O DEGREDADO
Tem Portugal uns povoados
sertanejos que os políticos e os literatos exploram, metendo a riso as coisas e
as pessoas de lá. Aqui há trinta anos, os folhetinistas deitaram a garra a
Figueiró dos Vinhos e Freixo de Espada à Cinta. Mal diriam eles que deste velho
burgo acastelado havia de sair o fulminador de Jeová e do diabo, o Sr. Guerra
Junqueiro, o mais bizarro pintor de uma sociedade morfética, e o mais canoro
secretário-geral que ainda ouviram ministros do reino e governadores civis! Eis
o ponto culminante onde pode trepar um aedo português — falando à grega como
eles — se cavalga Pégaso sem esparavões. Poeta que, hoje em dia, com os seus
cantares, apanhe emprego de lotação de 400$000 rs. afora emolumentos,
corresponde ao grego Simônides que, em concursos poéticos, ganhou 56 bois. Bons
tempos! Um hino grego rendia uma manada de reses pesando pouco mais ou menos 32.000 quilogramas ;
hoje, e aqui no pais da madressilva e da laranjeira, não há quem abra concurso
de sonetos a meio bife.
A onipotência do plectro, ainda
assim! No período tenebroso dos Cabrais, quando o poeta era um hilota que
queimava as asas do gênio em meios-ponches fiados no Marrare das Sete-Portas, o
Sr. Guerra Junqueiro, se florescesse então, vingaria enternecer ministérios em
peso, para demonstrar que na Trácia e em Portugal aparecem Orfeus, quando é
necessário mover ursos ao som da lira.
Ali, em Freixo de Espada à Cinta,
nasceu também o primeiro jesuíta português, o padre Gonçalo de Medeiros. Dois
filhos que não parecem da mesma mãe. Compensações. O mal que fez o jesuíta anda
o poeta a remediá-lo.
Depois, chegou a vez à Aldeia de
Paio Pires, a Maçãs de D. Maria, a Cucujães e Ranhados. A ironia fez destas
povoações uns símbolos de morgados lorpas, de morgadas nutridas, de deputados
parranamente beldroegas e de trovistas ainda iscados de romântico solau.
Ninguém já ousava dizer que nasceu ali. Muita gente não se batizava para não
haver documento de haver nascido. As famílias decentes emigraram, falsificando
os passaportes. É que a ironia dos noticiaristas passara por ali assoladora
como as patas dos cavalos númidas e a cimitarra dos filhos do crescente.
Há de haver um século que a
aldeia mais chasqueada era a Samardã.
Filinto Elísio valeu-se daquela
aldeia todas as vezes que necessitou naturalizar um patola. Entre vários lanços
das suas obras, escolho o seguinte:
Saiu da Samardã certo pedreiro
Faminto de ouro, em busca da fortuna;
Embarca, vai-se ao Rio, deita às Minas,
E lida, e foça, e sua, arranca à Terra
O luzente metal, que o vulgo adora.
Vem rico a Samardã; vinhas, searas,
Casas, móveis, baixela compra fofo:
Brocados veste, vai-se nos domingos
Espanejar à Igreja, acompanhado
De lacaios esbeltos; vem o Cura,
Saudá-lo com água benta; os mais graúdos
O lugarejo a visitá-lo acorrem;
Para ele os rapapés, as barretadas
Se apostavam de longe a qual mais prestes.
Falavam-lhe os vizinhos e a gazeta
Na célebre Paris, cidade guapa
Onde todo o estrangeiro nobre ou rico
Vai fazer seu papel. Ei-lo azoado
Que deixa a Samardã, que se apresenta
Na capital francesa; roda em coche,
Alardeia librés; passeia Louvres,
Versalhes, Trianões. Volta enfadado
À sua Samardã. — «Gabam tal gente
«De polida! Oh! mal haja quem tal disse!
«Corri casas, palácios, corri ruas;
«Não vi um só, nem grande nem plebeu,
«Que, ao passar, me corteje com o chapéu».
O padre Francisco Manuel, se em
vez da Samardã, — serrana e fragosa aldeia, que não tem igreja nem cura —
escolhesse para terra natal do seu rico parvajola alguma das cidades notáveis
do reino, teria escrito um conto verossímil.
Do Porto da minha mocidade,
abalavam às vezes para a Europa, diziam eles, uns jovens dinheirosos que não
tinham perfeita certeza se a rua da Sovela ou da Reboleira, onde tinham
nascido, estavam dentro da Europa. Cada um levava quatro malas inglesas, como
quem ia para os confins da alta Ásia. Mandava inscrever o seu itinerário no
Periódico dos Pobres, e gastava quinze dias a despedir-se de parentes e amigos
com o ar pensativo de quem ia fazer uma viagem de circunvalação.
