SERMÃO
DE TODOS OS SANTOS
Beati mundo corde.
CAPÍTULO I
A
festa mais universal e a festa mais particular, a festa mais de todos e a festa
mais de cada um, é aque hoje celebra e nos manda celebrar a Igreja. É a festa
mais universal e mais de todos, porque, começando pela fonte de toda a
santidade, que é Cristo, e pela Rainha de todos os santos, que é a Virgem
Santíssima, fazemos festa hoje a todas as hierarquias dos anjos, fazemos festa
aos patriarcas e aos profetas, aos apóstolos e aos mártires, aos confessores e
às virgens. E não há bem-aventurado na Igreja triunfante, ou canonizado ou não
canonizado, ou conhecido ou não conhecido na militante, que não tenha a sua
parte ou o seu todo neste grande dia. E este mesmo dia tão universal e tão de
todos, é também o mais particular e mais próprio de cada um, porque hoje se
celebram os santos de cada nação, os santos de cada reino, os santos de cada
religião, os santos de cada cidade, os santos de cada família. Vede quão nosso
e quão particular é este dia. Não só celebramos os santos desta nossa cidade,
senão cada um de nós os santos da nossa família e do nosso sangue. Nenhuma
família de cristãos haverá tão desgraciada que não tenha muitos ascendentes na
glória. Fazemos pois hoje festa a nossos pais, a nossos avós, a nossos irmãos,
e os que tendes filhos no céu, ou inocentes ou adultos, fazeis também festa
hoje a vossos filhos. Ainda é mais nossa esta festa, porque, se Deus nos fizer
mercê de que nos salvemos, também virá tempo, e não será muito tarde, em que
nós entremos no número de todos os santos, e também será nosso este dia. Agora
celebramos, e depois seremos celebrados: agora nós celebramos a eles, e depois
outros nos celebrarão a nós. Esta última consideração, que é tão verdadeira,
foi a que fez alguma devoção à minha tibieza neste dia tão santo, e quisera
tratar nele alguma matéria que nos ajude a conseguir tão grande felicidade.
Dividirei tudo o que disser em dois discursos, fundados nas duas palavras que
tomei por tema, e nas duas do título da festa. Pois a festa é de todos os
santos, no primeiro discurso veremos quão grande coisa é ser santos, e no
segundo, quão facilmente o podemos ser todos. O primeiro nos dá a primeira
palavra do tema: beati; o segundo nos
dará a segunda: mundo corde. Digamos
à Virgem Santíssima: Regina Sanctorum
omnium ora pro nobis, e ofereçamos-lhe a costumada Ave Maria.
CAPÍTULO II
Beati mundo corde.
A
mais poderosa inclinação e o mais poderoso apetite do homem é desejar ser. Bem
nos conhecia este natural o demônio,
quando esta foi a primeira pedra sobre que fundou a ruína a nossos primeiros
pais. A primeira coisa que lhe disse e que lhe prometeu foi que seriam: Eritis (Gên. 3,5), e este eritis, este sereis foi o que destruiu o
mundo. Não está o erro em desejarem os homens ser, mas está em não desejarem
ser o que importa. Uns desejam ser ricos, outros desejam ser nobres, outros
desejam ser sábios, outros desejam ser poderosos, outros desejam ser conhecidos
e afamados, e quase todos desejam tudo isto, e todos erram. Só uma coisa devem
os homens desejar ser, que é ser santos. Assim emendou Deus o sereis do demônio
com outro sereis, dizendo: Sancti eritis,
quia Ego sanctus sum. O demônio disse: Sereis como Deus, sendo sábios; e
Deus disse: Sereis como Deus, sendo santos. E vai tanto de um sereis a outro
sereis, que o sereis do demônio não só nos tirou o ser como Deus, mas tirou-nos
também o ser, porque nos tirou o ser santos, e o sereis de Deus, exortando-nos
a ser santos, como ele é, não só nos restitui o ser como Deus, senão também o
ser. Quando Moisés perguntou a Deus o que era, respondeu Deus definindo-se: Ego sum qui sum (Êx. 3,14): Eu sou o que
sou — porque só Deus tem por essência o ser. Agora diz a todos os homens por
boca do mesmo Moisés: Se sois tão amigos e tão ambiciosos de ser, sede santos,
e sereis, porque tudo o que não é ser santo, é não ser. Sede rei, sede
imperador, sede papa: se não sois santo, não sois nada. Pelo contrário, ainda
que sejais a mais vil e mais desprezada criatura do mundo, se sois santo, sois
tudo o que pode chegar a ser o maior e mais bem afortunado homem, porque sois
como aquele que só é e só tem ser, que é Deus. Todo o outro ser, por maior que
pareça, não é, porque vem a parar em não ser. Só o ser santo é o verdadeiro ser,
porque é o que só é, e o que há de permanecer por toda a eternidade.
Bastava
esta só razão para os homens, que temos alma imortal, desejarmos a santidade
sobre todas as coisas, e desprezarmos todas as coisas só por ser santos. Mas
quero que os mesmos santos e todos os santos nos ensinem e animem a esta
verdade. Todos os santos quantos há e pode haver, pela mesma ordem em que hoje
os celebra a Igreja, se reduzem a quatro classes. Deus, que também se preza de
ser e de se chamar santo; a Mãe de Deus, que é a mais santa entre todas as
puras criaturas; os santos anjos, repartidos em nove coros; os homens santos,
divididos em seis hierarquias. Ora, vejamos como todos estes santos nos ensinam
a estimar sobre tudo o ser santos, e comecemos por Deus.
Se
perguntarmos aos teólogos qual é o maior atributo de Deus, responder-nos-ão que
todos são iguais, porque todos e cada um deles é Deus. Mas se perguntarmos qual
é o que mais declara e engrandece o ser do mesmo Deus, S. Dionísio Areopagita,
que é o que mais altamente escreveu dos atributos divinos, diz que o ser santo:
Deus per excellentiam cuncta excellentem
Sanctus Sanctorum praedicatur. Quando dizemos que Deus é santo, e Santo dos
Santos, louvamos em Deus uma excelência que é mais excelente que todas: Excellentiam cuncta excellentem. O
grande doutor da Igreja, Santo Ambrósio, ainda disse mais, ou com maior
expressão: Nihil pretiosius invenimus,
quo Deus praedicare possimus, nisi ut sanctum apellemus: quodlibet aliud
inferius est Deo, inferius est Domino: Quando queremos louvar e engrandecer
a Deus, nenhuma coisa achamos de maior estimação e de maior preço que
chamar-lhe santo, porque tudo o demais que dissermos é inferior a Deus, e só
quando lhe chamamos santo dizemos o que é. Antigamente, como Deus era só
conhecido em Judéia, no resto do mundo havia muitos chamados deuses, os quais
todos tinham sacrifícios e sacerdotes. E que fez o verdadeiro Deus para se
distinguir dos deuses falsos? Mandou que o seu Sumo Sacerdote trouxesse na
testa uma lâmina de ouro com esta letra: Sanctum
Domino (Êx. 28,36): A santidade ao Senhor — porque só aquele Senhor, que
tem por atributo o ser santo, é o verdadeiro Deus.
Mais
fizeram os profetas, os quais, falando de Deus, deixavam o nome de Deus, e o
trocavam pelo nome de Santo. Lede Isaías e os demais, e achareis: Ad Sanctum Israel respicient:
Blasphemaverunt Sanctum Israel: In Sancto Israel laetaberis: Venia consilium
Sancti Israel, e assim em muitos outros lugares, não havendo panegírico,
invectiva ou declamação em que não tragam sempre na bocao Santo de Israel, o Santo de Israel. E que Santo de Israel é
este? É Abraão, Isaac, ou Jacó? É Moisés, Josué, ou Davi? É Elias ou Eliseu?
Não. O Santo de Israel, de que falam os profetas, é Deus. Pois, se é Deus, por
que lhe não chamam Deus, ou o Deus de Israel, senão o Santo de Israel? Porque
em Israel havia naquele tempo muitos idólatras, que veneravam e sacrificavam
aos deuses falsos da gentilidade; e para distinguir o Deus verdadeiro dos
deuses falsos, não acharam os profetas outra diferença mais individual, nem
outra distinção mais adequada, que chamar-lhe o Santo. Se lhe chamaram Deus,
equivocava-se o nome de Deus com o dos ídolos, a quem os idólatras também
chamavam deuses; mas chamando-lhe o Santo, tiravam toda a equivocação e toda a
dúvida, porque só o atributo da santidade era o que distinguia e provava no
Deus de Israel a única e verdadeira divindade. Tanto significa, tanto monta, e
tão alta e divina coisa é, ainda no mesmo Deus, o ser santo. Mas, se os
profetas queriam distinguir o Deus verdadeiro dos falsos, por que não fundavam
a distinção na verdade, senão na santidade? Por que não diziam o verdadeiro de
Israel, senão o Santo de Israel? Porque, ainda que o verdadeiro se opõe
formalmente ao falso, mais se qualifica o ser divino pelo atributo de santo que
pelo de verdadeiro. Ouvi uma das maiores ponderações com que se pode avaliar e
conhecer quão sublime e divina coisa é, ainda na estimação e veneração do mesmo
Deus, o ser santo. Jurou Deus a Davi que seria o seu reino eterno, porque dele
descenderia o Messias; e como fez Deus este juramento, ou por quem jurou? Coisa
estupenda! Semel juravi in sancto meo, si
David mentiar: semen ejus in aeternum manebit (SI. 88, 36): Jurei a Davi,
pelo meu Santo, que não hei de faltar à verdade do que lhe prometi, e que há de
ser pai do Messias. — In Sancto meo,
pelo meu Santo! E que santo é este, pelo qual Deus jura? Já sabeis que
juramento se faz sempre por aquilo que mais se venera ou mais se estima. Fora
de nós, juramos pela vida de el-rei, pela cruz, por Cristo, por Deus, porque é
o que mais veneramos, dentro em nós, juramos por nossa vida, por nossa alma,
porque é o que mais estimamos. Da mesma maneira, não tendo Deus fora de si por
quem jurar, jura pelo que tem dentro em si, e jura por si mesmo, enquanto
santo, porque o ser santo é o que mais estima, o que mais preza, e, se se pode
dizer assim, o que mais venera. Parece que havia Deus de jurar pela sua
verdade, e jura pela sua santidade, como se ficara mais estabelecida a verdade
do seu juramento na firmeza da sua santidade que da sua mesma verdade. Em Deus
tudo é igual, e tão verdadeiro é como santo, e tão santo como verdadeiro; mas
buscando Deus dentro de si mesmo um atributo que, ou fosse ou parecesse mais
soberano e mais digno de veneração, pelo qual pudesse jurar, jurou Deus
verdadeiro por Deus Santo: Semel juravi
in Sancto meo.
