UMA HISTÓRIA VERDADEIRA
Ele tinha uma fisionomia
incaracterística, apagada e tristíssima.
Não se podia saber a idade que
tinha, nem mesmo se tinha idade. Tanto podia ter trinta ou quarenta como
setenta anos. Curvado pela idade ou pelos desgostos? Encanecido porque os anos
tinham corrido sobre a sua cabeça, ou porque lhe tinham pesado duplamente sobre
os ombros débeis?
Quem o podia dizer?
Era uma organização acanhada e
raquítica, podia mesmo chamar-se incompleta.
Para ele com certeza que a
adolescência não tivera as suas madrugadas azuis tão gorjeadas e tão festivas,
nem a virilidade tivera a fanfarra estridente dos seus clarins, a florescência
escarlate e voluptuosa.
Ele tinha sempre vivido debaixo
de uma estranha pressão dolorosa.
Dependera de todos, primeiro
porque era fraco e inerme, depois porque fora pobre, dependente, sem aquela
áspera dignidade que os atritos da vida tornam mais rude e que é a armadura
moral que salvaguardara o homem nos duros combates sociais.
Nasceu numa casa opulenta que lhe
não pertencia, cresceu no meio de um luxo de que os seus pais eram parasitas
voluntários e de que ele era… um parasita inconsciente.
Começara por ter medo de tudo e
de todos; um medo que não raciocinava, que não sabia, que não indagava mesmo a
sua própria origem.
Nasceu assustadiço, como certos
animais silvestres, e toda a vida conservou a mesma expressão inquieta e
medrosa da lebre perseguida.
Em primeiro lugar tinha medo do
seu pai; um homem alto, espadaúdo, pletórico, de voz grossa e modos brutais,
que comia como um abade, que bebia como um lansquenete, que praguejava como um
carreiro, e que se vingava nos poucos seres que tinha debaixo do seu domínio,
das complacências servis que era obrigado a mostrar aos que o mantinham naquela
farta ociosidade de comensal que só goza e não paga.
Depois tinha medo da sua tia; a
dona da casa, a senhora, a suserana perante a qual todos se curvavam submissos.
E no entanto ela era bonita,
delgada, flexível, muito branca.
A figura ideal para um pintor
inglês.
Mas que culpa tinha ele, se os
olhos dessa graciosa e delicada senhora lhe pareciam frios e metálicos, com
umas cintilações azuladas como as do aço fino? Se as suas mãos esguias e
brancas se lhe afiguravam duas tenazes que podiam aperta-lo, aperta-lo até o
torcerem todo, até o esfacelarem e fazerem dele, do seu pequeno corpo tão
fraquinho, uma grotesca massa informe, que o mundo inteiro pisasse, onde o
mundo inteiro cuspisse!
Seria alucinação daquele cérebro
enfermo e condenado aos pensamentos doentios?
Quem o sabe dizer?
O caso é que o sentia, e que
nunca pudera esquivar-se a essa preocupação intensa e dilacerante!
Um destes dois seres que
dominaram de estranho terror a sua infância, maltratavam-no nas explosões
brutais do seu temperamento de touro bravo.
O outro — a senhora — muito
altiva, muito fria, muito desdenhosa, nem sequer lhe falava.
Olhava-o ás vezes como se olha
para um animal repugnante, para um sapo, ou para uma carocha, e passava
adiante, imperturbável e olímpica.
Havia, porém, um outro ser, dos
que mais em contacto estavam com ele, que não o maltratava, nem o desprezava
com a glacial frieza do seu desdém.
E contudo era desse que ele tinha
ainda mais medo.
Era o seu tio; uma figura
original, uma fisionomia de titã que por um engano qualquer da natureza não
pôde conseguir passar de ser anão.
O seu tio!... Como esta
individualidade extraordinariamente acentuada, como este rosto irônico,
irregular, convulsionado, dominou para sempre o destino obscuro da infeliz
criança que eu conheci já em velho!
O seu tio não o perseguia nem lhe
manifestava uma repugnância muda, pelo contrário.
Chamava-o continuamente para o pé
de si, ensinava-lhe, quando estava só, palavras, esgares, visagens grotescas
que lhe fazia repetir à frente de gente, num coro de gargalhadas ásperas e
hostis como gumes de espadas!
Vestia-o de um modo. Desusado e
extravagante, vestia-o de marujo, de escocês, com as suas pequenas pernas
magras, trigueiras, ossudas, numa nudez friorenta que lhe doía, e o fazia
tiritar; vestia-o de tirolês, o que lhe dava um aspeto cômico, que arrebentava
com riso a criadagem.
Ás vezes nos seus dias de melhor
humor saía com ele, que tinha apenas sete anos de idade, de casaca,
chapéu-alto, e berloques na cadeia do relógio.
Havia tempos em que não podia
passar sem a sua companhia; a criança era a única distração do anão...
As caricias desse homem singular,
de olhar faiscante, de cabeladura revolta e elétrica, de voz sonora e rica de
inflexões estranhas, doíam, porém, ao pequeno muito mais do que os desprezos ou
os maus tratos dos outros.
Ao pé destes sentia-se
perseguido, ao pé daquele sentia-se humilhado.
Um dia o marquês — o tio do
pequeno Tadeu era marquês,— achou cômico mandar introduzir a criança no cofre
que havia junto ao fogão do gabinete de trabalho, destinado a guardar a lenha ou
o carvão que se consumia.
De minuto em minuto abria-se a
tampa e saía a cara vermelha e congestionada do pequeno, uma cara de animal
assustado, o que divertia extraordinariamente as visitas.
Outra vez, numa ceia alegre em
que havia rios de champanhe e risos cristalinos de mulheres, Tadeu com um fato
de meia preta a cobri-lo todo e dois castiçais nas pequenas mãos, servia de
centro agachado numa posição grotesca no meio da mesa.
Saiu dali com uma febre que o
teve um mês entre a morte e a vida, delirante, sem conhecer ninguém, com a mãe
debulhada em lagrimas à cabeceira.
Mas Tadeu não gostava da sua mãe.
Era uma criatura tão débil como
ele, pálida como uma defunta, inerme, estúpida e sem vontade.
As lobas defendem os seus filhos,
a mãe de Tadeu não o sabia defender!
Entregava-o ás cóleras
descompostas do pai; aos desprezos gélidos da tia; aos caprichos
monstruosamente cômicos do marquês; ás apupadas brutais das aias e dos lacaios;
aos risos das visitas; ao pasmo desprezador das outras crianças, que iam àquela
casa opulenta e ruidosa acompanhadas pelos pais, vestidas de veludo, com plumas
nos seus lindos chapéus, o ar grave de meninos bem-criados, e que não tinham
licença de brincar com aquele pequeno histrião, feio, ridículo, doente, com
gesto de epilético, com fatos de palhaço e com soluços de mártir.
****
Um dia, porém, fez-se na vida
atormentada e tempestuosa do pequeno Tadeu uma claridade de luar, uma claridade
opalizada e doce.
Houve tréguas nos seus vários
martírios, e a sua mãe, numa bela manhã de primavera em que os pássaros
cantavam ao desafio nas grandes árvores do jardim, levou-o pela mão, pé ante
pé, a um quarto forrado de cetim cor-de-rosa, um quarto digno de servir de
habitação à fada mais linda que uma fantasia de poeta oriental tivesse imaginado.