Estes Franklins e Cooks de
cabotagem deixavam as amadas com ataques histéricos, nervosas de ciúmes das
dançarinas de Paris, das grandes lorettes ou loureiras, portuguesmente falando,
da Cora Pearl, de mad. Paiva, que tinha palácio com escadaria de ônix, e era
esposa daquele galhardo rapaz português-macaense, que lá se matou há seis anos,
cerrando com o suicídio a meda dos desatinos. As princesas da Nova Babilônia de
Eugéne Pelletan eram conhecidas até à Porta de Carros. Vogava então o chic em Paris, — o chic nacionalizado em
Portugal trinta anos depois, quando lá em França já diziam Zing.
Da parte das damas zelosas,
diga-se verdade, era isto um luxo de ciúmes. Aqueles mancebos entravam em
Paris, sérios e sornas como o nosso Padre Simão Rodrigues quando ia ao Colégio
de Santa Bárbara conferenciar coisas do céu com o seu amigo Inácio de Loiola.
Escolhiam aposentos em bairro de
celebrada gravidade, no Saint-Germain: hotel de Londres, ou hotel des Ministres. A barba britânica do
viajante, a sua taciturnidade de inglês em jejum, o ar recolhido de quem está
ruminando a Guia de conversação, requeriam casa pacata, vedada a estróinas
metediços com quem está calado, e a mulheres que viajam cheias de um
cosmopolitismo palavroso e comprometedor para sujeitos que não aprenderam, de
transfusão, as línguas como os apóstolos. Pegavam logo de estar tristes, e a
sentirem saudades da Porta-Moré, do Café-Guichard e da Assembleia da Trindade.
Quando ouviam sinos em dia santificado, o coração voava-lhes para a missa do
meio dia nos Congregados — a igreja do tom onde a Fé, que manca, entra sempre
encostada ao ombro do deus de Gnido.
Passeavam nostálgicos as suas
indigestões de trufas pelos boulevards. À noite, esporeados pelo tédio,
entravam em Mabille, e respiravam um ar saturado de anisette, de patchouly,
de marrasquino e almíscar — o bafio das carnes nuas besuntadas e sacudidas pelo
regambolear do cancan et demi. Saíam dali, todavia, frios e impolutos como os
sacerdotes de Cibele; e, ao outro dia, afivelam as malas, e regressavam da
Europa, cheios de cansaço e com mais alguns galicismos, a restaurar-se no
jardim de S. Lázaro e nas Fontaínhas.
O padre Nascimento não iria à
penhascosa Samardã procurar personagens, se houvesse florescido nestes tempos
modernos em que o dinheiro abriu caixas filiais da Samardã nos centros das
grandes cidades.
***
Eu é que conheço a Samardã, desde
os meus onze anos. Está situada na província Transmontana, entre as serras do
Mésio e do Alvão. Nas noites nevadas, as alcateias dos lobos descem à aldeia e
cevam a sua fome nos rebanhos, se vingam descancelar as portas dos currais; à
míngua de ovelhas, comem um burro vadio ou dois, consoante a necessidade. Se
não topam alimária, uivam lugubremente, e embrenham-se nas gargantas da serra,
iludindo a fome com raposas ou gatos bravos marasmados pelo frio. Foi ali que
eu me familiarizei com as bestas-feras; ainda assim, topei-as depois, cá em
baixo, nos matagais das cidades, tais e tantas que me eriçaram os cabelos.
Na vertente da montanha que
dominava a Samardã, havia um fojo — uma cerca de muro tosco de calhaus a esmo
onde se expunha à voracidade do lobo uma ovelha tinhosa. O lobo, engodado pelos
balidos da ovelha, vinha de longe, derreado, rente com os fraguedos, de orelha
fita e o focinho a farejar. Assim que dava tento da presa, arrojava-se de um
pincho para o cerrado. A rês expedia os derradeiros berros fugindo e furtando
as voltas ao lobo que, ao terceiro pulo, lhe cravava os dentes no pescoço, e
atirava com ela escabujando sobre o espinhaço; porém, transpor de salto o muro
era-lhe impossível, porque a altura interior fazia o dobro da externa. A fera
provavelmente compreendia então que fora lograda; mas em vez de largar a presa,
e aliviar-se a carga, para tentar mais escoteira o salto, a estúpida sentava-se
sobre a ovelha e, depois da esfolar, comia-a. Presenciei duas vezes esta
carnagem em que eu — animal racional — levava vantagem ao lobo tão-somente em
comer a ovelha assada no forno com arroz.
