A SUICIDA
Elisa Loeve-Weimar…
A senhora, que teve este nome,
suicidou-se com um tiro, no Porto, no dia 30 do mês passado.
Dentre os meus escritos de há
doze anos reproduzo um que a toda gente, com certeza, esqueceu, tirante o
coração daquela que hoje é morta.
Dizia assim:
A Formosa das Violetas
Júlio Janin, no folhetim do
Jornal dos Debates de 30 de Março do corrente ano (1863), escreveu o seguinte:
«No ano da graça de 1836, o mês de Abril correu aprazível e delicioso; e no mês
de maio ressoaram canções que farte. Ora, a ponto de expirar o mavioso Abril e
repontar o maio (apenas são volvidos vinte e sete anos e três revoluções!) as
turbas afanadas e curiosas acotovelavam-se no vestíbulo do teatro da
Porte-Saint-Martim. O já então popular e glorificado autor de Henrique III, de
Antony, de Ricardo de Arlington, da Torre de Nesle e de Ângelo, naquela noite,
pusera em cena um mistério em que figuravam anjos e demônios. Agrupados à porta
do teatro, muitos rapazes daquele tempo cediam o passo à multidão azafamada,
divertiam-se a vê-la entusiasmada, e notavam os homens conhecidos, os homens
celebres, uns no começo, outros no termo da sua carreira. Eis senão quando
todos os olhos convergiram sobre um soberbíssimo trem, uma berlinda de Erhler,
ajaezada à Brune, e tirada por uma parelha de enormes urcos ingleses, saídos
das cavalariças de madame la Dauphine. Um espadaúdo cocheiro, e um alentado
húngaro de sete palmos de altura, afora o penacho, todo broslado de galões de
ouro, completavam a equipagem que parou de súbito à porta do teatro. E, aberta
logo pelo keiduque a portinhola,
caídos estrondosamente os degraus da berlinda, vimos apear um elegante homem.
«Não tinha ainda trinta anos;
vestia com requintado esmero; gravata branca e luvas amarelas; estatura
corpulenta e formosamente conformada; cabeleira calamistrada; boca um tanto
grande, mas graciosa; olhar ardente, e altiva compostura no aspeto. No braço do
mancebo apoiava-se a leve mão de uma senhora, juvenil como ele, ansiosa de
volitar por sobre o espaço intermédio. Que linda ela estava com o seu vestido
de primavera! Violetas na mão, violetas como adorno no Chapéu de palha,
ondulante faixa a tiracolo, calçada com extremada perfeição de botinas
gaspeadas de cinzento e escarlate. Formosa e esbelta a mais não ser! A
impaciência tirava por ela; e o irmão caminhava a passo mesurado, com aqueles
ares de homem que em si escuta a fada benigna da suprema fortuna. Exornavam o
peito do cavalheiro as mais variegadas cores da pedraria dos ornatos e
condecorações. Era barão em França, marques em Espanha, e sócio do club dos fidalgos florentinos. Contava-se-
e era verdade-que o somenos utensilio dos seus aposentos era de ouro: o seu lavatório
era de ouro armoriado, e dourada a sua câmara. E, todavia, creiam-me, se
quiserem: a sensação que nos causou foi a da admiração simpática; inveja, não.
Nesta França, atenta e alheada nos aparecimentos de cada dia, tais como, de
manhã, As orientais, depois A carnagem de Missolonghi de Eugénio de Lacroix; ao
meio dia, os discursos de Thiers; à noite, a opera de Meyerbeer; no dia
seguinte, um romance de Balzac, uma canção de Alfredo de Musset,-entre nós,
aquele mancebo tinha, de pouco, revelado Hoffman e os seus contos. Escrevia ele
rápido, pouco e bem. Sabia inglês como um diplomata, e alemão como um filosofo.
Pertencia naquele tempo à nascente redação do Jornal dos Debates, e chamava-se
Loeve-Weimar».
Até aqui Júlio Janin.
