SERMÃO DE SANTA TERESA E DO
SANTÍSSIMO SACRAMENTO
Simile factum est regnum caelorum homini regi, qui fecit nuptias filio
suo. Et misit servos suos vocare
invitatos.
Caro mea vere est cibus, et sanguis meus vere est potus.
Simile est regnum caelorum decem virginibus, quae accipientes lampadas
suas exierunt obviam sponso et sponsae.
CAPÍTULO I
Em um dia em que se nos propõem
três Evangelhos, não é muito que preguemos sobre três temas. O primeiro
Evangelho é da Dominga corrente, que canta hoje a Igreja universal. O segundo é
do Diviníssimo Sacramento, pela devoção particular desta casa. O terceiro é o
comum das Virgens, em memória da gloriosa Virgem, mãe de tantas e tão santas, a
Santa Madre Teresa de Jesus, cuja solenidade também concorre e se celebra aqui
hoje.
Começando pois pelo primeiro
Evangelho — que, como mais universal e mais próprio deste dia, é bem que seja o
que nos abra o caminho, e dê fundamento a tudo — diz nele e ensina em parábola
o divino Mestre que o reino do céu é semelhante a um homem rei: Simile factum est regnum caelorum homini
regi (Mt. 22, 2). Não há duas coisas tão parecidas no mundo como o rei e o
reino. Os reis são os espelhos a que se compõem os vassalos, e tais serão as
ações do reino, quais forem as inclinações do rei. Não fala Cristo de qualquer
reino, nem de qualquer rei, senão do reino do céu, e de um rei homem, porque se
o rei for humano será o reino bem-aventurado, e se o rei for homem tão seguro
estará o reino da terra como o do céu. Este rei, diz o Senhor que celebrou com
grandes festas o casamento do príncipe seu filho: Qui fecit nuptias filio suo, e nisto mostrou também que era rei
homem, porque não descuidar da sucessão é reconhecer a mortalidade. Chegado o
dia das bodas, mandou alguns criados que fossem chamar os convidados para o
banquete, e diz o texto sagrado uma coisa que parece incrível, e é que eles não
quiseram vir: Et nolebant venire (Mt
22,3). Se o rei os chamara para a guerra, escusa tinha a ingratidão na fraqueza
e temor natural; mas para as bodas e para o banquete, não virem? Mais abaixo
diz o mesmo Evangelho que mandou o rei os seus soldados, e foram; agora chamou
os seus convidados, e não vieram. Eu lhes perdôo a descortesia pelo exemplo. Se
os vassalos hão de faltar ao príncipe, antes seja na mesa que na campanha.
Vendo o rei que os convidados não queriam vir, mandou segundo recado, mas por
outros criados, e não pelos mesmos: Misit
alios servos (Ibid. 4). Não é nova razão de estado nos reis, para melhorar
vontades, mudar ministros. Mas a razão que aqui teve o rei, a meu ver, foi
ainda mais fácil e mais achada. Mandou a segunda vez outros criados, porque é
bem que se reparta o trabalho, e que vão todos. Se os segundos descansaram
enquanto foram os primeiros, bem é que descansem os primeiros, e que vão agora
os segundos. Assim que, mudar o rei os criados não é condenar os talentos: é
repartir os trabalhos. Se os primeiros tiveram ruim sucesso, não o tiveram
melhor os segundos, que nem sempre com a mudança se consegue a melhoria. Os
primeiros acharam más vontades: Nolebant
venire; os segundos experimentaram más obras: Occiderunt eos. Quer dizer que foram tão descomedidos alguns dos
convidados que não só afrontaram de palavra aos criados do rei, mas chegaram a
lhes pôr as mãos e tirar as vidas. Há maior ingratidão? Há maior descortesia?
Há maior atrevimento de vassalos? Que faria o rei neste caso? Diz o texto que
mandou logo seus exércitos a executar um exemplar castigo; não só nas pessoas
ou corpos dos rebeldes, senão na mesma cidade onde viviam, da qual não ficaram
mais que as cinzas, para memória ou esquecimento eterno de tal ousadia. Assim o
fez o rei, e assim o hão de fazer os reis. Quem hoje se atreveu ao criado,
amanhã se atreverá ao senhor. Ocupou os seus exércitos em arrasar as cidades
próprias, quando parece que fora mais conveniente conquistar as alheias, porque
não são tão danosas as hostilidades dos inimigos, como os atrevimentos nos
vassalos. Melhor é ter menos cidades, e mais obedientes. Por isso lhe chamou o
Evangelho cidade sua, deles, e não do rei: Civitatem
illorum (Mt. 22, 7). Cidade que se atreve contra os ministros do rei, não é
cidade do rei, é cidade livre, e liberdades não as hão de sofrer as coroas. Se
os criados ofenderam aos convidados, queixem-se, que para isso tem o rei
ouvidos; mas presumir violências e executá-las? Não há, nem é bem que haja em
tal caso sofrimento nos reis, senão ira e fogo: Iratus est, et civitatem illorum succendit. Tão rigoroso se mostrou
no exterior como rei, mas como homem, lá por dentro lhe ficou a dor e o sentimento:
Perdidit homicidas illos. Notai os
termos. A palavra perdidit quer dizer
matar e perder, porque de tal maneira castigava, que considerava o que perdia.
Matar um homicida é perder um homem: Perdidit
homicidas illos. Executado assim, ou mandado executar, o castigo, voltou-se
o rei para os criados, e disse-lhes: Qui
invitati erant, non fuerunt digni (Ibid. 2): Os que foram convidados não
eram dignos. — Pois agora, Senhor? Não fora melhor conhecê-los antes de os
convidar, que convidá-los antes de os conhecer? Eis aqui o maior mal e a maior
consolação que tem o mundo. Serem os indignos os convidados é o maior mal;
serem os beneméritos os excluídos é a maior consolação. Vendo o rei que não
queriam vir os que convidara, tornou-se aos que tinha enjeitado, e foram eles
tão honrados, que todos vieram. Não introduziria Cristo na sua parábola esta
diferença, se não fora o que nas suas eleições costumam experimentar os
príncipes. Os seus escolhidos são aqueles que na ocasião não querem vir, e os
seus enjeitados os que na ocasião vêm todos. Chamaram os criados, diz o texto,
todos os que acharam pelas ruas: Et
impletae sunt nuptiae discumbentum (Ibid.
10): E ficaram cheias as mesas. — Quantos andam desfavorecidos por essas ruas,
que haviam de encher muito bem o seu lugar, se os chamaram? Enfim o rei entrou
na sala onde comiam os convidados, e foi esta a melhor iguaria que veio à mesa:
os olhos do rei. Viu um, entre os demais, que não estava vestido de gala, e não
só o mandou lançar fora, mas que, atado de pés e mãos, o metessem no cárcere
mais escuro. Tão grande delito é não festejar o que os príncipes festejam. Mas,
dado que este não fizesse o que devia, o que eu muito pondero é que de todos os
convidados nenhum foi bom, e de todos os excluídos só um foi mau. Antes de
entrarem às bodas eram bons e maus: Congregaverunt
omnes quos invenerunt, malos et bonos. E depois de entrarem, tirando um,
todos foram bons, porque a melhor arte de fazer bons é admiti-los: o desprezo a
ninguém melhorou; a honra a muitos.
Esta é a parábola do Evangelho,
tão parecida com a história dos nossos tempos, que por isso lhe ajuntei
doutrina não imprópria deles. Vindo, porém, ao intento da nossa festa, ou
festas, duas coisas acho menos neste Evangelho. Falados desposórios do príncipe
e do banquete do rei, mas nem nos desposórios nos diz quem foi a esposa, nem no
banquete nos declara quais fossem as iguarias. Por isso tomei de socorro os
outros dois Evangelhos. O Evangelho das Virgens nos diz que esposa é Santa
Teresa: Exierunt obviam sponso et sponsae;
o Evangelho do Sacramento nos declara que as iguarias são o Corpo e Sangue de
Cristo: Caro mea vere est cibus, et
sanguis meus vere est potus. Suposto pois que a santa e o Santíssimo são as
duas partes da nossa festa, para que com o mesmo discurso satisfaçamos a ambas
as obrigações, será hoje o meu assunto este: que os maiores favores que Cristo
fez a Santa Teresa são os mesmos que faz no Sacramento aos que dignamente
comungam. Para igualar tamanhas graças é necessário muita graça. Ave Maria.
CAPÍTULO II
Sendo tão singulares os favores
em que o amor de Cristo se extremou com Santa Teresa que, não juntos, mas
divididos, apenas se lhes acha paralelo entre os outros santos, maior empenho
tomei do que porventura se imagina, quando prometi mostrar que os mesmos
recebem invisivelmente de Cristo os que dignamente o recebem no Sacramento. E
por que não pareça que fujo à dificuldade de tamanho assunto, antes o quero encarecer e subir de
ponto, para mais excitar a nossa devoção e agradecimento, entre todos os favores e finezas com que o
amorosíssimo Senhor singularizou esta grande santa — pois não é possível ponderar todos —
escolherei os mais notáveis.
O primeiro, pois, e mais visível,
que se me oferece, é quando o mesmo Cristo, em presença da Virgem Santíssima e
de São José deu a mão de Esposo a Teresa. Os desposórios que se fazem com
aprovação dos pais são mais qualificados, e para que esta circunstância de
gosto não faltasse onde não podia faltar o acerto, desposou-se Jesus com Teresa
em presença de José e Maria. E que vieram a ser estes desposórios? O mesmo
Senhor o disse: — Daqui em diante eu serei todo teu, e tu toda minha. — De
sorte que foi uma entrega de ambos os corações total e recíproca, com que não
só Teresa ficou Teresa de Jesus, senão também Jesus, Jesus de Teresa. Ainda
aquele de é supérfluo, porque ser um de outro distingue dois sujeitos, e a
união entre Jesus e Teresa foi tão íntima que, passando de união a unidade, já
Teresa e Jesus não eram dois e distintos, senão um só e o mesmo. Vejamos isso
em um excelente retrato feito pela mão do mesmo Esposo.
