O TIO SEBASTIÃO
Não havia coisa
que mais alegrasse o tio Sebastião, um velhito que conheci numa aldeia perto de
Braga, do que falarem-lhe no filho que estudava em Coimbra.
Sorriam-se-lhe
os olhos, e um contentamento intraduzível espelhava-se-lhe no rosto.
Quando lhe
elogiavam o caráter, o talento, a bondade e a aplicação do rapaz, ele fingia
que não acreditava, dizia que não era tanto assim. .. E repetia:
— Favores, meu
amigo, favores...
Mas lá no
íntimo agradecia aquilo tudo, e tinha vontade de apertar nos braços a pessoa
que falava com tamanho louvor do filho estremecido.
Quando ele
descobria o seu fraco, era quando lhe elogiavam na presença outro rapaz, outro
estudante.
— Sim, sim, mas
como o meu! Não é porque o rapaz seja meu filho, mas disse-me o prior, e olhe
que o prior não é tolo nenhum, pois disse-me o prior que o meu pequeno era o
melhor estudante que andava nas aulas de Braga, que lho tinham dito os próprios
mestres. Aquilo tem uma memória! E então
ler! As vezes
estava horas e horas a ouvi-lo, dava gosto. O talho da letra já foi melhor,
isso foi, mas o prior, a quem eu disse isto, consolou-me, dizendo-me que todos
os doutores tinham má letra. Assim será, mas as primeiras cartas que o pequeno
me escreveu, quando foi para o estudo, podem mostrar-se:.. Quer você ver uma
dessas cartas?...
Toda a gente da
aldeia gostava do velho, e não havia uma só pessoa que para o lisonjear, ao
encontra-lo, lhe não perguntasse pelo filho.
— Obrigado, vai
bom! E com um sorriso doce, enternecido e caricioso envolvia o da pergunta.
O tempo das
férias, sobretudo as do Natal, que é quando se mata o porco, e se fazem filhós,
e se conversa animadamente em volta da lareira, era ansiosa e impacientemente
esperado pelo velho; todas as noites ia ao reportório, que tinha à cabeceira da
cama, e pondo uma cruz no dia que findara, dizia jubiloso:
— É de menos
um!
Na véspera da
chegada do filho, era uma azáfama, um revolver as velhas arcas de onde se exala
um forte cheiro de maçãs camoesas, e um andar tudo numa poeira naquela casa.
— Esta cama não
tem roupa bastante, Joana, dizia para a criada; vá buscar mais um cobertor!
E alisava a
colcha, endireitando a fronha da travesseirinha, e repetindo:
— O estudante é
muito mimoso, e depois faz frio que não é brincadeira!
Ia à cozinha,
era preciso comprar isto e mais aquilo. Examinava os armários, passava revista
aos frascos das compotas, e punha de banda as garrafas de vinho antigo.
— Não que ele
gosta do que é bom!
Na rua não
esperava que lhe perguntassem pelo filho:
— Chega amanhã,
chega amanhã!
As ânsias eram
no dia da chegada. Vinha para a porta, esfregando as mãos, rutilante de prazer.
Todo o pobre que passava tinha uma esmola, todo o transeunte um cumprimento
benévolo e afável.
Os vizinhos
exploravam aquele grandíssimo e sagrado afeto.
— Com que então
é hoje, hein?
—É verdade,
pelo menos assim o espero. Queira Deus que lhe não suceda alguma no caminho»
Isto de rapazes...
— Há rapazes de
rapazes. O seu é uma joia...
— Sim, sim, mas
há más companhias...
— Qual quê! E
então o juízo e o talento para que servem? Eu tenho ido com ele algumas vezes a
Braga, e bem vejo as pessoas com quem o seu menino se dá. E tudo gente da
melhor. E não lhe fazem favor. Todos me gabam a sabedoria do seu estudante,
todos...
— E eu que o
diga, afirmava outro.