CAPÍTULO III
Por
tão altos e tão admiráveis termos como estes nos ensinou Deus em comum quão
grande coisa seja o ser santos, e o
mesmo documento confirmou cada uma das três Pessoas divinas em particular, por exemplos não menos maravilhosos. — Sobre a
Encarnação da Pessoa do Filho mandou o Eterno Padre por embaixador o anjo S. Gabriel, e o
que lhe deu por instrução que dissesse de sua parte à Virgem Santíssima, foi que o Filho de Deus e
seu, que de suas entranhas havia de nascer, seria santo: Ideoque,
et quod nascetur ex te sanctum, vocabitur Filius Dei. De sorte que, tendo o
Eterno Padre um Filho igual a si mesmo,
e querendo que por segunda geração e segundo nascimento, sendo Deus, fosse também homem, o que lhe deu a ele, e o
que prometeu à sua Mãe, foi que seria santo: Quod nascetur ex te sanctum.
Notai o sanctum e o ex te: santo, e de vós. Não lhe deu
riquezas, porque o fez Filho de uma Mãe
muito pobre: ex te; não lhe deu honras, porque o fez Filho de uma Mãe muito
humilde: ex te; não lhe deu mandos, nem dignidades, nem impérios temporais,
porque, ainda que a Virgem era descendente de reis, todos esses cetros e coroas
tinham já degenerado aos instrumentos mecânicos de um oficial, com quem era
desposada: ex te. E, que lhe deu? Deu-lhe o ser santo: Quo nascetur ex te sanctum. Pois a seu Filho não lhe daria outra
coisa um Pai onipotente? Os pais, tudo quanto têm e tudo quanto podem, dão a
seus filhos, e mais, se são primogênitos e únicos, como Cristo era. Pois a um
Filho primogênito, a um Filho único, um Pai todo-poderoso, um Pai Deus e Senhor
de tudo, não lhe dá outra coisa mais que o ser santo? Não, e por isso mesmo. Ao
Filho primogênito e único do Eterno Padre competia-lhe a herança de todos os
bens de seu pai; e todos os bens que Deus tem, e todos os que pode dar, é fazer
a um homem santo e mais santo, porque tudo o mais, ou não é nada, ou, para ser
alguma coisa, há de ser também santificado e santo. Enquanto Filho, herdeiro de
sua Mãe, pertenciam-lhe ao mesmo Cristo o cetro de Davi e a casa de Jacó, que
também Deus lhe mandou prometer: Dabit
illi sedem David patris ejus, et regnabit in domo Jacob; mas essa mesma
casa e esse mesmo cetro deu-lhe Deus a seu Filho por tal modo que, de temporal
que era, o converteu em espiritual, para que tudo nele fosse só santidade, e
ele, por todos os modos, mais e mais santo.
Vede
como dizem o que digo, os que viram o mesmo Unigênito do Padre: Vidimus gloriam ejus, gloriam quasi unigeniti a Patre, plenum
gratiae et veritatis: Vimos — diz S. João — a sua glória, a sua majestade, a sua grandeza, e bem mostrava
que era glória, que era majestade, que era grandeza de Filho Unigênito do Eterno Padre. — E em que
consistia essa glória, essa majestade e essa grandeza? Plenum
gratiae et veritatis: em ser cheio de graça e de verdade. — A graça é a
santidade formal, ou a forma
santificante, que faz e denomina santos; e nesta graça, nesta santidade, neste
ser santo consistia toda a glória, toda
a grandeza e toda a majestade do único herdeiro do Padre. E se perguntardes ao evangelista a razão de serem só estes os bens
que contém a herança de um Pai todo-poderoso e Senhor de tudo, o mesmo evangelista tem já
dado a razão nas mesmas palavras: Plenum
gratiae et veritatis: cheio de graça
e de verdade. Porque tudo o que não é graça de Deus e santidade, é mentira. As riquezas mentira, as honras mentira, os
mandos mentira: só o estar em graça de Deus é verdade, só o viver em graça de Deus é verdade, só o
morrer em graça de Deus, em que consiste o ser santo, é verdade: Plenum
gratiae et veritatis. Isto deu o Eterno Padre a seu Filho, para que vós
aprendais a saber o que haveis de
procurar aos vossos. Procurai-lhes que sejam santos, e esta é a maior riqueza,
a maior honra, a maior felicidade que
lhes podeis alcançar, e os maiores e só verdadeiros bens de que os podeis deixar por herdeiros.
Vamos
à Pessoa do Filho. A Pessoa do Filho é a Sabedoria de Deus. Fez-se homem a
Sabedoria Divina, veio ao mundo para
ensinar aos homens, e que lhes ensinou? Nenhuma outra coisa, senão a ser santos. Naquela escada de Jacó, como todos
sabeis, representou-se em visão e profecia a Encarnação do Verbo Encarnado. No alto da
escada estava Deus inclinado sobre ela, porque uma das Pessoas divinas havia de descer ao mundo; ao
pé da escada estava Jacó, que era o homem, ou o gênero humano, porque o modo com que Deus
havia de descer era encarnando e fazendo-se homem; e a escada chegava da terra ao céu, porque o fim
do mistério da Encarnação, e o fim por que Deus desceu do céu à terra, foi para ensinar e
mostrar ao homem como havia de subir da terra ao céu. E para esta subida tão notável e tão nova, que
até então estava ignorada, que é o que ensinou o Deus que desceu e encarnou, que é o que ensinou o Verbo
e a Sabedoria divina a Jacó, ou ao homem, que nele se representava? O mesmo Verbo o diz no
capítulo décimo da mesma Sabedoria, falando do mesmo Jacó: Ostendit
illi regnum Dei, et dedit illi scientiam sanctorum (Sab. 10,10):
Mostrou-lhe o céu e o reino de Deus, e
ensinou-lhe a ciência de ser santo. — De sorte que, vindo a Sabedoria divina em
pessoa, e descendo do céu à terra a ser Mestre dos homens, a nova cadeira que
instituiu nesta grande universidade do mundo, a ciência que professou, foi só
ensinar a ser santos, e nenhuma outra. A Retórica deixou-a aos Túlios e aos
Demóstenes: a Filosofia aos Platões e aos Aristóteles; as Matemáticas aos
Tolomeus e aos Euclides; a Medicina aos Apolos e aos Esculápios; a Jurisprudência
aos Solões e aos Licurgos: e para si tomou só a ciência de ensinar a salvar e
fazer santos: Regnum Dei, et scientiam
sanctorum.
Em
todas as ciências, é certo que há muitos erros, dos quais nasce a diferença das
opiniões; em todas as ciências há muitas
ignorâncias, as quais confessam todos os maiores letrados que não compreendem
nem alcançam. Pois, se vinha a Sabedoria de Deus ao mundo, por que não alumiou
estes erros, por que não tirou estas ignorâncias? Porque errar ou acertar em
todas estas matérias, sabê-las ou não as saber, nenhuma coisa importa: o que só
importa é saber salvar, o que só importa é acertar a ser santos, e isto é o que
só nos veio ensinar o Filho de Deus. Nem ensinou aos filósofos a composição do
contínuo, nem aos geômetras a quadratura do círculo, nem aos mercantes a altura
de Leste a Oeste, nem aos químicos o descobrimento da pedra filosofal, nem aos
médicos as virtudes das ervas, das plantas, das pedras e dos mesmos elementos,
nem aos astrólogos e astrônomos o curso, a grandeza, o número, as influências
dos astros: só nos ensinou a ser humildes, só nos ensinou a ser castos, só nos
ensinou a desprezar as riquezas, só nos ensinou a perdoar as injúrias, só nos
ensinou a sofrer as perseguições, só nos ensinou a chorar e aborrecer os
pecados, e a amar e exercitar as virtudes, porque estas são as regras e as
conclusões, estes os preceitos e os teoremas por onde se aprende a ser santos,
que é a ciência que professou e veio ensinar a Pessoa do Filho de Deus: Scientiam sanctorum.
A
Pessoa do Espírito Santo com o seu próprio nome nos prova e confirma o mesmo. O
Padre também é espírito, e também é
santo. Pois, por que se chama só a terceira Pessoa Espírito Santo? A razão é — dizem todos os teólogos — porque ao
Espírito Santo compete o ofício de santificar e de fazer santos. Todas as obras de Deus, que
chamam ad extra, isto é, que saem de
Deus e se terminam às criaturas, são
indivisamente de toda a Santíssima Trindade, na qual o poder e o obrar não só é
igual, senão um só e o mesmo. Mas por
certa propriedade, fundada na natureza ou origem das mesmas pessoas, umas obras se atribuem a umas
pessoas, e outras a outras. E porque à terceira Pessoa se atribui particularmente o santificar e
fazer santos, por isso se chama Santo.
E
para que vejais quão grande significação é na mesma Pessoa do Espírito o nome
de Santo e o atributo ou atribuição de
santificar, notai o muito que com ela se supre, e a grande carência ou vazio que com ela se enche. O nome ou antonomásia de
Santo, e o ofício de santificar e fazer santos não lhe pudera competir ao Pai, que é a fonte original
e irascível da santidade? Não lhe pudera competir ao Filho, que foi o que, encarnando, nos mereceu
essa mesma santidade? Sim. Pois por que se deu ao Espírito Santo? Disse com alto pensamento
Ruperto, que para suprir a infecundidade da terceira Pessoa. A divindade no Padre é fecunda, no
Filho é fecunda, no Espírito Santo não é fecunda. No Padre é fecunda, porque gera o Filho; no Filho
é fecunda, porque, juntamente com o Padre, produz o Espírito Santo; no Espírito Santo só não é
fecunda, porque não produz outra Pessoa divina. Pois, que meio podia haver para suprir na terceira
Pessoa esta infecundidade? O meio foi cederem nela as outras Pessoas divinas a virtude ou atribuição
de santificar e fazer santos e o título e antonomásia de se chamar Santo. A terceira Pessoa não pode
gerar nem produzir pessoa que seja Deus? Pois faça santos. A terceira Pessoa não se pode chamar
Pai nem se pode chamar Filho? Pois chame-se Santo. Tão grande, tão alta, tão sublime, tão divina
coisa é ser Santo, e com tão maravilhosos documentos nos ensinaram esta verdade
em si mesmas as três Pessoas divinas.