Criou Deus a Adão e Eva, e diz
assim o texto sagrado: Masculum et
feminam creavit eos, et vocavit nomem eorum Adam (Gên. 5,2): Fê-los Deus
homem e mulher, e deu por nome a ambos Adão. — Pois, se Adão e Eva eram duas
criaturas e dois sujeitos distintos: Masculum
et feminam creavir eos — por que lhes não deu Deus dois nomes também
distintos, senão um só e o mesmo, e não outro, senão o de Adão: Et vocavit nomem eorum Adam? Porque a
Adão e a Eva desposou-os Deus na maior perfeição da natureza; e posto que, por
força da criação, eram dois, por virtude do matrimônio ficaram um. Antes que
Deus formasse a Eva, não havia mais que Adão; depois que da costa de Adão
formou a Eva, dividiu-se Adão, e o que era um só sujeito ficaram dois; mas
tanto que Adão deu a mão de esposo a Eva, tornaram esses dois sujeitos a
reunir-se, e os que eram dois e distintos ficaram um só e o mesmo. Por isso
lhes deu Deus um só nome, e não outro, senão o de Adão: Et vocavit nomem eorum Adam. Isto foi o que foi. E o que
significava, que era? São Paulo: Sacramentum
hoc magnum est: Ego autem dico in Christo et in Ecclesia. Tudo isto que
passou entre Adão e Eva foi um grande mistério, porque na união daquele
matrimônio debuxou Deus, como em figura original, o que depois se havia de
verificar na Igreja entre os desposórios de Cristo com as almas santas. Que
Adão foi logo este, senão Jesus, e que Eva, senão Teresa? Antes deste divino
desposório Teresa era Teresa de Jesus, e Teresa e Jesus dois sujeitos com dois
nomes distintos; porém, depois que Jesus deu a mão de esposo a Teresa, o nome
Teresa de Jesus perdeu a distinção daquele de, e ficou Teresa Jesus. A que
depois se chamou Sara, chamava-se dantes Sarai, e diminuiu-lhe Deus o nome para
lhe acrescentar a dignidade. Assim também a Teresa de Jesus. Tirou-lhe aquele
de, que distinguia a Jesus de Teresa, e ficou somente Teresa de Jesus, porque,
transformado Jesus em Teresa, e Teresa em Jesus, já não eram dois nomes nem
dois sujeitos, senão um só e o mesmo. Adão e Eva, Adão; Teresa e Jesus, Jesus.
Vamos ao Evangelho.
No princípio do Evangelho das
Virgens diz o texto que todas dez saíram a receber o esposo e a esposa: Exierunt obviam sponso et sponsae. E no
fim do mesmo Evangelho diz que as cinco prudentes entraram com o esposo às
bodas: Intraverunt cum eo ad nuptias
(Mt. 25,10). De maneira que, quando saíram, receberam o esposo e a esposa; mas
quando entraram só se diz que acompanharam o esposo: Intraverunt cum eo. A esposa claro está que não havia de ficar de
fora. Pois, se quando as virgens entraram acompanharam a ambos, assim como
quando saíram receberam a ambos, por que razão quando saíram ao recebimento se
faz menção do esposo e da esposa, e quando entraram às bodas só se nomeia o esposo,
e a esposa não: Intraverunt cum eo ad
nuptias? Excelentemente Santo Hilário: Sponso
tantum obviam proceditur, jam enim erunt ambo unum. Não há dúvida que
entraram às bodas o esposo e mais a esposa; mas esse mesmo esposo e essa mesma
esposa, que antes de entrar às bodas tinham sido dois, depois de entrar às
bodas já eram um só: Jam enim erunt ambo
unum. E porque já eram um, e não dois, por isso se fez menção do esposo
somente, e não da esposa: lntraverunt cum
eo. Assim, nem mais nem menos, nos divinos desposórios de Jesus com Teresa,
antes de se darem as mãos, Jesus e Teresa distinguiam-se, e eram dois; porém,
depois de celebradas as bodas, já ambos eram um só: Jam ambo erunt unum; já não havia Teresa e Jesus, senão só Jesus: Intraverunt
cum eo.
Quem nos poderá declarar a força
e verdade desta união, senão quem a experimentou em si, a mesma Santa Teresa?
Dizia Teresa de si que estava tão individualmente unida com Jesus, seu esposo,
que podia dizer com São Paulo: — Vivo eu, já não eu, porque vive em mim Cristo:
— Oh! que divina implicação: Eu não eu! Se sois vós, como não sois vós? Sou eu
considerada em Cristo; não sou eu considerada em mim. Considerada em Cristo,
sou eu, porque Cristo vive em mim e considerada em mim, não sou eu, porque eu
vivo em Cristo. Outra vez, falando com o mesmo Cristo, lhe disse: — Senhor, que
se me dá a mim de mim sem vós? Porque eu sem vós não sou eu, e de mim que não
sou eu, que se me dá a mim? De sorte que estavam tão transformados estes dois
corações que, reciprocando as vidas, viviam um no outro, e tão unidos na mesma
transformação que, deixando cada um de ser outro, eram um só e o mesmo: ambo unum.
Da alma santa disse o Esposo
divino, que lhe ferira o seu coração, e que lho tirara: que lho ferira: Vulnerasti cor meum, como diz o texto
latino; que lho tirara: Abstulisti mihi
cor, como diz o hebraico. O mesmo sucedeu a Teresa com o seu coração.
Apareceu-lhe, estando em êxtase, um serafim com uma seta de ouro afogueada. E
que fez? Metendo-lhe a seta no peito, com a ponta feriu-lhe o coração: Vulnerasti cor meum — e, tornando a
tirar a seta, com as farpas levou-lhe o coração: Abstulisti mihi cor. Temos a Teresa sem coração, e, sem coração,
como há de viver? Sem coração, como há de amar? Antes, para melhor viver, e
para melhor amar, lhe tirou seu Esposo o coração. O coração é o princípio da
vida, e onde ambos viviam com a mesma vida sobejava um coração: por isso lho
tirou Cristo. E também lho tirou para que melhor amasse, amando-se ambos com
um, e não com dois corações. Não há exemplo na terra: no céu sim, e o mais
perfeito. O mais perfeito amor que há nem pode haver é o das três Pessoas
divinas. Ama o Padre ao Filho, ama o Filho ao Padre, ama o Padre e o Filho ao
Espírito Santo, ama o Espírito Santo ao Padre e ao Filho, e, sendo os amantes
três, a vontade com que se amam é uma só; e assim como ali há três amantes com
uma só vontade, assim cá se amavam os dois com um só coração. Oh! que perfeito!
Oh! que divino! Oh! que ditoso modo de amar! Amar com igualdade no amor, porque
o mesmo coração é o que ama, e amar sem dúvida na correspondência, porque o
mesmo coração é o que corresponde: antes o mesmo amor em unidade recíproca é
amor e correspondência juntamente, porque não podiam os amores ser dois, quando
os amantes se tinham transformado em um: Et
jam erunt ambo unum.
Não vos parece grande extremo de
fineza, não vos parece grande excesso de favor este de Cristo para com Teresa?
Pois a mesma fineza usa o mesmo Cristo, e o mesmo favor faz aos que dignamente
comungam. No Evangelho do Sacramento temos a prova. Porque, assim como com o
Evangelho das Virgens provamos tudo o que temos dito, e provaremos tudo o que
dissermos de Cristo em respeito de Santa Teresa, assim com o Evangelho do
Sacramento provaremos também quanto houvermos de dizer do mesmo Cristo em
respeito de nós e dos que comungam dignamente.
Caro mea vere est cibus, et sanguis meus vere est potus. A primeira
coisa que Cristo Senhor nosso nos certifica neste Evangelho é ser verdadeira
comida o seu corpo, e verdadeira bebida o seu sangue. Onde se deve muito notar
que não faz a força do que quer persuadir em ser verdadeiramente seu corpo o
que se nos dá debaixo das espécies de pão, nem em ser verdadeiramente seu
sangue o que se consagra debaixo das espécies do vinho, senão em que esse corpo
e esse sangue é verdadeiramente mantimento nosso. E por que razão? Porque é
propriedade e natureza geral de todo o mantimento converter-se na substância de
quem o come; e como Cristo só neste Sacramento assiste real e presencialmente,
e nos outros não, por isso também só neste se nos quis dar em forma de
mantimento, para que entendêssemos que o fim de o instituir não só fora para
nos comunicar sua graça, como nos outros sacramentos, senão para se unir a si
mesmo conosco, e a nós consigo. O mesmo Senhor se declarou e o disse logo: Qui manducat meam carnem et bibit meum
sanguinem, in me manet, et ego in illo. Sabeis por que digo que o meu corpo
é verdadeira comida, e o meu sangue verdadeira bebida? Porque, assim como o
mantimento se converte na substância de quem o come, assim eu me quero
transformar em vós, e vós em mim: de modo que vós, comungando, fiqueis em mim,
e eu, sendo comungado, em vós: In me
manet, et ego in illo. E porque nesta união e transformação de dois que somos, se há de fazer um só, este um qual
há de ser? Não haveis de ser vós, senão eu — diz o mesmo Cristo. — E assim
continua o texto Santo Agostinho: Nec tu
me mutabis in te, sicut cibum carnis tuae, sed tu mutaberis in me. De sorte
que, assim como nos desposórios de Cristo com Teresa, de dois que eram, se
transformaram em um só, e este um, depois de transformados, não era
principalmente Teresa, senão Cristo que nela vivia: Vivit vero in me Christus (Gal. 2,20), assim na transformação do
Sacramento, o que dignamente comunga, de tal modo fica unido e identificado com
Cristo, que Cristo é o que nele vive.
