O ARREPENDIMENTO
Em tempos da minha mocidade
costumava visitar a miúdo uma boa velha, minha vizinha, que me honrava com a
sua estima e amizade. Humildemente confesso que não há sociedade mais deleitosa
e agradável, do que a de uma mulher que soube envelhecer. A sua conversação
instrutiva e divertida, é um inesgotável tesouro de lembranças, anedotas,
observações chistosas e reflexões circunspectas, é finalmente uma revista do
passado.
D. Mafalda, deixem-me assim
chamar-lhe, juntava à amenidade da conversa, a do caráter, que era brando e
indulgente.
Quando tinha ocasião de ir passar
uma noite com ela, parecia-me que as horas voavam ligeiras e que corriam mais
rápidas, do que quando as gastava a distribuir finezas e galanteios ás mais
formosas rainhas dos mais brilhantes salões. Era sempre com vivo pesar que a
via apontar para o relógio, indicando-me que a hora de me retirar tinha
chegado, e voltava a minha casa com o espírito mais rico, e o coração
satisfeito e melhor.
A historia que vou contar-vos,
minhas caras leitoras, foi-me dita por D. Mafalda num destes serões em que vos
falei.
Era numa bela noite de Junho; fui
encontra-la sentada na sua cadeira à Voltaire, tendo aos seus pés, deitado num
cochim, o seu cãozinho querido; os olhos tinha-os semi-abertos, um sorriso nos
lábios, e parecia respirar com prazer a aragem, que, embalsamada pelas flores
do jardim, se coava pela janela meia aberta. Quando cheguei junto dela vinha
indignado porque um dos meus parentes tinha sido vitima de um abuso de
confiança; contei-lhe o sucedido, e no calor da narração não poupei ao culpado
as maiores imprecações, nem deixei de lhe dizer que desejava fazer-lhe todo o
mal possível.
— Devagar, meu querido amigo-me
disse ela-não o julgava tão irascível, nem que tivesse tão pouca caridade para com
o próximo. Sabe lá, se, com a vida, não tiraria ao culpado o mérito de para o
futuro se poder reabilitar pelo arrependimento, e se o momento em que lhe
infringisse o castigo não seria o destinado por Deus para esse arrependimento?
— Eis-aí, minha cara vizinha, uma
doutrina, permita-me a expressão, um pouco subversiva da ordem social.
— Deus me defenda — replicou-me —
de querer que o culpado não seja castigado, e que a sociedade fique indefesa
dos crimes que um seu membro praticou contra ela; quis dizer somente que devia
deixar ás leis o cuidado de castigar o delinquente, e que o meu querido amigo,
não devia, como individuo, fechar assim desapiedadamente o coração a todo o
sentimento de comiseração por um desgraçado e infeliz, no coração do qual
talvez ainda bruxelei algum clarão de virtude, que uma ocasião favorável e
propicia, que se apresente, ainda pode despertar, e fazer com que esse membro
da sociedade, que julga inútil, se torne bom e aproveitável.
Como eu respondesse a isto,
fazendo um destes movimentos de cabeça, que são um protesto mudo e respeitoso,
ela acrescentou:
— Está com paciência para me
aturar ouvindo uma historia, pois que ainda temos algumas horas?
Não recusei: uma historia era uma
fortuna para combater a exaltação de espírito em que estava.
D. Mafalda começou assim:
— Emílio da Cunha era o mais
velho de três irmãos, dos quais, o mais novo, vivia há muitos anos no Rio de
Janeiro, onde tinha alcançado fortuna. O segundo nunca deixou o Porto, sendo
sempre infeliz nos seus cometimentos e especulações. Emílio da Cunha, à custa
de muito trabalho e economias, pôde alcançar uma fortunazinha, que lhe permitia
esperar com sossego, o momento de descansar da vida laboriosa em que tinha
vivido.
Uma quarta pessoa completava esta
família, que era uma irmã, que tendo seguido o seu marido à India, para onde
ele tinha sido despachado, e não vindo nenhum deles a figurar nesta minha
historia, não lhos recordarei mais.
Aconteceu que o irmão de Emílio
da Cunha, que residia no Porto, por uma destas catástrofes que ocasionam os
jogos de bolsa, faliu. Teve tal sentimento por este fato, que faleceu três dias
depois, atacado de uma febre cerebral. A herança, que deixou, foram dividas e
um filho.