***
Nos arrabaldes de Londres, num a
quinta de delicias, quantas pôde imitar da natureza a arte britânica, vivia,
naquele tempo, um português que a intolerância política expatriara em 1828. A fortuna comercial
dava-lhe desvelados amigos para o espírito, ótimos convivas para a mesa e
gentis mulheres para o coração. O nosso patrício, encarreirado prosperamente no
trafico mercantil, assentou que lhe era dever acudir aos desterrados pobres; e
assim, quantos portugueses se socorriam da sua valia encontraram franco e
inexaurível aquele coração de ouro, e o ouro das suas gavetas. Os convivas
habituais da sua mesa eram um jurisconsulto dos mais celebrados em Londres, e
um português de excelentes qualidades, nosso ministro atualmente na corte de
Madrid.
Um dia, porém, os contubernais
saíram do encantador abrigo do emigrado, porque eram de mais em alegrias, cuja
doce poesia está no resguardo e recolhimento de dois. O português fora o
preferido daquela «formosa das violetas» que Júlio Janin relembra no seu
folhetim. Mele Elisa Loeve-Weimar, a irmã do nacionalizador de Hoffman em
França, do barão, do marques, do fidalgo florentino, casara com o nosso
patrício, que era então um rapaz alegre como a felicidade, descuidado do futuro
como criança a brincar entre flores, todo expansibilidade em olhos e palavras
do muito bem querer que lhe exuberava do coração.
Coração e nome são ainda os
mesmos naquele homem, vinte e sete anos depois. Porém, há de reconhecer-se hoje
o festejado e amado noivo da irmã de Loeve-Weimar naqueles cabelos brancos e
cara avincada do jornalista portuense? Aqui vo-lo apresento agora: estendei a
mão àquela mão liberal que muitos infelizes beijaram. Abraçai José Joaquim
Gonçalves Basto, e sentireis pulsar o melhor e mais infeliz dos corações!
***
Infeliz!... Com tão prospera
monção ao entrar em bonançoso mar? Amado por aquela peregrina dama, cujo espírito
cultivado em Paris e Londres competia com a distinção da beleza?
Infeliz, sim, e porque não? A
desgraça, quando colhe de sobressalto os seus prediletos, quebra os elos da
corrente que parecia forjada por esforço de virtudes domesticas para os
duradouros contentamentos do amor. Compraz-se ela em abater e rasourar ao nível
das baixas condições os mais altos espíritos.
Gonçalves Basto, decorridos dois
anos de esposo e pai, foi vencido na luta com imprevistas calamidades
comerciais. Empobreceu. Saiu de Inglaterra, e repatriou-se com a sua família.
De repente, e o mais logicamente que o puderam fazer, os amigos desamparara-mo,
desobrigando-se da divida, esquecendo o credor. Permaneceu, com tudo, leal no
infortúnio um que se mantivera desprendido na prosperidade: era José Vieira de
Carvalho, jovem portuense abastado, instruído e bom. Deliberara Vieira fundar
um jornal de parceria com António Bernardo Ferreira, e com o atual deputado e
integérrimo caráter, o Sr. Joaquim Ribeiro de Faria Guimarães. Fundaram a
Colisão, cuja redação e responsabilidade aceitou Gonçalves Basto. Os
proprietários, porém, a pouco e pouco se desligaram de compromissos, declinando
sobre o redator o encargo de sustentar intelectual e materialmente o jornal.
Gonçalves Basto, extinta a Colisão, fundou o Nacional, faz hoje dezoito anos.
Entretanto, José Vieira, rico e
celibatário, antevendo o próximo termo da vida, anuncia que a sorte dos filhos
de Gonçalves Basto está segura nos seus haveres. Morre em Paris, e o testamento
é roubado em beneficio de parentes remotos.
Na contra revolução de 1846,
Gonçalves Basto, ao serviço da Junta do Porto, foi nomeado comandante de um
batalhão de artistas. Reprime a indisciplina, e dá no campo o exemplo da
coragem um tanto insubordinada, porque espingardeava os espanhóis que
transpunham as carairas do norte, quando a Junta lhe ordenara que respeitasse a
intervenção. E, neste entretanto, a família do jornalista, esposa e três
filhos, belíssimas e adoráveis crianças, viviam da gratificação mensal do
comandante: Dez mil reis
***
José Joaquim Gonçalves Basto
envelheceu cortado de lancinantes dores; porém, duas vezes tão somente lhe vi o
rosto lavado de lagrimas: foi ao resvalarem-lhe dos braços à sepultura dois
filhos. A pobreza cerra-o de perto há quinze anos; e ele como que tem minas de
diamantes na mais risonha filosofia que ainda vi! É sempre com um sorriso que
vos ele diz: «Não tenho nada». A desgraça tem destes sorrisos que são, a dentro
do peito, unhas de ferro.