O mesmo Evangelho o diz, e com o
mesmo exemplo das Pessoas da Santíssima Trindade, com que declarei a união ou
unidade do coração de Cristo com Teresa: Sicut
misit me vivens Pater, et ego vivo propter Pater: et qui manducat me, et ipse
vivet propter me (Jo. 6,58): Assim como eu vivo pela vida de meu Padre, que
me mandou ao mundo, assim quem me comunga verdadeiramente não vive pela sua
vida, senão pela minha. — Grande caso é que, querendo a sabedoria encarnada
declarar o que tinha dito com algum exemplo, não achasse outro mais adequado e
mais próprio que o da unidade e vida recíproca que há entre o mesmo Cristo e
seu Eterno Padre: Vivit ergo per Patrem
— comenta Santo Hilário — et quomodo per
Patrem vivit, eodem modo nos per carnem ejus vivemus: Assim como entre o
Padre e o Filho, enquanto Deus, há uma só vida, porque o Padre vive no Filho e
o Filho no Padre, e um vive pela vida do outro, assim entre Cristo e o que
comunga, posto que sejam dois, a vida é e há de ser uma só, e não outra, senão
a do mesmo Cristo: Et ipse vivet propter
me. Vejam agora os que comungam se a vida que vivem é a sua ou a de Cristo,
e daqui julgarão, pelos efeitos, se comungam como devem ou não.
CAPÍTULO III
O segundo favor, e mais
extraordinário ainda, que Santa Teresa recebeu de seu Divino Esposo, foi que
entre outras finezas lhe disse estas palavras: — Teresa, se eu não tivera
criado o céu, só por amor de ti o criara. — De nenhum outro santo se lê semelhante
favor. Houve-se Cristo com Santa Teresa como Santo Agostinho com Deus, para
encarecer o seu amor. Se eu fora Deus, e vós não — diz Agostinho — deixara eu
de o ser, para que vós o fosseis. Muito tem de excessivo o amor que para se
poder declarar finge suposições impossíveis. Mas isto fez um coração, posto que
tão entendido, humano. Porém Cristo, que pode tudo, e com tão singulares e
esquisitas demonstrações tinha manifestado a Teresa o seu amor, que invente
casos condicionais, e suponha o que já foi, como se não fora, e o que já não
podia ser, como se fosse possível, para assim declarar quanto ama? A sabedoria
de Cristo é igual à sua onipotência, e a sua onipotência à sua sabedoria; e que
o amor do mesmo Cristo signifique a Teresa que sabe mais desejar do que pode
fazer, e não diga o que fará por ela, senão o que faria? Ora eu, considerando
este caso que supôs Cristo, e um voto que fez Santa Teresa, entendo que se
achou Cristo como alcançado, e que se não pôde desempenhar daquele voto senão
com esta suposição. O voto que fez Santa Teresa foi de sempre fazer o que fosse
melhor; e como a melhor coisa que Deus podia fazer é o céu e a bem-aventurança,
que já estava feita, disse que, se não tivera feito o céu, só por amor de
Teresa o fizera. Se o amor de Teresa se obriga por mim a fazer sempre o melhor,
como posso eu pagar este amor, senão fazendo também o melhor por Teresa? Mas
este melhor já está feito? Pois saiba ao menos Teresa de mim que, se não tivera
feito o céu, só por amor dela o fizera. E sendo assim que Cristo fez o céu por
amor de todos os predestinados, parece que pesa tanto no conceito e estimação
do mesmo Cristo o amor de Teresa só, como o de todos os predestinados juntos.
Uma das coisas mais notáveis que
escreveu São Paulo foi esta: Christus
Jesus venit in hunc mundum peccatores salvos facere, quorum primus ego sum
(1 Tim. 1,15): Cristo Jesus veio a este mundo salvar os pecadores, dos quais eu
sou o primeiro. — São Paulo não foi o primeiro pecador na antigüidade, porque
esse foi Adão; nem foi o primeiro na grandeza e multidão dos pecados, porque
houve outros pecadores maiores, e eles mesmo confessa, neste lugar, que pecou
por ignorância: Quia ignorans feci.
Pois donde infere São Paulo que foi o primeiro e maior pecador de todos: Quorum primus ego sum? Nas palavras
antecedentes está a premissa desta ilação; Christus
Jesus venit in hunc mundum peccatores salvos facere: Cristo veio do céu a
este mundo para salvar os pecadores, — e o mesmo Cristo veio também do céu a este mundo,
para me salvar só a mim. Logo, no conceito e estimação de Cristo, infere Paulo,
tanto pesa a graveza dos meus pecados, como os de todo o mundo. A mesma ilação
faço eu. Assim como São Paulo, para encarecer a graveza de seus pecados,
ponderou que fizera Deus só por ele o que tinha feito por todo o mundo, assim
Cristo, para encarecer a grandeza do seu amor, disse que faria por Teresa o que
tinha feito por todos os predestinados. E assim como Cristo, só por amor de
Paulo desceu do céu, como tinha descido por amor de todo o mundo, assim Cristo,
só por amor de Teresa criaria o céu, se por amor de todos os predestinados o
não tivera criado. Oh! grande amor! Oh! excessivo encarecimento! Que no
conceito de Cristo, que não lisonjeia, pese tanto o amor de Teresa como o de
todos! Vamos outra vez ao Evangelho.
É semelhante o reino do céu a dez
virgens, cinco prudentes e cinco néscias, diz Cristo nesta parábola. E, por ser
parábola, faz não pequena dificuldade a igualdade destes números. O autor que
faz ou inventa uma parábola, assim como tem liberdade para a dispor e historiar
como lhe importa a seu intento, assim tem também obrigação de a deduzir em
termos prováveis, e àquilo que é verossímil e costuma acontecer comumente.
Suposto isto, parece que não haviam de ser tantas as prudentes como as néscias.
Não andara mal governado, nem fora tão louco o mundo, se de cada dez mulheres
se pagara o dízimo à prudência. Homens eram aqueles dez leprosos que Cristo
sarou, e porque só um lhe veio dar as graças, perguntou onde estavam os nove: Et novem ubi sunt (Lc. 17,17)? E se em
dez homens se acham nove ingratos, como não seria mais verossímil que em dez
mulheres se achassem nove néscias? Não há dúvida que segundo a condição humana
este número era o mais próprio, e também segundo o intento de Cristo, que era a
consideração dos muitos que se condenam. Pois por que não introduz o divino
Mestre nesta parábola nove virgens que fossem néscias, e uma só que fosse
prudente? Porque assim como as néscias, que ficaram de fora, significam as
almas que se condenam, assim as prudentes, que entraram às bodas, representam
as que se salvam e vão ao céu. E no caso em que se introduzisse uma só
prudente, não era nem podia ser verossímil que Cristo fizesse o céu para uma
só. Por isso, fazendo a história menos verossímil, para que fosse mais
verossímil a significação, não introduziu nela uma só prudente, senão muitas: Et quinque prudentes (ML 25,2). Não
sendo porém verossímil, ainda na ficção de uma parábola, que Cristo houvesse de
criar o céu para uma só alma, era tal a alma de Teresa, e tal o extremo com que
o mesmo Senhor a amava, que, no caso e suposição em que não tivesse criado o
céu, é verdade certa e infalível que só por amor dela o criaria. E se quereis
ver pintada esta mesma figura retórica do amor de Cristo, vamos ao Apocalipse.
Viu São João aquela misteriosa
mulher tão celebrada, a quem coroavam as estrelas, vestia o sol e calçava a
lua. E conforme a exposição de São Boaventura, Ruperto, Vitorino, Hugo, Alberto
Magno e outros, os quais entendem por esta mulher uma alma superiormente
alumiada por Deus e adornada de celestiais virtudes, a que alma se pode aplicar
com maior razão esta prodigiosa e admirável figura que à de Santa Teresa, em
cujo espírito sublime e elevado depositou a liberalidade divina tantos dotes e prerrogativas
de perfeição, como se lê em sua vida, e tantos resplendores de ardentíssima
luz, como se admiram e sentem em seus escritos? São Francisco de Borja, sendo
um dos examinadores do espírito de Santa Teresa, o primeiro testemunho que deu
foi que era una gran mujer. Digo pois
que Santa Teresa foi a grande mulher que São João viu no Apocalipse, e o provo
da mesma visão.
Diz o texto que aquela mulher
tinha concebido um filho de sexo e valor masculino, o qual havia de governar o
mundo com vara de ferro, e ser arrebatado ao céu; e que o parto deste filho lhe
custou grandes trabalhos e dores, porque lhe saiu ao encontro um dragão de
muitas cabeças coroadas, que o queria tragar. O autor da história profética
carmelitana diz que este filho há de ser Elias no fim do mundo; e eu, com bem
diferente pensamento e exposição, também reconheço nele a Elias, mas não que há
de ser, senão que já foi, e não como filho da Igreja universal, senão como
parto singular de Santa Teresa. Ora vede. Que Elias fosse de sexo e valor
masculino: Peperit filium masculum,
bem se viu na resolução e constância de todas suas ações contra grandes e
pequenos, e muito mais contra os grandes. Se governou as gentes com vara de
ferro, diga-o el-rei Acab, a rainha Jesabel, el-rei Ocosias, os quatrocentos e
cinqüenta profetas de Baal, que degolou em um dia, as duas companhias de
soldados e seus capitães, que queimou com fogo do céu, e o mesmo céu, que teve
fechado três anos sem chover, como se fosse de bronze. Finalmente que fosse
arrebatado ao céu: Et raptus est ad Deum et ad thronum — assim o viu arrebatar subitamente e
desaparecer de seus olhos seu discípulo Eliseu. Tinha, pois, fundado Elias no
Monte Carmelo uma religião de tanta severidade, rigor e aspereza, qual era a de
seu fundador; tinham-se passado oitocentos anos antes de Cristo, e depois de
Cristo mais de mil e quinhentos, em que o tempo e as variedades dele, ou tinham
enfraquecido a tolerância, ou moderado a austeridade daquele primitivo
instituto, quando Teresa, revestida do espírito dobrado do mesmo Elias, o
concebeu dentro em si mesma, não para que ressuscitasse, porque não morrera,
mas para que outra vez nascesse, e não só em mulheres, sendo ela mulher, senão
também nos homens. Julgou o mundo esta empresa por impossível, e dizia com
Nicodemos que Elias era muito velho para tornar ao ventre da mãe e nascer de
novo: Quomodo potest homo nasci cum sit
senex? Nunquid potest in ventrem matris suae iterato introire, et renasci?
