bastarão
duzentos ou trezentos? Não. Ainda que haja de viver novecentos anos, e houvesse
de viver nove mil, uma vez que roubou, e é conhecido por ladrão, nunca mais
deve ser restituído, nem há de entrar no mesmo posto.
CAPÍTULO XI
Assim o fez Deus com o primeiro
homem do mundo, e assim o devem executar com todos os que estão em lugar de
Deus. Mas que seria se não só víssemos os ladrões conservados nos lugares onde
roubam, senão, depois de roubarem, promovidos a outros maiores? Acabaram-se-me
aqui as Escrituras, porque não há nelas exemplo semelhante. De reis que
mandassem conquistar inimigos, sim, mas de reis que mandassem governar
vassalos, não se lê tal coisa. Os Assueros, os Nabucos, os Ciros, que dilatavam
por armas os seus impérios, desta maneira premiavam os capitães, acrescentando
em postos os que mais se sinalavam em destruir cidades e acumular despojos, e
daqui se faziam os Nabusardões, os Holofernes, e os outros flagelos do mundo.
Porém os reis, que tratam os vassalos como seus, e os Estados, posto que
distantes, como fazenda própria, e não alheia, lede o Evangelho, e vereis quais
são os sujeitos, e quão úteis a quem encomendam o governo deles.
Um rei, diz Cristo, Senhor nosso,
fazendo ausência do seu reino à conquista de outro, encomendou a administração
da sua fazenda a três criados. O primeiro acrescentou-a dez vezes mais do que
era, e o rei, depois de o louvar, o promoveu ao governo de dez cidades: Euge bone serve, quia in modico fuisti
fidelis, eris potestatem habens super decem civitates. O segundo também
acrescentou à parte que lhe coube cinco vezes mais, e com a mesma proporção o
fez o rei governador de cinco cidades: Et
tu esto super quinque civitates. De sorte que os que o rei acrescenta e
deve acrescentar nos governos, segundo a doutrina de Cristo, são os que
acrescentam a fazenda do mesmo rei, e não a sua. Mas vamos ao terceiro criado.
Este tornou a entregar quanto o rei lhe tinha encomendado, sem diminuição
alguma, mas também sem melhoramento, e no mesmo ponto, sem mais réplica, foi
privado da administração: Auferte ab illo
mnam. Oh! que ditosos foram os nossos tempos, se as culpas por que este
criado foi privado do ofício foram os serviços e merecimentos por que os dagora
são acrescentados! Se o que não tomou um real para si, e deixou as coisas no
estado em que lhas entregaram, merece privação do cargo, os que as deixam
destruídas e perdidas, e tão diminuídas e desbaratadas, que já não têm
semelhança do que foram, que merecem? Merecem que os despachem, que os
acrescentem e que lhes encarreguem outras maiores, para que também as consumam
e tudo se acabe? Eu cuidava que, assim como Cristo introduziu na sua parábola
dois criados que acrescentaram a fazenda do rei, e um que a não acrescentou,
assim havia de introduzir outro que a roubasse, com que ficava a divisão
inteira. Mas não introduziu o divino Mestre tal criado, porque falava de um rei
prudente e justo, e os que têm estas qualidades — como devem ter, sob pena de
não serem reis — nem admitem em seu serviço, nem fiam a sua fazenda a sujeitos
que lha possam roubar: a algum que não lha acrescente, poderá ser, mas um só;
porém a quem lhe roube, ou a sua, ou a dos seus vassalos — que não deve
distinguir da sua — não é justo, nem reis quem tal consente. E que seria se
estes, depois de roubarem uma cidade, fossem promovidos ao governo de cinco, e,
depois de roubarem cinco, ao governo de dez?
