A MORTE DO LIDADOR
(LENDA DO ANO DE 1170)
— Pajens! Ou arreiem o meu ginete
murzelo; e vós dai-me o meu lorigão de
malha de ferro e a minha boa toledana. Senhores cavaleiros, hoje contam-se
noventa e cinco anos que recebi o batismo, oitenta que visto armas, setenta que sou cavaleiro, e quero celebrar tal dia
fazendo entrada por terras da frontaria
dos mouros.
Isto dizia na sala de armas do
castelo de Beja Gonçalo Mendes da Maia, a quem, pelas muitas batalhas que pelejara e
pelo seu valor indomável, chamavam
Lidador. Afonso Henriques, depois do infeliz sucesso de Badajoz, e feitas pazes com el-rei Leão, o nomeara
carairo da cidade de Beja, de pouco tempo
conquistada aos mouros. Os quatro Viegas, filhos do bom velho Egas Moniz, estavam com ele, e outro muitos
cavaleiros afamados, entre os quais D.
Ligel de Flandres e Mem Moniz — que a festa dos vossos anos, Senhor Gonçalo Mendes, será mais de mancebo cavaleiro
que de capitão encanecido e prudente.
Deu-vos el-rei esta frontaria de Beja para bem a haverdes de guardar, e não sei se arriscado é sair hoje à
campanha, que dizem os escutas, chegados
ao romper d'alva, que o famoso Almoleimar correr por estes arredores com dez vezes mais lanças do que
todas as que estão encostadas nos lanceiros
desta sala de armas.
— Voto a Cristo — atalhou o
Lidador — que não cria em que o senhor rei me houvesse posto nesta torre de Beja para
estar assentado à lareira da chaminé,
como velha dona, a espreitar de vez em quando por uma seteira se cavaleiros mouros vinham correr até a barbacã,
para lhes cerrar as portas e ladrar-lhes
do cimo da torre da menagem, como usam os vilãos. Quem achar que são duros de mais os arneses dos infiéis
pode ficar-se aqui.
— Bem dito! Bem dito! —
exclamarem, dando grandes risadas, os cavaleiros
mancebos.
— Por minha boa espada! — gritou
Men Moniz, atirando o guante ferrado às
lájeas do pavimento — que mente pela gorja quem disser que eu ficarei aqui, havendo dentro de dez léguas em redor
lide com mouros. Senhor Gonçalo Mendes,
podeis montar no vosso ginete, e veremos qual das nossas lanças bate primeiro em adarga mourisca.
— A cavalo! A cavalo! — gritou
outra vez a chusma, com grande alarido.
Dali a pouco, ouvia-se o retumbar
dos sapatos de ferro de muitos cavaleiros descendo os degraus de mármore da torre de
Beja e, passados alguns instantes, soava
só o tropear dos cavalos, atravessando a ponte levadiça das fortificações exteriores que davam para a
banda da campanha por onde costumava
aparecer a mourisma.
****
Era um dia do mês de Julho, duas
horas depois da alvorada, e tudo estava em grande silêncio dentro da cerca de Beja: batia
o sol nas pedras esbranquiçadas dos
muros e torres que a defendiam: ao longe, pelas imensas compinas que avizinhavam o teso sobre que a povoação está
assentada, viam-se ondear as searas
maduras, cultivadas por mãos de agarenos para seus novos senhores cristãos. Regados por lágrimas de escravos
tinham sido esses campos, quando formoso
dia de inverno os sulcou o ferro do arado; por lágrimas de servos seriam outra vez humedecidos, quando, no mês
de Julho, a paveia, cercada pela fouce,
pendesse sobre a mão do ceifeiro: choro de amargura havia aí, como, cinco séculos antes, o houvera: então de
cristãos conquistados, hoje de mouros
vencidos. A cruz ateava-se outra vez sobre o crescente quebrado: os coruchéus das mesquitas convertiam-se em
campanários de sés, e a voz do almuadem
trocava-se por toada de sinos, que chamavam à oração entendida por Deus.