Emílio da Cunha, que tinha um
coração bondoso, e um caráter pundonoroso, para que a memória do seu irmão não
ficasse desonrada, comprometeu-se a pagar as dividas e recolheu na sua casa o
filho para lhe substituir o pai, que tinha perdido; procedimento louvável, e
digno de se admirar, sabendo-se que ele tinha uma filha, para quem, passados
quatro ou cinco anos tinha a procurar um casamento vantajoso.
Roberto, se chamava o sobrinho de
Emílio da Cunha, tinha já 15 anos de idade, mas o pai, inteiramente entregue ás
especulações, e aos cuidados, que elas trazem consigo, descuidou completamente
a sua educação, por isso o seu retrato moral, nesta ocasião, nada tinha de
vantajoso; o espírito tinha-o completamente inculto; as noções que possuía do
justo e do injusto eram as mais errôneas e disparatadas; o respeito aos
direitos de outrem era para ele uma invenção estúpida dos homens, condenada
pela natureza, e a verdadeira liberdade consistia em fazer o mal impunemente.
Se algum bom instinto, ou algum vislumbre de virtude, existia no coração de
Roberto, ainda estava em embrião, porque se não tinha demonstrado. Quantas e
quantas vezes, em quanto que o pai, cego pelas especulações, concentrava todas
as suas faculdades intelectuais na realização de um impossível, não deixou
Roberto de ir ao colégio, fazendo o que em termo escolar, se chama gazear, e
gastava as horas de estudo em andar a vagabundear pelos campos e praças. Dai
proveio o tomar relações com meia dúzia de garotos, ou vadios, permita-me a
frase, para quem nada era sagrado nem nas ações, nem nas palavras. Dai nasceu a
falta de respeito pela propriedade alheia, roubando os pomares; e o
endurecimento de coração, castigando barbaramente animais inofensivos.
Emílio da Cunha reconheceu logo
os maus instintos de que o seu sobrinho era dotado, e a desmoralização, que já
se tinha infiltrado no seu coração, mas concebeu a esperança do regenerar com
desvelos, paciência, e sobre tudo bons exemplos. A sua filha, a que chamarei
Valentina, de 14 anos de idade, contribuiu poderosamente para a realização
deste seu empenho, tão justo e louvável. Era uma menina para quem a natureza
tinha sido prodiga em encantos de rosto, de espírito e coração, a ponto de
qualquer que a via a admirar, e de quem a ouvia ama-la imediatamente. Tinha uma
tal influencia, ou magia sobre os que se acercavam dela, que aos bons tornava-os
melhores, e aos maus fazia-lhe retirar envergonhados para o fundo do coração os
maus instintos. Esta magia não teve menos poder sobre Roberto, do que sobre os
outros, de sorte que a regeneração que ele sofreu, nos seus costumes e ações,
foi tão sensível, que o bondoso Emílio da Cunha revia-se alegre e contente na
sua obra, e congratulava-se dos resultados que tinha colhido.
Deu-se porém uma circunstância
feliz, mas que ao mesmo tempo foi desgraçada, que deteve Roberto repentinamente
na boa estrada em que se tinha embrenhado, e na qual parecia caminhar
resolutamente. Por uma carta chegada num dos paquetes ingleses do Brasil, soube
Emílio da Cunha, que o seu irmão mais novo tinha falecido, deixando-o, por ele
ser o seu mais próximo parente, herdeiro de uma fortuna considerável.
Bens rústicos, e estabelecimentos
industriais é no que consistia a fortuna, dos quais se poderia colher bons
lucros, sendo bem geridos, conforme o tinha praticado o seu defunto
proprietário; mas Emílio da Cunha, além de se não julgar com conhecimentos e
forças para bem gerir a industria com que o seu irmão tinha feito fortuna, não
tinha desejo, nem queria expatriar-se. Foi até com imensa repugnância que se
resolveu a ir ao Brasil tomar posse e liquidar a herança; parecia que um secreto
pressentimento o avisava do que tinha de acontecer, levando-o a considerar como
uma desgraça esta viagem, a que os sagrados direitos da sua predileta filha
Valentina, o obrigavam a empreender.
Partiu finalmente, depois de ter
tomado todas as precauções para a tranquilidade do seu espirito. Valentina
entrou num dos colégios de educação mais acreditados do Porto, e Roberto ficou
numa casa particular, onde lhe deviam prestar todos os cuidados, que exigiam a
sua idade, pois que já então tinha 17 anos, e a sua completa ignorância, de que
até uma criança de 8 anos poderia zombar.