Porém a santa Madre — que desde então o
começou a ser — assim como segunda vez tinha concebido a Elias, assim o pariu
segunda vez, e o mostrou ao mundo incrédulo felizmente renascido: Peperit filium masculum. E quantas dores
lhe custasse este prodigioso parto e a novidade dele, diz a grandes vozes o
mesmo texto: Clamabat parturiens, et
cruciabatur, ut pareret. Que trabalhos, que contradições, que perseguições,
que murmurações, que descréditos e falsos testemunhos padeceu aquele sublime e
constante espírito, sendo movedor de todas o dragão infernal, multiplicado, com
grande propriedade do mesmo texto, em muitas cabeças, e estas coroadas, porque
apenas houve coroa, não só profana, mas sagrada — e ainda muitas regulares —
que não impugnasse fortemente, e trabalhasse por abortar este glorioso parto.
Enfim venceu Teresa, e para distinção do novo e primitivo instituto,
descalçou-se como Elias, e assim apareceu, se bem advertirdes, na mesma figura
do céu que a representava. As alparcas de Santa Teresa, como invenção do céu,
de tal modo descalçam os pés, que os não deixam tocar a terra. São uma sorte de
meio calçado, não para calçar ou cobrir os pés, mas para se trazer debaixo
deles. E disto mesmo servia a lua à mulher que viu São João. Dizemos comumente
— como eu acima disse — que estava calçada da lua, e não dizemos bem. Se estivera
calçada, havia de ter os pés cobertos da lua; mas ela não tinha os pés cobertos
da lua, senão a lua debaixo dos pés: Et
luna sub pedibus ejus (Apc. 12,1). Assim representava a lua as alparcas de
Teresa, e assim apareceu Teresa descalça no céu, não já como filha que tinha
sido, senão como nova mãe do primitivo Elias: mãe e filha de seu próprio pai,
como a Virgem das virgens.
Provado pois com todas as
propriedades do texto quem fosse a mulher misteriosa que viu São João, o que agora reparo, e muito se deve notar, é
que aquela mesma mulher enchia e ocupava todo o céu e todos os céus. Com os pés
estava no céu da lua, que é o primeiro; com o corpo passava pelo céu do sol,
que é o quarto; com a cabeça chegava ao céu das estrelas, que é o oitavo. Logo,
era tão agigantada a sua estatura que desde o primeiro até o último tomava todo
o céu. Pois, se a grandeza de cada um dos céus é tão imensa, e a de todos tão
incomparavelmente maior, como é possível que uma só mulher a ocupasse toda?
Porque aquela mulher, como vimos, era Teresa, e Teresa, em si mesma e na
estimação de Cristo, é tão grande, que ela só iguala a todo o céu. Por isso
diz, com suposição já não possível mas certa, que se não tivera criado o céu,
só para ela o criara. E se não, entremos no mesmo céu empíreo, de que mais
propriamente falava Cristo, e veremos que se neste céu exterior, que vemos,
ocupava Teresa todos os lugares com a figura, no céu interior, que não vemos,
também os ocupa todos com a presença. A natureza humana beatificada tem no céu sete
lugares: de patriarcas, de profetas, de apóstolos, de doutores, de mártires, de
confessores, de virgens; e em todos tem assento eminente Santa Teresa. No das
virgens pela pureza, no dos confessores pela penitência, no dos mártires pelo
desejo, no dos doutores, por seus admiráveis escritos, no dos apóstolos pelo
seu zelo ardentíssimo da propagação da fé, no dos profetas pelos secretos
altíssimos das suas visões, revelações e profecias, e no dos patriarcas,
finalmente, com ser mulher, como mãe e fundadora gloriosíssima de uma religião
tão ilustre, e lustre das religiões. E se Cristo no céu que se vê, e no céu que
se não vê, deu a Teresa todo o céu, vede se o criaria só para ela, no caso em
que o não tivera criado? E sendo criado o céu para todos os predestinados, isto
é, para todos os que foram, são e serão bem-aventurados na glória, julgai se
parece, como eu dizia, que pesou tanto na estimação de Cristo o amor só de
Teresa, como o de todos.
Grande favor, grande fineza,
estais dizendo todos; e mais não sendo encarecimento, senão verdade infalível da boca de Cristo. Pois saiba cada
um de nós — ou advirta, como já sabe que esse mesmo favor, e essa mesma fineza
faz o mesmo Cristo no Sacramento por cada um dos que comungam. Se Cristo faria
por Teresa o que fez por todos os predestinados, no Sacramento não só faria,
mas faz por cada um dos que comungam o que fez por todos. Porque, se no
Sacramento se dá todo a todos,igualmente se dá todo a cada um. É verdade que o
Sacramento foi feito para todos, mas de tal maneira para todos como se se
fizera para um só. No Evangelho o temos, e não em uma só parte, senão em todo: Qui manducat meam carnem et bibit meum
sanguinem, in me manet, et ego in illo (Jo. 6,57): Aquele que come a minha
carne e bebe o meu sangue está em mim, e eu nele. — Notai que não diz aqueles
que comem, senão aquele: Qui manducat. Vai por diante o Senhor: Sicut misit me vivens Pater, et ego vivo
propter Patrem, et qui manducat me, et ipse vivet propter me (Ibid. 58):
Assim como meu Padre vive, e eu vivo por ele, assim aquele que me come viverá
por mim. — Notai outra vez que não diz aqueles, senão aquele: Et qui manducat.
Finalmente faz comparação entre o Sacramento e o maná, e dizendo que seus pais,
daqueles com quem falava, comeram o maná e morreram: Patres vestri manducaverunt mana et mortui sunt (Ibid. 59), aqui
parece que por boa conseqüência, e para mais declarar a contraposição, havia de
dizer que aqueles, porém, que comem meu corpo, viverão eternamente; e também
aqui não disse aqueles, em plural, senão aquele, em singular: Qui manducat hunc panem vivet in aeternum.
Qual é pois a razão por que sempre diz aquele, e não aqueles? Por que sempre
fala em singular, e não em plural? E por que, sendo o Sacramento instituído
para todos, nunca fala de muitos, senão de um só? E notai, para maior
admiração, que em todas estas sentenças sempre o Senhor variou a frase, porque
a primeira vez disse: Aquele que come a minha carne: Qui manducat meam carnem; a segunda: Aquele que come a mim: Qui
manducat me; a terceira: Aquele que come este pão: Qui manducat hunc panem. Pois, se falando do Sacramento, que é
carne de Cristo, e todo Cristo, debaixo de espécies de pão, variou sempre a
frase, falando dos que comungam, por que não variou nem multiplicou o número,
antes persistiu e perseverou sempre na unidade: Qui manducat, qui manducat, qui manducat? A razão é porque, ainda
que o amor de Cristo, instituindo o Sacramento universalmente para todos, de
tal maneira abstraiu e quis que nos abstraíssemos dessa mesma universalidade,
como se verdadeiramente fora instituído não para todos, nem para muitos, nem
para mais, senão singularmente para um só. E assim é, porque, dando-se Cristo
no Sacramento todo a todos, e todo a cada um, de tal modo e com tal amor se dá
todo a um, como se amara e estimara tanto a um só como a todos.
Ouvi a São Salviano, que é o que
mais viva e profundamente ponderou esta singularidade: Sicut totum ei debent universi, sic totum singuli, quod tantum
acceperunt singuli, quantum universi: No Sacramento tanto devem todos a
Cristo, com cada um, porque tanto recebe cada um como todos. — E que se segue
daqui? Agora vai o profundo da ponderação: Ubi
enim hoc unus accipit, quod universi, et si par est mensura, major invidia est:
Porque quando um recebe tanto como todos, ainda que a medida é igual, a inveja
é maior. — Muitos comentos tenho lido desta cláusula, e muitos sentidos deste
enigma de Salviano, mas nenhum que satisfaça, porque, para haver inveja, há de
haver desigualdade, e sendo a medida do que se dá igual, como pode haver
inveja? Na distribuição do maná nenhum tinha inveja, porque aquela medida,
chamada gomor, tão cheia se dava a um como ao outro; logo, se cá também a
medida é igual: par mensura, como pode ser maior a inveja: major invidia est? Porque no maná tanto levava um como o outro, mas
não tanto um como todos: porém, no Sacramento, como tanto recebe um como todos,
e tanto todos como um, bem pode haver inveja, e grande inveja, não pela
desigualdade do Sacramento, onde a não há, senão pela desigualdade de número,
que é a maior que pode haver. Quando um só recebe tanto como todos, como não
hão de ter inveja todos àquele um? Se no céu pudera haver inveja, e já se
soubesse que o céu que Cristo fez por amor de todos os bem-aventurados, o faria
só por amor de Teresa, não seria bastante ocasião de inveja esta grande
diferença? Pois o mesmo passa no Sacramento. Antes digo que, assim como da arte
de todos em respeito de um pode ser inveja, assim da parte de um em respeito de
todos poderá ser soberba. Que faça tanto Deus por mim só, como por todos. Ele
me tenha de sua mão, para que tamanho favor me não ensoberbeça. Aqui, e neste
ponto de tão verdadeira honra, quisera eu que a nossa soberba se esmerasse; mas
ela é tão vã e tão vil, que, igualando-nos Deus, na sua estimação, com todos, o
mesmo Deus, na nossa estimação, é menos que tudo.