Era esta a resposta dada pela
raça goda aos filhos d'África e do Oriente, que diziam, mostrando os alfanges: — "é nossa
a terra de Espanha". — O dito árabe
foi desmentido; mas a resposta gastou oito séculos a escrever-se. Pelaio entalhou com a espada a primeira palavra dela nos
cerros das Astúrias; a última
gravaram-na Fernando e Isabel, com os pelouros das suas bambardes, nos panos das muralhas da formosa Granada: e
esta escritura, estampada em alcantis de
montanhas, em campos de batalha, nos portais e torres dos templos, nos bancos dos muros das cidades e
castelos, acrescentou no fim a mão da
Providência — "assim para todo o sempre!"
Nesta luta de vinte gerações
andavam lidando as gentes do Alentejo. O servo mouro olhava todos os dias para o horizonte,
onde se enxergavam as serranias do
Algarve: de lá esperava ele salvação ou, ao menos, vingança; ao menos, um dia de combate e corpos de cristãos estirados
na veiga para pasto dos açores bravios.
A vista do sangue enxugava-lhes por algumas horas as lágrimas, embora as aves de rapina tivessem, também,
abundante ceva de cadáveres dos seus
irmãos! E este ameno dia de Julho devia ser um desses dias porque suspirava o servo ismaelita.
Almoleimar descera com os seus
cavaleiros às campinas de Beja. Pelas horas mortas da noite, viam-se as almenaras das suas
talaias nos píncaros das serras remotas,
semelhantes às luzinhas que em descampados e tremedais acendem as bruxas em noites dos seus folguedos: bem
longe estavam as almenaras, mas bem
perto sentiam os escutas o resfolegar e o tropear de cavalos, e o ranger das folhas secas, e o tinir a espaços de
alfanje batendo em ferro de caneleira ou
de coxote. Ao romper d'alva, os cavaleiros do Lidador saíam mais de dois tiros de besta além das muralhas de Beja; tudo
porém estava em silêncio, e só, aqui e
ali, as searas calcadas davam rebate de que por aqueles sítios tinham vagueados almogaures mouros, como o leão do
deserto rodeia, pelo quarto de modorra,
as habitações dos pastores além das encostas do Atlas.
No dia em que Gonçalo Mendes da
Maia, o velho carairo de Beja, cumpria os noventa e cinco anos, ninguém saíra, pelo
arrebol da manhã, a correr o campo; e,
todavia, nunca tão de perto chegara Almoleimar; porque uma frecha fora pregada a mão num grosso sovereiro que
sombreava uma fonte a pouco mais de tiro
de funda dos muros do castelo. Era que nesse dia deviam ir mais longe os cavaleiros cristãos: Lidador pedira
aos pajens o seu lorigão de malha de
ferro e a sua boa toledana.
Trinta fidalgos, flor da cavalaria,
corriam à rédea solta pelas campinas de Beja; trinta, não mais, eram eles; mas orçavam por
trezentos os homens d'armas, escudeiros
e pajens que os acompanhavam. Entre todos avultava em robustez e grandeza de membros o Lidador, cujas barbas
brancas lhe ondeavam, como flocos de
neve, sobre o peitoral da cota d'armas, e o terrível Lourenço Viegas, a quem, pelos espantosos golpes da sua espada,
chamavam o Espadeiro. Eram formoso
espetáculo o esvoaçar dos balsões e signas, fora das suas fundas e soltos ao vento, o cintilar das cervilheiras,
as cores variegadas das cotas, e as ondas
de pó que se levantavam debaixo dos pés dos ginetes, como se levanta o bulcão de Deus, varrendo a face de campina
ressequida, em tarde ardente de verão.