Que mais havia de fazer um
príncipe cristão, se fora como aqueles príncipes infiéis, de quem diz Isaías: Principes tui infideles, socii furum
(Is. 1, 23): Os príncipes de Jerusalém não são fiéis, senão infiéis, porque são
companheiros dos ladrões. — Pois saiba o profeta que há príncipes fiéis e
cristãos, que ainda são mais miseráveis e mais infelizes que estes, porque um
príncipe que entrasse em companhia com os ladrões: Socii furum, havia de ter também a sua parte no que se roubasse;
mas estes estão tão fora de ter parte no que se rouba, que eles são os
primeiros, os mais roubados. Pois, se são os roubados estes príncipes, como são
ou podem ser companheiros dos mesmos ladrões: Principes tui socii furum? Será porventura porque talvez os que
acompanham e assistem aos príncipes são ladrões? Se assim fosse, não seria
coisa nova. Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes, chamavam-se laterones. E depois, corrompendo-se este
vocábulo, como afirma Marco Varro, chamaram-se latrones. E que seria se assim, como se corrompeu o vocábulo, se
corrompessem também os que o mesmo vocábulo significa? Mas eu nem digo nem
cuido tal coisa. O que só digo e sei, por ser teologia certa, é que em qualquer
parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: Principes tui socii furum: Os teus
príncipes são companheiros dos ladrões. — E por quê? São companheiros dos
ladrões, porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque os
consentem; são companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e os poderes;
são companheiros dos ladrões porque talvez os defendem, e são, finalmente, seus
companheiros, porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os
mesmos ladrões os levam consigo.
Ouvi a ameaça e sentença de Deus
contra estes tais: Si videbas furem,
currebas cum eo; o hebreu lê concurrebas, e tudo é, porque há príncipes que
correm com os ladrões e concorrem com eles. Correm com eles, porque os admitem
à sua familiaridade e graça, e concorrem com eles, porque, dando-lhes
autoridade e jurisdições, concorrem para o que eles furtam. E a maior
circunstância desta gravíssima culpa consiste no Si videbas. Se estes ladrões foram ocultos, e o que corre e
concorre com eles não os conhecera, alguma desculpa tinha; mas se eles são
ladrões públicos e conhecidos, se roubam sem rebuço e à cara descoberta, se
todos os vêem roubar, e o mesmo que os consente e apóia o está vendo: Si videbas furem, que desculpa pode ter
diante de Deus e do mundo? Existimasti inique quod ero tui similis (Sl. 49,
21): Cuidas tu, ó injusto — diz Deus — que hei de ser semelhante a ti — e que,
assim como tu dissimulas com estes ladrões, hei eu de dissimular contigo? —
Enganas-te. Arguam te, et statuam contra
faciam tuam: Dessas mesmas ladroíces, que tu vês e consentes, hei de fazer
um espelho em que te vejas — e quando vires que és tão réu de todos esses
furtos, como os mesmos ladrões, porque os não impedes, e mais que os mesmos
ladrões, porque tens obrigação jurada de os impedir, então conhecerás que
tanto, e mais justamente que a eles, te condeno ao inferno. Assim o declara com
última e temerosa sentença a paráfrase caldaica do mesmo texto: Arguam te in hoc saeculo, et ordinabo
judicium Gehennae in futuro coram te: Neste mundo argüirei a tua
consciência, como agora a estou argüindo, e no outro mundo condenarei a tua
alma ao inferno, como se verá no dia do Juízo.
CAPÍTULO XII
Grande lástima será naquele dia,
senhores, ver como os ladrões levam consigo muitos reis ao inferno; e para que
esta sorte se troque em uns e outros, vejamos agora como os mesmos reis, se
quiserem, podem levar consigo os ladrões ao Paraíso. Parecerá a alguém, pelo
que fica dito, que será coisa muito dificultosa, e que se não pode conseguir
sem grandes despesas, mas eu vos afirmo, e mostrarei brevemente, que é coisa
muito fácil, e que sem nenhuma despesa de sua fazenda, antes com muitos
aumentos dela, o podem fazer os reis. E de que modo? Com uma palavra, mas
palavra de rei. Mandando que os mesmos ladrões, os quais não costumam
restituir, restituam efetivamente tudo o que roubaram. Executando-o assim,
salvar-se-ão os ladrões e salvar-se-ão os reis. Os ladrões salvar-se-ão, porque
restituirão o que têm roubado, e os reis salvar-se-ão também, porque
restituindo os ladrões, não terão eles obrigação de restituir. Pode haver ação
mais justa, mais útil e mais necessária a todos? Só quem não tiver fé, nem
consciência, nem juízo, o pode negar.