E ela, a «formosa das violetas,»
de 1836, a
irmã do barão em França, do fidalgo em Florença e do marques em Espanha? Elisa
Loeve-Weimar vai, algumas vezes, ao cemitério da Foz, onde vicejam umas flores
plantadas pela sua mão sobre a sepultura de um dos seus filhos. Ali, de certo
lhe esquecem as pompas e as vaidades da sua brilhante mocidade. Aquele cômoro
de terra separa esta mãe das gloriosas presunções da irmã do fastuoso literato,
da formosa que o príncipe dos folhetinistas franceses recordava vinte e sete
anos depois com as calorosas expressões de uma saudade que parece o reflexo do
amor. Que tem que ver no cemitério da Foz aquela Níobe com a sua beleza preconizada
em Paris? Ai! formosura! flor de um dia, queimada pelo gear de uma noite! E tu,
talento! flama esplendente que mais nos cerras a escuridão, quando nos não
iluminas a vereda por onde o infortúnio nos assalta! Ó santa de todas as dores
de mulher que é mãe! quem saberá contar as cruzes do teu calvário? quais almas,
sequer, se inquietam, pensando o que foste, o que és, e que paragem final te
assinalou o destino!
***
Meu caro Basto, releva ao teu
amigo de dezesseis anos o vir ele dizer dos teus infortúnios em face de uma
gente que os há de ler por ser isto em folhetim e ajeitado à guisa de romance.
Quando entrei nesta vida dolorosa das letras, achei-me contigo. Encontrei-te
neste tormento de Sísifo e aí te vejo ainda agora a rolar o penedo. Se ás vezes
paras um instante na ladeira, é para contemplares como a estupidez e a infâmia
trazem avassalados os fiscais da republica, e como eles galgam arreados de
placas e fitas, em quanto tu vais descendo à margem do rio da morte, olhando em
ti, e antevendo próximo o dia em que não terás um pão para repartir com a tua
família. Há trinta anos que esperas e trabalhas por afeto à pátria e por
forçada violência de operário desta galé. Deves ter desmaios de angustia quando
em ti reparas e não vês homem que possa dizer-te: «Sofri e lidei tanto como tu,
e recebi dos governos do meu país a retribuição de igual desprezo». Luta, meu
amigo; e, quando mais não puderes, vinga-te morrendo como o soldado do padre
Vieira, e vai saber nos segredos da divina Providencia que mal devias fazer à
pátria e aos teus concidadãos para que eles te beneficiassem».
***
Algum tempo depois, José Joaquim
Gonçalves Basto, quando o circulo de ferro da penúria se apertava, encontrou a
mão poderosa de um ministro que lho partiu. A salvadora chamava-se a Justiça, e
o ministro era o Sr. Fontes Pereira de Melo.
***
Ora, como em 30 de Setembro deste
ano se suicidasse, no Porto, com um tiro, a minha «formosa das violetas»,
pareceu-me apropositada a ampliação e complemento do meu folhetim de 1863.
Elisa Weimar nasceu em Paris em
1805. O barão Nemi Loeve-Weimar, seu pai, era alemão, oriundo de israelitas.
Exercera funções importantes na corte de Luiz XVIII. Em 1814, quando o exercito
prussiano infestou o território francês, a família Loeve-Weimar retirou para
Hamburgo. O futuro nacionalizador de Hoffman seguiu alguns anos a carreira
comercial; depois, apostatou do judaísmo, converteu-se à fé católica, e
regressou a Paris, ao mesmo tempo que Mele Elisa foi completar em Londres a sua
educação literária.
Conhecedor dos idiomas e
literaturas do norte, o jovem escritor alistou-se vantajosamente de par com os
literatos de mais voga. Entrou seguidamente na redação do Álbum, da Revue
encyclopedique e do Fígaro. Muitos livros alemães desconhecidos em França
trasladou-os ele com estilo sedutor; e da literatura d'além-Rheno publicou em
1826 um compendio. Traduziu depois, com excelente êxito, romances de
Vander-Velde, Contos de Zschokke, de que auferiu renome e dinheiro a granel. Na
Revista de Paris, cujo fundador foi, publicou novelas e artigos de estética. Em
1830 substituiu no Tempo o celebrado Imbert na redação dos folhetins teatrais,
e excedeu-o na graça mordente e na dicacidade engenhosa. A pujança do critico
era tal que um empresário e diretor da opera lhe deu sociedade nos lucros do
teatro, a fim do amaciar e polir com o atrito do ouro. «É inútil acrescentar,
diz um biografo, que, no conceito do folhetinista, o modo como era dirigida a
cena lírica não deixava nada a desejar».