Ao largo, muito ao largo, dos
muros de Beja cai a atrevida cavalgada em demanda dos mouros; e no horizonte não se veem
senão os topos pardo-azulados das serras do Algarve, que parece fugirem tanto
quanto os cavaleiros caminham. Nem um
pendão mourisco, nem um albornoz branco alvejam ao longe sobre um cavalo murzelo. Os corredores
cristãos volteiam na frente da linha dos
cavaleiros, correm, cruzam para um e outro lado, embrenham-se nos matos e transpõem-nos em breve; entram pelos
canaviais dos ribeiros; aparecem,
somem-se, tornam a sair ao claro; mas, no meio de tal lidar, apenas se ouvem o trote compassado dos ginetes e o
grito monótono da cigarra, pousada nos
raminhos da giesteira.
A terra que pisam é já dos
mouros; é já além da frontaria. Se olhos de cavaleiros portugueses soubessem
olhar para trás, indo em som de guerra, os que para trás de si os volvessem a custo
enxergariam Beja. Bastos pinhais começavam
já a cobrir mais crespo território, cujos outirinhos, aqui e ali, se alteavam suaves, como seio de virgem em viço
de mocidade. Pelas faces tostadas dos
cavaleiros cobertos de pó corria o suor em bagas, e os ginetes alagavam de escuma as redes de ferro
acaireladas d’Ouro que só defendiam. A um
sinal do Lidador, a cavalgada parou; era necessário repousar, que o sol ia no zénite e abrasava a terra; descavalgaram
todos à sombra de um azinhal e, sem
desenfrear os cavalos, deixaram-nos pascer alguma relva que crescia nas bordas de um arroio vizinho.
Tinha passado meia hora: por
mandado do velho carairo de Beja um almogávar
montou a cavalo e aproximou-se à rédea solta de uma selva extensa que corria à mão direita: pouco, porém,
correu; uma frecha despedida dos bosques
sibilou no ar: o almogávar gritou por Jesus: a frecha tinha-se embebido ao lado: o cavalo parou de repente, e
ele, erguendo os braços ao ar, com as
mãos abertas, caiu de bruços, tombando para o chão, e o ginete partiu desenfreado através das veigas e desapareceu
na selva. O almogávar dormia o último
sono dos valentes em terra de inimigos, e os cavaleiros da frontaria de Beja viram o seu transe do repousar eterno.
— A cavalo! A cavalo! — bradou a
uma voz toda a lustrosa companhia do Lidador;
e o tinido dos guantes ferrados, batendo na cobertura de malha dos ginetes, soou uníssono, quando todos os
cavaleiros cavalgaram de um pulo; e os
ginetes rincharam de prazer, como aspirando os combates.
Grita medonha troou ao mesmo
tempo, além do pinhal da direita. — "Alá! Almoleimar!" — era o que dizia a grita.
Enfileirados em extensa linha, os
cavaleiros árabes saíram à rédea solta de trás da escura selva que os encobria: o seu número
excedia em cinco vezes o dos soldados da
cruz: as suas armaduras lisas e polidas contrastavam com a rudeza das dos cristãos, apenas defendidos por pesadas
cervilheiras de ferro e por grossas
cotas de malha do mesmo metal: mas as lanças destes eram mais robustas, e as suas espadas mais volumosas do
que as cimitarras mouriscas. A rudeza e
a força da raça gótico-romana ia, ainda mais uma vez, provar-se com a destreza e com a perícia árabes.
****
Como longa fita de muitas cores,
recamada de fios d’Ouro e refletindo mil acidentes de luz, a extensa e profunda linha
dos cavaleiros mouros sobressaía na
veiga entre as searas pálidas que cobriam o campo. em frente deles, os trinta cavaleiros portugueses, com trezentos
homens d'armas, pajens e escudeiros,
cobertos dos seus escuros envoltórios e lanças em riste, esperavam o brado de acometer. Quem visse aquele punhado
de cristãos, diante da cópia d'infiéis
que os esperavam, diria que, não com brios de cavaleiros, mas com fervor de mártires, se ofereciam a desesperado
transe. Porém, não pensava assim
Almoleimar, nem os seus soldados, que bem conheciam a têmpera das espadas e lanças portugueses e a rijeza dos
braços que as meneavam. De um contra dez
devia ser o iminente combate; mas, se havia aí algum coração que batesse descompassado, algumas faces
descoradas, não era entre os companheiros
do Lidador, que tal coração batia ou que tais faces descoravam.