Emílio da Cunha aportou a
salvamento ás terras de Santa Cruz, e logo que saltou em terra, desenvolveu a
maior atividade, e procurou por todos os meios possíveis abreviar rapidamente
os seus negócios, mas infelizmente os resultados não correspondiam aos seus
esforços e desejos, porque de todos os lados, e a todos os momentos estavam
sempre a surgir empecilhos e embaraços não prevenidos nem esperados. Havia já
um ano que Emílio da Cunha tinha chegado ao Brasil, e ainda os seus negócios
não estavam mais adiantados, que no primeiro dia.
Cansado, desanimado e afetado de
melancolia, ou spleen, como lhe chamaria um nosso fiel aliado britânico,
mortificado por um desassossego de que não podia explicar a causa, deliberou
entregar os seus negócios e a liquidação e arrecadação da herança a um
procurador, e embarcar-se no primeiro paquete, que seguisse viagem para
Portugal.
Que se tinha porém passado no
Porto, durante este tempo?
É o que lhe vou contar, meu
vizinho, se ainda tiver paciência para me ouvir, me disse D. Mafalda, e o que
vou fazer ás minhas leitoras, se elas quiserem ter a mesma paciência de me ler.
Roberto, separado da sua prima,
aborrecido e dominado pela preguiça, fugiu um belo dia da casa onde se achava
hospedado, foi procurar, e infelizmente encontrou, os seus antigos companheiros
da vadiagem, que tinham quase todos seguido a estrada do vicio e do crime.
Arrastaram portanto consigo o desventurado Roberto para esse despenhadeiro, na
baixa do qual se encontra a escoria da sociedade. Roberto tinha por
companheiros habituais homens criminosos, de cara sinistra, maneiras brutais,
linguagem grosseira e vestidos esfarrapados, numa palavra mendigos, ou ladrões.
Adotou-lhe portanto os costumes as maneiras e as máximas, e quem o visse
emagrecido pela devassidão, com os vestidos em desalinho, os cabelos eriçados,
tomá-lo-ia por um bandido de trinta anos, quando ele não tinha mais que dezenove
incompletos. Valentina, pelo contrario, tinha crescido em corpo, beleza, espírito,
talento e virtudes.
Conduzi-o do Porto ao Rio de
Janeiro, e do Rio de Janeiro ao Porto, agora, querendo-me seguir, levá-lo-ei a
Lisboa, onde se passa um pequeno episodio desta muito verídica historia.
De bordo de um paquete inglês,
chegado dos portos do Brasil, tinha desembarcado um passageiro, que se dirigiu
a um hotel para descansar, e aí passar até ao dia seguinte, em que devia seguir
viagem para o Porto, na mala-posta, a fim de se vir unir aos seus filhos, que
estava ansioso por abraçar e apertar contra o coração. Julgo desnecessário o
dizer-lhe, pois me parece já o adivinhou, que este viajante era Emílio da
Cunha, que se considerava feliz por pisar o solo da sua pátria, que tanto
amava, e onde estava tudo o que ele mais presava neste mundo. Logo que no hotel
lhe prepararam o quarto e tomou uma pequena refeição, deitou-se e adormeceu,
embalado por sonhos felizes.
No dia seguinte ainda o sol mal
tinha despontado, já subia pela escada do hotel e entrava no corredor comum, sobre
o qual deitavam uma dúzia de portas de quartos, um homem de má catadura. Era um
destes cavalheiros de industria, a qual consiste em entrar, sob qualquer
pretexto, de manhã cedo nos hotéis, e aproveitar-se do primeiro quarto que
encontram aberto para empalmarem destramente um relógio, ou uma mala, se o
acordar do hospede ou locatário do quarto, os não obriga a retirar-se de mãos
vazias, desculpando-se de que se tinham enganado na porta.
No andar, vacilante, e como
desconfiado, do cavalheiro de indústria se reconhecia facilmente, que era um
noviço, que ia tentar os seus primeiros ensaios, ou que ia fazer a sua primeira
escamoteação.