— Então porque
não entram? Vejam se apanham um catarral! Está muito frio. Ó Joana, traz duas
malgas daquele vinho que sabes, e não te esqueças de trazer uma talhada de
presunto. Vão beber pinga de substancia! Este é dó tal que faz peito, hê, hê,
hê!
— Com que então
— diziam os biltres — à saúde do Sr. doutor!
— Que Deus
fará! Tornava o bom do lavrador, com as lagrimas nos olhos. Mas eu não tenho
malga, traz-me também uma, que quero beber à saúde aqui dos amigos.
E bebia de um
trago, valentemente, com alma.
O estudante às
vezes, na vinda de Coimbra, chegava a Braga, onde tinha amigos e condiscípulos
antigos, e ficava mais um dia. De forma que o velho esperava, e ia deitar-se
cheio de cuidados; não pregava olho toda a noite.
A Joana, que
bebera o mesmo leite que Sebastião, ouvindo-o gemer e suspirar, erguia-se, e
perguntava-lhe:
— Tem alguma
coisa, senhor Sebastião?
— Que é? O
estudante chegou? Já me levanto, traz-me a candeia!
E era preciso
que a velha lhe explicasse tudo, e que o embalasse carinhosamente com aquelas
doces palavras com que as mães adormecem os filhos rabugentos.
****
O tio
Sebastião, quando casou, tinha cinquenta anos, uns cinquenta anos limpos e
rijos como não há aí muitos trinta»
Enquanto a mãe
foi viva, não lhe quis dar atenção.
— Nada dizia ás
pessoas que lhe aconselhavam o casamento, nada! Que lucro eu com isso? A
velhinha podia não se dar com o gênio da mulher que eu trouxesse para casa e
isso era o inferno para mim. Quem manda naquela casa é a minha mãe, e há de
mandar em quanto for viva. Ela ralha, ela grita, ela dá por paus e por pedras,
por dá cá aquela palha. Deixa-la! Quando rabuja de mais, saio de casa, e a
Joana que a ature! São mulheres, e lá se entendem. Se eu me casasse, tinha de
acudir por uma ou por outra... Nada! Boi solto lambe-se todo...
E ainda
solteiro fechou os olhos da mãe que lhe morreu nos braços.
Joana ficou
senhora de tudo. Era ela que olhava pela casa, que dava ordens, a verdadeira
dona da casa por fim. Aquele novo modo de vida, porém, começou a pesar-lhe,
entrou a ter saudades do antigo jugo, queria receber ordens e não dá-las; a
domesticidade era para ela um hábito de que não havia de desacostuma-la.
— Sabe o que
mais, senhor Sebastião? Disse ela um dia ao patrão. O tempo das rapaziadas
passou. porque não toma estado? Raparigas é que não faltam. E verdade que o
mundo vai perdido de todo, mas ainda há raparigas perfeitas e tementes a Deus.
— Endoideceste,
Joana! Eu caso me lá, nesta idade! Só se for contigo...
— Lá começa ele
com as tolices do costume.
Água mole em
pedra dura...
O tio Sebastião
entrou um dia em casa com noiva. Era órfã de pai e mãe, era pobre, não tinha
parentes a não ser um irmão que fora para o Brasil, e de quem não tinha
noticias há muito tempo; contava trinta e tantos anos, mas era madrugadora como
um galo, direita como um vime, e valia por dois homens no amanho da vida. .
Quando o tio
Sebastião lhe falou em casamento, ela fez-se vermelha como uma papoila, hesitou
um momento, e atirando com a foice com que andava a cortar feno,
lançou-se-lhe nos braços, e num amplexo formidável de leoa, rompeu com isto:
— Esperava esta
felicidade há dez anos. Abrace-me, só Sebastião, que se não fosse consigo, não
me casava senão com a cova.
Vinha de longe
o afeto desta mulher pelo bondoso homem.