Naquele quarto havia um ninho
todo branco feito de rendas, de fitas de cetim, de penugem de pássaros, e nesse
ninho dormia uma criancinha que parecia uma rosa.
— É tua prima; murmurou baixinho
a mãe de Tadeu, enquanto este, mudo, surpreso, extasiado, fitava os seus olhos
vítreos, onde o júbilo acendia ama luz desusada, nos grandes olhos luminosos e
pasmados do bebê que acordara.
Oh! Como Tadeu adorava aquela
criança! Como na sua vida houve de repente um ficto, uma esperança, uma luz!
Sua tia, uma vez em que a bebê
chorava muito nos braços da ama, dissera a Tadeu com uma voz menos glacial do
que o costume:
— Tadeu, brinca com a prima para
ver se ela se cala.
E ele fizera calar a rabugenta
pequerrucha.
Desde esse dia soube-se que a
menina tinha o insólito capricho de adorar Tadeu, de rir quando ele estava de
joelhos dobrado sobre o seu berço, de chorar quando alguém o levava dali para
fora.
A ama tomou o costume de o chamar
e de o fazer estar horas e horas a entreter a menina.
Ao princípio ele fazia-lhe caretas
e momices, como as que usava fazer para divertir seu tio; depois, sem bem
perceber porque, adotou outro sistema inteiramente oposto.
Percebeu que a pequenina não
queria um bobo, como esse espírito embotado e pervertido que o vitimara com os
seus caprichos. O que a bebê queria, na ingenuidade adorável do seu despotismo
infantil, era um companheiro dos seus brinquedos, um sócio, um escravo que a
adorasse.
Tadeu era tudo para ela: queria-o
perto da grande tina em que tomava o seu banho de manhã; queria-o junto da
pequena mesa onde a ama lhe dava as sopinhas; queria-o no berço ao adormecer;
queria-o no jardim, à sombra das árvores, sobre a área finíssima, onde se
rolava, vestida de rendas brancas, a rir como uma perdida.
Chamaram-lhe Margarida.
Margarida quer dizer perola, e
Tadeu, que vira muitas vezes a sua tia vestida de baile, achava um nome muito
bem-posto àquela criança branca, transparente, loura, idealmente graciosa.
Oh! Tadeu ainda andava muita vez
vestido de marujo, de granadeiro, de tirolês e de alferes, ainda o introduziam
no cofre da lenha, ainda o faziam fumar um charuto depois de jantar, cheio de
ânsias, de náuseas, de gritos abafados de angústia!... Mas que importava!
Logo que podia escapava-se para o
quarto da fada, para o estojo cor-de-rosa da sua perola, da sua Margarida, e
então eram risadas sem fim, eram corridas delirantes por sobre o tapete, era um
papaguear de duas aves felizes.
Margarida com a idade ia-se
fazendo despótica.
Pudera!
Ou ela não fosse mulher, e
estremecida pelo seu humilde escravo!
Mas era assim mesmo que ele a
queria.
Quando as mãozinhas polpudas e
brancas de Margarida lhe batiam, Tadeu sentia-se feliz como um rei.
Quando ela o obrigava a
agachar-se no chão para lhe servir de jumento, o rapazinho tinha tentações de
rinchar de prazer, fazendo o passo bem ao vivo.
Porque no fim de contas, apesar
de todas as suas adoráveis crueldades, Margarida gostava dele.
A presença de Tadeu iluminava de
risos o seu rosto oval coroado de cabelos louros anelados, o seu rosto a um
tempo angélico e gaiato!
Margarida não o achava feio, nem
tolo, nem ridículo, nem doente.
Não desprezava a fraqueza dos
seus braços, nem a pobreza absoluta da sua imaginação.
Pelo contrário! Admirava-o!
Sim; ela dera-lhe essa sensação
poderosa e extraordinária, a sensação dos que se veem admirados com ingênua
confiança.
Margarida pedia-lhe coisas
enormes, com uma serenidade inefável de crente!
Pedira-lhe um ninho de melros, e
o que é mais! Conseguira que ele tão medroso, tão débil, tão assustado,
trepasse pelos braços nodosos de uma grande árvore e lho fosse buscar lá cima.
Que triunfo este dela, ao ver
satisfeito o seu capricho! Mas que triunfo maior ainda o dele ao compreender,
que alcançara essa coisa prodigiosa, que nem nos sonhos mais arrojados das suas
noites de febre ele ousara até ali conceber!
Um dia Margarida, em frente
daquele rasgo assombroso de valentia que colocara Tadeu ao lado dos maiores
heróis, pusera se grave, meditativa, e apontando com serena majestade para a
lua que se refletia num tanque do jardim, pedira a lua ao seu amigo Tadeu!
Está claro que ele lha não pode
dar, mas gostou daquilo!
Percebeu que o julgavam capaz de
coisas grandes, de levar a cabo empresas impossíveis, e esta ideia que alguém
tinha da sua força, fê-lo crescer aos seus próprios olhos.
O marquês conhecendo que o
pequeno deixara de ser o seu joguete, simplesmente para ser o joguete da sua
filha e herdeira, aplaudiu-se de lhe haver dado aquela educação especial, e
proibiu que o distraíssem, fosse sob que pretexto fosse, das suas novas
funções.
Margarida era ainda muito
pequenina para entreter os pais.
Ele precisava das excitações da
política, das lutas do parlamento, dos sorrisos falsos ou verdadeiros, caros ou
baratos das formosas mulheres, do jogo, da ambição, do amor, da violência corrosiva
de todas as pequenas e grandes paixões!
Ela precisava do luxo, das joias
que cintilam, das sedas que se quebram em ondulações brilhantes, do coro das
adulações mentidas, de todas as efêmeras alegrias que só o mundo lhe podia dar.
Para ambos, Margarida seria um
remorso, se a não vissem tão feliz, tão roliça, tão alegre, com chispas de
travessura maliciosa no olhar, sempre acompanhada do seu pequeno amigo,
submisso e fiel como um cão.
Deixaram-nos, pois, crescer e
viver juntos sob o olhar das aias, sempre um pouco hostil para Tadeu e por isso
tanto mais insuspeito.
Foi o verdadeiro paraíso que este
conheceu na terra, foi a sua idade de ouro.
Há seres que nunca nem por um
instante só conheceram a completa ventura.
São de todos os mais desgraçados.
Tadeu mais tarde podia ao menos
recordar-se!
E ele sabia apreciar ta o bem
aquelas alegrias que em manhã abençoada tinham caído sobre a sua pobre
cabeça!...
Um dia Margarida travessa e
caprichosa como era, desatendendo todas as advertências de Tadeu, deixara-se
cair dentro do tanque do jardim.
O pequeno não sabia nadar.
Que importa!
Sem premeditação, sem raciocínio,
obedecendo a um instinto de dedicação inteiramente canina, deitou-se na água
atrás dela.
As criadas, acudindo, tiraram do
tanque as duas crianças abraçadas.
Imagine-se o que iria em casa!
Tadeu, castigado severamente, não
quis condenar a sua amiguinha, para se salvar a si.
Foi ela que, soberba, graciosa,
com a sua majestade de pequena rainha, disse aos pais:
— Não batam nele. Ele pediu-me
que não fosse. Eu é que quis ir.