CAPÍTULO IV
O terceiro favor, e mui singular
com que Cristo declarou seu amor a Santa Teresa, foi este. Falava a santa com o
Senhor tão familiarmente, como sabemos. E passando uma vez a conversação do
presente ao passado, disse-lhe Teresa: — Grande foi, Senhor, o amor com que
Vossa Majestade amou à Madalena. — Estas foram as palavras debaixo das quais
pudera haver alguma segunda intenção, se não fora Teresa a que as disse. Uma
das maiores prerrogativas do amor divino é ser amor sem ciúme. Quem ama a Deus
deseja que todos o amem, e que eles ame a todos, e por isso é amor. O humano —
a quem falsamente damos este nome — nem admite companhia no amar, nem vantagem
no ser amado, e por isso é amor-próprio, ou mais propriamente inveja. Falou
pois Teresa sem querer fazer comparação de si à Madalena; mas como se a fizera,
e quisera saber de Cristo este segredo do seu coração, respondeu o Senhor
assim: — Teresa, eu amei a Madalena estando na terra, porém a ti amote estando
no céu. — De sorte que distinguiu o amor pelo lugar, e a fineza de um pela
melhoria de outro.
Se Cristo fora como os outros
homens, achara eu muito fácil inteligência a esta sua resposta, porque o amor
está em tal estado que, sendo afeto do coração, depende mais dos lugares que
das vontades; e assim é muito maior fineza amar no céu, que amar na terra. As
bem-aventuranças são muito desamoráveis, e não há maior inimigo do amor que a
felicidade. Provavam antigamente isto os pregadores com o exemplo de José, nas
ingratidões do copeiro de Faraó. Mas hoje estão estes desenganos tão provados
nas experiências, que não necessitam de fé nem de Escrituras. O certo é que
toda a fortuna tem jurisdição no amor: se é adversa, ninguém vos ama; se é
próspera, a ninguém a mais. É tanto assim que, como coisa nova e singular,
disse São Paulo de Cristo: Qui descendit,
ipse est et qui ascendit (Efs. 4,10): O Senhor que subiu ao céu é o mesmo
que desceu à terra. — Porque os outros homens, comumente, quando sobem são uns,
quando descem são outros. Por isso há tantos que trabalhem pelos fazer descer.
Pois, se Cristo no céu e na terra sempre é o mesmo, como dá por razão de
diferença ou de vantagem que à Madalena amou-a quando estava na terra, porém a
Teresa quando está no céu? A razão é porque em Cristo, ainda que a mudança do
lugar não faz diferença na vontade, a maioria do estado acrescenta grandes
quilates ao amor. Na mesma Madalena o temos.
Sendo Cristo convidado do
fariseu, entrou a Madalena por sua casa, lançou-se aos pés do Senhor,
ungiu-lhos, segundo o costume daquele tempo, com preciosos ungüentos, regou-os
com especiosas lágrimas, enxugou-os com seus cabelos, regalou-os e regalou-se
com eles até matar a sede da sua dor e do seu amor. Outra vez depois, e poucos
dias antes de sua morte, estando o mesmo Cristo em Betânia, hóspede de Simão,
lhe fez a Madalena semelhante regalo, ainda com circunstâncias de maior
confiança, porque não derramou os ungüentos — que eram de mais estimadas
espécies — sobre os pés do Senhor, senão sobre a cabeça: Super caput ipsius recumbentis. Em uma e outra ocasião, tão fora
esteve a soberana benignidade de Cristo de lançar de si a Madalena, ou de
estranhar este gênero de obséquio, tão alheio da moderação do seu trato, que publicamente
a louvou e a defendeu: a primeira vez contra os pensamentos do fariseu, e a
segunda contra as murmurações dos discípulos. Sendo tudo isto assim, ressuscita
o mesmo Senhor, aparece à mesma Madalena na manhã da Ressurreição, e querendo
ela respirar da sua tristeza, alegrar as suas lágrimas, consolar as suas
saudades, e ressuscitar também a sua vida com se lançar e abraçar os sagrados
pés onde sua alma a tinha recebido, eis que com novidade e estranheza não
esperada, o Senhor a aparta de si, e lhe manda que o não toque: Noli me tangere. A causa que deu a este
retiro — a qual logo ponderaremos — não tira, antes acrescenta a dúvida. Pois,
se Cristo, antes de sua morte, em que a Madalena o assistiu tão constantemente,
admitia e se agradava dos seus obséquios, como agora depois de sua
Ressurreição, os não consente, antes lhe manda que se retire? Porventura
merecia agora menos a Madalena? Claro está que não, antes muito mais, porque o
amor da vida, que costuma acabar com a morte e enterrar-se com a sepultura,
vivo, morto e sepultado, e ainda desaparecido, que é mais, o tinha Cristo
experimentado nela sempre constante. Pois, se o amor era o mesmo, as finezas
mais declaradas, e o merecimento maior, por que lhe nega Cristo, depois da
Ressurreição, o favor que lhe concedia antes da morte? Porque antes da morte,
diz São João Crisóstomo, estava Cristo mortal e passível; depois da
Ressurreição estava já imortal e glorioso: e como este novo estado era tão
diferente, esta era também a diferença com que queria ser tratado. O primeiro
estado era o da terra, em que veio a servir; o segundo era já o do céu, em que ia a reinar:
e por isso tratava e queria ser tratado da Madalena, não segundo a
familiaridade de quando vivia na terra, senão conforme a majestade com que ia a
reinar no céu. O mesmo Cristo deu à Madalena esta razão.
Quando o Senhor lhe disse: Noli me tangere, acrescentou: Nondum enim ascendi ad Patrem: vade autem ad
fratres meos, et dic eis: Ascendo ad Patrem meum et Patrem vestrum (Jo.
20,17). Quer dizer: posto que me vês na terra, e ainda não subi ao céu, digo-te
contudo que me não toques, porque daqui por diante hás-me de tratar como se já
estivera no céu, e não na terra. E assim vai dizer a meus discípulos que subo
ao Padre: Dic eis: Ascendo ad Patrem meum.
Notável recado em tal dia! O dia era da Ressurreição, e o recado é da Ascensão.
Parece que o recado havia de ser: — Dize a meus discípulos que ressuscitei, que
já te apareci, que me viste, que estou vivo. Mas que subo ao céu: Ascendo ad Patrem? — e não que subirei,
ou que hei de subir, senão que já subo: Ascendo?
Sim, para que entendessem os apóstolos que o novo estado a que ressuscitara era
muito diverso do passado, e que já o não haviam de tratar como companheiro na
terra, senão como Senhor no céu. E isto que mandava dizer aos apóstolos era o
mesmo que respondia à Madalena, para que do recado que levava entendesse a
razão do que lhe proibira; e assim o entendeu. Tornou Cristo a aparecer à
Madalena e às outras Marias no mesmo dia, e que fizeram? Tenuerunt pedes ejus, et adoraverunt eum (Mt. 28,9): Lançaram-se
aos pés do Senhor, e adoraram-no. — Pois, se Cristo permitiu estes segundos
obséquios, em que também entrava a Madalena, por que lhe não consentiu os
primeiros? Porque os primeiros eram de amor e familiaridade, os segundos eram
só de respeito e reverência; aqueles eram abraços, estes eram adorações: Et adoraverunt eum. Tanta era a
majestade com que o Senhor agora se tratava, e tanta a veneração com que queria
ser tratado, não porque não fosse ainda o mesmo, mas porque o seu estado não
era já da terra, senão do céu. E se para não admitir os afetos da Madalena, com
as demonstrações de favor e agrado que dantes costumava, bastou dizer que já
subia ao Padre, vede se distinguiu e encareceu altamente a preferência do seu
amor na diferença do seu estado, pois amando a Madalena e amando a Teresa, à
Madalena diz que a amou quando estava na terra, e a Teresa que a amava estando
no céu. Venha terceira vez o Evangelho.
As virgens néscias não se fizeram
néscias naquelas poucas horas em que esperaram a vinda doesposo. É verdade que
quando lhes disseram que já vinha, bastantes razões tiveram para perder o
juízo, pois se viram com as lâmpadas apagadas na ocasião de maior luzimento, e
experimentaram tão más correspondências nas companheiras, de cuja amizade
esperavam outros primores. Mas antes de tudo isto, quando foram admitidas para
o aparato daquela solenidade, já então diz o Evangelho que eram néscias: Quinque autem ex eis erant fatuae. Pois
se o esposo, que era Cristo, sem embargo deste defeito tão conhecido, as
admitiu ao primeiro ato das bodas, por que as excluiu no último? Porque no
primeiro estava ainda na terra, onde veio buscar a esposa; no último estava já
no céu, onde a levou: e como o estado de Cristo no céu é tão superior ao que
teve na terra, na terra, onde tudo é imperfeito, admitia prudentes e néscias,
porém no céu, que é a pátria da perfeição, só admitiu as prudentes. Mas que de
prudentes e néscias faça Cristo tanta diferença quanta vai do céu à terra, bem
está: porém de prudente a prudente, e entre duas tão prudentes, como era a
Madalena e Teresa, faça distinção o seu amor, em amar a uma quando estava na
terra, e a outra quando está no céu? Sim. E tenha paciência por agora a
Madalena, que não poderá o amor responder mais em favor de Teresa.
Para conhecimento desta diferença
ou desta declarada vantagem, é necessário considerar bem como está Cristo no
céu e com quem está. O estado que Cristo tem no céu é tão diverso do que tinha
na terra, que quando se partiu para lá, disse assim a seus discípulos: Qui credit in me, opera quae ego facio et
ipse faciet, et majora horum faciet, quia ego ad Patrem vado (Jo. 14,12):
Vós que credes em mim, não só fareis as obras maravilhosas que eu agora faço,
senão maiores. — E por quê? Quia ego ad
Patrem vado: Porque eu vou para o céu. — Pois por que Cristo vai para o
céu, por isso hão de fazer seus discípulos maiores milagres do que fazia o
mesmo Cristo quando estava na terra? Quando Cristo estava na terra, seus
discípulos também faziam milagres, mas menores dos que o Senhor fazia, e alguns
não podiam fazer. Qual é logo a razão por que depois de subir ao céu, não só
hão de fazer os mesmos milagres que ele fazia, senão maiores? Porque assim
convinha ao maior e supremo estado que Cristo havia de ter no céu. A grandeza e
majestade dos senhores conhece-se pelo poder e autoridade dos criados. E é tão
grande a diferença de estado que hei de ter no céu — diz Cristo — ao que tinha
na terra, que vós e todos aqueles de que eu então me servir, não só hão de
fazer o que eu faria, senão maiores obras ainda, para que do seu poder e
autoridade se conheça a grandeza e majestade do Senhor a quem servem. Se eles,
comparados comigo na terra, parecerá que me excedem a mim, eu comparado comigo
no céu, quem pode imaginar o que serei? E se tanta é a diferença que Cristo tem
de estado a estado, e ainda de si a si mesmo, só porque está no céu: Quia ad Patrem vado — vede também quanto
cresce um amor sobre outro amor nesta circunstância e quanto mais foi amar
Cristo a Teresa, estando no céu, ou a Madalena, quando estava na terra.