Volvido um ano, solicitou-o a
Revista dos dois mundos para escrever a «crônica politica». N'esta árdua missão
houve-se com rara fortuna e dexteridade, flagelando os personagens mais
graduados. Os ministros galardoaram-lhe a sátira, enviando-o diplomaticamente à
Rússia com uma missão temporária e especial ao imperador Nicolau.
Esta enviatura acresceu ás
despesas dos negócios estrangeiros 60:000 francos anuais: era cara a mordaça.
Regressando a Paris, foi nomeado cônsul de França em Bagdad.
A revolução de 1848 esbulhou da
brilhante posição o apostata da republica mal rebuçada; quando porém
Loeve-Weimar chegou demitido a Paris, já a reação vingou repô-lo na diplomacia,
indemnizando-o da injustiça com o consulado geral de Caracas (América do Sul).
Chegado à capital da republica de Venezuela, Loeve-Weimar, receando a febre
amarela, pediu licença, e veio a Paris requerer a transferência para o
consulado geral de Lima, que lhe foi dado.
Preparava-se para a viagem quando
a morte o arrebatou em Paris no dia 7 de Novembro de 1854.
Acrescenta o biografo em frases
pouco funerárias: «A morte é de crer que o apanhasse com as madeixas
encaracoladas em papelotes; porquanto o seu trajar, o apontado da sua pessoa, e
mormente os esmeros que punha na sua cabeleira loura, lhe tinham sido a
constante preocupação da vida. A tal respeito, se conta que o primeiro
dividendo que recebeu na empresa lírica, empregou-o na compra de um vestido
completo de veludo escarlate lavrado que lhe custou 25:000 francos. É o que
faria, nem mais nem menos, uma lorette!
Não custa, pois, a crer que ele, sempre narcisando-se e sempre rapaz, acabasse,
já em anos outoniços, por esposar uma estrangeira rica. Luiz Filipe fizera-o
barão. Um dia, deu-lhe na veneta de abrir o seu brasão de fresca data num manto
de arminho com a coroa de duque; fez-se, pois, enducalisar, mediante dinheiro,
pelo governo espanhol. Afora as obras já referidas, deixou Cenas
contemporâneas, publicadas com o pseudônimo de Comtesse de Chamily. O livreiro
Ladvocat também imprimiu em 1840, sob o titulo homérico de Népenthès, uma
seleta dos seus artigos de jornais e revistas».
Um dos admiradores mais exaltados
de Loeve-Weimar foi o insigne Philarète Chasles, professor do Colégio de
França, há pouco mais d'um ano falecido, com reputação europeia. Nos seus
Estudos sobre a Alemanha no XIX século, publicados em 1861, recorda-se de
Loeve-Weimar, no capitulo intitulado. Os três magos do norte. Um dos três magos
era o nacionalizador de Hoffman.
São estas aproximadamente as
palavras de Philarète Chasles: «... Vede-me este personagenzinho franzino e
louro, gracioso e fino, melodioso e sardónico, taful, garrido, esbelto,
refinadamente casquilho. Casou romanticamente. Assim se casavam quase todos os
literatos do nosso tempo. É Loeve-Weimar, aquele que escreveu o Népenthès, e
colaborou na Revista dos dois mundos com o doutor Véron, Charles Nodier e
comigo. Acabou por ser em Bassora ou Badgad não sei que sultão oriental
bochechudo, pantafaçudo, enojado, sonolento e amodorrado. Este pintalegrete, este chasqueador, aliás
armabilíssimo, que foi o adail, o porta-bandeira do motim literário de 1815,
não nascera para contemplações absortas nem aventuras grandiosas. O salão do século
XVIII era a mais frisante moldura da sua vida e o teatro que mais lhe quadrava
à índole. Procedia de Champfort, de Champcenetz e de Cazzotte. Tinha o
desempeno social, o conhecimento dos homens, a flexibilidade, a solércia. Como
Congrève, pavoneava-se de não ser homem de letras. Arreda! Não que a tinta suja
os dedos...