CAPÍTULO IV
Depois
do Padre, Filho e Espírito Santo, segue-se a Filha do Padre, a Mãe do Filho, a
Esposa do Espírito Santo, a Virgem
Santíssima, a qual como a mais santa entre todas as mais puras criaturas nos
dirá melhor que todas quão grande bem é sermos santos. No capítulo vinte e
quatro do Eclesiástico nos refere a mesma Senhora como Deus, que a escolheu por
morada, lhe deu a herança de tudo quanto tinha vinculado ao povo de Israel, que
era o morgado do mesmo Deus: Tunc
praecepit et dixit mihi creator omnium; et qui creavit me requievit in
tabernaculo meo, ei dixit mihi: In Israel haereditare. E que vos parece que
escolheria e tomaria para si a Virgem Maria de toda a universidade de bens
naturais e sobrenaturais deste imenso morgado? Só tomou o que era santo, e
nenhuma outra coisa. Do que não era santo, posto que fosse precioso e estimado,
não quis nada, porque tudo é nada; do que era santo, tomou tudo, porque só o
ser santo é tudo. Ouçamos a mesma Senhora, e ponderemos o que diz com a atenção
que suas palavras merecem. Primeiramente, do que pertence ao lugar, diz que
escolhe uma cidade santa e uma casa santa, para nela servir a Deus em sua
presença, sem nenhum outro cuidado: In
habitatione sancta coram ipso ministravi, et in civitate sanctificata similiter
requievi. E quanto ao que pertencia à pessoa, sendo tantos e tão excelentes
os dotes naturais que Deus desde seu princípio tinha repartido com as mulheres
famosas daquela nação, de tudo isto nenhum caso fez a Senhora, tudo deixou,
tudo desprezou, e só tomou e quis para si a santidade de todos os santos: In plenitudine sanctorum detentio mea (Eclo.
24, 16): Detive-me — diz — na enchente de todos os santos — porque tudo o que
não é ser santo pode inchar, mas não pode encher — aqui me detive, aqui parei,
aqui insisti e não passei, nem tive para onde passar daqui.
Oh!
quem me dera ter neste auditório todas as senhoras do mundo, tão prendadas e
tão presas, tão tidas e tão retidas das vaidades do mesmo mundo, para que
vissem o de que só se haviam de deixar prender e deter, à imitação da maior
Senhora e Rainha de todas! Tudo quanto a apreensão e fantasia feminil estima e
preza, viu a benditíssima Virgem no grande teatro de Israel, de que Deus a
fizera herdeira: In Israel haereditare.
Viu a nobreza do sangue, antiga e ilustre em Sara, soberana e real em Micol,
mas não a deteve o esplendor da nobreza, nem lhe moveu ou alterou os espíritos.
Viu a formosura servida e adorada em Raquel, buscada e preferida em Abisai, mas
não a deteve a formosura, nem julgou por digna de ser vista a que leva após si
os olhos. Viu a fecundidade grande e invejada em Lia, maior e mais desvanecida
em Fenena, mas não a deteve o apetite natural de ser mãe, nem desejou
perpetuar-se em mais vidas. Viu a riqueza doméstica em Rebeca, e os tesouros
reais em Sulamites, mas não a deteve cobiça ou ambição de riquezas, porque
tinha o coração em outros tesouros. Viu as galas e afeitas de Jesabel, e todo o
valor do Oriente engastado nas jóias de Ester, mas não a deteve a aparência vã
dos aparatos do corpo, como a que só cuidava em ornar o espírito. Viu a que o
mundo chama ventura nas bodas não esperadas de Rute, e nas muito mais
venturosas de Séfora, mas não a deteve o especioso laço das bodas, antes lhe
fizeram horror as delícias do tálamo. Viu as vitórias e triunfos de Débora, e
os despojos e troféus da famosa Judite, mas não a deteve a fama com o ruído de
seus aplausos, nem afetou vitórias e triunfos. Viu, finalmente, coroada
Abigail, e assentada Bersabée em igual trono com Salomão, mas não a deteve a
soberania daquelas alturas, porque era mais alto o seu ânimo que os tronos, e
de maior esfera que as coroas.
Pois,
Senhora, se todos estes bens da natureza e da fortuna, se todas estas grandezas
e felicidades da vida, que os homens tanto estimam, tanto prezam e tanto
invejam, nem divididas, nem juntas vos encheram os olhos, se por todas passastes
pisando-as, e nenhuma vos pareceu digna, nem de vos deter um momento, nem de
vos fazer parar um passo, que é o que vistes, que só vos agradou, que é o que
vistes, que só vos deteve ou teve mão, para que ali parassem os passos do vosso
desejo, para que dali não passassem os vossos afetos? Vi a humildade, diz a
Senhora, vi o desprezo de si e do mundo, vi o recolhimento, vi o silêncio, vi a
modéstia, vi a temperança, vi a paciência, vi a fortaleza, vi a mortificação
das paixões e a resignação da própria vontade, vi o amor de Deus e a caridade
do próximo, vi, enfim, toda a santidade, virtudes e graça de que estiveram
cheios os santos, e nesta enchente de santidade é que só tomei pé, nesta parei,
nesta me detive e nesta me desenho: Et in
plenitudine sanctorum detentio mea. Isto é o que diz de si a Mãe de Deus. E
porque este foi o seu juízo e a sua eleição, por isso foi Mãe de Deus, não só
porque estimou o ser santa mais que todas as coisas, mas porque deixou e
desprezou todas as coisas para ser mais santa.
CAPÍTULO V
Os
anjos, que são a terceira classe dos santos que hoje celebra a Igreja, assim
como nos persuadem com suas inspirações, nos ensinam com seu exemplo quão
grande coisa é ser santos. O exercício dos anjos no céu é estarem sempre
louvando a Deus. Nós não o sabemos louvar, porque o não vemos; eles, que o
estão sempre vendo, só o louvam como devem. Mas, quais são os louvores, ou as
lisonjas que os anjos cantam a Deus? O profeta Isaías, que uma vez foi admitido
a os ouvir, o disse: Seraphim stabant, et
clamabant alter ad alterum: Sanctus, Sanctus, Sanctus (Is. 6,2s): Estavam
os serafins divididos em dois coros, e o que cantavam alternadamente a grandes
vozes, era: Santo, Santo, Santo.
—
Isto diziam e repetiam sem cessar, como também os ouviu, daí a oitocentos anos,
S. João no seu Apocalipse: Et requiem non
habebant, dicentia: Sanctus, Sanctus, Sanctus. Se isto não estivera tão
expresso em um e outro testamento, quem tal cuidara? Deus não é um objeto
imenso, as grandezas de Deus não são infinitas, os anjos que o vêem e conhecem
intuitivamente não são tão entendidos e tão sábios? Pois, como não variam de
vozes nem de pensamento? Por que não discorrem por outras perfeições divinas,
por que não louvam e não engrandecem outros atributos? Por isso mesmo. Porque
vêem a Deus, porque o conhecem, e porque são entendidos. Quem louva ou
lisonjeia discretamente, diz tudo o que pode e tudo o que mais agrada, e a
maior grandeza que se pode dizer de Deus, e o louvor que mais lhe agrada é
chamar-lhe Santo. Por isso o primeiro coro dos anjos diz Santo, e o segundo
responde Santo; o primeiro torna a dizer Santo, e o segundo torna a repetir
Santo; e isto dizem, e isto sempre estão dizendo sem cessar, uma e mil vezes,e
isto hão de continuar a dizer por toda a eternidade, porque, depois de dizerem
que Deus é Santo, Santo e mais Santo, nem os serafins do céu, que são os anjos
de mais alto entendimento e de mais profunda ciência, sabem dizer mais,nem lhes
fica mais que dizer. É Deus eterno, é imenso, é infinito, é onipotente, mas
tudo isso são grandezas, porque estão juntas com o ser Santo. Se Deus, por
impossível, não fora Santo, todos os outros seus atributos careceram da sua
maior perfeição. Por isso é perfeição em Deus o ser eterno, porque é
eternamente Santo; por isso é perfeição o ser imenso, porque é imensamente
Santo; por isso é perfeição o ser infinito, porque é infinitamente Santo; por
isso é perfeição o ser onipotente, porque é todo-poderosamente Santo: Sanctus, Sanctus, Sanctus.
Isto
é o que os anjos dizem de Deus. E de si, que dizem, ou que podem dizer? O que
podem e são obrigados a dizer todos os que perseveraram no céu e o não
perderam, é que todo o seu bem e toda a sua felicidade consistiu em ser santos.
Houve no céu entre os anjos aquela grande batalha que sabemos: Lúcifer, com os
maus, rebelou-se contra Deus; S. Miguel, com os bons, seguiu as partes de seu
Senhor; estes venceram, aqueles foram vencidos, e que ganharam os que ganharam
a vitória, que perderam os que perderam a batalha? Nenhuma outra coisa mais que
o ser ou não ser santos. Os que ganharam a vitória ganharam o ser santos,
porque ficaram confirmados em graça; os que perderam a batalha perderam o ser
santos, porque foram privados da mesma graça, e em tudo o mais que tinham por
natureza ficaram como dantes eram.
Daqui
se entenderá um famoso lugar de Ezequiel no capítulo vinte e oito, onde chama
querubim a Lúcifer: Tu Cherub extentus,
et protegens, et posui te in monte sancto Dei, in medio lapidum ignitorum
ambulasti. Perfectus in viis tuis a die conditionis tuae, donec inventa est
inquitas in te: Tu, ó querubim, eras o anjo de maior esfera, e que debaixo
de tuas asas tinhas todos os outros:Tu
Cherub extentus, et protegens. Eu te criei Santo e em graça, e te pus no céu:
Posui te in monte sancto. Tu estavas entre os serafins, onde passeavas com
liberdade de superior: In medio lapidum
ignitorum ambulasti. E desde o dia de tua criação foste perfeito, até que
em ti se achou o pecado e maldade, que tu inventaste: Perfectus in viis tuis, donec inventa est inquitas in te. Em suma,
que Lúcifer, como diz o texto, e declaram conformemente todos os Padres, era
por natureza serafim, e criado entre os serafins, e superior a todos. Pois, se
era serafim, como lhe chama o profeta, em nome de Deus, não serafim, senão querubim?
E se lhe nega o nome de serafim, porque já não era anjo, senão demônio, por que
lhe chama querubim: Tu Cherub? Porque
serafim significa amor e amante, e querubim significa ciência e sábio; e ainda
que Lúcifer, pela rebelião e pelo pecado, perdeu o amor e a graça de Deus e os
outros dons sobrenaturais, não perdeu a sabedoria e as ciências, nem os outros
dotes do entendimento e da natureza, com que fora criado. Tão anjo ficou no
saber, como dantes era, tão anjo no poder, tão anjo na capacidade da esfera,
tão anjo na beleza e formosura natural, e em tudo o mais como dantes, e somente
privado da graça e da santidade, em que por sua culpa e maldade se não quis
conservar.
De
sorte que a principal diferença que então houve e hoje há entre Miguel e
Lúcifer, é que Miguel chama-se S. Miguel, e Lúcifer não se chama santo. Direis
que também foi privado Lúcifer da glória e da vista de Deus. Não foi, porque
essa ainda a não tinha, que se já tivera visto a Deus não o pudera ofender nem
perder a graça e santidade. Mas, assim como Deus o privou da graça e da
santidade, por que o não privou também de tudo o mais? Quando um vassalo se
rebela contra seu rei, confiscam-lhe todos seus bens. Pois, se Lúcifer se
rebelou contra Deus, por que lhe confiscam só a graça e a santidade, e lhe
deixam tudo o mais? Porque só a graça e a santidade são bens: tudo o mais que
têm os anjos maus, uma vez que não têm santidade, antes são males que bens. A
ciência, sem santidade, é ignorância; a formosura, sem santidade, é fealdade; o
poder, sem santidade, é fraqueza; a grandeza, sem santidade, é miséria; e por
isso são os anjos maus os mais miseráveis de todas as criaturas, assim como os
anjos bons os mais felizes e bem-aventurados de todas: estes porque são santos,
aqueles porque não são santos.