Depois de ter estado por bastante
tempo em luta com a sua consciência, e irresoluto se devia ou não penetrar no
quarto de que a porta se achava meia cerrada, meteu primeiro a cabeça, depois
uma perna, e por último todo o corpo; mas fazendo algum ruido com este último
movimento, o hóspede, que estava deitado, acordou, e virando rapidamente a
cabeça, Roberto, porque o cavalheiro de indústria era ele, encarou o seu tio Emílio
da Cunha. Ficou estupefato e como fulminado por um raio.
Nesse mesmo dia de tarde Emílio
da Cunha tomou lugar no caminho de ferro até ao Carregado, e aí na mala-posta
até ao Porto, onde trinta e seis horas depois se achava nos braços da sua
querida filha Valentina, que imediatamente tinha ido procurar ao colégio.
— Tu sabes já, já do colégio,
minha filha-lhe diz Emílio da Cunha-para retomares, e nunca mais deixares, o
teu lugar ao meu lado.
— Que felicidade-exclamou
Valentina toda alegre e folgazã-que vida sossegada e feliz não vamos passar
todos três, não é assim meu querido pai, porque Roberto também vai para a nossa
companhia?
— Roberto, morreu-respondeu
Emílio da Cunha com rosto severo, e voz soturna. — Não quero que me fales mais
nele, entendes Valentina?
Valentina admirada da resposta,
ainda fez diversas perguntas ao seu pai, mas a todas elas não obteve outra
resposta, senão a completa proibição de nunca mais lhe falar em Roberto.
Ainda porém não tinha Emílio da
Cunha sofrido todas as provações, que Deus lhe destinara. Tinham decorrido seis
meses desde que tinha chegado do Rio de Janeiro, quando recebeu a participação
de que o procurador, que ficara encarregado da liquidação e arrecadação da
herança, tinha cumprido a sua missão, mas que, depois de ter arrecadado a soma
importante, que produzira a mesma herança, tinha desaparecido, sem que as
pesquisas feitas para se descobrir o lugar do seu refugio, tivessem dado o
desejado resultado.
Emílio da Cunha ficou completamente
arruinado por este fato, porque, impaciente por satisfazer os credores do seu
irmão, pai de Roberto, tinha vendido tudo o que possuía em Portugal.
O golpe foi forte, mas ainda
assim não o foi bastante para poder subjugar a coragem do bom e respeitável
velho, mostrando-se Valentina nesta conjuntura, digna filha de um tal pai.
Renunciando heroicamente ás
comodidades da vida, em que até então tinham vivido, foram habitar, num bairro
mais afastado da cidade, uma pequena casa, na qual sofreram privações diárias e
penosas, tratando sempre de obter alguns recursos para a sua subsistência,
mesmo em trabalhos mal retribuídos.
Valentina, que Deus tinha dotado
de bom gosto, e bastante habilidade, começou a trabalhar para uma modista, a
qual satisfeita com os seus primeiros trabalhos, lhos deu em seguida mais
delicados e por isso melhor retribuídos, o que foi para eles uma grande
felicidade, e que assim lhes proporcionou meios lícitos de pagarem regularmente
o seu aluguel, e de já não recearem tanto nem o frio, nem a fome.
Valentina ia entregar a sua obra
à modista, a qual satisfeita com ela lhe dava sempre mais, e muitas vezes mais
do que a que ela podia fazer. A uma crise terrível tinha-se seguido uma
abastança medíocre, que era por isso uma felicidade mais agradável e estimada.
Decorreram assim dois anos.
Um dia, em que Valentina estava
só, lhe entregou o carteiro uma carta, e qual não foi a sua surpresa quando
reconheceu a letra do seu primo.
Roberto contava nesta carta tudo
o que tinha passado, desde o momento em que o vimos no hotel em Lisboa
preparando-se para escamotear o seu tio. Fulminado pela vista de Emílio da
Cunha tinha recobrado os sentidos para na fuga se salvar ás imprecações de
indignação do velho. Chegou ofegante ao
Terreiro do Paço, onde se sentou,
ou melhor se deixou cair num dos assentos de pedra, que ali se acham, e assim
esteve por muito tempo, com a cabeça escondida entre as mãos, mergulhado em
acerbas e cruéis reflexões.