E porque os mesmos ladrões se não
sintam de haverem de perder por este modo o fruto das suas indústrias,
considerem que, ainda que sejam tão maus como o mau ladrão, não só deviam
abraçar e desejar esta execução, mas pedi-la aos mesmos reis. O bom ladrão
pediu a Cristo, como a rei, que se lembrasse dele no seu reino, e o mau ladrão,
que lhe pediu? Si tu es Christus, salvum
fac temetipsum et nos (Lc. 23,39): Se sois o rei prometido, como crê meu
companheiro, salvai-vos a vós e a nós. — Isto pediu o mau ladrão a Cristo, e o
mesmo devem pedir todos os ladrões a seu rei, posto que sejam tão maus como o
mau ladrão. Nem Vossa Majestade, Senhor, se pode salvar, nem nós nos podemos
salvar sem restituir: nós não temos ânimo nem valor para fazer a restituição,
como nenhum a faz, nem na vida, nem na morte; mande-a, pois, fazer
executivamente Vossa Majestade, e, por este modo, posto que para nós seja
violento, salvar-se-á Vossa Majestade a si, e mais a nós: Salvum fac temetipsum et nos. Creio que nenhuma consciência haverá
cristã, que não aprove este meio. E para que não fique em generalidade, que é o
mesmo que no ar, desçamos à prática dele, e vejamos como se há de fazer. Queira
Deus que se faça!
O que costumam furtar nestes
ofícios e governos os ladrões de que falamos, ou é a fazenda real, ou a dos
particulares, e uma e outra têm obrigação de restituir depois de roubada, não
só os ladrões que a roubaram, senão também os reis, ou seja porque dissimularam
e consentiram os furtos quando se faziam, ou somente — que isto basta — por
serem sabedores deles depois de feitos. E aqui se deve advertir uma notável
diferença — em que se não repara — entre a fazenda dos reis e a dos
particulares. Os particulares, se lhes roubam a sua fazenda, não só não são
obrigados à restituição, antes terão nisso grande merecimento, se o levarem com
paciência, e podem perdoar o furto a quem os roubou. Os reis são de muito pior
condição nesta parte, porque, depois de roubados, têm eles obrigação de
restituir a própria fazenda roubada, nem a podem dimitir ou perdoar aos que a
roubaram. A razão da diferença é porque a fazenda do particular é sua: a do rei
não é sua, senão da República. E assim como o depositário, ou tutor, não pode
deixar alienar a fazenda que lhe está encomendada e teria obrigação de a
restituir,assim tem a mesma obrigação o rei, que é tutor e como depositário dos
bens e erário da República, a qual seria obrigado a gravar com novos tributos,
se deixasse alienar ou perder as suas rendas ordinárias.
O modo pois com que as
restituições da fazenda real se podem fazer facilmente, ensinou aos reis um
monge, o qual, assim como soube furtar, soube também restituir. Refere o caso
Mayolo, Crantzio e outros. Chamava-se o monge frei Teodorico, e porque era
homem de grande inteligência e indústria, cometeu-lhe o imperador Carlos Quinto
algumas negociações de importância, em que ele se aproveitou de maneira que
competia em riquezas com os grandes senhores. Advertido o imperador, mandou-o
chamar à sua presença, e disse-lhe que se aparelhasse para dar contas. Que
faria o pobre, ou rico monge? Respondeu sem se assustar que já estava
aparelhado, que naquele mesmo ponto as daria, e disse assim: — Eu, César,
entrei no serviço de Vossa Majestade com este hábito, e dez ou doze tostões na
bolsa, da esmola das minhas Missas; deixe-me Vossa Majestade o meu hábito e os
meus tostões, e tudo o mais que possuo, mande-o Vossa Majestade receber, que é
seu, e tenho dado contas. — Com tanta facilidade como isto fez a sua
restituição o monge, e ele ficou guardando os seus votos, e o imperador a sua
fazenda. Reis e príncipes mal servidos, se quereis salvar a alma e recuperar a
fazenda, introduzi, sem exceção de pessoas, as restituições de frei Teodorico.
Saiba-se com que entrou cada um; o de mais torne para donde saiu, e salvem-se
todos.
CAPÍTULO XIII
A restituição que igualmente se
deve fazer aos particulares parece que não pode ser tão pronta nem tão exata,
porque se tomou a fazenda a muitos e a províncias inteiras. Mas como estes
pescadores do alto usaram de redes varredouras, use-se também com eles das
mesmas. Se trazem muito, como ordinariamente trazem, já se sabe que foi
adquirido contra a lei de Deus, ou contra as leis eregimentos reais, e por
qualquer destas cabeças, ou por ambas, injustamente. Assim se tiram da Índia
quinhentos mil cruzados, de Angola duzentos, do Brasil trezentos, e até do
pobre Maranhão mais do que vale todo ele. E que se há de fazer desta fazenda?