CAPÍTULO VI
Vamos
aos homens, e perguntai a todos os que estão no céu que coisa é ser santos? A
esta pergunta não quero responder com Escrituras nem com palavras, senão com
obras. As coisas estimam-se pelo que valem e pelo que custam. Tudo o que fizeram
e padeceram os santos, foi por ser santos. A esperança tão longa e tão
constante dos patriarcas, a fé e paciência dos profetas, o zelo e pregação dos
apóstolos, os tormentos e mortes dos mártires, as penitências e asperezas dos
confessores, a continência e pureza das virgens: tudo santo, e tudo por ser
santos. Mas não é esta a matéria que se haja de passar e escurecer com uma tão
abreviada generalidade. Discorramos por cada uma das hierarquias dos santos, e
vejamos quanto se empenharam por conseguir este nome.
Olhai
para os patriarcas nos dois primeiros, e vereis a Isac lançado sobre a lenha,
esperando com a garganta nua o rigor, por não dizer a desumanidade do golpe, e
a Abraão com a espada em uma mão, para cortar a cabeça ao único filho, e como
fogo na outra, para o queimar em holocausto e sepultar em cinzas. Podia haver
maior resolução, nem mais heróico e deliberado empenho, assim na sujeição do
filho ao pai, como na obediência do pai a Deus? O mesmo Deus confessou que não
podia ser maior. Mas, se virdes que um anjo naquele mesmo flagrante tem mão no
braço a Abraão, voltai os olhos para o de Jefté, armado doutra espada e do
mesmo zelo, e vereis não suspenso, mas, executado o tremendo sacrifício,
derramando o pai animoso com suas próprias mãos o sangue da inocente filha,
também única, e sem herdeiro. E por que vos parece que se atreveram estes dois
homens a uma tão espantosa e medonha ação, de que se estremece o amor e tapa os
olhos a natureza? Abraão, por não quebrar um preceito, Jefté, por não faltar a
um voto, e ambos por ser santos. Abraão podia duvidar, com grande fundamento,
se um preceito tão novo e inaudito, e tão repugnante às promessas que o mesmo
Deus lhe tinha feito, era ilusão; Jefté, com maior razão ainda, podia duvidar
se o voto naquele caso obrigava, não sendo tal a sua tenção, nem lhe tendo
vindo tal coisa ao pensamento; e, contudo, ambos seguiram a parte mais
dificultosa e mais segura, por não deixar em escrúpulo a salvação, nem pôr em
dúvida o ser santos.
Aos
patriarcas seguem-se os profetas, e aos profetas os apóstolos. E se entre os
profetas vos assombrais de ver um Isaías serrado pelo meio, e um Daniel na cova
dos leões, e um Jonas engolido da baleia, nos apóstolos, que foram menos em
número, vereis a Pedro crucificado, a Paulo degolado, a André aspado, a Felipe
apedrejado, a Bartolomeu esfolado, a Mateus e Tomé alanceados, a Simão e Tadeu
espedaçados, e todos, enfim, dando o sangue e a vida em testemunho da fé que
pregaram, não só para ser santos eles em si, mas para fazer santos a outros.
E
que direi eu de vós, ó fortíssimo e luzidíssimo exército dos mártires, tão
infinito no número como nos esquisitos gêneros de martírios? Se entro no
anfiteatro de Roma, vejo-vos lançados às feras, ou lançados aos Neros, aos
Décios, aos Dioclecianos, aos Trajanos, mais feros que as mesmas feras. A
muitos de vós reverenciaram os leões, os ursos, os tigres, mas a nenhum perdoou
a vida a impiedade mais que brutal dos tiranos, sempre mais obstinados e
furiosos. As pedras de Estêvão, as setas de Sebastião, as grelhas de Lourenço e
Vicente já eram tormentos vulgares. Que máquinas e invenções de atormentar não
excogitou a sevícia raivosa de se ver vencida, para combater e tentar vossa
fortaleza? A uns mártires penduravam pelos cabelos, ou por um pé, ou por ambos,
ou pelos dedos polegares, e assim, no ar e despidos, com azorragues de nervos
rematados em pelotas de chumbo ou abrolhos de aço, os batiam e martelavam com
tal força e continuação os cruéis e robustos algozes, que ao princípio
açoitavam corpos, depois feriam as mesmas chagas ou uma só chaga, até que não
tinham já que açoitar nem ferir. A outros, estirados e desconjuntados no
ecúleo, ou estendidos na catasta, aravam ou cardavam os membros com pentes e
garfos de ferro, a que propriamente chamavam escorpiões, ou metidos debaixo de
grandes pedras de moinho, lhes espremiam como em lagar o sangue, e lhes moíam e
emprensavam os ossos, até ficarem uma pasta confusa, sem figura nem semelhança
do que dantes eram. A outros cobriam todos de pez, resina e enxofre, e,
ateando-lhes o fogo, os faziam arder em pé como tochas ou luminárias nas festas
dos ídolos, esforçando-se para este suplício com lhes dar a beber chumbo
derretido. A outros, nos mais rigorosos frios do inverno, metiam em tanques
enregelados, com banhos de água quente à vista, e liberdade de se passarem a
eles, para que enfraquecesse o remédio os que não vencia o tormento. A outros
coziam em couros, juntamente com serpentes e cães danados, e assim os lançavam
ao mar, para que naquela estreita, medonha e asquerosa prisão, primeiro
acabassem mordidos e atassalhados dos dentes venenosos, do que afogados das
ondas. A outros escalavam vivos pelos peitos, e lhes arrancavam o coração e
entranhas palpitantes, ou lhes atavam as mãos e os pés a quatro ramos grossos
de árvores, dobrados a força e soltos ao mesmo tempo, com que súbita e
violentissimamente os espedaçavam em quartos. A outros assentavam em cadeiras
de ferro afogueado, a outros faziam andar descalços sobre lâminas ardentes, a
outros metiam em caldeiras de azeite e alcatrão fervendo, a outros em bois de
metal abrasado, a outros em fornalhas de chamas vivas. E tudo isto sofriam e
suportavam aqueles valorosos cavaleiros de Cristo, não só com paciência e
constância, mas com júbilo e alegria. Por quê? Só por ser e segurar o ser
santos, como exclama a Igreja: Omnes
sancti, quanta passi sunt tormenta, ut securi pervenirent ad palmam martyrii.
CAPÍTULO VII
Os
santos doutores, esquadrão também laureado, não fizeram ou não se desfizeram
menos por ser santos. Foram a luz do mundo e o sal da terra, e assim como a
tocha se consome para alumiar, e o sal se derrete para conservar, assim eles,
para alumiar as cegueiras do mundo, e conservar a fé e religião em sua pureza,
não só se pode dizer com verdade que consumiram a vida, mas que derreteram e
estilaram a alma. Todos esses livros, tantos e tão admiráveis de S. Basílio, de
S. Crisóstomo, de Santo Atanásio, de Santo Ambrósio, de S. Jerônimo, de Santo
Agostinho e dos dois Gregórios, quatro doutores da Igreja grega e quatro da
latina, e os dois que depois se acrescentaram a este sagrado número, Santo
Tomás e S. Boaventura, os livros igualmente doutíssimos dos santos bispos,
Hilário, Cipriano, Fulgêncio, Epifânio, Isidoro, e um e outro Cirilo, e os dos
antiquíssimos padres Clemente Romano, Dionísio Areopagita, Erineu, Justino,
Gregório Taumaturgo, Clemente Alexandrino, Lactâncio, e infinitos outros, todos
estes escritos, digo, cheios de divina e celestial doutrina, que outra coisa
são, sem encarecimento nem metáfora, senão as almas dos mesmos santos, e as
quinta-essências dos seus entendimentos estiladas pela pena?
Ali
se vêem refutadas e convencidas todas as seitas dos antigos filósofos
pitagóricos, platônicos, cínicos, peripatéticos, epicureus, estóicos; ali os
mistérios profundíssimos da fé facilitados e críveis, e os argumentos
contrários desvanecidos; ali as tradições apostólicas sucessivamente
continuadas, e as definições dos concílios gerais e particulares estabelecidas;
ali as dificuldades da Sagrada Escritura e os lugares escuros dela declarados,
e o Velho e Novo Testamento, e os Evangelhos entre si concordes; ali as
questões altíssimas da Teologia sutilissimamente disputadas e resolutas, as
controvérsias debatidas e examinadas, e o certo como certo, o falso como falso,
e o provável como provável, tudo decidido; ali as heresias antigas e modernas
expugnadas, e as cavilações dos hereges desfeitas, e os textos sagrados,
corruptos e adulterados por eles, conservados em sua original pureza; os Ários,
os Apolinares, os Macedônios, os Nestórios, os Donatos, os Pelágios, os
Maniqueus, os Eutíquios, os Elvídios, os Jovinianos, os Vigilâncios, e os
Luteros e Calvinos, que em nossos tempos os ressuscitaram, sepultados outra vez
e convencidos; ali, finalmente, os vícios perseguidos, os abusos emendados, as
virtudes sinceras e sólidas louvadas, as falsas e aparentes confundidas, e toda
a perfeição evangélica digesta,
praticada e posta em seu ponto.
E
para tudo isto — que muitos não entendem, nem capacitam — que compreensão e
vastidão de todas as ciências divinas e humanas era necessária; que memória de
todas as histórias sagradas e profanas; que escrutínio da cronologia de todos
os tempos; que notícias de todas as terras e gentes, de suas leis, costumes,
cerimônias, ritos; que inteligência e conhecimento exato de todas as línguas,
latina, grega, hebréia, caldaica, siríaca, umas originais dos textos sagrados,
outras em que foram vertidos! E que estudo, que aplicação, que continuação e
trabalho era outrossim necessário para adquirir esta imensa erudição, ajudado o
engenho natural e elevado de contínuas orações ao céu, donde vem a verdadeira
luz! Estas eram as minas em que cavavam e suavam aqueles diligentíssimos e
utilíssimos operários, estas as riquezas inestimáveis que metiam e acumulavam
nos tesouros da Igreja, estas as armas finíssimas e escudos impenetráveis de
que forneciam a Torre de Davi para as futuras ocasiões e batalhas, como hoje se
experimenta, empregando e aplicando a estas — que com razão se chamam obras
-todas as forças do espírito, todas as potências da alma, e todos os sentidos
do corpo, negando-lhe o descanso de dia, e o repouso e sono de noite, e
chegando a não gostar nem sentir o mesmo que comiam, como à mesa de el-rei S.