«Delatouche introduzira Hoffman,
e Loeve-Weimar nacionalizara-o francês. Loeve arregaçou os punhos,
adelgaçou-lhe as grosserias, recobriu as cores dúbias, encurtou as demasias,
elidiu os destemperos, amenizou as asperezas e recompôs, sob pretexto de
versão, um novo Hoffman, que deu brado em Paris. Inventou-se então uma palavra
para tamanho êxito: o fantástico... A França morreu de amores por Hoffman
falsificado por Loeve e apregoado por Koraff...»
***
Aí está o que sei do irmão da
suicida.
Esta senhora, quando eu a conheci
em 1849, mostrava ainda uns traços esmaecidos de beleza rara. Representava
trinta e cinco anos, tinha quarenta e quatro, e redigia uma folha em francês,
cujo titulo me esqueceu. Colaborava nesse semanário ameno o cônsul de França
Mr. d'Estrées, que pereceu no naufrágio do vapor Porto, em 1852. Eram três os
seus filhos, lindos e louros como ela e como o pai. Gonçalves Basto havia sido
um homem gentilíssimo. Dava ares de inglês, e nascera em Cabeceiras de Basto,
onde floresce uma raça de homens celtas esculturais, e de mulheres fortes, raça
calaica, ás quais sobram as exigências musculosas da estatuaria.
Naquele tempo, ouvi dizer que a
paz domestica do proprietário e colaborador do Nacional não era invejável. De
feito, Gonçalves Basto alimentava-se nos restaurantes, desculpando a
irregularidade insalubre e estouvanada deste viver parisiense com a faina
jornalística.
Elisa era mãe extremosa. Quando
lhe morreu o terceiro gênito, a criança mais angelical que ainda vi uma menina
de nove anos,-a mãe, num ímpeto de desvario, fugiu para a Foz com os outros
dois filhos, e alfaiou elegantemente uma casinha contígua ao cemitério, que
então se andava construindo. Uma das primeiras lapides que ali se assentaram
cobriu o cadáver de um dos dois filhos. Este menino, se bem me recordo, era
afilhado de Lamartine.
Visitei com frequência esta
senhora nesse ano de luto e desesperação. Era solidamente instruída. Lia os
livros portugueses com rara inteligência. Achava os romances peninsulares
fastidiosos como a Corte na aldeã de Rodrigues Lobo. Dizia que nós apenas
tínhamos um céu azul com uma bonita lua, e na terra muitas flores e ribeiros
cristalinos que nos inspirassem; mas que o romancista carece de sociedade viva,
com as suas boas e ruins paixões. E acrescentava que Portugal era
geograficamente obrigado a ser um alfobre de liristas.
Mostrou-me o seu álbum de
autógrafos. Os mais preciosos dera-lhos o irmão, que se carteara com parte dos
seus contemporâneos ilustrados. Tinha-os de alto valor histórico, escritos por
Maria Antoinette, por Luiz XVI, por Chateaubriand, por M.me de Stael, pelos
estadistas das grandes tradições. A sua livraria era pequena, e quase toda
inglesa. Não sabia o alemão; tencionava porém estuda-lo, quando serenasse a
tempestade que ainda rugia à volta da sua alma articulando-lhe os nomes dos
filhos. Foi ela quem me deu o Adolpho, romance de Benjamin Constant, e me
disse: «Leia-o em quanto lhe pôde ser proveitoso». Li-o, e não aproveitei nada;
nem ela, que o lera três vezes, aproveitara muito. Os livros nada ensinam na
alçada do coração. A experiencia, sim; mas a lição vem tarde. Quem ensina tudo
é a velhice. Ainda bem, se nos salva dos espetáculos do riso, e nos tira o
pincel do bigode.
Henri de Weimar Basto, o filho primogênito,
quando frequentava distintamente a escola politécnica e auxiliava o pai
traduzindo o Times, morreu tísico aos dezoito anos de idade, nos arrabaldes de
Lisboa.
Fez-se então o crepúsculo da
noite infinita na razão de Elisa Basto; a treva, todavia, condensou-se
vagarosamente, porque a inteligência reagiu com as suas poderosas energias à
paixão que a dementava.