O pai de
Carlota caiu entrevado; o tio Sebastião ao passar-lhe um dia à porta ouviu
choros e lamentações; entrou e soube que havia ali necessidade e quase fome; a
filha única do inválido, Carlota, tinha de ficar à cabeceira do catre; as
últimas economias tinham-se extinguido pouco e pouco.
O tio Sebastião
socorreu aquela gente, mandou chamar o médico a Vila Verde, pagou os remédios
da botica e por fim o enterro do infeliz.
Entre as poucas
pessoas que acompanharam à igreja o modesto ataúde, ia o tio Sebastião curvado,
melancólico, com o seu rosto barbeado, e cheio de bondade e lhaneza.
Carlota, que
chorava a um canto do albergue, com as mãos atadas à cabeça despenteada, ao ver
entrar o benfeitor, não lhe agradeceu as esmolas com palavras ociosas —
arrastou se para ele de joelhos, e agarrando-lhe nas mãos beijou-as com devota
sofreguidão.
Passados tempos
o tio Sebastião esquecera-se daquele episódio, e nem sequer reparou que a
melhor cantadeira do lugar, que inquestionavelmente era a
Carlota,
deixava de cantar todas as vezes que ele passava por uma certa azinhaga...
Se ele voltasse
o rosto veria no meio das ervas altas e úmidas, ou em cima dos castanheiros
folhudos e entrelaçados de pâmpanos, um vulto de mulher voltado para ele, a
devora-lo com a vista, a segui-lo, a banha-lo na luz cariciosa de um longo
olhar enamorado.
Não deu por tal
o tio Sebastião; Joana, porém, que era amiga de Carlota, adivinhou o segredo, e
o resultado sabe-o o leitor.
****
Três anos
depois do casamento o tio Sebastião enviuvara.
Ficou-lhe um
filho, uma criancinha loura e adorável, o vivo retrato da mãe.
O lavrador
concentrava no pequeno, todos os afetos, amava-o até à insânia.
O rapaz cresceu
rodeado de caricias, de mimos e de ternos cuidados.
Não havia
vontade que se lhe não fizesse. Era um pequeno rei despótico a cuja voz o pai e
a velha Joana se curvavam com cega obediência.
Ao completar
seis anos, por-conselho do prior, começou o pequeno a estudar as primeiras
letras com o professor régio da freguesia.
— Temos homem,
dizia o prior ao velho; o rapaz vai bem, estuda e aprende com facilidade.
— Quando me
lembro que posso morrer sem o ouvir cantar a missa nova, parece-me que estalo
de pena.
— Ó senhor
prior, o meu rapaz dava ou não dava um padre de mão cheia?
Era para padre
que o velho destinava o filho, sonhava todas as noites com a sua primeira
missa, via-o com as Vestimentas engomadas e duras do sacerdócio, à frente do
altar da igreja da freguesia, no meio de nuvens de incenso, enquanto os padres
cantarolavam ao som plangente e arrastado do órgão, e os sinos tangiam alegres
repiques, e subiam ao ar as girandolas de foguetes impregnando de um espesso
cheiro de pólvora o adro enramilhetado de murtas...
Pronto nas
primeiras letras, foi o pequeno Sebastião para Braga onde se matriculou no
liceu.
Neste entrementes
chegou do Brasil o irmão de Carlota. Foi à aldeia natal, procurou os parentes,
e soube que todos tinham falecido, restando-lhe tão somente um sobrinho.
O brasileiro
era solteiro, e doente; não vinha milionário, mas tinha mais do que o
suficiente para dar uma bonita carreira ao estudante.
— Olhe, mano,
disse ao cunhado, deixe isso ao meu cuidado, eu me encarrego do menino. O bem
que desejava fazer aos meus pais, que infelizmente não encontrei, hei de
revertê-lo em favor do meu sobrinho.