Luís de França lhe aconteceu a Santo Tomás. Mas, como eram tão doutos e sábios,
sabiam melhor que todos quão grande coisa é ser santos, e por isso o procuravam
eles ser com esta vida, e que os demais o fossem com esta mesma doutrina.
Por
outro caminho bem diverso conquistaram o ser santos os anacoretas, deixando o
trato e comunicação das gentes, e indo-se viver aos desertos; mas também lá
lhes não faltaram batalhas, porque se levavam a si consigo, nem vitórias,
porque os levava Deus. Estas eram as plantas do céu, de que estavam cultivados
os ermos da Palestina, da Tebaida, do Egito, e aqui viviam como anjos, porque
souberam fugir dos homens, os Paulos, os Hilariões, os Arsênios, os Onofres, os
Pacômios, os Macários. Em muitos anos, e alguns em toda a vida, não se viam;
eram porém muito para ver aquelas veneráveis cás nunca tocadas de ferro, como
nazareus da lei da graça, da qual de noventa, qual de cento, qual de cento e
vinte anos, estendendo o jejum e a abstinência as vidas, que tanto desbarata e
abrevia o regalo. Habitavam as grutas e covas, das quais, quando saíam, mais
pareciam cadáveres que homens vivos. Das mãos de S. Pedro de Alcântara escreve
Santa Teresa que eram como feitas de raízes, e o mesmo podemos dizer das
estátuas ou semelhanças destes santos velhos, secos, pálidos, mirrados, e como
feitos ou tecidos das raízes das mesmas ervas de que se sustentavam.
Mas
como na carne enfraquecida e debilitada com as penitências se criam e crescem
os mais robustos espíritos, invejosos os do inferno de tanta santidade, se
armavam fortemente contra eles, e, fazendo daqueles desertos campanha, lhes
davam crudelíssimos combates. Umas vezes lhes apareciam os demônios
transfigurados em áspides, basiliscos, dragões, e outros monstros horrendos que
os queriam tragar, como ao grande Antônio; outras os assombravam com tremores
espantosos da terra, relâmpagos, trovões e raios, com que parecia que as mesmas
grutas se partiam, e caíam sobre eles os montes; e talvez na maior serenidade e
frescura do ar, lhes traziam e punham diante dos olhos as mesmas figuras
humanas de que tinham fugido, mais capazes pelo gesto e pelos trajos de
provocar amor que medo; e estes eram entre todos os mais apertados e furiosos
assaltos. Mas, que faziam aqueles constantíssimos atletas da castidade, quando
os cilícios, de que sempre andavam armados, lhes não bastavam? Ou se valiam dos
lagos e rios enregelados, como S. Francisco, ou nas silvas e espinhos, como São
Bento, ou no fogo, metendo nele a mão e deixando derreter os dedos, como S.
Diogo, e desta sorte, com a memória do mesmo inferno que lhes fazia a guerra, o
venciam e triunfavam dele. Assim venciam, porque eram assistidos da graça de
Deus, e assistia-os Deus tão eficazmente com sua graça, porque eles
continuamente assistiam também a Deus, orando e contemplando.
De
alguns se escreve que de noite mediam as horas da oração com um novo e
admirável relógio do sol, porque começavam a orar quando se punha, e acabavam
quando nascia. Mais fazia Simeão Estilita, a quem com razão podemos chamar
Anacoreta do Ar, e não da terra. Vivia sobre uma coluna de trinta e cinco
côvados de alto, onde perseverou oitenta anos ao sol, ao frio, à neve, aos
ventos, comendo uma só vez na semana, e orando de dia e de noite, quase sem
dormir. Umas vezes orava de joelhos e prostrado, outras em pé e com os braços
abertos, e nesta postura estava reverenciando continuamente a Deus com tão
profundas inclinações, que dobrava a cabeça até os artelhos. Teodoreto,
testemunha de vista, quis saber o número a estas inclinações, e tendo contado
mil duzentas e quarenta e quatro, cansado de contar, não foi por diante. Oh!
assombro! Oh! prodígio! Oh! exemplo singularíssimo do que pode a fraqueza do
nosso barro fortalecida da graça! Um tal gênero de vida, mais foi admirável que
imitável. Mas o que mais admira, é que lhe não faltaram imitadores. Estilita
quer dizer o habitador da coluna, e houve outro estilita, também Simeão, e
outro estilita, Daniel, e outros. Tanto preço tem, nos que o sabem avaliar, o
ser santo.
CAPÍTULO VIII
Por
remate, ou por coroa de todos os santos, põe a Igreja no último lugar o
suavíssimo coro das Virgens, cujas vozes, posto que mais delicadas, mas
igualmente fortes, nos acabarão de persuadir, como elas se persuadiram, esta
mesma verdade. Pesa-me de chegar tão tarde a esta hierarquia, em que é obrigação
deter-me mais um pouco; mas como a matéria é de casa, ao menos das grades para
dentro será de agrado. Aos de fora seja embora de paciência.
Que
extremos não obraram as santas virgens por ser santas? Que façanhas não
empreenderam varonilmente? Que rigores e asperezas não executaram em si mesmas?
Que galas, que regalos, que delícias e contentamentos da vida, que riquezas,
que grandezas, que pompas e fortunas do mundo não desprezaram? Que finezas, que
excessos, que máquinas dos que as pretendiam, não resistiram? Que bodas
humanas, por altas e soberanas que fossem, não renunciaram, só por conservar e
defender a virginal pureza, e manter a fé prometida a Cristo, com quem se
tinham desposado? Santa Edita, filha de Elgaro, rei de Inglaterra, morto o pai
e um irmão que tinha único, ficou herdeira do reino, e por mais instâncias que
lhe fizeram os povos, juntos em cortes, que se casasse, nem o amor da casa real
em que nascera, nem a sucessão da família e da coroa, nem a memória do pai e
irmão, que nela se extinguia, foram bastantes para a mover um ponto da firmeza
de seu propósito, nem para a arrancar do canto de uma religião, onde, coberta
de cilício, amortalhou a vida e, depois, sepultou o corpo, que permaneceu
incorrupto. Santa Eufrosina, senhora ilustríssima em Alexandria, não podendo de
outro modo fugir e escapar de seu pai e do matrimônio nobilíssimo concertado
por ele, mudando o trajo de mulher e o nome, e chamando-se Esmaragdo,
desconhecida e em terra estranha, tomou o hábito de monge, em que viveu trinta
e oito anos enterrada em uma estreita cela, donde nunca saiu. Santa Petronila,
filha do Príncipe dos Apóstolos, S. Pedro — antes de ser chamado ao apostolado
— tendo feito voto a Cristo, de perpétua virgindade, e não se podendo defender
das bodas de Flaco, senhor romano, que com amor a solicitava, e com poder de
armas a queria obrigar a ser sua esposa, pediu de prazo três dias para
deliberar, e neles, com ferventíssimas orações, impetrou do mesmo Cristo lhe
tirasse a vida, e assim o conseguiu valorosa e gloriosamente no fim do terceiro
dia. Mais violentamente se defendeu de semelhante perigo Santa Maxelende,
ilustríssima por sangue nos Estados de Flandres, mas mais ilustre pela causa de
o haver derramado. Celebraram-se com grande pompa as festas das bodas concertadas
por seus pais com Harduíno, senhor principal, rico e poderoso, que, entre
muitos que pretendiam esta fortuna, a tinha alcançado. Foi levada por força a
santa virgem às mesmas festas, mas negou a mão com tal desengano, e persistiu
nele com tal firmeza que, afrontado e corrido o esposo de se ver desprezado,
trocando o amor em fúria, se arremessou à espada, e a santa se deixou matar
intrepidamente.
E
posto que em tantos e tão apertados casos fosse admirável o valor e constância
com que todas estas santas defenderam a pureza virginal que tinham prometido a
Cristo, considerada porém a condição natural de mulheres, ainda tenho por maior
façanha a de Santa Brígida Virgem, chamada a de Escócia, e a de Santa Uvilgo Fortis, que alguns, com errado
mas bem apropriado nome, chamam Virgo
fortis. Eram estas santas o extremo da formosura, e vendo-se por esta causa
solicitadas e pretendidas de muitos e poderosos senhores para o matrimônio,
pediram a seu divino Esposo as privasse daquela graça, que outras tanto estimam
e com tantas artes afetam; e o Senhor, que só se namora da beleza da alma, se
agradou tanto desta petição, que de repente ficaram tão feias e disformes, que
ninguém as podia ver, e só elas se viam contentes.
Que
direi dos rigores, asperezas e piedosas tiranias com que estes anjos em carne a
mortificavam, afligiam, e verdadeiramente martirizavam? A austeridade de vida,
o rigor e horror das penitências de Santa Clara, primeira cópia do retrato
original de Cristo crucificado, seu padre, São Francisco, quem há que a possa
declarar? A de Santa Azela, virgem romana, dentro em Roma, e quando Roma era o
maior teatro das delícias e vaidades do mundo, declarou S. Jerônimo. Diz que da
mais populosa cidade fez ermo; que a terra nua lhe servia de cama e de lugar de
oração; que os joelhos, pela muita continuação dela, se lhe tinham endurecido
em calos como de camelo; que se sustentava do jejum, e que só o quebrava com
pão e água, mas com tal moderação e parcimônia, que nunca, nem com pão matava a
fome, nem com água a sede; que jamais viu nem foi vista de homem, ainda quando
visitava os sepulcros dos mártires, e que tendo uma irmã também donzela, esta a
amava, mas não a via. Santa Margarida, filha dos reis de Hungria, de quatro
anos tomou o hábito de monja, e de cinco se vestiu de cilício; de dia, para
mortificar os passos, entre os pés e o calçado, metia certos abrolhos de ferro,
e de noite, para o pouco sono que tomava sobre uma tábua, se cingia de peles de
ouriços com todos seus espinhos. Santa Genoveva, padroeira da real cidade de
Paris, a quem o famosíssimo Simeão Estilita desde a Grécia, onde vivia sobre a
sua coluna, mandava visitar a França e encomendar-se em suas orações Santa
Macrina, irmã de S. Basílio Magno, tanto no sangue como na aspereza e
severidade da vida. Santa Lutgardis, legítima filha do gloriosíssimo patriarca
S. Bernardo, singular herdeira de seu ardentíssimo espírito, e digníssimo
exemplar de todas as que vestem e professam o mesmo hábito. Estas santas
virgens, e muitas outras, que extraordinários modos de penitências não
inventaram, mais engenhosas para se martirizar a si mesmas, que os tiranos para
atormentar os mártires?