Aplicá-la o rei à sua alma e às dos que a roubaram, para que umas e outras se
salvem. Dos governadores que mandava a diversas províncias o Imperador
Maximino, se dizia com galante e bem apropriada semelhança, que eram esponjas.
A traça ou astúcia com que usava destes instrumentos era toda encaminhada a
fartar a sede da sua cobiça, porque eles, como esponjas, chupavam das
províncias que governavam tudo quanto podiam, e o imperador, quando tornavam,
espremia as esponjas, e tomava para o fisco real quanto tinham roubado, com que
ele ficava rico, e eles castigados. Uma coisa fazia mal este imperador, outra
bem, e faltava-lhe a melhor. Em mandar governadores às províncias homens que
fossem esponjas fazia mal; em espremer as esponjas quando tornavam, e lhes
confiscar o que traziam, fazia bem, e justamente; mas faltava-lhe a melhor,
como injusto e tirano que era, porque tudo o que espremia das esponjas não o
havia de tomar para si, senão restituí-lo às mesmas províncias donde se tinha
roubado. Isto é o que são obrigados a fazer em consciência os reis que se
desejam salvar, e não cuidar que satisfazem ao zelo e obrigação da justiça, com
mandar prender em um castelo o que roubou a cidade, a província, o estado. Que
importa que por alguns dias ou meses se lhe dê esta sombra de castigo, se
passados eles se vai lograr do que trouxe roubado, e os que padeceram os danos
não são restituídos. Há nesta, que parece justiça, um engano gravíssimo, com
que nem o castigado, nem o que castiga se livram da condenação eterna; e para
que se entenda ou queira entender este engano, é necessário que se declare.
Quem tomou o alheio fica sujeito a duas satisfações: à pena da lei e à
restituição do que tomou. Na pena, pode dispensar o rei como legislador; na
restituição não pode, porque é indispensável. E obra-se tanto pelo contrário,
ainda quando se faz ou se cuida que se faz justiça, que só se executa a pena,
ou alguma parte da pena, e a restituição não lembra, nem se faz dela caso.
Acabemos com Santo Tomás. Põe o Santo doutor em questão: Utrum sufficiat restituere simplim quod injuste ablatum est: Se,
para satisfazer à restituição, basta restituir outro tanto quanto foi o que se
tomou? — E depois de resolver que basta, porque a restituição é ato de justiça,
e a justiça consisteem igualdade, argumenta contra a mesma resolução, com a lei
do capítulo vinte e dois do Êxodo, em que Deus mandava que quem furtasse um boi
restituísse cinco; logo, ou não basta restituir tanto por tanto, senão muito
mais do que se furtou; ou, se basta, como está resoluto, de que modo se há de
entender esta lei? Há-se de entender, diz o santo, distinguindo na mesma lei
duas partes: uma enquanto lei natural, pelo que pertence à restituição, e outra
enquanto lei positiva, pelo que pertence à pena. A lei natural, para guardar a
igualdade do dano, só manda que se restitua tanto por tanto; a lei positiva,
para castigar o crime do furto, acrescentou em pena mais quatro anos, e por
isso manda pagar cinco por um. Há-se porém de advertir, acrescenta o santo
Doutor, que entre a restituição e a pena há uma grande diferença, porque à
satisfação da pena não está obrigado o criminoso antes da sentença, porém à
restituição do que roubou, ainda que o não sentenciem nem obriguem, sempre está
obrigado.
Daqui se vê claramente o
manifesto engano ainda dessa pouca justiça, que poucas vezes se usa. Prende-se
o que roubou, e mete-se em livramento. Mas que se segue daí? O preso, tanto que
se livrou da pena do crime, fica muito contente; o rei cuida que satisfez à
obrigação da justiça, e ainda se não tem feito nada, porque ambos ficam
obrigados à inteira restituição dos mesmos roubos, sob pena de se não poderem
salvar. O réu porque não restitui, e o rei porque o não faz restituir. Tire,
pois, o rei executivamente a fazenda a todos os que a roubaram, e faça as
restituições por si mesmo, pois eles as não fazem, nem hão de fazer, e deste
modo — que não há, nem pode haver outro — em vez de os ladrões levarem os reis
ao inferno, como fazem, os reis levarão os ladrões ao Paraíso, como fez Cristo:
Hodie mecum eris in Paradiso.