Acharam-na adorável; encheram-na
de caricias e de gulodices, mas ninguém pensou na ação tão simples e tão
heroica do pequeno Tadeu, a quem tinham posto a alcunha de medroso.
****
Foi assim que Margarida fez nove
anos.
Era linda e indômita.
Tinha um corpo airoso, flexível e
forte.
Ninguém oprimira nunca aquela
altiva natureza aristocrática.
Dai a sua isenção, a liberdade
dos seus movimentos, o fulgor radioso dos seus grandes olhos azuis, onde um
observador veria talvez as cintilações metálicas que davam tamanha dureza ao
olhar da sua mãe.
Margarida tinha uma vontade de
ferro, e uns nervos de mulher caprichosa.
Quando a professora alemã que os
seus pais mandaram buscar, quis sujeitar o seu espírito a uma certa disciplina,
Margarida revoltou-se num ímpeto de insubordinação selvática.
Tivera criadas que a serviam, um
escravo que tremia à frente dela, e pais que transigiam com todos os seus
pequenos desejos de criança.
Dera-se bem naquele meio, não
queria outro, não o aceitava, nem curvaria a sua cabecinha ereta e firme com
uma auréola de anéis de ouro a cerca-la, a nenhum domínio que não fosse o da
sua vontade.
Um dia Tadeu ouviu falar
vagamente numa viagem que os seus tios iam fazer ao estrangeiro, e viu começar
os preparativos para ela.
Ficou no céu.
Viveria só na grande casa com
Margarida e o rancho dos criados.
Seriam livres.
Ela teria um balouço no jardim,
uma rede brasileira no quiosque, e um barquinho no lago.
Eram os seus três sonhos ainda
irrealizados.
Tadeu dirigiria todos os trabalhos.
Diria aos operários que tinha
dezesseis anos, e que era sobrinho do marquês.
Os operários tinham de
respeita-lo.
Eles não tinham precisão nenhuma
de se rir do seu corpo enfezado e raquítico.
Não é preciso ser-se atlético
para se ser respeitado pelos homens a quem se paga.
Tadeu havia de arranjar algum
meio de lhes pagar.
Andava então doente, esquisito,
com uma excitação nervosa que o torturava.
O seu afeto por Margarida tivera
uma recrudescência violenta e dolorosa.
Tinha vagos pressentimentos que o
faziam chorar.
Parecera-lhe que a sua tia, uma
vez, ao encontra-lo num corredor, olhara para ele com uma aguda ironia
malévola.
— Não sabes, Tadeu? Gritou
Margarida entrando como um raio de sol no quarto onde costumava brincar com o
primo. Não sabes? — E atirou-lhe negligentemente aos pés com um feixe de flores
e de folhas verdes que estivera colhendo na quinta. — Também eu vou com o papá
e a mamã. Vamos a Paris... Muito longe... Muito longe... Estive à escuta…
percebi umas coisas mas não percebi outras. Falaram num convento… no Sacré Coeur... Sabes o que é?...
Tadeu sabia.
Não disse nada, mas no outro dia
não pôde levantar-se da cama.
Tinha dores em todo o corpo e um
grande cansaço, como de quem deu uma larga caminhada.
Gemia baixinho abrasado em febre,
e quando pediu muito humildemente, com medo de recusa, para ver Margarida,
disseram-lhe que a doença dele podia pegar-se e que as meninas não iam ao
quarto dos homens.
Pois isto é um homem? Pensava
Tadeu desolado.
Margarida de endoidecida com a
mudança, com o movimento, com a expectativa de uma existência desconhecida e
nova, esqueceu-se completamente do enfermo.
Partiu sem pedir sequer para lhe
dizer adeus!...
Quando Tadeu ao cabo de um mês de
doença saiu do quarto com o rosto macilento, abatido, cansado, como o de um
velho, com a espinha dobrada e as magras pernas vacilantes, pediu para ir ao
quarto onde brincava com a sua pérola, e agachou-se a um cantinho a chorar com
uns uivos dolorosos, com uns uivos caninos que faziam mal.
Sentia-se para sempre só...
****
O marquês tinha ido sozinho para
França. Fora, ao que se dizia, buscar a filha ao Sacré-Coeur.
A educação de Margarida devia
estar completa. Fora-se embora com nove anos de idade, e já se tinham passado
sete depois que ela partira.
Sete anos! Que longo período!
A casa dos marqueses era pouco
mais ou menos a mesma coisa.
Tadeu perdera a sua mãe, mas
aquela figura apagada, melancólica, de uma debilidade de valetudinária, pouca
falta tinha feito no palácio iluminado e radioso.
O marquês aconselhado por alguma pessoa
de juízo e de caridade tinha consentido a que logo depois da partida de
Margarida seu sobrinho entrasse para um colégio.
Também já lhe não servia para
nada.
Com o seu corpo magro e
desengonçado, um corpo de funâmbulo, um corpo de grotesco, tinha melancolias
quixotescas que incomodavam quem o via.
Os criados deram por mais de uma
vez com o rapazola a chorar de bruços num recanto do jardim, chamado o canteiro
de Margarida.
Era um pequeno espaço semeado de
flores, onde principalmente abundavam os malmequeres brancos que tinham o
poético nome da filha do marquês.
Havia ali uma grande árvore, um
castanheiro copado cuja rama folhuda abrigava os longos pensamentos dolorosos
de Tadeu.
Não se podia consolar!
Era ali naquele sítio fresco,
esmaltado de flores, exalando um cheiro agreste e sadio, que ele se deixava
ficar horas e horas esquecido de todos, numa espécie de letargo bestial, o
letargo de um animal ferido.
E desfiava na memória todo o seu
passado, toda a vida que vivera, abandonado, desprezado, perseguido de chufas
ou de maus tratos, de caprichos humilhantes, ou de observações glacialmente
desdenhosas.
Só ela nunca o ferira! Só ela
fora no seu viver de cão apedrejado um consolo dulcíssimo! Uma nesga do céu que
se entreabrira!
Só ela nunca se tinha rido à
custa dele, e fora ele — o misero, o abandonado, o enfermo — que tivera o
primeiro sorriso daquela boquinha de rosas, o primeiro beijo daqueles lábios
frescos e úmidos de leite I
Era feio, era raquítico, era
estúpido e desastrado.
Todos o conheciam, todos o
repetiam em alto e bom som para que ele o não ignorasse, mas dia amava-o; ela
não o dizia, não o pensava, não o tinha notado sequer!
Para dia era forte, e grande, e
poderoso!
A ele é que Margarida confiara
sempre os seus desejos, os seus sonhos, os seus afetos de criança mimosa.
Ralhava-lhe às vezes, batia-lhe,
quando aspirava ao impossível que Tadeu lhe não podia dar, mas as crianças
ricas têm horas de tédio só comparáveis ás horas sinistras de um imperador
romano, e Tadeu compreendia isso tanto, que antes queria as cóleras, do que os
desalentos rápidos e violentíssimos da sua perola.
Tudo que houvera bom na sua vida
lhe tinha vindo dela.
Dos outros — nada!
E ele odiava todos os outros, só
para poder adora-la com um culto exclusivo de negro pelo seu fetiche.
Não perguntava por notícias; para
quê?
Tinha a certeza íntima de que
lhas não dariam completas nem verdadeiras.