Começou a estudar o idioma
germânico de tão frenético modo que aí mesmo denunciava o desconcerto do seu espírito.
Gonçalves Basto raras vezes a visitava. Depois da morte do ultimo filho,
deslaçaram-se de todo os frouxos vínculos que os ligavam. Encontravam-se
naquele filho os dois amores dos corações divorciados; era de ambos aquele ser
querido e disputado à competência de caricias. Morreu o incentivo, apagou-se a
luz que ainda lhes mostrava ao longe a saudade na penumbra do passado amor: a pedra
que o cobriu abafou tudo o mais!-acabaram ali com ele todas as recordações e
esperanças. D'aí em diante, cada qual habitava sua casa; ela na Foz, e ele na
rua 29 de Julho.
Entretanto, Elisa pernoitava
sobre os lexicons alemães, e decifrava a tradução bíblica de Lutero. Deste
afanoso estudo tenho à vista a prova no fragmento de uma carta que me ela
escreveu por esse tempo. Eu tinha publicado um folhetim de má prosa acerca dos
Provérbios e Cantares. Dos Provérbios extrairá eu estes períodos dos capítulos
XII, XIV e XV:
A mulher diligente é a coroa do
seu marido; e a que obra coisas dignas de confusão far-lhe-á apodrecer os
ossos.
A saúde do coração é a vida da
carne, a inveja é a podridão dos ossos.
Suicida
A luz dos olhos alegra a alma; a
boa reputação engorda os ossos.
Isto, bom ou mau, está assim, em
osso, nas versões bíblicas portuguesas; porém, a ilustrada e talvez religiosa
dama, acudindo pelo siso do poeta hebreu, arguiu de muito parafrástica e
cavilosa a minha interpretação, e corrigiu-a nos seguintes termos:
La meileure, la plus
exacte, la plus élegante traduction de la Bible c'est la traduction alemande de
Martin Luther. Or voici, mot pour mot, les versets que Mr. C. C. B. a cité:
La feme déligente est
la courone de son mari, la nonchalante est l'ulcère de son corps.
Un bon coeur est la
vie de la complexion (constitution du corps); l'envie est l'ulcère des os.
Un coeur joyeux rend
la vie agréable; mais une humeur sombre desséche le corps.
Une visage amicale
rejouit le coeur, une bone renomée engraisse le corps.
Le langage affectueux
est du miel qui conforte l'âme et rafraichit le corps.
Na verdade, o monge augustiniano,
vertendo para corpo o que os setenta ossificaram desgraçadamente, expungiu dos
versículos a parte picaresca. Bom foi isso.
***
A demência de Elisa Weimar
manifestou-se n'um lance que, a não ter a irresponsabilidade da loucura, seria
o máximo desdouro — uma catástrofe moral. Foi ela pessoalmente delatar à
autoridade civil que o seu marido e outras pessoas conjuravam contra a dinastia
e elaboravam tramas sanguinolentos nos subterrâneos da oficina do Nacional. O
magistrado, como se a respiração da mentecapta o contagiasse provisoriamente,
lançou inculcas, adestrou espias, afuroou certas luras onde os conspiradores
poderiam alapardar-se. Afinal relaxou-se um pouco, confiando a sorte da
dinastia ás fatalidades indeclináveis do destino.
De outra vez, a deplorável
senhora, quando o meu querido amigo José Cardoso Vieira de Castro era já
falecido em Loanda, denunciou ao administrador do bairro de Cedofeita que, em
casa do seu marido, estava escondido
Vieira de Castro, fugitivo de
Angola, onde, de acordo com as autoridades, dera morto por si. Esta denuncia
foi desprezada com bastante admiração minha. Varias pessoas me disseram por
esse tempo que Vieira de Castro passeava vivíssimo na América inglesa; não
seria, pois, absurdo faze-lo viajar até casa de Gonçalves Basto, na Ramada
Alta.
Nesta visualidade de Elisa há uma
coincidência memorável. Na casa que ela indicara como esconderijo do condenado,
hospedara-se Vieira de Castro com a sua senhora, quando chegaram a Portugal.
Morava então ali seu irmão António. No ano seguinte, foi habita-la Gonçalves
Basto, atraído pela beleza do sitio e prazeres da jardinagem em que se ocupava
todas as horas vagas dos seus labores de escrivão de fazenda.