Pouco a pouco, a planura que
separava as duas hostes tinha-se embrido debaixo dos pés dos cavalos, como no tórculo
se embebe a folha de papel saindo para o
outro lado convertida em estampa primorosa. As lanças iam feitas: o Lidador bradara Santiago, e o nome
de Alá soara num só grito por toda a
fileira mourisca.
Encontraram-se! Duas muralhas
carairas, balouçadas por violento terramoto, desabando, não fariam mais ruído, ao bater em
pedaços uma contra a outra, do que este
recontro de infiéis e cristãos. As lanças, topando em cheio nos escudos, tiravam deles um som profundo, que se
misturava com o estalar das que voavam
despedaçadas. Do primeiro encontro, muitos cavaleiros vieram ao chão: um mouro robusto foi derribado por
Mem Moniz, que lhe falsou as armas e
traspassou o peito com o ferro da sua grossa lança. Deixando-a depois cair, o velho desembainhou a espada e
gritou ao Lidador, que perto dele
estava:
— Senhor Gonçalo Mendes, ali
tendes, no peito daquele perro, aberto a seteira por onde eu, velha dona assentada à
lareira, costumo vigiar a chegada de
inimigos, para lhes ladrar, como alcateia de vilãos, do cimo da torre de menagem.
O Lidador não lhe pôde responder.
Quando Mem Moniz proferia as últimas palavras,
ele topara em cheio com o terrível Almoleimar. As lanças dos dois contendores tinham-se feito pedaços, e o
alfanje do mouro cruzou-lhe com a toledana
do carairo de Beja.
Como duas torres de sete séculos,
cujo cimento o tempo petrificou, os dois capitães inimigos estavam um em frente do
outro, firmes nos seus possantes cavalos:
as faces pálidas e enrugadas do Lidador tinham ganhado a imobilidade que dá, nos grandes perigos, o
hábito de os afrontar: mas no rosto de
Almoleimar divisavam-se todos os sinais de um valor colérico e impetuoso. Cerrando os dentes com força, descarregou um
golpe tremendo sobre o seu adversário: o
Lidador recebeu-o no escudo, onde o alfanje se embebeu inteiro, e procurou ferir Almoleimar entre o fraldão e
a couraça; mas a pancada falhou, e a
espada desceu, faiscando, pelo coxote do
mouro, que já desencravara o alfanje. Tal foi a primeira saudação dos dois cavaleiros inimigos.
— Brando é o teu escudo, velho
infiel; mais bem temperado é o metal do meu
arnês. Veremos agora se na tua touca de ferro se embotam os fios deste alfanje.
Isto disse Almoleimar, dando uma
risada, e a cimitarra bateu no fundo do vale penedo desconforme desprendido do píncaro da
montanha.
O carairo vacilou, deu um gemido,
e os braços ficaram-lhe pendentes: a espada
ter-lhe-ia caído no chão, se não estivesse presa ao punho do cavaleiro por uma cadeia de ferro. O ginete, sentindo as
rédeas frouxas, fugiu um bom pedaço pela
campanha, a todo o galope.
Mas o Lidador voltou a si: uma
forte sofreada avisou o ginete de que o seu senhor não morrera. À rédea solta, lá volta o
carairo de Beja; escorre-lhe o sangue,
envolto em escuma, pelos cantos da boca: traz os olhos torvos de ira: ai de Almoleimar!