Antes não queria saber nada, do
que banalizar a sua idolatria, revelando-a aos seus inimigos.
Ela também lhe não escrevera, o
que o não surpreendera nada. .
Estava tão costumado a ser uma
coisa inútil e desprezada, que nunca lhe viera à ideia a possibilidade sequer
de possuir uma carta dela.
No entanto ia adoecendo,
definhando, parecia uma sombra.
Um médico que o viu torceu o
nariz, e deu claramente a entender que aquilo nunca chegaria a ser um homem.
Foi então que se lembraram de o
mandar para um colégio, em primeiro lugar para não terem o desgosto de o ver a
cada passo, em segundo lugar para o distraírem da ideia fixa que o estava
consumindo.
No primeiro dia em que Tadeu fez
a sua entrada no colégio houve uma tal galhofa, um gáudio tão extraordinário
entre a rapaziada, que os professores para manterem a ordem tiveram de empregar
severos castigos.
Não havia meio de o ver sem rir.
Tinha um tic nervoso a um canto
da boca, tinha os olhos de vidro embaciado, tinha as pernas muito magras e
muito cambadas, e um modo de falar tímido, acanhado, medroso que era de fazer
morrer de riso os rapazes.
Os próprios mestres tinham de
fazer esforço para se não rirem quando o viam.
Na hora do recreio tomou-se a
vítima, o bode expiatório do colégio.
Um dia, porém, a brincadeira
atingiu tais proporções que degenerou em perversa brutalidade.
Tadeu caiu no chão extenuado a
lançar jorros de sangue pelo nariz.
Do grupo estupefato e arrependido
dos colegiais destacou-se então um, o mais velho, o mais valente o que nunca
entrava naquelas farsadas brutais, e disse com voz decidida:
— Tomo esse pobre diabo debaixo
da minha proteção. O primeiro que lhe tocar tem os ossos num feixe.
Ninguém se atreveu a responder
uma palavra.
Henrique de Souza era temido e
respeitado.
Nas aulas era o primeiro; nas
brincadeiras era o mais forte; na luta era o mais destemido.
Órfão de pai, era sustentado no
colégio pelo trabalho insano da mãe e da irmã mais velha que se tinham feito
costureiras para o poderem educar.
Henrique fizera-se homem antes de
tempo.
O seu pensamento fixo era poder
pagar a divida sagrada que contraíra com as duas heroicas e dedicadas mulheres.
Quando Tadeu despertou do desmaio
em que a fraqueza o mergulhara, fixou os, seus tristes olhos esgazeados e
humildes na fisionomia meiga e viril de Henrique.
Compreendeu que tinha achada um
amigo e caiu-lhe nos braços a soluçar.
****
Tadeu conservara-se cinco anos no
colégio, e saíra de lá um pouco mais forte e um pouco menos desgraçado.
Henrique, que há três anos tinha
completado a sua educação, e que agora cursava a escola de medicina, nunca
deixara de o ir visitar de tempos a tempos, levando-o muitas vezes por ocasião
das férias a passar o dia em casa da sua mãe.
O jovem estudante de medicina
dava lições de francês e inglês nas horas vagas, para aumentar os minguados
recursos da família e como um tio que morrera lhe tivesse deixado uma pequena
pensão, viviam agora todos três mais desafogada» mente.
Ocupavam uma casa pequenina mas
muito bonita e quase nova; tinham um quintal com três galinhas, um casal de
pombos e um canteirinho semeado de flores.
O trabalho da casa era a mãe de
Henrique quem o fazia; a irmã costurava e bordava para fora, o irmão vivia de
estudar e de esperar.
Muito unidos, muito resignados;
em certos momentos mesmo, muito alegres, de uma alegria serena e doce, a
alegria dos corações honrados que confiam na providência de Deus!
Henrique era formoso sem dar por
isso. O único modo possível de um homem ser formoso.
Joaninha, a irmã, que já fizera
vinte e sete anos, era uma doce e casta fisionomia de virgem que tem padecido
muito.
Nos seus grandes olhos
melancólicos havia a tranquila doçura dos que repousam depois de uma luta
esmagadora.
Tinha a certeza de que havia na
terra alegrias que nunca seriam dela, e no entretanto não se revoltara; pusera
noutro ponto mais alto a sua mira.
Descobrira a sua individualidade,
vivia da vida e das esperanças do seu irmão.
Neste interior recolhido e casto,
Tadeu sentiu pela primeira vez acordar a consciência.
Sofria muito ali pelas
comparações dolorosas que fazia, mas compreendeu que nesse mesmo sofrimento
havia um progresso do seu espírito e afeiçoou-se ás torturas que ele lhe dava.
O trabalho era a lei daquela
casa, e Tadeu não sabia trabalhar.
Ali concebia-se a vida de um modo
elevado e justo, a dignidade do homem estava identificada com a sua
independência, e Tadeu não passava de um parasita.
Aprendeu na convivência de
Henrique e da sua mãe e irmã muito mais do que aprendera em todos os anos da
sua desconsolada existência.
Determinou ter uma ocupação, um
ofício, exercer um trabalho qualquer, mas bem depressa adquiriu a desoladora
certeza de que a sua fraqueza física o tornava incapaz de qualquer esforço
aturado e violento.
Com vinte e três anos conseguira
tão-somente, por fim de porfiada luta, ser uma espécie de caixeiro de
guarda-livros do seu tio.
Aprendeu a fazer bem contas, e
tornou-se útil naquela desordenada administração de uma casa colossal.
Isto não era de certo coisa que
satisfizesse as ambições de outro qualquer, mas para ele isto já era uma
grande, uma sublime conquista.
Ganhava o pão que comia.
Era um escriturário humilde, mas
tinha direito a dizer que não dependia de ninguém.
****
No dia em que Tadeu soube que
Margarida ia chegar, a sensação que fez vibrar todo o seu ser, foi violenta de
mais para que possa ser descrita.
Acudiram-lhe em tropel,
desordenadamente, numa confusão louca, todas as lembranças do passado, todas as
queridas visões daqueles nove anos de êxtase que ele vivera.
Estava tudo intacto num cantinho
luminoso da sua alma, onde ele não entrava com medo de fazer fugir as avezinhas
azuis que eram as suas saudades.
Margarida! Bebé! A sua alegria! A
loura cabecinha encaracolada, os olhos cor de azul, límpidos, transparentes,
cristalinos, como um céu de primavera! Os pequeninos braços gordos e nédios! A
boquinha risonha! A voz musical, uma voz de cotovia acordando os ecos da
alvorada!
Todo aquele conjunto de graças ia
ser dele outra vez.
Com que delicia sôfrega ele não
beijaria os pezinhos da sua fada pequenina e loura!
Como lhe contaria tudo que tinha
passado longe dela!
As saudades sem consolo, as
lagrimas que chorara, as humilhações que sofrera no meio daqueles perversos de
faces rosadas e imberbes, que se tinham constituído em algozes da sua fraqueza
e do seu desamparo!
Oh! Amá-la-ia tanto e tanto, que
ela havia de dar-lhe por força um bocadinho de afeto, e esse bocadinho só
bastaria a torna-lo mais feliz do que um rei.
Margarida!