Uma condição exijo:
não quero que o rapaz se ordene. Quero dizer, se isso for da sua vontade, dele,
não me oponho, mas deixemos o tempo ao tempo. Cá a minha opinião é que ele deve
estudar medicina. Os médicos ganham muito dinheiro em toda a parte, e no Brasil
sobretudo, onde o mais reles tem carruagem. Está por isto? O rapaz quando
acabar os estudos em Braga vai para Coimbra?
O tio Sebastião
custou a descer daquele sonho em que andara tantos anos embevecido. Mas por fim
cedeu.
O brasileiro
demorou-se alguns anos ainda em Portugal. A quebra, porém, de uma casa
importante do Rio chamou-o ao Brasil, para onde partiu deixando ao sobrinho,
que até então se tinha portado com singular e exemplaríssimo discernimento,
ordem franca para receber tudo que lhe fosse preciso numa das casas mais
acreditadas do Porto.
****
Um dos
estudantes que mais dinheiro gastava em Coimbra por aqueles tempos era
Sebastião Alves, a quem a convivência com os rapazes oriundos das mais nobres
famílias de Portugal empavonara e envaidecera extremamente.
No seu quarto,
que ele adornara com excessivo e inaudito luxo para um estudante, reuniam-se
todos os que sobressaiam em Coimbra pela fidalguia, pela força, e pela
estroinice.
Sebastião,
entrou a ser explorado; pediam-lhe dinheiro que nunca era restituído, vestiam-lhe
o fato, calçavam-lhe as botas, e comiam-lhe ceias abundantes e regadas de
vinhos caros.
Com aquela vida
era incompatível o estudo e a reflexão. Deixou de ir ás aulas. Enganava o tio e
o pai, enviando-lhes certidões falsas dos atos que nunca fizera.
Havia dois anos
já que não ia à aldeia, cujo viver lhe aborrecia e se lhe figurava mesquinho e
chato.
Quando os
estudantes partiam para férias, contentes e alegres para os abraços da família,
Sebastião Alves deixava também Coimbra, percorria as praias, ia ao Porto, a
Cintra, ao Bussaco.
Aquela vida
inútil e vadia era de vez em quando remordida pelo remorso, todas as vezes que
o vadio recebia as cartas do pai, que, apesar de não terem
ortografia, e
de serem escritas com uma letra grotesca e pesada, lhe avivavam o entranhado
amor com que ele era querido por aquele amantíssimo coração de velho.
****
O brasileiro
voltara a Portugal. Em Santa Apolônia comprou bilhete para Coimbra, mas
adormecendo profundamente só acordou quando ouviu um empregado gritar: Granja!
— É o mesmo,
disse consigo. Até é melhor. Fico no Porto, e escrevo ao Sebastião que venha
ter comigo se quer ir ver o filho a Coimbra.
Escreveu. Se o
tio Sebastião queria ir a Coimbra! Nisso pensava ele há semanas, porque já não
podia com as saudades.
— Já cá estão
dois carros e uns pozinhos, dizia ele, se não fosse isto, quem ia ver o rapaz
era o filho da minha mãe...
O convite do
cunhado alvoroçara-o de alegria e de desusado contentamento. Ria alto, andava
radiante, cantava:
Á uma hora
nasci,
Ás duas fui
batizado,
Ás três andava
de amores,
Ás quatro
estava casado.
— Queres tu vir
daí, Joana? Dizia ele para a criada que lhe arranjava a mala.
E verdade, ó
Joana, não te lembras assim de uma coisa que o estudante goste? Uma coisa
bonita...
A criada que
era gulosa, lembrava-lhe marmelada, doce de ginja, pêras de calda...
— Upa! Coisa
melhor...
— Quer saber? —
disse a velha, com os olhos acesos de quem achou um tesouro, e a mim que me não
lembrou logo! Eu cá se fosse o senhor Sebastião comprava uma medalha de ouro
como a que o Sr. morgado traz no cordão do relógio; metia-lhe dentro o retrato
da falecida, e levava isso ao menino que há de ficar no céu ao ver a mãezinha
que Deus lhe levou.