Experimentou ou sentiu dentro em
si uma completa revolução; o seu procedimento indigno e infame se lhe
apresentou em toda a sua nudez e hediondez; teve horror de si mesmo e por um
instante pensou em suicidar-se; mas com o arrependimento entraram-lhe no
coração sentimentos mais generosos. Lembrou-se que, tendo dora avante uma
conduta honrosa e ilibada, ainda poderia chegar a fazer esquecer os seus erros
passados, e reanimado por esta feliz lembrança, que o seu anjo bom lhe tinha
sugerido, levantou-se resoluto a trabalhar para a sua reabilitação, e a não
descansar sem a ter chegado a alcançar.
A ocasião favorável não se fez
esperar muito, porque um capitão de um navio mercante, que estava aparelhando
para a Califórnia, lhe concedeu passagem gratuita, mediante os seus serviços e
o seu trabalho na viagem.
Aportou Roberto à Califórnia e
sorrindo-lhe a fortuna, em lugar de se embrenhar no jogo, arriscando assim as
suas economias, fundou um estabelecimento, que ia prosperando, faltando
unicamente para a sua felicidade se tornar completa, o obter o perdão do seu
tio, e a esperança de poder tornar a ver sua prima, cuja imagem tinha
constantemente na ideia, e o sustentava e animava nesta nova estrada de
trabalho e ordem, de que não pensava mais em se desviar.
Eis aqui em resumo o que continha
a carta que Roberto dirigiu a sua prima.
Valentina muito comovida, mas
gostosa e alegre por ter de dar tão grata noticia ao seu querido pai, esperava
ansiosa a sua volta.
Mal lhe deu tempo de sentar-se,
ia logo a contar-lhe o sucedido, mas, Emílio da Cunha a deteve, apenas tinha
pronunciado a primeira palavra. Valentina insistiu, mas o velho levantou-se com
a maldição nos lábios; ela lançou-se-lhe de joelhos aos pés, chorou, suplicou,
mas ele a tudo ficou impassível e inflexível.
Valentina consternada respondeu à
carta do seu primo descrevendo-lhe o sucedido, e a inutilidade dos seus
esforços; mas para o não desanimar prometia-lhe de os renovar, e que os
repetiria até que chegasse a mover o seu pai à comiseração e piedade, de que
não desesperava. A carta continha também a descrição de todos os sucessos, que
se tinham dado desde que Roberto tinha desaparecido; a decadência de Emílio da
Cunha, a pobreza em que tinham vivido em quanto que o seu trabalho mal
retribuído lhe dava parcos meios de subsistência, e o melhoramento da sua
posição, finalmente continha também algumas palavras de exortação e amizade.
A situação de Emílio da Cunha e a
sua filha sofreu, passado algum tempo, uma modificação muito mais inesperada,
do que a que se havia seguido ao aniquilamento da sua fortuna.
Emílio da Cunha foi chamado a
casa de um capitalista, aonde lhe entregaram 20 contos de reis de que um anônimo
lhe mandava dar posse a titulo de restituição. Donde tinha vindo este dinheiro?
Emílio da Cunha pensou muito
naturalmente, que o procurador que o tinha roubado, mortificado pelo remorso, e
querendo sossegar um pouco a sua consciência, lhe tinha mandado entregar aquela
quantia, como uma parte da restituição, que lhe tinha a fazer. Valentina estava
muito longe de concordar com a opinião do seu pai, mas nem por isso teve a franqueza
de lho declarar, nem lhe dar a entender qual era a sua.
Qual das duas opiniões era a
verdadeira, é o que nos não importa saber, o que se sabe é que a abastança ou
decência tinha reentrado em casa de Emílio da Cunha, e as ideias do digno e
honrado velho, foram-se tornando mais brandas sob a influencia do bem-estar.
Foi ele próprio que num dia falou
primeiro a Valentina no seu primo Roberto, e ela não perdendo esta ocasião tão
propicia, que se lhe oferecia, advogou por muito tempo, com calor e eloquência,
a causa do seu primo. Emílio da Cunha deixou-a falar como e todo o tempo que
ela quis, sem lhe dar a mais pequena resposta, nem lhe replicar a coisa alguma.
Estaria ou não convencido?
A pergunta não tinha muito fácil
resposta, mas pelo menos tinha ouvido sem cólera e com sossego as alegações a
favor do seu sobrinho, o que já era um bom indicio da mudança que nele se havia
operado.
Valentina, contente e satisfeita
com o resultado do seu primeiro cometimento, escreveu imediatamente ao seu
primo informando-o do que havia, e a esta carta seguiram-se outras muitas,
noticiando-lhe sempre algum novo passo dado na estrada da reconciliação.