É
coisa digna de admiração que, padecendo os mártires pela fé e culto de Cristo,
os tiranos não dessem em executar neles os mesmos tormentos da Paixão de
Cristo; mas isto inventou e executou em Santa Catarina de Sena e em Santa Clara
de Monte Falco o amor de seu divino Esposo. Catarina, com as chagas nas mãos,
nos pés e no lado, e a coroa de espinhos na cabeça, e Clara, com todos os
instrumentos da mesma Paixão do Senhor insculpidos e entalhados no coração. Até
as doenças mais penosas provocavam e conseguiam, para que onde não podiam
chegar as dores fabricadas da arte, penetrasse as da natureza, e não houvesse
em corpos tão delicados parte alguma, dentro nem fora dos ossos, que não
penasse com particular tormento. Todas as enfermidades de quantas é capaz o
corpo humano, padeceu juntamente e por toda a vida, Santa Lidovina, com excesso
da paciência de Jó, e afronta da indústria do demônio. Uma Cristina houve,
entre as outras que, não se satisfazendo das penas desta vida, padeceu as do
purgatório por muitos anos, como também Santa Teresa experimentou as do
inferno. A mesma Santa Teresa dizia: Aut
pati, aut mori: ou padecer, ou morrer, porque se não atrevia a viver sem
padecer. E Santa Madalena de Pazzi, não sei se com maior energia: Pati, non mori: padecer sim, morrer
não, porque na morte acaba-se o exercício de padecer, e na vida dura e
persevera. Mas dizei-me, virgens puríssimas — ou dizei-o aos que o não sabem
entender — por que fostes tão ambiciosas de penas? A vossa vida não era
inculpável e inocente? As vossas almas não eram gratíssimas a Deus? Pois,
porque sois tão inimigas ou tão tiranas de vossos corpos? Deixai esses rigores
e essas penitências para as Teodoras e Pelágias, que foram grandes pecadoras;
deixai-as para uma Maria Egipcíaca, que viveu dezessete anos em torpezas,
enlaçada do demônio e sendo laço dos homens; mas vós, que não tendes pecados
graves que pagar, e se alguns tivestes leves, os tendes tão abundantemente
satisfeito, por que vos mortificais, por que vos afligis, por que vos
martirizais com tanto excesso? Porque sabiam quão grande coisa era ser santas,
e o queriam ser mais e mais.
CAPÍTULO IX
E
se estes extremos fizeram as santas virgens por conservar a pureza virginal na
paz, que fariam para a defender na guerra? A maior e mais dura guerra com que
podiam combater a constância daquelas fortíssimas donzelas os amorosos
inimigos, que tão prendados estavam de sua beleza, era a terrível e perigosa
indiferença com que lhes propunham a eleição de um de dois extremos, ou o
matrimônio ou o martírio, ou casar ou morrer, ou perder o estado virginal ou a
vida. Entre estes dois extremos não se dava meio, e cada um deles, vestido das
circunstâncias que o acompanhavam, ainda era mais perigoso e mais terrível,
porque a vida, que se lhes oferecia no matrimônio, era adornada de jóias, de
riquezas, de delícias, de grandezas, de coroas, e ainda do mesmo império do
mundo; e a morte, que se lhes ameaçava no martírio, era armada de afrontas, de
açoites, de cárceres, de cadeias, de grilhões, de algemas, de espadas, de
torquezes, de serras, de rodas, de navalhas, de fogueiras, e de todos os
instrumentos e máquinas com que pode atormentar o ferro e o fogo. Deixo os
menores estados e fortunas, posto que ilustres e grandes, que a Santa Cecília
se dotavam com as bodas de Valeriano, a Santa Tecla com as de Tamiris, a Santa
Inês com o filho do prefeito de Roma, a Santa Luzia, a Santa Felícula, a Santa
Flávia Domitila, com outros de semelhante qualidade e riqueza; só é muito, para
não passar em silêncio, que a Santa Digna se oferecesse com o matrimônio a
coroa de Ibérnia, a Santa Efigênia a de Etiópia, e a Santa Catarina e Santa
Susana todo o Império Romano, que naquele tempo dominava o universo, a uma com
as bodas do imperador Maximino, e a outra com as de Maximiano. Mas pesou tanto
mais que tudo isto, na estimação daqueles invencíveis corações, a pureza
virginal que professavam e tinham consagrado a Cristo, que pela conservar
inteira e sem mancha dariam mil coroas e mil impérios, pesando-lhes somente de
ter uma só vida, e não mil vidas, a que deram e sacrificaram pela defender. Não
chegava Inês a ser mulher, porque era menina de treze anos, mas foi tão varonil
e tão bizarro o seu ânimo, que não só aceitou a morte como martírio, mas a
justificou como castigo. Disse, quando a levavam a morrer — como refere Santo
Ambrósio — que justamente ia sentenciado e condenado à morte o seu corpo, pois
contentara a outros olhos que não eram os de seu Esposo, Cristo: Pereat corpus, quod amari potest oculis
quibus nolo.
E
já que estamos nesta matéria, não vos quero ficar devedor de dois casos, que em
toda a história eclesiástica me contentaram singularmente, e de tal resolução e
bizarria que só por instinto divino se puderam empreender e executar. Nem me
noteis de multiplicar tantos exemplos, porque quando se há de falar de muitos
santos, senão no dia de todos? A maior desumanidade que os tiranos usavam, com
as santas virgens, era mandá-las meter nas casas públicas entre as mulheres
infames, para que ali perdessem por força a mesma castidade virginal que
defendiam, não entendendo que esta virtude, como as demais, está na alma, e não
no corpo, e que só se perde pelo consentimento, e não pelo sentimento. Sendo
pois levada Santa Eufrásia a uma destas casas, seguiu-a um soldado denodado,
para lograr a ocasião. Era virgem prudente, levava uma redoma de óleo consigo,
e disse ao soldado desta maneira: — Com condição que desistas do teu intento,
eu te darei um óleo, com o qual, se entrares untado nas batalhas, não poderás
ser ferido dos inimigos. E para que vejas por experiência a virtude deste óleo,
eis aqui me unto o pescoço com ele; faze tu a prova com a tua espada, e seja
com toda a força. — Fê-lo assim o soldado, e, descarregando um talho com a
maior força que pôde, a cabeça da santa saltou fora dos ombros, o corpo caiu
morto em terra, e a pureza virginal ficou em pé e inteira. Era Santa Eufrásia
de Antioquia; a que agora se segue era de Aquiléia, e chamava-se Digna.Tendo
rendido aquela cidade Átila, rei dos hunos, gente feroz e bárbara, coube esta
santa donzela por despojo a um capitão, o qual também a quis despojar da mais
estimada jóia que, como tal, tinha consagrado a Cristo. Estavam alojados em uma
torre que caía sobre o rio Natizon, e, provocada Digna do seu patrão, sem
mostrar que se negava ao que ele pretendia, pediu-lhe que quisesse subir ao
alto da torre, como o lugar mais retirado; subiram, e tanto que lá se viu
Digna, voltada para o bárbaro que vinha atrás, disse-lhe: — Se me queres
lograr, segue-me. — E dizendo isto, lançou-se da torre abaixo no rio, onde,
afogando com a vida a sua injúria, salvou com a morte a sua castidade. Oh!
Digna, verdadeiramente digna de eterna memória, e que ao teu valor, e ao de
Eufrásia, se levantem duas estátuas de bronze no Templo da Virtude! Ambas
tirastes do perigo mais purificada a pureza, uma por água, outra por sangue,
merecedoras ambas que por vós se dissesse de vosso divino Esposo: Hic est Jesus, qui venit per aquam et
sanguinem; non in aqua solum, sed in aqua et sanguine.
Mas,
tornando às santas virgens, que aceitaram antes a morte que o matrimônio, só
por conservar o estado virginal, ainda temos outras, que fizeram maior façanha,
porque conservaram o mesmo estado virginal juntamente com o matrimônio. Isto
foi conservar-se a sarça verde no meio das chamas, e não martírio que passou em
um ou em poucos dias, senão de toda a vida. Santa Pulquéria, filha do imperador
Arcádio, e, por morte de seu irmão Teodósio, herdeira do império, casou com
Marciano, com tal condição que ela havia de guardar o voto que tinha feito de
perpétua virgindade, e assim o guardou: o trono era comum, mas o tálamo
dividido. Mais fizeram aqueles dois famosíssimos pares, um de Alemanha, outro
de Inglaterra, a imperatriz Santa Conegundes e o imperador Santo Henrique, a
rainha Santa Edita e o rei Santo Eduardo. Ambos estes príncipes foram casados,
e em toda a vida, não só um deles, senão ambos, reciprocamente virgens. E por
que não pareça que esta soberania anda vinculada às coroas, e só se acha em
ânimos reais, na mesma virtude foram insignes Santa Basilisa e S. Julião,
casados, de fortuna particular, posto que de nobre sangue. Mas se o estado do
matrimônio é tão santo que, sendo dantes puro contrato, o fez Cristo um dos
sacramentos de sua Igreja, e como tal uma das fontes da graça, se o uso e
comércio natural dele é lícito e justo, por que se abstiveram estes santos dos
interesses do mesmo comércio, do agrado tão doce e lisonjeiro dos filhos; da
multiplicação da família, que o mesmo Deus chama bênção sua; da sucessão da
casa própria, para a qual o que se trabalha é com gosto, e o que se adquire sem
dor, porque não há de passar a outros; e, finalmente, por que se privaram
daquele único reparo da mortalidade, e quiseram não só morrer em si, mas acabar
consigo? Só se admirará desta resolução, como de todas as outras que temos
referido, quem não souber quão grande coisa é ser santo, e quanto pode a
ambição desta grandeza nos que verdadeiramente a conhecem. Tudo o que a
natureza apetece, tudo o que os sentidos amam, tudo o que o gosto deseja, tudo
o que mais solicita e se pega ao coração, tudo o que honra a memória e conserva
a posteridade, deixaram e desprezaram estes santos; e, pelo contrário, tudo o
que encontra e repugna a esses mesmos apetites naturais, tudo o que molesta e
aflige esses mesmos afetos humanos, tudo mortificaram, tudo venceram, tudo
sopearam, tudo abraçaram por vontade, e sem obrigação, por gosto, e sem
repugnância, por amor, e sem dificuldade. Por quê? Porque queriam ser e haviam
de ser santos, e por isso hoje o são, e os celebramos como bem-aventurados.
CAPÍTULO X
De
todo este largo discurso estou vendo que tirastes duas conclusões todos os que
me ouvistes: uma muito conforme ao assunto que propus, e outra muito contrária
a ele. A primeira conclusão é que verdadeiramente, sem dúvida, é muito grande
coisa o ser santos. Porque, se Deus, entre todos seus atributos de infinita
perfeição estima e em certo modo reverencia sobre todos o atributo de santo; e
se todas as Pessoas da Santíssima Trindade, e cada uma em particular, nos deram
tão soberanos exemplos e documentos desta mesma estimação; se a Virgem Mãe de
Deus, por antonomásia, Virgem Prudentíssima, entre todos os bens e felicidade
da terra e do céu, nenhuma outra levou os olhos, roubou o coração e prendeu os
passos, senão a santidade de todos os santos, em que também o mesmo Deus, seu
Filho, a sublimou sobre todos; se os anjos e serafins que assistem ao lado do
trono divino, o que só exaltam e apregoam, e os louvores que cantam à majestade
de seu Senhor, é ser Santo, Santo e mais Santo; e se a excelência em que o
mesmo Senhor confirmou aos anjos bons e obedientes, e a de que privou aos maus
e rebeldes, foi a de ser santos; e se os santos de todas as hierarquias,
patriarcas, profetas, apóstolos, mártires, confessores, virgens, tanto
trabalharam, tanto padeceram, e tais extremos e excessos fizeram por chegar,
como chegaram, a ser santos, não há dúvida que o ser santo é grande coisa, e
não só grande, senão a maior de todas. E esta é a primeira conclusão que
inteiramente concorda com a primeira parte do meu assunto.