O tio Sebastião
aprovou a ideia. O retrato foi tirado da parede, tinha sido feito em Braga,
logo nos primeiros tempos do casamento. Representava Carlota vestida com uma
saia de seda preta, lustrosa, cheia de vincos, com grossas
arrecadas, e
uns enormes grilhões no peito largo e aflante, os pés nus numas chinelas
bicudas de verniz. Na mão direita tinha um lenço cheio de bordados, tufado. A
esquerda descansava nas costas de uma cadeira, e os grossos dedos dessa mão
pendiam para a palhinha, lãzudos, reluzentes de anéis. Nos olhos de Carlota
havia o espanto de quem vê bruxaria, uma espécie de pavor disfarçado.
O lavrador
pegou no retrato, e esteve a olhar para a mulher. Não chorou, nem teve
saudades, estava absorvido por um sentimento superior.
—O Joana, mas o
retrato é grande e a medalha pequena. Eu não tenho alma de degolar o retrato...
A criada
riu-se.
— Pois leve o
retrato e a medalha ao menino, e ele lá que o mande arranjar...
Na manhã
seguinte almoçava o tio Sebastião com o cunhado, e partia nessa mesma tarde
para Coimbra, onde chegaram de noite. O brasileiro, cheio de cansaço, adoentado,
propôs que se adiasse a visita ao estudante para o outro dia. Que eram horas
dele estar a estudar; que não era bom distraí-lo das suas obrigações. O tio
Sebastião, porém, não se convenceu. Disse que iria só, que não podia esperar,
que não dormiria bem sem dar um abraço no filho. Partiram ambos.
Os viajantes
bateram à porta da casa de Sebastião Alves, maravilhados de verem as janelas
abertas e a casa completamente ás escuras. Ninguém lhes respondeu.
Bateram de
novo.
Uma vizinha com
a sua voz fina e cantada perguntou o que desejavam, e explicou que o Sr.
Sebastião Alves tinha ido cear com uns amigos a uma hospedaria da baixa.
Perguntou o
brasileiro onde era essa hospedaria, e para li se encaminhou com o ansioso
companheiro, que ao vê-lo meditativo resmungava como que para atenuar a extravagância:
— Rapazes um
dia não são dias.
As ruas da alta
estavam solenemente silenciosas, os transeuntes eram raros.
Ao passarem por
uma casa, cujo primeiro andar tinha as janelas abertas, viram um estudante com
a cabeça encostada ás mãos, absorvido e com os olhos nuns livros...
— Aquele também
é rapaz, disse o brasileiro com gesto sentencioso, mas faz a sua obrigação.
Quem vem para aqui é para estudar...
Ao subirem as
escadas da hospedaria ouviram um grande rumor, vivas, e hurrahs frenéticos e
entusiásticos; os criados açodados, vermelhos, passavam com largas travessas
fumegantes...
— Desejamos
saber, disse o brasileiro a um dos criados, se o Sr. Sebastião Alves está aqui.
— Está, sim
senhor, se lhe querem falar, vou dar-lhe parte...
O brasileiro
tirou meia coroa da bolsa de prata, e dando-a ao criado continuou:
— Não queremos
perturbar o Sr. Sebastião, falar-lhe-emos depois. O que desejamos é um quarto
onde possamos esperar até que finde a ceia. Faça o favor de lhe não revelar que
estamos aqui, é uma surpresa que queremos fazer ao estudante; e sorriu
contrafeito.
O criado
conduziu-os a uma sala, separada daquela em que os estudantes ceavam
simplesmente por uma porta.
O tio Sebastião
tinha o coração aos pulos dentro do peito.
— Eu vou lá;
dizia baixo com a voz tremula, quero vê-lo.
O cunhado
conteve-o.