E ao repetir baixinho com um
calafrio de prazer este nome querido, via saltar num raio de sol uma figurinha
esbelta, graciosa, de fato muito curto e muito simples, um vestido branco, um
cinto azul, um bibe de cercadura bordada, onde as amoras colhidas por ele
tinham posto uma mancha vermelha, com os espessos cabelos louros em anéis
soltos, e uma risada a vibrar ainda em torno dela como um rosário de pérolas
que se desfiasse dentro de um cofre de cristal.
Henrique julgou que ele
endoidecia, e Joaninha com a sua voz velada, onde havia uns toques de doçura
maternal, dizia-lhe:
— Mas olhe que ela é uma senhora!
Já não pode ser a mesma. Não tenha uma esperança que vai converter-se-lhe em
martírio!
— A minha Margarida, repetia ele
alheado, meio louco! A minha filhinha adorada! Nunca tive uma alegria que dela
me não viesse! Todos me tratavam mal, só ela gostava de mim e me queria sempre
ao seu lado. Hás de vê-la, meu Henrique, verás se há no mundo uma criança mais
linda, mais mimosa, é uma fada, é uma pérola, é a minha única amiga neste
mundo!
****
No dia seguinte à hora em que uma
brilhante festa de família, uma espécie de baile muito íntimo, reunia nas salas
do marquês todos os parentes, aliados e amigos que vinham solenizar a chegada
da sua filha e herdeira, Tadeu na pequenina sala de jantar de Henrique, dobrado
sobre o peitoril da janela numa postura de desolação e de abandono, soluçava
baixinho, ao pé de Joaninha, que tentava em vão consola-lo.
Estava de casaca, coitadinho;
Joana não seria capaz de rir do desgraçado, mas como a casaca lhe ficava mal!
Tinha-se vestido para assistir ao
jantar.
Antes do jantar não conseguira
ver Margarida.
— A Sra. D. Margarida vinha muito
cansada, estava no seu quarto. Dormia. Não havia maneira de a acordar.
Eis as secas respostas que as
criadas,—aquelas perversas — tinham dado ás suplicas frenéticas do pobre Tadeu.
Enquanto a ir ao encontro dela
como tanto sonhara, não tinha podido.
O seu tio, agora que lhe
descobrira algum préstimo— muito secundário, é verdade, mas um préstimo em todo
o caso — abusava dele horrorosamente.
Tinha-o tornado uma máquina de
fazer contas, contas de somar, de repartir, de multiplicar, o inferno!
Não pudera ir, mas esperava vê-la
logo que ela chegasse, vê-la só, poder beijar-lhe as mãos, a testa, os cabelos,
os pés! Vesti-la toda de beijos como dantes!
E depois sabia que também ela
havia de ter saudades! Que também se havia de lembrar muito do seu amigo, do
seu Tadeu, do seu cão fiel!
Estava impaciente, estava no ar.
Mas quando teve a certeza de que só a veria na sala, foi vestir-se logo,
envergou uma casaca do seu pai que este mandara arranjar para ele, uma casaca
muito larga, já fora da moda, de pano azulado.
Que lhe importava! Ia vê-la!
Vê-la era o céu.
Vinha-lhe à lembrança aquele
ninho de melros que apanhara um dia — sabe Deus com que trabalho — para lhe
dar, e o dia em que ela lhe pedira a lua com um gravidade tão cômica, apontando
para o tanque, e o balouço que ambos tinham projetado fazer, e as historias que
ele lhe contava debaixo do castanheiro à tarde, enquanto a música do piano
suspirava ao longe, e havia no ar uns rumores indefinidos de que ela lhe
perguntava a explicação.
— São os passarinhos que andam a
arranjar-se para se deitarem a dormir dentro dos seus ninhos — costumava dizer
Tadeu.
E ela ria-se virando a cabeça
muito esperta para a cúpula do castanheiro, a ver se descobria como se faz a toilete noturna dos passarinhos.
Entrara, por fim, na sala.
Havia grupos aqui e ali. Graves
políticos que discutiam, financeiros de abdômen volumoso, matronas severas,
rapazes elegantes, e no meio de tudo um bando de raparigas alegres, garridas, a
chilrearem, a rirem e a cochicharem entre si, contentes da nova companheira que
lhes chegava de longe, mas muito mais contentes ainda daquela atmosfera festiva
e perfumada que as envolvia.
No meio desse grupo encantador é
que ela estava de pé.
Um corpo deliciosamente modelado,
de uma graça franzina e toda moderna.
Tinha um vestido de foulard muito justo, muito elegante, e
no meio dos rolos do seu crespo cabelo louro aninhava-se uma rosa vermelha, uma
rosa cor de sangue.
Os olhos azuis, altivos e
desdenhosamente fixos lembravam... Os olhos metálicos da sua mãe.
Pois era aquela a sua Margarida?!
Era.
Não lhe restava a menor dúvida.
Apesar de todas as diferenças tinha-a conhecido logo.
A sua límpida testa de criança um
pouco curta, indício de obstinação e de capricho; a sua boca pequenina, até
alguma coisa dos seus gestos antigos, tudo trouxe ao coração de Tadeu uma
lufada de saudades irresistível.
Correu para ela como doudo,
atravessou pelo meio de toda aquela gente, sem a menor timidez, sem o menor
receio, sem notar sequer o espanto que a sua cômica aparição tinha excitado.
As raparigas que faziam um
círculo em torno de Margarida separaram-se numa súbita explosão de risadinhas,
e ela, olhando muito fixa para Tadeu, exclamou rindo, rindo sem poder mais:
— Ih! Credo, primo Tadeu, que
casaca!... Que figura!... Pelo amor de Deus vá já tirar essa casaca e venha
depois!
E ria, ria sem disfarce, enquanto
ele com os braços quebrados, o rosto estúpido, a fisionomia espavorida, sentia
dentro da sua pobre alma sem
consolo esfacelar-se,
desfazer-se, diluir-se em lagrimas de fel a ultima esperança da sua vida!
****
Três dias depois, Margarida, que
se esquecera completamente daquele insignificante episodio em que Tadeu
figurara, encontrou-o por acaso na Baixa, onde andava fazendo compras com a sua
mãe, ao lado de Henrique, que para o distrair tinha ultimamente fingido
precisar absolutamente da sua companhia.
Margarida saía de uma loja e ia a
saltar ligeira, elegante com a sua graça parisiense para dentro do coupé
delicioso que, de propósito para a filha, o marquês tinha encomendado meses
antes à casa Binder, e que dois finos cavalos ingleses esplendidamente
ajaezados faziam voar pelas ruas da nossa pacata Lisboa.
A vista de Tadeu despertou-lhe
umas poucas de ideias que ainda não lhe tinham ocorrido.
Lembrou se, por exemplo, de que
não o vira mais, desde o instante em que ele se apresentara à frente dela com
uns transportes ridículos e uma toilete
horrorosa, na sala povoada pelas suas novas amigas, tão irónicas, tão
cruelmente maliciosas...
Porque não tornara ela a vê-lo?
Tinha-lhe esquecido perguntar por ele, fora muito ingrata...
E sem raciocinar aquele impulso
estranho, parou, esperou numa atitude de coqueterie
irresistível que os dois amigos se aproximassem, visto que ambos caminhavam na
direção em que ela estava, e estendendo a Tadeu a sua mão esguia e fina, a sua
mão de loura, enluvada de pelica cor de bronze, disse com uma expressão de
finura e malicia intraduzível:
— Então seu ingrato! Não me tem
querido aparecer! Por onde tem andado?