Aconteceu um dia que Emílio da
Cunha, no meio de uma conversa, que tinha seguido num objeto muito diverso,
parasse precipitadamente para dizer a sua filha:
— Tu acreditas sinceramente no
arrependimento do teu primo?
— Oh! sim, meu pai — apressou-se
em responder Valentina.
— Queira Deus que te não enganes.
Um outro dia acordou de uma
pequena sesta, que se tinha seguido ao jantar, gritando, como se continuasse
uma conversa começada:
— Ah! se Roberto estivesse
arrependido realmente, como tu o supões, com que prazer e alegria…
Não terminou a frase, mas a
expressão benévola da fisionomia de Emílio da Cunha indicou a Valentina o complemento
da ideia.
Isto foi objeto para uma ultima
carta a Roberto, a que ele respondeu, e fechou-se a correspondência.
Uma manhã Emílio da Cunha
achava-se com Valentina num a pequena, mas elegante sala, que deitava sobre o
jardim porque eles tinham deixado a sua pobre morada, trocando-a por outra mais
decente-Emílio da Cunha sentado junto de uma mesa, sobre a qual se achava uma magnífica
jarra de flores, olhava sorrindo para Valentina, que, de pé, junto de um
açafate em que estavam dois pombinhos, repreendia, acariciando-o, um deles:
— Eis-te aqui, meu belo fugitivo
— dizia-lhe ela — pensavas que era só voltar para te ser concedido o perdão,
depois de me teres feito sofrer com a tua ausência e ingratidão? Muito bem;
visto que o teu regresso prova um arrependimento sincero, perdoo com prazer;
não é assim, paizinho — acrescentou ela com voz meiga e levantando os lindos
olhos com uma expressão de candura para Emílio da Cunha — que se devem receber
os filhos pródigos, que regressam arrependidos e contritos?
Emílio da Cunha não deu uma
palavra, mas rolou-lhe uma lagrima sobre a face.
Neste momento surpreendeu ele um
olhar de inteligência, que Valentina dirigia a alguém, que estava pelo lado
detrás da cadeira em que estava sentado. Voltou-se rapidamente, e soltando um
grito, ouviu-se o nome de Roberto.
Era Roberto realmente. A cena que
se seguiu o meu caro vizinho melhor a poderá imaginar, do que eu pintar-lha, ou
descrever-lha.
Roberto voltava honrado e rico.
Julgo que já compreendeu que, para socorrer o seu tio, ele concebeu e executou
o plano da restituição.
D. Mafalda calou-se. Parecia
esperar, que eu, convencido pela sua historia, sancionasse com o meu voto a
doutrina, que ela tinha expendido antes de começar.
— Ah! — disse-lhe eu com
admiração sincera – vossa excelência podia facilmente escrever um romance.
— Isso quer dizer que me faz a
honra de julgar esta minha historia como produção da minha imaginação e
fantasia?
Limitei-me a inclinar-me
respeitosamente, e aqui terminou a nossa discussão.
No dia seguinte D. Mafalda
ofereceu-se para me apresentar a um seu sobrinho, proprietário de um
estabelecimento industrial importante nos subúrbios do Porto. Aceitei gostosa e
prontamente. Fui recebido com extrema bondade e franqueza. O sobrinho de D.
Mafalda gozava uma felicidade digna de ser invejada; era casado com uma mulher,
que era um anjo de beleza e bondade, e tinha um filho o mais lindo e traquinas
que se pode imaginar; o seu estabelecimento florescia e prosperava; o seu nome
figurava entre os principais e os mais honrados do mundo comercial e
industrial, numa palavra nada faltava à sua gloria, fortuna, e felicidade
domestica.
— Que pensa do meu sobrinho?-me
perguntou D. Mafalda, quando nos retiramos.
— Ah! minha senhora, nada mais
ambiciono do que poder imita-lo.
— Pois aquele que viu é o Roberto
da minha historia.
Recolhi-me a casa fazendo para
mim as seguintes reflexões: Que a regeneração do homem pelo arrependimento não
é utopia, e que a sociedade e a sua organização é que são as causas principais,
que ocasionam que muitos dos seus membros não se regenerem, por lhe embargarem
ou matarem logo algumas centelhas de virtude, que ainda tinham no coração.
Pensem, e verão o corolário que
tiram.
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Nota:
Camilo Castelo Branco - "O Arrependimento" (1863)
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