Semelhante ao vento de Deus,
Gonçalo Mendes da Maia passou por entre os cristãos e mouros: os dois contendores
viram-se, e, como o leão e o tigre, correram
um para o outro. As espadas reluziam no ar; mas o golpe do Lidador era simulado, e o ferro mudando de movimento
no ar, foi bater de ponta no gorjal de
Almoleimar, que cedeu à violenta estocada; e o dangue, saindo às golfadas, cortou a última maldição do agareno.
Mas a espada deste também não
errara o golpe: vibrada na ânsia, colhera pelo ombro esquerdo o velho carairo e, rompendo a
grossa malha do lorigão, penetrara na
carne até o osso. Ainda mais uma vez a mesma terra bebeu nobre sangue godo misturado com sangue árabe.
— Perro maldito! Sabe lá no
inferno que a espada de Gonçalo Mendes é mais rija que a sua cervilheira.
E, dizendo isto, o Lidador caiu
amortecido; um dos seus homens de armas voou
a socorrê-lo; mas o último golpe d'Almoleimar fora o brado da sepultura para o carairo de Beja: os ossos do ombro do
bom velho estavam como triturados, e as
carnes rasgadas pendiam-lhe para um e para outro lado envoltas nas malhas descosidas do lorigão.
****
Entretanto os mouros iam de
vencida: Mem Moniz, D. Ligel, Godinho Fafes, Gomes Mendes Gedeão e os outros cavaleiros
daquela lustrosa companhia tinham
praticado maravilhosas façanhas. Mas, entre todos, tornava-se notável o Espadeiro. Com um pesado montante nas mãos,
coberto de pó, suor e sangue, pelejava a
pé; que o seu agigantado ginete caíra morto de muitos tiros de frechas lançadas. De roda dele não se viam
senão cadáveres e membros destroncados,
por cima dos quais trepavam, para logo recuarem ou baquearem no chão, os mais ousados cavaleiros
árabes. Como um promontório de
escarpados alcantis, Lourenço Viegas estava imóvel e sobranceiro no meio do embate daquelas vagas
de pelejadores que vinham desfazer-se
contra o terrível montante do filho de Egas Moniz.
Quando o carairo caiu, o grosso
dos mouros fugia já para além do pinhal; mas os mais valentes pelejavam ainda à roda do seu
moribundo. O Lidador esse tinha sido
posto em cima de umas andas, feitas de troncos e franças de árvores, e quatro escudeiros, que restavam
vivos dos dez que consigo trouxera, o
tinham transportado para a saga da cavalgada. O tinir dos golpes era já muito frouxo e sumiam-se no som dos
gemidos, pragas e lamentos que soltavam
os feridos derramados pela veiga ensanguentada. Se os mouros, porém, levavam, fugindo, vergonha e dano, a
vitória não saíra barata aos portugueses.
Viam perigosamente ferido o seu velho capitão, e tinham perdido alguns cavaleiros de conta e a maior
parte dos homens de armas, escudeiros e
pajens.
Foi neste ponto que, ao longe, se
viu erguer uma nuvem de pó, que voava rápida
para o lugar da peleja. Mais perto, aquele turbilhão rareou vomitando do seio basto esquadrão de árabes. Os mouros
que fugiam deram volta e gritaram: A
Ali-Abu-Hassan! Só Deus é Deus, e Maomé o seu profeta! Era, com efeito, Ali-Abu-Hassan, rei de Tânger, que
estava com o seu exército sobre Mertola
e que viera com mil cavaleiros em socorro de Almoleimar.
****
Cansados de largo combater,
reduzidos a menos de metade em número e cobertos
de feridas, os cavaleiros de Cristo invocaram o seu nome e fizeram o sinal da cruz. O Lidador perguntou com voz
fraca a um pajem, que estava ao pé das
andas, que nova revolta era aquela.
— Os mouros foram socorridos por
um grosso esquadrão — respondeu tristemente
o pajem. — A Virgem Maria nos acuda, que os senhores cavaleiros parece recuarem já.