E ficou a olhar para ele, como
quem espera alguma coisa, interrogadora, fascinante, sempre aristocrática.
A marquesa, que já estava dentro
do trem, murmurou levemente enfastiada:
— Então, Margarida, ficamos
aqui?...
E Tadeu corando, balbuciando,
resmoneava confusamente uma banal desculpa.
Margarida saltou por fim o
estribo que o criado conservava desdobrado, envolvendo num olhar magnético dos
seus cintilantes olhos azuis, a bela e viril figura de Henrique de Sousa, que
presenciara mudo aquela cena inexplicável.
****
Uma noite em S. Carlos
estreitava-se uma celebridade lírica na Norma, que então estava muito na voga.
Henrique vivamente instado pela
mãe e pela irmã e também um pouco pelo seu próprio desejo, determinou ir ouvir
a ópera adorável, que é uma verdadeira perola musical.
Havia tempos que ele andava
nervoso e inquieto.
Não sabia bem o que tinha mas
sentia-se mal.
Tinha impaciências nervosas que
nunca tinha conhecido no seu organismo equilibrado e harmônico.
Surpreendia-se ás vezes
doentiamente, a fazer planos impossíveis antes de adormecer; a imaginar quanto
seria bom ser muito rico, viver na alta-roda, naquela esfera aristocrática e
distinta em que se não trabalha, em que se falia de um modo especial e
característico, com termos escolhidos, com inflexões muito mais suaves, com uns
certos desdéns que dantes lhe pareciam ridículos e que lhe estavam agora
parecendo superiormente requintados. Ter um palacete com alguns salões
apainelados em cuja escadaria de mármore povoada de estátuas e de plantas
raras, se aprumassem espadanados lacaios de farda; ter equipagens luxuosas, ter
uma mulher loura, franzina, de testa curta, de olhos piscos, com um sorriso
felino, quase cruel nos lábios vermelhos, e um corpo flexível, delicado, mignon de estatueta de biscuit... Uma mulher que se chamasse
Margarida.».
Neste ponto do seu pensamento,
Henrique suspendia-se como que sentindo a estranha impressão de quem vai
caminhando por uma estrada lisa e de aparências tranquilizadoras, e encontra de
repente, debaixo dos pés, quando menos o espera um reptil desconhecido.
Margarida! Que tinha ele com
Margarida?!
Lembrava-se que a desprezara e
amaldiçoara no dia em que vira chegar a sua casa, pálido, desfeito, com uma
casaca grotesca e uns olhos inchados e vermelhos de chorar, o seu pobre amigo
Tadeu, que na véspera o tinha deixado tão louco de alegria e tão triunfante de
felicidade!
Margarida!
Vira-a depois loura, elegante,
com o seu desdenhoso olhar de míope, subir com ligeireza fidalga o estribo de
uma carruagem, descobrindo os finos bordados das suas saias, o pequeno pé
primorosamente calçado, todo um poema de misteriosas elegâncias.
Nunca mais a vira, nunca mais
desejara vê-la!
Para quê?
Ela lá tão em cima, ele cá em
baixo lidando, tressuando, lutando para alcançar... O que talvez não tivesse
nunca!
Um nome, uma posição, o pão da
sua mãe e da sua irmã, sem amarguras e sem pequenas privações humilhantes!
Naquela noite em S. Carlos a
música sentimental e enervante de Belini, o contacto de todo aquele mundo
ocioso e rico ainda o tornava mais nervoso e excitado. Estava quase arrependido
de ter vindo.
Nisto sentiu que lhe batiam no ombro
e uma voz aflautada, uma voz tremelicante, com inflexões muito alegres,
disse-lhe ao ouvido:
— Anda cá acima, pediram-me para
te vir buscar, para te apresentar; gostam muito de ti! Não imaginas como és
estimado pela minha querida Margarida, desde que soube que tens sido o meu
único amigo, o meu auxílio na vida, aquele a quem mais devo depois dela.
E Tadeu, porque era ele,
arrastava pelos corredores das frisas Henrique surpreendido, contrariado, com
uma estranha sensação de desconforto a comprimir-lhe fortemente o peito.
****
Na frisa, radiante da mocidade,
de fina distinção, com todos os requintes da moda a fazer realçar a sua beleza
moderna, frágil, quebradiça, alguma coisa amaneirada estava Margarida.
A marquesa ao lado dela
conversava com um velho diplomata.
A entrada dos dois a mãe teve um
comprimento um pouco seco, a filha um sorriso de graça adorável, de garridice
inata mas irresistível.
— Quis vê-lo porque soube que tem
sido muito bom para Tadeu, excelente mesmo. Ele contou-me tudo.
Pobre rapaz! Poor dear boy! E sorriu-se outra vez com um aspeto bondoso e
protetor que a transfigurou por instantes.
— Eu tinha-me esquecido, o Tadeu
é que se lembrava de tudo. Fez-me reviver a minha infância. Sempre é bom. Agora
já estou tão velha que acho imensa graça a estas recordações do passado.
E graciosa, maternal, afastando
toda e qualquer ideia que não traduzisse uma solicitude encantadora para o seu
companheiro da infância, Margarida foi o que seria a noiva idealizada pelo
austero coração de Henrique.
E dali em diante o amigo de Tadeu
deixava-se arrastar de oito em oito dias até o palacete dos marqueses.
Era ali otimamente recebido.
Margarida, adorada pelos pais,
dava a lei em casa. Sabiam-na voluntariosa, cheia de caprichos e de fantasias,
tinham medo de irrita-la resistindo-lhe. .
Depois, Henrique com as suas
maneiras de gentleman, com a gravidade desafetada do seu porte, com os
generosos ardores da sua rica organização, revelava-se o que era: um homem de
futuro, um homem que havia de ter nome mais tarde.
O marquês, cínico como a vida o
tornara, era juiz excelente neste assunto.
Conhecia um homem depois de duas
horas de conversação.
As próprias severidades do rapaz,
amolecidas agora ao contacto da perturbadora formosura de Margarida, agradavam
ao marquês como uma coisa nova, picante, inteiramente imprevista para ele.
Tadeu nadava num júbilo celeste.
Era muito bem tratado; Margarida
tinha com ele umas garridices angélicas que ás vezes o deixavam pálido e
sufocado, encostado a uma árvore ou a um banco do jardim para não cair no meio
do chão desfeito em lagrimas.
Tadeu tinha agora de vez em
quando um ódio selvagem à sua mesquinha e enfezada personalidade.
Se ele não fosse como era... Se
fosse alto, esbelto, forte... Pode ser... Tem-se visto tanta coisa...
E também ficava absorto, idiota,
seguindo com um olhar esgazeado umas visões que o iam enlouquecendo.
Ela no entanto vinha alegre,
radiosa, cheia de vida, com o seu vestido de foulard cor de carne a
desenhar-lhe as formas flexíveis, com uma rosa nos seus cabelos louros,
dava-lhe o braço, e arrastava-o enlevado e estúpido pelas alamedas do jardim.
— Conta-me lá o que tu fazias
quando eu cá não estava! Conta-me em que pensavas. Estavas muito triste? Quando
é que viste pela primeira vez o teu amigo Henrique? Que lhe dizias tu de mim? E
ele?... Ele que ideia fazia desta endiabrada pessoa que tu lhe descreveste
tanta vez com a tua fantasia de poeta — porque tu quando se trata de mim és
poeta, meu pobre Tadeu! — Anda, falia, conta-me o que vocês faziam, gosto tanto
de te ouvir!