A
segunda conclusão, e totalmente contrária à segunda parte dele, é que eu prometi
de vos provar quão facilmente podemos todos ser santos, e tudo quanto até agora
tenho mostrado e discorrido, pelas vidas e ações dos mesmos santos, e por suas
grandes batalhas e vitórias, são coisas todas tão dificultosas e repugnantes à
natureza, e tão superiores à fraqueza humana, que antes parece nos
impossibilitam totalmente, e nos tiram toda a esperança, não só de chegar a
ser, mas ainda de aspirar a ser santos. Ora, não vos desanimeis os que isto
inferis, antes vos animai e consolai muito, porque a facilidade que vos
prometi, ainda é mais fácil do que eu o propus e vós podeis imaginar. Tudo o
que fizeram os santos por ser santos, foi muito bem empregado, e ainda pouco,
porque muito mais importa, muito mais vale, e muito mais é ser santos; mas,
para chegar a o ser, não é necessário tanto, senão muito menos. Não é
necessário guardar a perpétua continência das virgens, porque tendes a licença
e liberdade do matrimônio, com que foram santos Adão e Eva, Zacarias e Isabel,
Joaquim e Ana. Não é necessário ser anacoreta, nem ir viver aos desertos,
porque podeis ser santos na vossa casa, como José, Samuel, Davi, que morreram
na sua. Não é necessário ser doutor, nem queimar as pestanas sobre os livros,
porque basta que saibais os Mistérios da Fé e os Mandamentos, como S. Paulo,
por sobrenome o Simples, S. Junípero, Santo Hermano, e aqueles de quem dizia
Santo Agostinho: Levantam-se os indoutos, e levam o reino do céu aos letrados.
Não é necessário ser mártir, porque não só não padecendo martírio, mas fugindo
dele e escondendo-vos, podeis ser santo, como o foi Santo Atanásio, S. Feliz,
S. Silvestre, e outros. Nem menos é necessário ser apóstolo, patriarca ou
profeta, porque estes ofícios e dignidades passaram com o tempo, e podeis ser
santos como o foram todos os que depois deles vieram.
Pois,
que é necessário para ser santo? Uma só coisa, e muito fácil, e que está na mão
de todos, que é a boa consciência ou limpeza de coração, como diz o nosso tema:
Beati mundo corde. Olhai como Deus
quis facilitar o céu e o ser santos, que pôs a bem-aventurança e santidade em
uma coisa que ninguém há que não tenha, e a mais livre e mais nossa, que é o
coração. Assim como o coração é a fonte da vida, assim é também a fonte da
santidade; e assim como basta o coração para viver, ainda que faltem outros
membros e sentidos, assim, e muito mais, basta a pureza de coração para ser
santo, ainda que tudo o mais falte. Se o ser santo dependera dos olhos, não
fora santo Tobias, que era cego; se dependera dos pés, não fora santo Jacó, que
era manco; se dependera de algum outro membro do corpo, não fora santo Jó, que
estava tolhido de todos, e só lhe ficou a língua: e, ainda que não tivera
língua, também fora santo, porque Santa Cristina, sendo-lhe a língua cortada,
louvava a Deus com o coração, e com o coração, sem língua, eram tais as suas
vozes, que as ouviam não só os anjos no céu, senão também os circunstantes na
terra. De sorte que, para um homem ser santo, não é necessário coisa alguma
fora do homem, nem ainda é necessário todo o homem: basta-lhe uma só parte, e
essa a primeira que vive e a última que morre, para que lhe não possa faltar em
toda a vida, que é o coração.
Tendo
o coração puro, e ou vos faltem ou sobejem todas as outras coisas, nem a falta
vos será impedimento, nem a abundância estorvo para ser santo. Salomão pedia a
Deus (Prov. 30,8) que o não fizesse rico nem pobre, mas que lhe desse o
necessário para passar a vida, receando que não poderia ser santo em qualquer
daqueles extremos; mas eu vos asseguro que, ou sejais rico, ou pobre, ou
pobríssimo, de qualquer modo podeis ser santo. Se fordes rico e puderdes dar
esmola, dai-a, e sereis santo, como foi S. João Esmoler; se fordes pobre, e
tiverdes necessidade de pedir esmola, pedi-a, e sereis santo, como foi Santo
Aleixo; e se fordes tão desamparado, que não tenhais quem vos dê esmola, tende
paciência, e sereis santo, como foi S. Lázaro.
Tertuliano
teve para si que os reis e imperadores não só não podiam ser santos, mas nem
ainda cristãos, mas errou neste sentimento, como em outros, Tertuliano, porque
escreveu quando ainda no cristianismo não havia mais coroas que as do martírio.
Rei foi de França S. Luís, rei de Inglaterra Santo Eduardo, rei de Escócia S.
Guilhelmo, rei de Suécia Santo Erico, rei de Dinamarca S. Canuto, rei de Boêmia
S. Casimiro, rei da Noruega Santo Olao, rei de Castela S. Fernando, e imperador
Santo Henrique, e todos santos, porque, se na grandeza da sua fortuna têm maior
matéria para os vícios os príncipes, também têm mais alta esfera para as
virtudes.
Das
dignidades eclesiásticas se deve fazer o mesmo juízo. Uns santos vereis com
mitras de bispos, com capelos de cardeais e tiaras de pontífices na cabeça, e
outros com essas mitras, capelos e tiaras aos pés, e por quê? Uns porque
deixaram o lustre da dignidade, outros porque sustentaram o peso; uns porque
reconheceram o perigo, outros porque continuaram o trabalho; mas, uns e outros,
santos. Não foi menos santo São Gregório, sendo papa, do que S. Pedro
Celestino, porque renunciou à tiara; nem menos santo Agostinho, sendo bispo, do
que Santo Tomás, porque recusou às mitras; nem menos santo São Carlos Borromeu,
sendo cardeal, do que S. Francisco de Borja, porque não quis aceitar os
capelos.
Aquele
é e será mais santo, em qualquer estado, que usar dele com mais puro coração. E
se não, discorrei por todos os estados, ou altos ou baixos do mundo, e achareis
neles o vosso, para que vejais que no vosso, se quiserdes, podeis ser santo.
Que lugares há mais mal avaliados no mundo do que os palácios dos reis, como
oficinas da vaidade, da potência, da inveja e do engano, e onde nunca, ou
raramente, entra a verdade; mas nem por isso há neles ofício que não esteja
santificado. Mordomo-mor foi S. Leodegário, camareiro-mor S. Jacinto,
estribeiro-mor S. Vandrigilo, monteiro-mor S. Mauraneu, porteiro-mor S.
Patrício, copeiro-mor S. Patroclo, capitão da guarda S. Sebastião, viador S.
Saturo, secretário Santo Anastácio, conselheiro S. João Damasceno, S. Germano,
S. Melânio, e em cada um destes ofícios muitos outros santos.
Uma
das profissões mais arriscadas a não ser justo é a dos ministros da justiça, ou
sejam os que a sentenciam, ou os que a defendem, ou os que a escrevem, ou os
que a executam; mas todos, se o fizerem com pureza de coração, podem ser
santos. Santo Ereberto e Santo Tomás de Cantuária foram chanceleres; S.
Hieroteu e S. Dionísio Areopagita, desembargadores; S. Pudente e Santo
Apolônio, senadores; S. Fulgêncio, procurador da fazenda real; Santo Ambrósio,
S. Crisóstomo e S. Cipriano, advogados; S. Marciano, S. Genésio e S. Cláudio,
escrivães; Santo Anastásio e S. Ferréolo, juízes do crime; Santo Aproniano e S.
Basilides, esbirros ou beleguins; e até no vilíssimo exercício de algozes foram
santos S. Ciríaco, Santo Estratonico, e outros.
Em
nenhum gênero de vida parece que anda mais arriscada a eterna que no daqueles
que trazem a soldo a temporal à custa do sangue próprio e alheio, tão duros
como o ferro de que se vestem, tão violentos como o fogo de que se armam, e tão
vãos e jactanciosos como o vento que nas caixas etrombetas os chama, e nas
bandeiras os guia. É porém infinito o número de soldados santos, que dando a
vida constantemente por Cristo na Igreja militante, ornados de coroas e palmas
entraram na triunfante. Só na perseguição de Trajano padeceram martírio de uma
vez seis mil soldados, que foi a famosa Legião dos Tebeus; e na de Diocleciano
e Maximiano também em um só dia dez mil, desterrados primeiro para a Armênia, e
depois crucificados. Não falo nos generais, como Santo Eustáquio e Constantino,
nem nos marechais, como S. Nicostrato e Santo Antíoco, nem nos tribunos eu
mestres de campo, como S. Marcelino e S. Floreano, nem nos capitães de cavalos,
como S. Querino e S. Vital, nem nos capitães de infantaria, como S. Górdio e S.
Marcelo, nem nos alferes, como Santo Exupério e S. Juliano, porque da virtude e
valor dos soldados se vê quão santos seriam os que os governavam.
S.
Paulo disse que a raiz de todos os pecados é a cobiça; e estando estas raízes
tão arraigadas nos que professam a mercancia, e tão estendidas em cada um por
todas as partes do mundo, nem por isso deixam de produzir frutos de santidade.
Delas nasceu um S. Francisco de Assis, um S. Fulgêncio, um S. Guido, e não só
um, senão dois Firumêncios, ambos santos, e outros muitos.
E,
se de todos estes exercícios, de sua natureza tão perigosos, e quase
encontrados com aqueles em que se lavram os santos tem dado a terra ao céu
tantos e tão gloriosos, que será nos ofícios e artes mecânicas, em que o
trabalho, companheiro inseparável das virtudes, desterra a ociosidade, que é
origem de todos os vícios? Não falando no gloriosíssimo S. José, nos Santos
Apóstolos e no mesmo Cristo, que, depois de fabricar o mundo, se não desprezou
de trabalhar em uma destas artes, escolhendo entre todas a que mais simpatia tinha
com o lenho da cruz. S. Jacó de Boêmia foi carpinteiro, S. Sinforiano escultor,
S. Paulo Helático torneiro, S. Floro serrador, Santo Elígio ourives, Santo
Andrônico prateiro, S. Duustano ferreiro, S. Marciano armeiro, S. Gildas
fundidor, S. Próculo pedreiro, S. Crispim sapateiro, Santo Homobono alfaiate,
Santo Onúfrio tecelão, S. Gualfundo celeiro, Santo Aquilas corrieiro, S. João
de Deus livreiro, Santo Isidoro lavrador, S. Maurício hortelão, S. Leonardo
pastor, Santo Alderico vaqueiro, Santo Arnoldo marinheiro, S. Patênio pescador,
S. Ventiro almocreve, S. Ricardo carreiro, Santo Adriano correio, S. Guilhelmo
moleiro, S. Gemiano taverneiro, S. Quiríaco cozinheiro, Santo Alexandre
carvoeiro, Santo Henrique carniceiro, Santo Erineu varredor das imundícias ou
carretão: e não há ofício, estado e exercício tão trabalhoso, tão baixo, e
ainda pouco limpo, que, se se faz com limpeza de coração, não possa fazer
santos. Beati mundo corde.