O Lidador cerrou os dentes com
força e levou a mão à cinta. Buscava a sua boa toledana.
— Pajem, quero um cavalo. Onde
está a minha espada?
— Aqui a tenho, senhor. Mas
estais tão quebrado de forças!...
— Silêncio! A espada, e um bom
ginete.
O pajem deu-lhe a espada e foi
pelo campo buscar um ginete, dos muitos que andavam já sem dono. Quando voltou com ele, o
Lidador, pálido e coberto de sangue,
estava em pé e dizia, falando consigo:
— Por Santiago que não morrerei
como vilão da beetria onde entrou cavalgada
de mouros!
E o pajem ajudou-o a montar o
cavalo.
Ei-lo o velho carairo de Beja!
Semelhava um espectro erguido de pouco em campo de finados: debaixo de muitos panos que
lhe envolviam o braço e o ombro esquerdo
levava a própria morte; nos fios da espada, que a mão direita mal sustinha, levava, porventura, ainda a
morte de muitos outros!
****
Para onde mais travada e acesa
andava a peleja se encaminhou o Lidador. Os cristãos afrouxavam diante daquela multidão de
infiéis, entre os quais mal se enxergavam
as cruzes vermelhas pintadas nas cimeiras dos portugueses. Dois cavaleiros, porém, com vulto feroz, os olhos
turvados de cólera, e as armaduras
crivadas de golpes, sustinham todo o peso da batalha. Eram estes o Espadeiro e Mem Moniz. Quando o carairo assim
os viu oferecidos a certa morte algumas
lágrimas lhe caíram pelas faces e, esporeando o ginete, com a espada erguida, abriu caminho por entre
infiéis e cristãos e chegou aonde os dois,
cada um com o seu montante nas mãos, faziam larga praça no meio dos inimigos.
— Bem-vindo, Gonçalo Mendes! —
disse Mem Moniz. — Quiseste assistir
connosco a esta festa de morte? Vergonha era, de feio, que estivesses fazendo teu passamento, com todo o repouso,
deitado lá na saga, enquanto eu, velha
dona, espreito os mouros com o meu sobrinho junto desta lareira...
— Implacáveis sois vós outros,
cavaleiros de Riba-Douro, — respondeu o Lidador
em voz sumida — que não perdoais uma palavra sem malícia.
Lembra-te, Mem Moniz, de que bem
depressa estaremos todos diante do justo
juiz.
Velho sois; bem o mostrais! —
acudiu o Espadeiro. — Não cureis de vãs porfias,
mas de morrer como valentes. Demos nestes perros, que não ousam chegar-se a nós. Avante, e Santiago!
— Avante, e Santiago! —
responderam Gonçalo Mendes e Mem Moniz: e os três cavaleiros deram rijamente nos mouros.
****
Quem hoje ouvir recontar os
bravos golpes que no mês de Julho de 1170 se deram na veiga da caraira de Beja, notá-los-á
de fábulas sonhadas; porque nós, homens
corruptos e enfraquecidos por ócios e prazeres de vida afeminada, medimos pelos nossos ânimos e forças, a força
e o ânimo dos bons cavaleiros portugueses
do século XII; e todavia, esses golpes ainda soam, através das eras, nas tradições e crónicas, tanto cristãs
como agarenas.
Depois de deixar assinadas muitas
armaduras mouriscas, o Lidador vibrara pela
última vez a espada e abrira o elmo e o crânio de um cavaleiro árabe. O violento abalo que experimentou lhe fez
rebentar em torrentes o sangue da ferida
que recebera das mãos de Almoleimar e, cerrando os olhos, caiu morto ao pé do Espadeiro, de Mem Moniz e de Afonso
Hermingues de Baião, que com eles se
juntara. Repousou, finalmente, Gonçalo Mendes da Maia de oitenta anos de combates!