Aqui viveu três alegres anos o
fatigado lidador do jornalismo, cultivando flores, morangais, parreiras, e
fabricando ele mesmo, na qualidade de lagareiro, o seu vinho, com que, no
estio, deliciava os hospedes.
Nesta inocência de patriarca, o
assalteou um dia a esposa, ao cabo de nove anos de divorcio, intimando-lhe que
saísse daquela casa que era dela. O fleumático marido enfardelou alguns objetos
de primeira necessidade e mudou-se, como quem foge. Tinha juízo. Aquela visão
etérea de J. Janin, olorosa de violetas, recendia agora à pólvora e fosforo dos
revolver, desde que o rapazio da Foz lhe pegou de apupar as abas amorfas e
infinitas de uns chapéus de palha mastreados de escumilhas variegadas.
Magoa-me verdadeiramente desfazer
algum tanto na sentimentalidade com que, em alguns periódicos, se lastimou a
miséria de Elisa Weimar. Vi escrito que a suicida experimentara as agonias da
fome, da casa sem aconchego, do desamparo dos indigentes. Não é exato isto. Há
de haver quatorze anos que ela foi a Paris instaurar um pleito sobre a herança
do seu irmão. A ação intentada terminou por conciliação, lucrando a irmã de
Loeve-Weimar uma pensão anual e vitalícia de 3:000 francos. Além d'isso,
recebia 18$000 reis mensais que lhe dava o marido. 750$000 reis bastariam ao
decente passadio de uma senhora com regular entendimento para governar-se;
porém, se os proprietários dos prédios que ela habitava recorriam ao expediente
das penhoras, é porque M.me Elisa Weimar não pensava normalmente acerca dos
senhorios; ou, no estado informe das suas ideias embaralhadas, não podia
conciliar as obrigações impostas pelo Código civil, no artigo 1608, que reza: O
arrendatário é obrigado a satisfazer a renda, etc.
De mais a mais, esta senhora
presumia-se muito rica e muito perseguida pelos jesuítas-talvez reminiscências
delirantes da família do general Simon de E. Sue. à volta do Porto, reputava
propriedades suas, rústicas e urbanas, as campinas mais férteis e os chalets mais imbrincados. Afora isto,
dava-se como direta senhora e enfiteuta de terrenos na Foz e outros pontos
convidativos a edificação. De modo que, se lia no Primeiro de Janeiro ou
Comercio do Porto o anuncio d'uma propriedade à venda, no dia seguinte contra
anunciava que a propriedade era sua, ainda mesmo que a não tivesse arrolado no
tombo imaginário dos seus haveres litigiosos. Aqui há meses, um padre que se
dizia procurador do meu amigo Custodio Teixeira Pinto Basto, replicando a um
desses contra-anúncios, alegou, na imprensa, que a Sra. D. Elisa Loewe-Weimar
estava enganada; pois que os prédios, quintas e chãos que ela reputava seus,
eram indisputavelmente do seu constituinte o Sr. Pinto Basto. Em resultado
deste desmentido, assignado por um padre, me escreveu M.me Elisa confirmando-me
na guerra que os jesuítas lhe moviam, confederados em espolia-la porque era
protestante e estrangeira desprotegida das autoridades portuguesas. Em virtude
do que me rogava que saísse na sua defesa e lhe comunicasse os alvitres a
seguir mediante cartas que, a uma hora determinada, eu devia introduzir pela
fresta de uma das suas janelas ao rés do chão, visto que a sua correspondência
lhe era subtraída no correio pela Companhia de Jesus.
Ás vezes, parava na rua, e detinha-se
a examinar a frontaria de um prédio. A final, recordava-se que era um dos seus,
entrava no pátio, sacudia rijamente a campainha, e fazia saber ao morador que
estava ali a senhoria para ver se eram precisas obras na sua casa. Era
inofensiva; mas não deixava de ser incomoda esta maneira de doudice.
Há quatro anos ainda, vestia-se
singularmente. Quando a saia era azul com requifes encarnados, o corpete era
branco, e verde o filó do Chapéu. Gostava muito do vestido de veludo preto e
botinas brancas. Os transeuntes paravam descaridosamente a rir, e ela passava,
triste e solene como o símbolo da desgraça num baile de carnaval. Nestes dois
anos derradeiros, trajava menos que modesta, pobremente, um capotilho cor de
castanha, apresilhado na cintura, e um Chapéu campestre de palha cor de bronze.