CAPÍTULO XI
Temos
visto como em todos os estados, em todos os ofícios e em todas as fortunas
podemos alcançar a maior fortuna de todas, que é ser santos; temos visto que o
instrumento necessário para ser santos é só e unicamente o coração, contanto
que seja puro e limpo; só resta para complemento da facilidade com que vos prometi
que todos podemos ser santos, declarar quão facilmente podem todos conseguir
esta mesma limpeza. A limpeza do coração consiste em estar limpo de pecados, e
não há nenhum pecador, por grande que seja, que não possa conseguir esta
limpeza de coração tão breve e tão facilmente que, se entrou nesta igreja
pecador, não possa sair dela santo. Presentou-se a Cristo um leproso, e
pondo-se de joelhos: genu flexo, disse assim: Domine, si vis, potes me mundare (Mt. 8,2 s): Senhor, se quereis,
bem me podeis alimpar desta lepra. — Respondeu o Senhor: Vo lo, mundare: Quero, sê limpo — e no mesmo ponto ficou limpo
daquele tão feio e tão asqueroso mal: Et
confestim mundata est lepra ejus. Pode haver maior brevidade, pode haver
maior facilidade de conseguir a limpeza? Parece que não. Pois eu vos digo, e é
de fé, que muito mais breve e muito mais facilmente podeis conseguir a limpeza
de coração se o mesmo coração quiser. A lepra do coração, mais feia, mais
imunda e mais asquerosa que a do corpo é o pecado. E para que vejais quanto
mais fácil e mais brevemente se consegue a limpeza desta lepra, ponhamos o
mesmo leproso que Cristo curou, à vista de um coração também leproso pelo
pecado, e veremos qual consegue a limpeza com maior facilidade.
Estava
leproso o coração de Davi, não outro, senão aquele coração de quem ele disse
com os mesmos termos do nosso texto: Cor
mundum crea in me, Deus (12). E estava tão penetrado da lepra, que havia já
um ano que perseverava no pecado, quando o exortou o profeta Natã a que
considerasse o estado miserável de sua consciência, e se convertesse de todo
coração a Deus, de quem vivia tão esquecido. Fê-lo assim Davi, mas que fez?
Somente disse: Peccavi (2 Rs. 12,13): Pequei, — e não tinha bem pronunciado
esta palavra quando o profeta lhe disse que já estava perdoado e restituído à
graça de Deus: Dominus quoque transtulit
peccatum tuum. Comparai-me agora a Davi com o leproso, e vede qual
conseguiu a limpeza da lepra mais fácil e mais brevemente. O leproso pôs-se de joelhos:
genuflexo e Davi não se ajoelhou; o leproso disse cinco palavras: Si vis, potes me mundare, — Davi não
disse mais que uma: Peccavi; e com
tudo isto o leproso não tinha ainda conseguido a limpeza, antes estava duvidoso
dela: Se vis; e Davi já tinha conseguido e estava certificado disso da parte do
mesmo Deus: Dominus quoque transtulit
peccatum tuum. Logo, muito mais fácil e muito mais brevemente conseguiu o
coração de Davi a limpeza da sua lepra, do que o leproso a da sua. Mas quando o
conseguiu o leproso? Quando Cristo lhe respondeu: Volo, mundare: Quero, sê limpo. — Agora vos peço eu que me
respondais a mim, e eu vos prometo que com a vossa resposta ficarão limpos os
vossos corações ainda mais brevemente que o leproso com a resposta de Cristo,
porque a resposta de Cristo comunicou a limpeza ao leproso com duas palavras, e
a vossa resposta há de comunicar a limpeza aos vossos corações só com uma
sílaba. Respondei, pois, cristãos, ao que vos pergunto. Não vos pesa muito de
ter ofendido a um Deus de infinita majestade e bondade, por ser ele quem é? Não
vos pesa e vos arrependeis entranhavelmente de ter sido ingratos a um Deus que
vos criou, e vos deu o ser, e vos remiu com seu sangue? Não detestais de todo
coração todos vossos pecados, por serem ofensas suas? Não tendes nesta hora firmes
propósitos de nunca mais o ofender? Sim? Pois este sim, dito de todo coração,
basta para que o mesmo coração fique e esteja já limpo de todos seus pecados; e
esse sim, sendo uma só sílaba, fez nos vossos corações o mesmo efeito, e mais
maravilhoso ainda, que as palavras de Cristo no leproso.
Pois,
se na limpeza do coração consiste o ser santos, e esta limpeza de coração se
pode conseguir tão facilmente só com um movimento do mesmo coração, que coração
haverá tão fraco, ou que homem de tão fraco e de tão pouco coração que não se
resolva a ser santo? Se o ser santo fora uma coisa muito dificultosa, bem nos
merecia o céu e a bem-aventurança que, pela gozar eternamente, se venceram
todas as dificuldades. Mas é tão fácil que, sem vos bulir do lugar onde estais,
e sem mover pé nem mão, nem fazer ou padecer coisa alguma, só com um ato do
coração, e o ato mais natural, mais fácil e mais suave do mesmo coração, que é
amar, e amar o sumo bem, podemos ser santos. Exorta Moisés a amar a Deus de
todo coração, que é o mandamento em que se encerram todos, e conclui assim. Mandatum hoc non supra te est, neque procul
positum (Dt. 30, 11): Este mandamento não é sobre nós, nem está longe de
nós. — Se fora sobre nós e estivera lá no céu: In caelo situm (Ibid. 12), tê-lo-íamos por impossível; se estivera
longe de nós, e com muito mar em meio: Trans mare positum (Ibid. 13),
tê-lo-íamos por muito dificultoso. Mas é muito fácil e está muito perto, porque
está o cumprimento dele dentro do nosso coração: Sed juxta te est sermo valde in corde tuo (14). Moisés, que não
prometia o céu, disse que estava perto de nós o cumprimento deste preceito; mas
Cristo, que promete o céu, ainda disse mais e melhor, porque diz que o
preceito, e o céu, e o merecimento dele não só está perto de nós, senão dentro
de nós: Regnum Dei intra vos est.
Cuidamos que o céu, onde subiram os santos, está muito longe, e enganamo-nos: o
céu não está longe, senão muito perto, e mais ainda que perto, porque está
dentro de nós, e dentro do que está mais dentro, que é o coração. E que haja
almas, e tantas almas, que tendo o céu dentro de si na vida, fiquem fora do céu
na morte, e que podendo tão facilmente purificar o coração e ser santas, só
porque não querem o não sejam? Se para amar a Deus e ganhar o céu houvéramos de
atravessar os mares tormentosos e contrastar com todos os elementos, pouco era
que se fizesse pela bem-aventurança certa do céu o que tantos fazem por tão
pequenos interesses da terra; mas, tendo-nos Cristo tão facilitada a
bem-aventurança, que entre a mesma bem-aventurança e o coração não haja mais
que a condição de ser limpo: Beati mundo
corde, e, podendo o mesmo coração alcançar essa limpeza em um instante de
tempo e com um ato de amor, e de amor ao sumo bem, que não sejamos todos
santos, e não queiramos ser bem-aventurados?
Quero
acabar esta admiração com um ai de S. Bernardo, pregando neste mesmo dia aos
seus religiosos, o qual a eles e a todos pode servir de exemplo e de confusão: Beati mundo corde, quoniam ipsi Deus
videbunt: Beati plane, et omnino beati qui videbunt, in quem desiderant Angeli
prospicere. Tibi dixit cormeum, exquaesivit te facies mea, faciem tuam, Domine,
requiram. Quid enim mihi est in caelo, et a te quid volui super terram? Defecit
caro mea et cor meum, Deus cordis mei et pars mea, Deus in aeternum: quando
adimplebis me laetitia cum vultu tuo? Vae mihi ab immuditia cordis mei, qua
impedien te, nedum mereor ad beatam illam visionem admitti. Quer dizer:
Bem-aventurados os limpos de coração, e verdadeiramente bem-aventurados, porque
eles verão aquela face divina, a qual os anjos sempre estão vendo e sempre
estão desejando ver. A vós, Senhor, diz o meu coração: Nenhuma coisa desejo,
senão ver-vos de face a face, porque nenhuma outra há para mim, nem na terra
nem no mesmo céu. Desmaia o meu coração nas ânsias deste desejo, porque só o
Deus do meu coração é o único e todo o bem que o pode satisfazer. E quando
chegará aquela ditosa hora em que, com a vista de vosso rosto, fique
satisfeito? Mas, ai de mim — diz Bernardo — que pela pouca limpeza de meu
coração — quero-o dizer com as suas próprias palavras — ai de mim, que a
impureza e imundícia de meu coração me impede e faz indigno de ser admitido
àquela bem-aventurada vista! Vae mihi ab
immunditia cordis mei, qua impediente, nedum mereor ad beatam illam visionem
admitti. Se isto dizia de si um coração tão puro, um coração tão santo, um
coração tão elevado, tão estático, tão seráfico e tão abrasado no amor divino,
se isto dizia no coração de Bernardo a humildade, que dirá noutros corações a verdade?
Se o corpo estiver no claustro, e o coração no mundo? Se o coração, depois de
se dar a Deus, estiver sacrificado ao ídolo? Se o coração, que devera estar
cheio de caridade e amor de Deus, estiver ardendo em amor que não é caridade?
Se as palavras, que saem do coração, e os pensamentos, que não saem, forem
envoltos em impureza? Ai de tal coração e de quem o tem: Vae mihi ab immunditia cordis mei! Este vae e este ai de São Bernardo em dia de Todos os Santos, fique por
matéria de meditação a todos os que o querem ser. Advirtam, porém, e tenham por
certo, que se este ai de conhecimento e temor se converter em ai de dor, em ai
de pesar, em ai de verdadeiro e firma arrependimento, esse mesmo ai, dito de
todo coração, com ser uma só silaba — como dizia — bastará para purificar de
tal sorte o mesmo coração que, sendo nesta vida santificado por graça, mereça
ser na outra beatificado por glória: Beati
mundo corde.
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão de Todos os Santos"
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão de Todos os Santos"
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