Mas não basta só conhecer como
Cristo está no céu: é necessário também considerar com quem está. Cristo no céu
está assistido e cortejado de todos os bem-aventurados. E estes bem-aventurados,
quem são e qual é a sua grandeza? Nenhum de nós o podia presumir, se o mesmo
Cristo o não declarara. Naquele famoso panegírico que Cristo fez de São João
Batista, diz duas coisas notáveis: a primeira, que o Batista era o maior dos
nascidos; a segunda, que o menor do reino do céu é maior que o Batista: Amen dico vobis, non surrexit inter natos
mulierum major Joanne Baptista: qui autem minor est in regno caelorum, major
estillo. — Depois que o Batista for ao céu, então será lá maior que muitos;
mas enquanto está na terra, o menor do reino do céu é maior que ele. E por quê?
Porque os dos céus — diz São Jerônimo — vêem a Deus: o Batista ainda o não vê.
Os do céu amam por vista, o Batista ama por fé; os do céu já venceram e estão
coroados, o Batista ainda tem que vencer e está na campanha: Aliud est coronam victoriae possidere, aliud
adhuc in acie pugnare. E que estando Cristo na terra, onde o maior dos
nascidos é menor que o menor do reino do céu, amasse muito a Madalena, não foi
grande fineza; mas que estando no céu, onde o menor daquele reino é maior que o
maior dos nascidos, amasse tanto a Teresa, esta foi aquela grande diferença,
que o mesmo Senhor ponderou, porque só ele a conhecia. A Madalena, como tão
amante e tão amada estando na terra, mandava-a Cristo levar ao céu, para que
fosse ouvir as músicas dos anjos; e Teresa, estando na terra, amava tanto e era
tão amada que, estando Cristo no céu, deixava as músicas dos anjos para vir
conversar com Teresa na terra. Encareça logo Cristo o seu amor pela diferença
do seu estado, e pela do lugar e da companhia, e diga que amou a Madalena e
amava a Teresa sim, mas a Madalena quando estava na terra, a Teresa quando
estava no céu.
E se esta circunstância do amor
acrescenta tanto à fineza, quanto vai do céu à terra, não é menor, senão a
mesma, a que Cristo usa e exercita conosco no diviníssimo Sacramento. O mesmo
Evangelho o diz: Hic est panis qui de
caelo descendit (Jo. 6,59): Este é o pão que desceu do céu. — Quando Cristo
disse estas palavras, nem ele tinha ainda subido ao céu, nem instituído o
Sacramento de seu corpo debaixo de espécies de pão. Pois, se ainda não era pão,
nem tinha subido ao céu, como lhe chama pão que desceu do céu: Qui de caelo descendit? É verdade que o
Sacramento, o qual começou a ser pão na ceia, não era do céu, nem desceu do céu
senão do dia da Ascensão por diante, porque o corpo de Cristo, que é a
substância do Sacramento, nunca esteve no céu, senão depois daquele dia; e
contudo chamou-lhe Cristo pão do céu, antes de ser do céu, porque, como queria
encarecer o muito que nos dava, antecipou a circunstância para mais subir de
ponto a fineza. Disse o que havia de ser, quando ainda não era, porque
acrescentava muito à substância do que era a circunstância do que havia de ser. — Havia de ser pão, que por amor de
nós desceu do céu: Panis qui de caelo
descendit — e assim como o mesmo Senhor preferiu o amor com que amava a
Teresa ao amor com que amou a Madalena, pela diferença de amar estando no céu
ou estando na terra, assim pondera muito no Sacramento, não tanto a substância
do que dá, quanto a circunstância do lugar donde desce, porque ainda que dar-se
Cristo a comer é o non plus ultra do
amor, dar-se quando está no céu e descer do céu para se dar, é muito maior
fineza que se estivera na terra.
Daqui se segue que devemos e
somos mais obrigados a Cristo pela continuação do Sacramento que pela instituição dele; mas pelo modo com que
agora se nos dá a nós, que pelo modo com que no princípio se deu aos apóstolos,
porque no princípio deu-se quando estava mortal e passível, agora dá-se quando
está imortal e glorioso; no princípio deu-se quando estava na terra, agora
dá-se quando está no céu. Assim o entendeu e admirou quem teve ciência para o
conhecer, posto que não teve ventura para o gozar, Davi: Panem caeli dedit eis, panem angelorum manducavit homo (Sl. 77, 24
s): O pão do céu deu-se na terra, e o pão dos anjos comeram-no os homens. —
Três coisas diz aqui o profeta certas, e uma parece que o não é: ser o
Sacramento pão do céu, dar-se na terra e comerem-no os homens. Tudo é certo;
mas que esse pão seja dos anjos, como ou por que título? Ou seria pão dos anjos
se os anjos o comessem, mas eles não o comem: ou seria pão dos anjos se eles o
fizessem e consagrassem; mas esse poder é só dos sacerdotes. Por que diz logo o
profeta que é pão dos anjos? Porque as coisas propriamente não são de quem as
logra, senão de quem as merece. Se o pão do céu se dera por oposição, e não por
graça, por justiça, e não por favor, aos anjos se havia de dar, que são do céu,
e não a nós, que somos da terra e somos terra. E que havendo nos anjos o
merecimento, e em nós a indignidade, se negue este pão aos anjos no céu, e
desça do céu para se dar aos homens na terra? Oh! grande amor! E não sei se
diga também: grande injustiça! Mas o amor, para ser grande, há de ter alguma
coisa de injusto, porque sendo injusto para quem se nega, é mais fino para quem
se dá. Só Santa Teresa fez justa esta fineza, porque, sendo mulher, foi
serafim; nós, devendo chegar à comunhão como anjos, apenas há algum que o faça
como homem: Panem angelorum manducavit
homo.
CAPÍTULO V
O quarto e último favor de
Cristo, que pondero em Santa Teresa, tem ainda muito mais apertadas
circunstâncias que as passadas. Nos princípios, em que o soberano Senhor
começou a regalar a sua esposa com aparições tão freqüentes e tão
extraordinárias, que tiveram por muito tempo suspensa e duvidosa toda a Igreja,
a santa, como tão prudente e tão humilde, que no seu conceito se reputava pela
mais indigna de todas as criaturas, temia que fossem enganos e ilusões do
demônio, e por conselho e obediência de seus confessores, que sempre foram os
mais doutos e mais espirituais daquela idade, quando Cristo lhe aparecia, ou
como ressuscitado e glorioso, ou como chagado e coroado de espinhos, ou na
mesma forma e representação com que vivia neste mundo, Teresa não só lhe
voltava o rosto com rigor e sinais de desprezo, mas com a boca lhe dizia
injúrias, com as mãos lhe fazia afrontas, e, como se fosse o inimigo comum do
gênero humano, com a cruz e água benta se defendia daquele bendito Senhor, que
para nos armar com a mesma cruz quis morrer nela; porém o amor do Esposo divino
era tão fino e tão constante, que não só sofria estes bem-intencionados
agravos, mas, por serem feitos por obediência, os aprovava e amava.
Lembra-me a este propósito aquela
famosa questão, disputada diante de el-rei Dario, e referida por Esdras no
Livro Terceiro (III Esd. cap. 3 e 4). Era a proposta da questão, entre três
sábios do palácio real, qual fosse a mais forte coisa do mundo? Um disse que o
vinho, outro que o rei, outro que a mulher. E este provou a sua opinião com
este exemplo. Eu vi, disse, uma mulher chamada Apemen, amiga de um famosíssimo
rei, a qual estava assentada à sua mão direita: Sedentem juxta regem ad dexteram. E esta lhe tirava a coroa da
cabeça, e a punha sobre a sua: Auferentem diadema de capite ejus, et inponentem sibi — e com a mão esquerda
lhe dava bofetadas: Et palmis caedebat
regem de sinistra manu – e sobre tudo isto o rei, com a boca aberta, estava
suspenso e como arrebatado nela: Et super
haec aperto ore intuebatur eam. E se Apemen se lhe mostrava indignada, com
novas carícias a procurava reconciliar e trazer à sua graça: Nam si indignata ei fuerit, blanditur, donec
reconcilietur in gratiam. — Tão rendido tinha o amor aquele homem, e tão
esquecido de si estava aquele rei. Mas quem poderá imaginar em Deus semelhantes
extremos? Grande é, excessivo é, e quase incrível, Teresa, o amor com que
rendido vos ama e estima Cristo! Tirais a coroa da cabeça ao Rei dos Reis,
persuadindo-vos que não é ele o que vedes. Não só a pondes sobre a vossa
cabeça, mas mostrais que a pisais e lançais aos pés; não só lhe dais bofetadas,
mas com as mãos violentas ou violentadas lhe fazeis injúrias de maior
aborrecimento e desprezo; não só vos mostrais ingrata a seus favores, mas
ofendida e indignada dele. Et super haec,
e sobre tudo isto, ele, desconhecido, vos não desconhece; ele, tão indignamente
tratado, vos torna a buscar; ele continua e insiste com novos favores, para que
o acabeis de conhecer e o admitais em vossa graça. Vamos ao Evangelho.