Não erguia os olhos, nem correspondia aos cortejos, quando algum raro
encontradiço com memória e coração reconhecia, naquela mulher encanecida e
trôpega, a esbelta e irrequieta francesa de há trinta anos, e maquinalmente se
descobria como se faz a um esquife coberto de crepe e assinalado por uma cruz
amarela.
***
José Joaquim Gonçalves Basto, no
fim do ano passado, alegrou a minha mesa com a sua jovialidade, com as suas
épicas faculdades digestivas. Estava conosco Plácido de Freitas Costa, um
galhardo espírito com todas as graças petulantes dos rapazes de 1850. Não tem
ainda trinta anos, e protesta contra o marasmo dos homens da sua geração-uma
gente que tem o coração em modorra e a alma anelante no domínio de quatro
inscrições.
Não havia aí distinguir entre os
dois na competência de festivas rapazices. Alta noite, saíram de braço dado,
percorreram os teatros e passearam as ruas até ao romper da aurora. Gonçalves
Basto perfizera setenta anos nesse mês. Ao outro dia, Plácido de Freitas dava
um jantar ao decano da imprensa portuense no Hotel do Louvre. Os comensais eram
todos rapazes e alguns estrangeiros. Gonçalves Basto brindava-os nas suas
línguas, e as risadas estrondeavam quando ele salgava os discursos com as facécias
que se usam lá fora nos lautos banquetes britânicos em que o corpo, mais débil
que o espírito, resvala para debaixo da mesa, e todo homem se fica então
parecendo com Horacio ou Numentano a ressonar no triclínico.
Dous meses depois, estando eu
enfermo, disseram-me que José Joaquim Gonçalves Basto adoecera, pela primeira
vez na sua vida. Ao outro dia, mandei saber como passara a noite. Tinha morrido
ás cinco horas da manhã.
***
A viúva, participando-me que o
seu marido estava defunto, relatava o caso tão glacialmente como se historiasse
o trespasse do seu quinto avô. Todavia, tinha magoados toques o seu estilo
quando o arguia de haver deixado hipotecadas fraudulentamente as propriedades
em beneficio de varias mancebas.
A falta do marido, que para ela
representava quatro libras mensais, verdadeiramente não autoriza a hipótese da
pobreza. Os numerosos e extensos anúncios que publicava, em ressalva das suas
propriedades, eram pagos. Visitava as livrarias e comprava livros. Tinha uma
casa decentemente trastejada, e servia-se com criados a quem pagava talvez, não
os confundindo com os senhorios.
Quando o proprietário da casa lhe
enviou mandado de despejo e sequestro no dia ultimo de Setembro, Elisa Weimar
fez trancar as avenidas. Nesse momento, a sua alma aterrada pelo estrondo dos
esbirros que arrombavam as portas, estremeceu, e... acordou. Eis o momento da
lucidez! Ao cabo de seis anos de demência, relampagueou-lhe na razão o fulgor de
um corisco; e então, vendo-se desgraçada e ridícula, matou-se.
***
Adeus, minha «formosa das
violetas»! O teu Júlio Janin, o teu cantor, quantos te amaram e admiraram são
já mortos, desde Henri Heine até Philarète Chasles. Como devias ter morrido
antes da velhice, a tua alma sempre juvenil desamparou-te; e enquanto ela gemia
nos ciprestais do Père-la-Chaise a cada saimento dos teus amigos da mocidade, o
teu corpo inerte e estupido imergia no pesadelo das sonhadas riquezas! Ias ser
baldeada aos apodos das turbas, e levada pela policia à caverna das doudas,
quando a tua alma regressou nas suas azas de luz, radiou por sobre a área negra
da tua suprema desgraça, e aí te iluminou o suave reclinatório da sepultura.
Era a hora bem-dita ou maldita da morte. Abraçaste-a. Descansas. Numa das tuas
cartas me escreveste há vinte anos, estas palavras de Balzac: Cada suicida é um
poema sublime de melancolia... Adeus! quando eu souber onde a caridade te
sepultou, irei levar-te um ramo de violetas.
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Nota:
Camilo Castelo Branco - "A Suicida" (1880)
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