CAPÍTULO XIV
Tenho acabado, senhores, o meu
discurso, e parece-me que demonstrado o que prometi, de que não estou arrependido. Se a alguém pareceu que me
atrevi a dizer o que fora mais reverência calar, respondo com Santo Hilário: Quae loqui non audemus, silere non possumus:
O que se não pode calar com boa consciência, ainda que seja com repugnância, é
força que se diga. — Ouvinte coroado era aquele a quem o Batista disse: Non licet tibi, e coroado também, posto
que não ouvinte, aquele a quem Cristo mandou dizer: Dicite vulpi illi. Assim o fez animosamente Jeremias, porque era
mandado por pregador Regibus Juda, et
Principibus ejus. E se Isaías o tivera feito assim, não se arrependera
depois, quando disse: Vae mihi, quia
tacui. Os médicos dos reis com tanta e maior liberdade lhes devem receitar
a eles o que importa à sua saúde e vida, como aos que curam nos hospitais. Nos
particulares, cura-se um homem; nos reis, toda a República.
Resumindo pois o que tenho dito,
nem os reis, nem os ladrões, nem os roubados se podem molestar da doutrina que
preguei, porque a todos está bem. Está bem aos roubados, porque ficarão
restituídos do que tinham perdido; está bem aos reis, porque sem perda, antes
com aumento da sua fazenda, desencarregarão
suas almas. E, finalmente, os mesmos ladrões, que parecem os mais prejudicados,
são os que mais interessam. Ou roubaram com tenção de restituir, ou não: se com
tenção de restituir, isso é o que eu lhes digo, e que o façam a tempo. Se o
fizeram sem essa tenção, fizeram logo conta de ir ao inferno, e não podem estar
tão cegos que não tenham por melhor ir ao Paraíso. Só lhes pode fazer medo
haverem de ser despojados do que despojaram aos outros, mas, assim como estes
tiveram paciência por força, tenham-na eles com merecimento. Se os esmoleres
compram o céu com o próprio, por que se não contentarão os ladrões de o comprar
com o alheio? A fazenda alheia e a própria toda se alija ao mar, sem dor, no
tempo da tempestade. E quem há que, salvando-se do naufrágio a nado e despido,
não mande pintar a sua boa fortuna, e a dedique aos altares com ação de graças?
Toda a sua fazenda dará o homem de boa vontade por salvar a vida, diz o
Espírito Santo, e quanto de melhor vontade deve dar a fazenda, que não é sua,
por salvar, não a vida temporal, senão a eterna? O que está sentenciado à morte
e à fogueira, não se teria por muito venturoso, se lhe aceitassem por partido a
confiscação só dos bens? Considere-se cada um na hora da morte, e com o fogo do
inferno à vista, e verá se é bom partido o que lhe persuado. Se as vossas mãos
e os vossos pés são causa de vossa condenação, cortai-os, e se os vossos olhos,
arrancai-os, diz Cristo, porque melhorvos está ir ao Paraíso manco, aleijado e
cego, que com todos os membros inteiros ao inferno. É isto verdade, ou não?
Acabemos de ter fé, acabemos de crer que há inferno, acabemos de entender que
sem restituir ninguém se pode salvar. Vede, vede, ainda humanamente, o que
perdeis, e por quê. Nesta restituição, ou forçosa, ou forçada, que não quereis
fazer, que é o que dais e o que deixais? O que dais, é o que não tínheis; o que
deixais é o que não podeis levar convosco, e por isso vos perdeis. Nu entrei
neste mundo, e nu hei de sair dele, dizia Jó, e assim saíram o bom e o mau
ladrão. Pois, se assim há de ser, queirais ou não queirais, despido por
despido, não é melhor ir com o bom ladrão ao Paraíso, que com o mau ao inferno?
Rei dos reis e Senhor dos
senhores, que morrestes entre ladrões para pagar o furto do primeiro ladrão, e
o primeiro a quem prometestes o Paraíso foi outro ladrão, para que os ladrões e
os reis se salvem, ensinai com vosso exemplo, e inspirai com vossa graça a
todos os reis, que, não elegendo, nem dissimulando, nem consentindo, nem
aumentando ladrões, de tal maneira impidam os furtos futuros, e façam restituir
os passados, que em lugar de os ladrões os levarem consigo, como levam, ao
inferno, levem eles consigo os ladrões ao Paraíso, como vós fizestes hoje: Hodie mecum eris in Paradiso.
---
Fonte:
Padre Antônio Vieira: "Sermão do Bom Ladrão" (1655)
---
Fonte:
Padre Antônio Vieira: "Sermão do Bom Ladrão" (1655)
Nenhum comentário:
Postar um comentário