Não lhes aproveitou às virgens
mal prevenidas haverem seguido o conselho das prudentes — que era a desculpa em
que nestes agravos inocentes se fundava a consciência e obediência de Teresa —
não lhes aproveitou, digo, nem lhes valeu às cinco virgens aquele conselho,
para que o Esposo lhes não fechasse a porta: Et clausa est janua. Vieram contudo com o descuido emendado e as
lâmpadas acesas, bateram e chamaram: Domine,
Domine, aperi nobis. Mas como o Senhor lhes respondesse: Nescio vos (Ibid.
12): Não vos conheço — não bateram nem chamaram mais. Esta é a minha admiração
e o meu reparo. O mesmo Senhor, que mandou fechar a porta a estas virgens,
tinha dito: Petite, et accipietis; pulsate,
et aperietur vobis (Lc. 11,9 s): Pedi, e recebereis; batei, e abrir-vosão: Omnis enim qui petit, accipit, et pulsanti,
aperietur: Porque todo o que pede recebe, e a todo o que bate se abrirá. —
Pois, se o mesmo Senhor tinha mandado e prometido isto, se tinha mandado que
pedissem e que batessem, e tinha prometido que quem pedisse receberia, e a quem
batesse lhe abririam, por que não instam em pedir e bater? Se pediram e bateram
uma vez, peçam e batam outra; e se isso não bastar, continuem em pedir, e perseverem
em bater muitas vezes, pois também sabem que Deus gosta de ser importunado, e
que assim o ensinou o mesmo Cristo. Qual é logo a razão por que estas mesmas
virgens, tão desejosas de entrar, que não perdoaram a diligências, nem a
passadas, nem a despesas, e tudo isto fizeram sem temor nem reparo à
meia-noite, qual é a razão por que agora não insistem nem perseveram, e se
retiram tristes e mudas, sem falar nem aparecer mais? A razão é porque o Esposo
lhes disse: Nescio vos: Não vos
conheço. — E tanto que se viram desconhecidas, de tal maneira perderam a
confiança e ainda o primeiro fervor e desejo, que se não atreveram a falar nem
aparecer mais diante de quem as não conhecia. As desconhecidas, no nosso caso,
não eram as virgens ou a virgem, senão o mesmo Esposo. Tão desconhecido de
Teresa, que não só o não conhecia por quem era, nem só o reputava por fingido e
fantástico, senão por outro tão alheio daquela divina figura, quanto é o mesmo
demônio transfigurado em anjo de luz. E que assim desconhecido e tratado como
tal, com desprezos, com injúrias e aborrecimentos, torne Cristo a buscar a
Teresa, e não desista de lhe aparecer, para que acabe de se desenganar e o
conhecer? Grande e nunca visto amor!
As diligências que Cristo fazia
para que Teresa, sem escrúpulo, nem dúvida, o conhecesse, e os efeitos que
experimentava depois destas aparições, eram todos aqueles com que o mesmo
Senhor costuma assegurar as almas timoratas da verdade da sua presença. Porque,
depois destas vistas tão mal olhadas, crescia no coração de Teresa a humildade
e desprezo de si mesma, crescia o aborrecimento do mundo, crescia o zelo da
honra de Deus, e todas as outras virtudes sólidas, que com as aparições do
demônio, como vento seco e do inferno, costumam enfraquecer e murchar. Mas nenhuns
destes sinais bastavam para que Teresa, ou os que governavam seu espírito, o
dessem por seguro. Quando Cristo apareceu a Madalena em traje de hortelão,
bastou que dissesse: Maria, para que ela conhecesse a seu Mestre. Quando o
mesmo Senhor apareceu em hábito de peregrino aos discípulos de Emaús, bastou
que partisse diante dele o pão, para que também o conhecessem; mas para que
seguramente o conhecesse Teresa, nenhuns sinais, nenhumas demonstrações,
nenhumas experiências bastavam, como também não bastava este tão continuado
desconhecimento, para que o Senhor se retirasse, que tanto o apertava o seu
amor.
Retirai-vos, Senhor, retirai-vos,
e eu vos prometo que haveis de acabar mais com o mesmo retiro que com a
presença, e mais com o desaparecer que com as aparições, porque tanto que vos
retirardes e desaparecerdes, logo se conhecerá que sois vós, e que são verdades
seguras e vossas as que agora parecem sonhos e ilusões. Lembrai-vos de quando
mandastes livrar do cárcere mamertino ao vosso grande sucessor e amante. Estava
ali preso São Pedro com duas cadeias e quatro soldados de guarda, quando entrou
o anjo a libertá-lo. Tocou as cadeias, e quebraram-se; tocou o prisioneiro, e
acordou; disse-lhe que se vestisse, vestiu-se; disse-lhe que se calçasse, calçou-se;
e Pedro, que tudo isto viu e fazia, cuidava que era sonho e ilusão. Disse-lhe o
anjo que o seguisse, seguiu-o: passaram a primeira e segunda guarda, e ninguém
os impediu; chegaram a uma porta de ferro, e desferrolhou-se; caminharam por
dentro e por fora da cidade, e Pedro ainda crente que nada daquilo era verdade,
senão imaginações vãs da fantasia: Nesciebat
quia verum est quod fiebat per angelum: existimabat autem se visum videre.
Eis aqui como muitas vezes, ainda aos maiores santos, as verdades parecem
enganos, e as aparições do céu, ilusões. Mas que fez o anjo, para que Pedro se
desenganasse e cresse o que não acabava de crer? Tirou-se de diante dos seus
olhos, e desapareceu: Discessit angelus
ab eo (At. 12,10). E no mesmo ponto conheceu Pedro que o anjo
verdadeiramente era anjo, e que ele verdadeiramente
tinha saído do cárcere, e estava livre: Nunc
scio vere, quia misit Dominus angelum suum, et eripuit me. De sorte que
quando lhe apareceu o anjo, e enquanto o via, não o conhecia; e tanto que
desapareceu e não o viu, então o conheceu. Este é o remédio, Senhor, para que
Teresa vos conheça. Se vos não conhece quando lhe apareceis, desaparecei, e
conhecer-vos-á. Mas este mesmo conselho, que vós sabeis melhor, muito temo que
o não há de tomar vosso amor, posto que sinta quanto deve ver-se tão
desconhecido.
Cansados de lutar a maior parte
da noite contra uma grande tempestade na pequena barca de São Pedro, ele e os
outros discípulos, e já desesperados de remédio, foi o divino Mestre desde a
praia a socorrê-los, caminhando sobre as ondas. O perigo, a escuridade, e os
passos daquela portentosa figura, que cada vez que se ia chegando mais para
eles, sobre o temor e perturbação em que estavam, lha acrescentou de maneira,
que não conhecendo quem era, se persuadiram ser algum fantasma: Ut viderunt eum ambulantem supra mare,
putaverunt phantasma esse. O Siro lê: Visum
mendax: visão enganosa; e os expositores: illusionem diabolicam: ilusão do demônio, que é o mesmo que sucedia
a Santa Teresa com suas visões, ou a Cristo com elas. Mas que fez o Senhor
neste passo? Diz o evangelista que
queria deixar os discípulos: Volebat
praeterire eos (Ibid. 48). Pois, se os ia socorrer, e por um modo tão
extraordinário e milagroso, por que os quer deixar? Porque assim o ditava a
razão, vendo-se a si mesmo reputado por fantasma, a sua visão por enganosa, e a
sua presença verdadeira por ilusão diabólica. Mas como naquela barca flutuava o
seu cuidado e perigava o seu amor, enfim os socorreu, e foi conhecido. Oh!
Jesus! Oh! Teresa! Muito era que fizesse Cristo tanto por Teresa, como por
Pedro e João, e por todo o apostolado junto; mas sem comparação fez muito mais.
Não uma só vez foi reputado por fantasma, nem um só dia, senão anos inteiros;
andava o seu amor por tribunais, as suas visões e aparições, ou reprovadas
totalmente, ou tidas por suspeitosas, e ele não só desconhecido, mas injuriado,
porém a sua vontade sempre tão firme e constante, que nunca se pôde dizer dela:
Volebat praeterire. Desconhecido,
tornava a buscar a Teresa; injuriado, lhe fazia novos favores, e nenhum
conceito do mundo, ou descrédito seu, ou perseguição de ambos pôde fazer jamais
que a deixasse.
E quem não vê neste prodigioso
retrato a verdade, a firmeza, a paciência e a invencível perseverança do amor de Cristo para conosco
naquele sacrossanto mistério? Nós o cremos, nós o adoramos, nós daremos o
sangue e a vida pela confissão e defensa de que naquela Hóstia consagrada,
posto que invisível a nossos olhos, está e estará até o fim do mundo toda a
majestade do Filho de Deus, humana e divina, tão inteira, real e
verdadeiramente como à destra do Padre. Mas quantos hereges houve e há, que a
tudo isto, que a católica Igreja crê e ensina, chamam blasfemamente fantasmas.
Dizem — tão ignorantes são e tão estólidos — que quando Cristo disse: Hoc est corpus meum: Este é meu corpo —
não quis dizer nem significar o que as palavras significam; dizem que não há
ali outra coisa senão o que se vê, pão, e não Cristo; dizem que tudo o que os
católicos cremos, são quimeras, ilusões e enganos. E, sem embargo desta
incredulidade, desta perfídia, destas blasfêmias, e das outras injúrias maiores
com que do entendimento cego passam às mãos sacrílegas, foi tão imensa a
benignidade do divino amor que, antevendo-as, se deixou conosco, e é tão
constante o mesmo amor que,
experimentando-as, as sofre e não aparta de nós.