— Espreite pelo
buraco dessa fechadura que já o vê.
O velho
curvou-se e olhou.
— Lá está ele!
Lá o vejo. Está mais magro... aquilo talvez seja do estudo. Coitado! Mas que
chibante que ele anda! Os outros ao pé dele parecem uns pobretões! Um até tem a
veste toda rota e cheia de nodoas. Aquilo que eles trazem é assim a modo de
batina de padre... pois não é? Espera, ó mano! lá vai o meu filho levantar-se.
O meu rico filho da minha alma!
Sebastião
levantara-se de fato para fazer um brinde.
Tinham bebido à
saúde das mulheres, do amor, da glória, do talento...
Sebastião, um
tanto inflamado de repetidas libações, fez uma saúde a um velho que estava
sentado à mesa, um pouco distanciado do grupo dos estudantes.
O brinde foi
estrepitosamente vitoriado.
O velho
agradeceu nestes termos:
«Muito
obrigado, meus senhores! Reconhecido pela deferência com que me honram,
consintam que beba à saúde do pai do cavalheiro que me brindou.
O brasileiro
disse:
— Tome, mano!
aquilo é consigo!
— Mas eu vou
lá, vou dar um abraço naquele honrado homem que se lembrou de mim...
Os estudantes
ergueram os copos.
— À saúde do
teu pai, clamaram.
— Que
infelizmente está longe, disse comovido pelo vinho Sebastião Alves.
— Longe! qual
longe, nem meio longe, tartamudeou o tio Sebastião, e ia para lançar-se pelo
corredor fora, quando o brasileiro de novo o reteve.
— Espere homem!
o rapaz talvez fique envergonhado se lhe aparecermos assim de repente.
— É verdade,
meus senhores, disse um dos da roda, um que passava por orador e que gostava de
fazer estilo.
«O pai de
Sebastião está longe, vive em plagas distantes, em terra de Santa Cruz nesse
país ubérrimo, monstruoso, gigante, que se chama o Brasil, e onde os nossos
recebem uma hospitalidade tão franca e tão generosa. Brindando ao pai de
Sebastião, brindo aos nossos irmãos de além-mar.
— O que diz
ele? resmungou o tio Sebastião, que eu estou no Brasil? Não é má!... e
atabafava o riso.
O brasileiro
compreendeu tudo e murmurou: canalha!...
Um dos rapazes
que fora condiscípulo de Sebastião em Braga, voltando-se para este, disse:
— E verdade, ó
Sebastião, aquele velhinho que uma vez te acompanhou à mala posta, e que eu vi
a chorar como uma criança na rua da Cónega quando se despediu de ti, era o teu
avô? Muito gostei eu do velhinho. Parece que o
estou a ver a
acenar-te com o lenço, correndo com as suas pernas trôpegas e cansadas atrás da
carruagem, a dizer: O Senhor vá na tua companhia!
Sebastião
avincou o rosto, um rubor súbito incendiou-lhe as faces, e partindo uma noz,
respondeu:
— Esse velho
era caseiro de uma quinta que o meu pai comprou quando esteve ultimamente em
Portugal.
O tio Sebastião
voltou-se para o brasileiro. Estava lívido, tinha os lábios apertadamente
unidos, os olhos injetados de sangue. Esteve um segundo, com os olhos fitos nos
do cunhado, sem poder articular uma palavra, bamboleando a cabeça, respirando
ofegantemente pelas narinas palpitantes e dilatadas; depois caiu nos braços do
cunhado e rompeu num soluçar dilacerante e pungitivo:
— Ingrato!
ingrato!
****
Quando o tio
Sebastião chegou à sua aldeia, vinha pálido, desfeito, parecia desenterrado.
A velha Joana
assustada perguntou-lhe:
— Que foi? que
foi? E o menino?
— Morreu!
---
---
Nota:
Maria Amália Vaz de Carvalho: "Contos e Fantasias" (1880)
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