E toda dobrada sobre o ombro
dele, meiga, elétrica, fascinadora, com meneios de serpente, levava horas
passeando pelo braço de Tadeu.
***
Um ano depois desta época,
Margarida declarava terminantemente aos pais que voltava para França, que ia
morrer freira no convento onde vivera educanda, se eles a não casassem com
Henrique.
E dizia-lhes estas palavras numa
tal violência de gritos e de soluços, tão magra, tão empalidecida naquela lacta
intima de doze longos meses, que o marquês encolheu os ombros com a suprema
indiferença que fazia dele um viveur,
e que a marquesa animada pela placidez do marido ao encarar esta questão magna,
declarou à filha, hoje seus únicos amores, que ia fazer tudo para lhe dar o
noivo da sua alma, o escolhido pela sua ardente paixão juvenil.
Teve medo de ver a filha definhar-lhe
e morrer-lhe nos braços. Via-a tão abatida, tão triste, tão enfastiada da vida,
que a ideia de perdê-la sobrelevou a todos os seus escrúpulos de rica e de
fidalga.
Margarida autorizada pelos pais
pôde dizer a Henrique, que o amava!
Quanto amor! Que entusiasmo
febril neste sublime impudor da criança opulenta, formosa, aristocrática,
disputada por dezenas de noivos tão ricos e tão nobres como ela, que vem
espontaneamente oferecer a sua mão e a sua vida inteira ao obscuro plebeu que
passa confundido no meio das multidões desconhecidas!
E esse impudor, ninguém mais
fidalga e altivamente do que Margarida o soube ter.
Sabia-se adorada, estremecida,
sabia que um riso dela bastaria para as alegrias e para as torturas de uma
semana passada por Henrique na labutação da sua mesquinha existência; mas sabia
também que ele era tão grande, tão forte, tão orgulhoso e digno que podia
morrer, mas que morreria calado, sem que uma palavra revelasse o seu martírio!
— Tadeu, meu querido Tadeu, meu
amiguinho, tenho sido muito má, não tenho querido contar-te nada com medo de
que lhe dissesses a ele alguma coisa. Eu queria ser a primeira a dizer-lho,
queria gozar do seu sorriso, do seu olhar de anjo, de mártir beatificado, do
seu olhar que me enlouqueceu para sempre... Agora digo-te, já não tenho motivo
nenhum para to esconder.
Vou casar-me, vou ser dele, só
dele... Levar-te-ei conosco... Olha que foi ele que mo pediu.. . Vê como ele é
bom. Eu a falar a verdade estava tão doida que nem me lembrei de semelhante
coisa; mas ele falou logo em ti, foi a sua primeira vontade! Adoro-te visto que
ele é teu amigo. Hás de aborrecer-me ás vezes, meu pobre Tadeu, porque nunca
entendes a tempo quando deves ir-te embora, mas eu hei de educar-te. Verás!
Viveremos todos três. Nunca mais te hei de tratar mal! Nunca mais me hei de rir
da tua casaca. E, a propósito, tu ainda a tens, aquela malfadada casaca? Não me
faças rir no dia do meu casamento, pelo amor de Deus manda fazer uma nova para
esse dia. Não tenhas medo de gastar. Eu tenho muito. Sou rica, muito rica,
somos todos três muito ricos.
E doida, anelante, no delírio da
criança que venceu a sua primeira teima, na dilatação ampla de uma alma que
conquistou o seu desejo supremo, Margarida expandia nestas palavras difusas
incoerentes, sem nexo, toda a felicidade que era hoje dela e que julgava
eterna.
Tadeu escutava com o olhar morto
e vidrado de um sonâmbulo.
Depois emudecido por uma dor
aguda que lhe rasgava as carnes de todo o seu corpo como um punhal de muitas
lâminas, saiu do quarto cambaleando como um ébrio.
No dia do casamento de Henrique
houve dois seres que na humilde tristeza de uma pobre casa, choravam unidos
todas as lagrimas da sua alma.
A um desses seres pungia-o uma
angústia dilacerante demais para que a palavra humana a pudesse traduzir.
A outro sobressaltava-o um
pressentimento horrível, como que um dobrar de finados que lhe ecoava lá
dentro, e ao qual não podia fechar os ouvidos.
Esses dois seres esquecidos,
voluntariamente afastados das pompas principescas daquele dia, das festas
daquela solenidade esplendida eram Tadeu e a irmã de Henrique.
****
De feito há já cinco anos que
viviam juntos numa casa espaçosa e lindíssima de Buenos-Aires.
Henrique pedira com tão meigas e
sentidas palavras a Tadeu para que ele os não deixasse, que depois da viagem de
rigor feita pelos noivos à Suíça e à Itália o bom cão fiel foi viver junto
deles.
As investigações da ciência, o
estudo paciente dos homens e das coisas, altas aspirações inspiradas pelo
marquês a uma gloriosa carreira política, absorviam Henrique, enquanto que
Tadeu mais amadurecido agora pela experiência da vida, administrava a casa,
tomava contas aos feitores e criados, punha em ordem os pagamentos, recebia os
rendimentos, pagava aos fornecedores, era por assim dizer o mordomo-mór da opulenta
fortuna da sua companheira de infância.
Margarida continuava a ser o
enlevo e o mimo de quantos viviam junto dela.
De uma organização delicada,
nervosa e vibrátil, com um aspeto infantil, que infundia uma vaga e doce ideia
de proteção; boa, desta bondade superficial e egoísta, que consiste em não
gostar de ver ninguém triste ao pé de si, todos os seus caprichos se convertiam
noutras tantas graças, todas as suas exigências se impunham com a tirania
adorável de uma súplica!
O marido tinha por Margarida
aquela paixão deletéria e quase covarde, que ela lhe inspirara logo no primeiro
dia.
Não sabia resistir senão a muito
custo, a um olhar daqueles olhos úmidos e radiantes, a um sorriso daqueles
lábios vermelhos, a um gesto daquelas mãos finas, esguias, pálidas, da suave
palidez dos lírios.
Não era bem amor, era uma
fascinação, uma embriaguez, uma destas doenças que exercem no cérebro a sua
ação paralisadora.
Margarida que nenhuma força
superior tentava dominar, dera expansão completa a todos os caprichos da sua
colorida e quente fantasia.
Adorava o luxo, as coisas de
arte, a música, as flores raras, frequentava muito o alto mundo onde era
requestadíssima, vivia na perpétua idolatria de si própria, que a pouco e pouco
a inutilizava para os graves deveres da vida.
Tadeu no meio da sua cega e
embrutecedora adoração obedecia-lhe como um escravo. Só ele sabia as despesas
colossais, as extravagâncias principescas daquela pequenina pessoa, ativa,
graciosa, fantasista como um poeta oriental.
Mas economizava ridiculamente em
todas as verbas, para que ela, a rainha, a perola, a Margarita dos seus sonhos
de outro tempo não franzisse um minuto a sua testa curta, a sua testa de
teimosa, na contrariedade de um desejo insaciado.