Quando Cristo, naquelas palavras
que só nos restam por ponderar do Evangelho: Non sicut manducaverunt patres vestri mana, et mortui sunt, ensinou
a diferença infinita que há do maná ao divino Sacramento, foi porque o povo
cego antepunha o maná ao pão do céu que o Senhor lhes prometia, e Moisés ao
mesmo Cristo. E quando lhes disse que, se não comessem a sua carne e bebessem o
seu sangue, não haviam de ter vida: Nisi
manducaveritis carnem Filii hominis, et biberitis ejus sanguinem, non habebitis
vitam in vobis (Jo. 6,54) — não só o povo, senão muitos dos discípulos do
mesmo Cristo se saíram da sua escola e lhe voltaram as costas, dizendo que tais
coisas, como aquelas, não se podiam ouvir, quanto mais crer. De sorte que a fé
do Sacramento, não só nasceu, mas foi concebida em tal signo de contradição: In signum cui contradicetur (Lc. 2,34) —
que antes de ser instituído o Sacramento, já era negado, antes de ser dado, já
era perseguido, e só por ser prometido, era blasfemado. Pois, Senhor, se assim
é já agora, e estas mesmas experiências mostram o que será depois, se estes homens são tão cegos, tão
ingratos e tão indignos, e a mercê que lhes quereis fazer excede tanto, não só o seu desmerecimento,
senão a sua capacidade, deixai de instituir este novo mistério, pois para a redenção do mundo basta
o da cruz; e já que os homens são tais, que vos deixam porque vos quereis deixar com eles, não vos
deixeis, para que vos não deixem. Assim havia de ser, se o amor de Cristo para conosco no Sacramento
não fora tão fino e constante, como foi para com Teresa fora do Sacramento.
Enquanto a verdade das visões de
Santa Teresa esteve tão duvidosa, o mesmo Cristo, que lhe aparecia, era ele na
realidade, e não era eles na opinião: enquanto ele — que verdadeiramente era —
era amado, era estimado, era adorado; enquanto não ele — que falsamente não era
— era aborrecido, era desprezado, era injuriado; e todo este amor e
aborrecimento, todas estas estimações e desprezos, todas estas adorações e
injúrias exercitava no mesmo tempo a mesma Teresa, sendo uma só. Bem assim como
o mundo, sendo composto de muitos, uns fiéis, outros infiéis, uns católicos,
outros hereges, uns bons cristãos, outros maus, uns crêem a Cristo no
Sacramento, outros o negam, uns o adoram, outros o desprezam, uns o veneram com
obséquios, outros o ofendem com injúrias; mas assim como Jacó, pelo amor que
tinha a Raquel, sofria os desagrados de Lia, e muito mais os agravos de Labão,
e esta era a maior fineza daquele forte e constante amor, assim a maior fineza
de Cristo no Sacramento foi expor-se às afrontas e injúrias dos que o ofendem,
por não faltar à comunicação dos que o amam, e estar sempre com eles.
CAPÍTULO VI
Mas que desquites podem ter estes
agravos, estas ofensas, estas injúrias na justa dor daquelas almas devotas e pias, que as sentem e choram mais
que próprias, por serem daquele Senhor seu, a quem mais que a si mesmas amam?
Este foi o bem inventado desempenho e o religiosíssimo fim da solenidade
presente, restituindo-se a esta igreja o roubo cometido em outra, e
vingando-se, com repetidos obséquios de todos os meses, o agravo daquele dia,
para que o mesmo Cristo sacramentado, por um sacrilégio, receba muitos
sacrifícios, por uma injúria, muitas adorações, e por um ato escondido da
infidelidade, muitas protestações públicas da fé, e novas exaltações dela.
Quando a Madalena entendeu que lhe tinham roubado do sepulcro o sagrado corpo,
dizia: Tulerunt Dominum meum, et nescio ubi posuerunt eum (Jo.
20,13): Levaram-me a meu Senhor, e não sei onde o puseram. Entre estas ânsias apareceu o
disfarçado hortelão, e disse-lhe: Si tu
sustulisti eum, dicito mihi, et ego eum
tollam (Ibid. 15): Se tu acaso és o que o levaste, dize-me onde o puseste,
porque eu o levantarei desse lugar. —
Bem está, Madalena. Mas se vós vos queixais de não saber onde puseram vosso Senhor, dizei-nos também onde o haveis
de pôr, se o achardes? Só disse que o havia de levantar, mas não disse onde o havia de pôr,
porque esse pensamento ficou reservado para as imitadoras do seu amor. Levantaram o Senhor
àquele soberano trono, e ali o têm posto e exposto, para que a nossa fé publicamente o confesse e
adore, e os nossos corações, prostrados diante de seu divino acatamento, sejam a detestação e desquite
daquela abominada injúria.
De todas as que material e
involuntariamente fazia a Cristo Santa Teresa, era o desquite o seu coração, e assim o fazem todos os corações
desta santa congregação, tão devota, como bem entendida, trazendo sobre o peito uma custódia, e ao pé
dela um S e um cravo, em sinal de perpétua escravidão daquele ofendido e adorado Senhor. Parece que
falava o mesmo Senhor, como em profecia, destes corações e desta casa, quando disse a Santa
Teresa o que agora direi. Mandavam seus prelados à santa que fosse ser prioresa
do Convento da Encarnação de Ávila, e ela, como tão humilde, escusava-se.
Neste mesmo tempo andava
requerendo Teresa com Cristo não sei que mercê para um seu irmão, e como o Senhor tardasse com o despacho, era
tanta a confiança entre os dois, que não duvidou a santa de se queixar amorosamente deste que parecia
descuido, e comparando-o com o seu cuidado, lhe disse assim: — Por certo, Senhor, que se vós
tivéreis um irmão pelo qual me pedíreis alguma coisa, a não dilataria eu, se pudesse. — Não, Teresa —
respondeu Cristo. — Pois os corações das religiosas da Encarnação são meus irmãos, e pedem-te que vás
para eles, porque hão mister a tua presença, e tu não queres. — Assim argüiu e respondeu o Senhor a
uma queixa com outra, e nela descobriu que havia naquela casa uma irmandade de corações em que
ele também era irmão. E se aos corações dasreligiosas da Encarnação de Ávila
chama Cristo irmãos seus, com quanta razão podemos nós dar este mesmo nome às religiosas da Encarnação de
Lisboa, pela veneração do Santíssimo Sacramento, e daquela sagrada custódia, de que são perpétuos
sacrários. Ressuscitado o Senhor, disse às Marias que levassem as novas aos apóstolos, e as palavras
foram estas: Ite, nuntiate fratribus meis
(Mt 28, 10): Ide, e dizei a meus irmãos.
— Irmãos, Senhor? E por que parentesco? Amigos dissestes vós que lhes haveis de chamar, e não servos, porque lhes
reveláveis vossos segredos; mas irmãos, por quê? E se nunca lhes destes este título, por que lho
dais agora? Excelentemente S. João Crisóstomo: Vester ego frater esse volui:
Ego communicavi carnem propter vos, et sanguinem, et per quae vobis conjunctus,
ea rursus vobis exibui: Chama Cristo
irmãos aos apóstolos no dia da Ressurreição, porque a última vez que tinha estado com eles foi na ceia, em
que se lhes deu sacramentado, e pela comunicação da sua carne e do seu sangue contraíram o
parentesco e a irmandade. Para haver verdadeira irmandade, há de ser recíproca. E isto fez Cristo na
Encarnação e no Sacramento, diz Crisóstomo: pela Encarnação, tomando Cristo a nossa carne e o
nosso sangue, fez-se irmão nosso; e pelo Sacramento, dando-nos a mesma carne e o mesmo sangue,
fez-nos irmãos seus: Frater vester esse
volui: eis aí a irmandade; Communicavi propter vos carnem et san guinem:
eis aí a Encarnação; Per quae vobis conjunctus ea rursus vobis exibui: eis aí
o Sacramento.
Mas são tão religiosamente
humildes estes corações irmãos de Cristo, que, podendo-se gloriar do nome de irmãos, se chamam e professam
escravos, trocando os títulos de parentesco pelas insígnias da escravidão, com o S e o cravo sobre o
peito. Quando Cristo se desposou visivelmente com Santa Teresa, deu-lhe por prendas de seu amor um
cravo da sua cruz. Pois, Senhor, um cravo, que é sinal e como ferrete de escravo, dais vós a Teresa
quando a levantais à dignidade soberana de esposa vossa? Sim, porque ainda que pelos desposórios
contraía Teresa com Cristo, o mais alto e mais íntimo parentesco que pode ser, sabia o Senhor dos
primores da sua alma, como de todas as que fielmente o veneram e amam, que a mesma dignidade a que as
levanta de esposas, as cativa e imprime nelas o caráter de escravas. Enfim, este é o espírito
da Encarnação. No dia da Encarnação do Verbo, quando o anjo a anunciou à cheia de graça que havia de
ser Mãe de Deus, a Senhora respondeu: Ecce
ancilla Domini (Lc. 1,38): Aqui está
a escrava do Senhor. — Davam-lhe a dignidade de Mãe, e tomou o nome de escrava; e porque se teve por mais digna
de ser escrava que Mãe, esmaltou com o caráter da escravidão a coroa da dignidade.
Ora, Senhor, já que nos corações
destas escravas achastes uns espíritos tão conformes ao daquelas entranhas puríssimas, de quem recebestes essa
mesma carne e sangue em que vos dais por sustento de nossas almas, ajuntando o mistério altíssimo
da Encarnação com o do diviníssimo Sacramento, para que nesse imenso amor se acenda a nossa
caridade, e no preço infinito desse penhor, se confirme a nossa esperança, aumentai, com o mistério da
fé, a fé viva dos fervorosos católicos, ressuscitai a fé morta dos indevotos e tíbios, e infundi o
conhecimento da mesma fé na perfídia e obstinação dos hereges, para que todos vos creiam, confessem
e adorem, como nós, por mercê vossa, cremos e confessamos, e prostrados diante desse trono
de vossa suprema Majestade, com profundíssima reverência adoramos. E pois estes generosos
corações são tão animosos que, encerrados por vosso amor dentro destas paredes, se põem em campo
em defensa de vossa fé e desagravo de vossas injúrias, e delas souberam tirar tão
multiplicadas glórias a vosso santíssimo nome na terra, considerem os mesmos corações — pois eu o não posso
declarar — quão condignos serão os prêmios desta fineza, que vossa divina liberalidade lhes tem
aparelhado no céu.
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão de Santa Teresa e do Santíssimo Sacramento"
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão de Santa Teresa e do Santíssimo Sacramento"
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