Já a este tempo cristãos e mouros
se tinham descido dos cavalos e pelejavam a pé. Traziam-se assim à vontade, e recrescia a
crueza da batalha. Entre os cavaleiros
de Beja espalhou-se logo a nova da morte do seu capitão, e não houve ali olhos que ficassem enxutos. O
despeito do próprio Mem Moniz deu lugar
à dor, e o velho de Riba-Douro exclamou entre soluços:
— Gonçalo Mendes, és morto! Nós
todos quantos aqui somos, não tardará
que te sigamos; mas ao imenso, nem tu, nem nós ficaremos sem vingança!
— Vingança! — bradou o Espadeiro
com voz rouca, e rangendo os dentes. Deu
alguns passos e viu-se o seu montante reluzir, como uma centelha em céu proceloso.
Era Ali-Abu-Hassan: Lourenço
Viegas o conhecera pelo timbre real do morrião.
****
Se já vivestes vida de combates
em cidade sitiada, tereis visto muitas vezes um vulto negro que em linha diagonal corta os
ares, sussurrando e gemendo. Rápido,
como um pensamento criminoso em alma honesta, ele chegou das nuvens à terra, antes que vos lembrásseis do
seu nome. Se encontrou na passagem
ângulo de torre secular, o mármore converte-se em pó; se atravessou, pelas ramas de árvore basta e
frondosa, a folha mais virente e frágil,
o raminho mais tenro é dividido, como se, com cutelo sutilíssimo, mão de homem lhe houvera cerceado atentamente uma
parte; e, todavia, não é um ferro
açacalado: é um globo de ferro; é a bomba, que passa, como a maldição de Deus. Depois, debaixo dela, o chão
achata-se e a terra espadana aos ares; e, como agitada, despedaçada por cem mil
demônios, aquela máquina do inferno estoura,
e de roda dela há um zumbir sinistro: são mil fragmentos; são mil mortes que se derramam ao longe. Então faz-se
um grande silêncio vêem-se corpos
destroncados, poças de sangue, arcabuzes quebrados, e ouvem-se o gemer dos feridos e o estertor dos moribundos.
Tal desceu o montante do
Espadeiro, roto dos milhares de golpes que o cavaleiro tinha descarregado. O elmo de
Ali-Abu-Hassan faiscou, voando em pedaços
pelos ares, e o ferro cristão esmigalhou o crânio do infiel, abriu-o até os dentes. Ali-Abu-Hassan caiu.
— Lidador! Lidador! — disse
Lourenço Viegas, com voz comprimida. As lágrimas
misturavam-se-lhe nas faces com o suor, com o pó e com o sangue do agareno, de que ficou coberto. Não pôde
dizer mais nada.
Tão espantoso golpe aterrou os
mouros. Os portugueses seriam já apenas sessenta,
entre cavaleiros e homens d'armas: mas pelejavam como desesperados e resolvidos a morrer. Mais de
mil inimigos juncavam o campo, de
envolta com os cristãos. A morte de Ali-Abu-Hassan foi o sinal da fugida.
Os portugueses, senhores do
campo, celebravam com gritos a vitória. Poucos havia que não estivessem feridos; nenhum que
não tivesse as armas falsadas e rotas. O
Lidador e os demais cavaleiros de grande conta que naquela jornada tinham acabado, atravessados em cima dos
ginetes, foram conduzidos a Beja. Após
aquele tristíssimo préstito, iam os cavaleiros a passo lento, e um sacerdote templário, que fora na cavalgada com
a espada cheia de sangue metida na
bainha, salmodiava em voz baixa aquelas palavras do livro da Sabedoria:
"Justorum autem animae in manu Dei sunt, et non tangent illos
tormentum mortis".
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Nota:
Alexandre Herculano: "Lendas e Narrativas" (1851)
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Nota:
Alexandre Herculano: "Lendas e Narrativas" (1851)
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