E ela estava tão habituada à
submissão e à humildade daquele pária, que o tratava como um traste, um objeto
seu, com o qual não tinha de mostrar o mínimo constrangimento, a mínima atenção
afetuosa.
— Tadeu, quero isto! Tadeu, quero
aquilo! Tadeu, vi hoje na loja de F. um adereço de um conto de réis. Se o não
mandar buscar até amanhã vendem-no. Eu quero-o. Não me deixes ficar sem ele.
Fazias-me chorar!
Não lhe pedia a lua como em outro
tempo, mas quantas vezes lhe pedia coisas quase tão inacessíveis como a lua!
Margarida tinha dois filhos. Um
menino e uma menina. Dois querubins.
Mais meigos do que a mãe nunca
fora, mais dóceis, mais tranquilos, tendo no olhar a serenidade melancólica do
olhar do seu pai!
Tadeu envelhecido, de uma velhice
precoce que assombrava os que o tinham conhecido na infância, tinha por essas
duas crianças um louco amor de avô.
Aqueles quatro seres eram a sua
vida.
Fundia-os a todos na mesma
adoração apaixonada e tímida.
Vivia deles e para eles.
Henrique era o seu respeito.
Margarida o ídolo do seu passado, os dois querubins louros, a única esperança
suave do seu futuro.
Sacrificar-se, esquecer-se,
abnegar de si, eis o modo obscuro e sublime pelo qual ele sabia querer!
Mas os dois pequeninos que não
eram turbulentos nem cruéis, tinham nas suas caricias inconscientes o balsamo
poderoso, o balsamo divino para as chagas ocultas daquele coração que a vida
ulcerara tanto e tanto.
****
Desde algum tempo que Tadeu
andava inquieto.
Com o seu faro finíssimo de
rafeiro fiel pressentia no ar um perigo desconhecido, alguma coisa de
misterioso e de sinistro, que ouvia rugir ao longe como no fundo de uma
voragem.
Na aparência todos viviam
tranquilos:
Henrique sempre bom, sério,
pensativo, de uma indulgência de forte, de uma doçura de herói.
Margarida sempre buliçosa,
inquieta, cheia de desejos infantis, de caprichos, de alegrias ruidosas ou de
melancolias súbitas que ás vezes no silêncio da sala fofa e discreta pareciam a
Tadeu um grito de alarme na monotonia do deserto.
As criancinhas... Sempre os seus
mais doces amores, aqueles de que nunca lhe proviera uma amargura.
Quando Tadeu pensava que podia um
fatalidade qualquer separa-lo dos seus dois anjos, desatava a chorar como um
perdido na solidão do seu quarto.
****
Ele estava sentado ao pé da mesa.
Primeiro estivera fazendo contas, as despesas da casa, agora pendia-lhe a
cabeça embevecido num vago pensamento.
Sem saber explicar porquê,
naquele dia lembravam-lhe tantas coisas do seu passado!...
Sentia dentro de si uns vagos
assomos de revolta, lembrando-se das humilhações que padecera, dos tratos com que
lhe tinham enfraquecido o corpo e atrofiado a inteligência. Depois... Na sua
vida, até ali obscura e dolorosa, surgia de repente envolta nas rendas brancas
do seu berço uma visão deliciosa, uma pequena fada, a sua amiguinha, a sua
Margarida f...
Como fora feliz com ela e por
amor dela...
Contudo... Pensando bem... Para
essa felicidade quimérica fora ele quem fornecera todos os elementos. Ela nunca
vira no pobre Tadeu senão um instrumento dos seus caprichos, um escravo das
suas vontades...
Em todas as delícias com que
dourara a sua vida não havia uma só que fosse nascida da vontade de ser-lhe
boa, útil, consoladora!...
— E verdade, murmurava o pobre
doudo, é verdade! Ela nunca teve coração!
E suspendeu se como que aterrado
daquela blasfêmia.
Neste momento Margarida entrava
pelo quarto de Tadeu, pálida como um cadáver, com os grandes olhos dilatados
numa expressão de indescritível pavor.
Agarrou-se-lhe ao braço e disse
lhe baixo, numa voz estrangulada e rouca:
— Henrique chegou da quinta. Eu
não o esperava. Contava que ele viesse amanhã. No meu gabinete há uma pessoa
que deve sair sem que o meu marido a veja. Ouves? Estou perdida... Estava
perdida mas lembrei-me de ti… Salva-me...
— Não me digas nem uma palavra —
prosseguiu vendo que ele ia falar. —Uma demora de segundos perde-me sem
remissão.
E saiu com o seu passo miudinho,
o seu passo chic, aprendido de
passagem nos boulevards de Paris.
Tadeu saiu do quarto, e quando
voltou a entrar ali, acompanhava-o um rapaz muito pálido, de bigode louro,
cabelo cuidadosamente frisado e toilette
irrepreensível.
Não trocaram uma palavra. Tadeu
apontou-lhe para uma cadeira, fechou a porta do quarto à chave e sentou-se
junto da janela, que dava sobre o jardim.
Era em plena primavera. Pela
janela aberta entrava um perfume vago e subtil, um perfume de rosas, de
madressilva e de baunilha em flor.
Ouvia-se o rir e o chilrear das
duas crianças, e entre as ramarias entrelaçadas dos grandes arbustos exóticos,
Tadeu viu passar com os seus meneios serpentinos, o seu vestido branco, a sua
cabeladura douro, a figura esbelta de Margarida pendida ao braço do esposo com
quem falava baixinho.
Foi a última visão que teve dela.
Uma visão de perfídia felina e de
felina formosura.
****
— Deixe-se estar quieto. Não vê
que não pode sair deste quarto senão à noite? Pronunciou a voz enrouquecida de
Tadeu.
E sem dar mais atenção ao seu
odioso hóspede, pôs-se a arranjar papeis, uma trouxa de roupa, algumas velhas
relíquias, os retratos dos seus dois pequeninos, dos seus netos como ele lhes
chamava»
Depois despregou da parede as
duas fotografias de Henrique e de Margarida. A dele beijou-a, e guardou-a com
as dos pequeninos. A dela... Aproximou-a de uma vela que acendera e deixou-a
arder até que ficaram só cinzas. Estava medonhamente lívido.
Era noite: sentiu o rumor
conhecido da hora de jantar, esperou que o criado viesse chama-lo e
respondeu-lhe:
— Diga aos senhores que jantem.
Eu hoje estou convidado fora, não os posso acompanhar.
Olhou para o homem que ali estava
na mudez estúpida dos malvados, que são ridículos, e disse-lhe:
— Venha daí.
Saíram juntos.
Tadeu nunca mais voltou; não
pôde.
Pediu a esmola de um agasalho à
irmã de Henrique, e achou meio de fazer num escritório cópias que lhe rendem
três tostões diários!
Disso come e disso se veste.
Fingiu-se ofendido com Henrique
por uma dúvida mesquinha de contas, que este nunca chegou a perceber.
Aceitou o papel degradante do
ingrato que morde a mão que o socorreu.
Ninguém pôde nunca arrancar-lhe
nem uma palavra do seu segredo.
Tem 35 anos e dão-lhe setenta.
As poucas pessoas que o veem ou o
desprezam por ser absolutamente insignificante ou têm por ele a comiseração que
inspira um idiota.
---
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Nota:
Maria Amália Vaz de Carvalho: "Contos e Fantasias" (1880)
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