De uma dessas vezes, pus sobre
uns sargaços a Arte do padre António Pereira, da qual eu andava decorando todo
o latim que esqueci; marinhei com a minha clavina pela parede por onde saltara
a fera, e, posto às cavaleiras do muro, gastei a pólvora e chumbo que levava
granizando o lobo, que raivava dentro do fojo atirando-se contra os ângulos aspérrimos
do muro. Desci para deixar morrer o lobo sossegadamente e livre da minha
presença odiosa. Antes de me retirar, espreitei-o por entre a juntura de duas
pedras. Andava ele passeando na circunferência do fojo com uns ares burgueses e
sadios de um sujeito que faz o quilo de meia ovelha. Depois, sentou-se à beira
da restante metade da rês; e, quando eu pensava que ele ia morrer ao pé da
vítima, acabou da comer.
É forçoso que eu não tenha algum
amor-próprio para confessar que lhe não meti um só graeiro de cinco tiros que
lhe desfechei. As minhas balas de chumbo naquele tempo eram inofensivas como as
balas de papel com que hoje assanho os colmilhos de outras bestas-feras.
Este conto veio a propósito da
Samardã, que distava um quarto de légua da aldeia onde passei os primeiros e
únicos felizes anos da minha mocidade.
***
Conheci na Samardã um padre
Francisco Vieira, bom sacerdote, amigo de ler, e que sabia de cor as Viagens de
Anacársis; e, como desejasse possuir uma erudição completa, pediu-me que lhe
ensinasse a conta de repartir por quatro letras, segundo o sistema do Sr.
Emílio Aquiles Monteverde. Ele estava munido do Manual Enciclopédico; mas não
percebia nitidamente o que fosse dividendo, divisor e quociente; todavia, como
era bastante subtil, padre Francisco, com assíduo estudo e três meses de
exercícios, conseguiu repartir por quatro letras, e tirar a prova pela regra
dos noves. Este padre morreu novo; se continuasse a estudar, talvez viesse a
responder com acerto a este problema do Manual Enciclopédico, pág. 178, ediç.
de 1870: Pergunta-se: quando é que uma pessoa nascida em 1864 terá completado
25 anos?
Que recordações! e que saudades!
Nas tardes de estio, íamos nadar
a uma levada de um córrego que se despenhava da serra. A água era frigidíssima,
lodosa e impenetrável ao sol. A ramaria entrelaçada dos freixos e amieiros
fazia daquele poço um banho ajeitado à castidade de Susana e à nossa. Padre
Francisco, a última vez que lá entrou comigo, saiu gelado e sem sentidos como
Frederico Barba-Roxa de certo rio da Armênia. Estou-me a ver derreado com o
padre às costas, sem atentar, no auge da minha aflição, que eu o levava como se
fugisse do Paraíso com o meu avô Adão cloroformizado. Acudiram-me os
camponeses, depois de me contemplarem de longe e espavoridos como os saloios de
Troia quando viram sair Eneias da cidade com o pai às cavaleiras. As mulheres
não ultrapassaram as carairas de uma honesta curiosidade assim que viram aquela
nudeza grega e antiga demais para a Samardã; e os homens, com o meu exemplo,
começaram a friccioná-lo com as suas mãos de cortiça tão eficazmente que o
padre veio a si, dando os gritos agudos de um esfolado. Estava salvo. Fizeram
ressumar à pele o sangue congestionado. Se morresse naquela ocasião, ia sem
saber o que era o quociente.
Às vezes, depois de jantar,
saíamos pela aldeia a esmoer a galinha e o presunto. A Sra. Luísa, esbelta e
farta irmã do clérigo, dava-nos em cada jantar uma galinha loura reclinada
sobre um escabelo de presunto com travesseiros de chouriço.
Havia um grande dividendo de aves
na capoeira daquela casa; os divisores éramos nós; o quociente era metade das
galinhas para cada um. Fiz-lhe compreender ao padre com este símile de cozinha
os mistérios da aritmética.
E eu saía impando por aquelas
barrocas da Samardã, meditando e dizendo com o meu Horácio:
Ibam forte Via Sacra, sicut meus est mos, etc.
Às pessoas esquecidas do seu
latim não se figure que padre Francisco ia fazer Via Sacra. Não lhe faltaria
vontade e devoção; mas Samardã não tem calvário nem igreja senão a que Filinto
Elísio lhe fantasiou nas citadas trovas.
***
Uma vez, num desses passeios, ao
cerrar da noite, fiz reparo num grande pardieiro descolmado com dois
descancelados portais que roçavam pelo beiral do teto.
— Aqui vive gente, padre
Francisco? — perguntei.
— Não. Este casarão era a corte
da arreata do João do Couto. Mal o conheci, mas ainda me lembro do ver à frente
de vinte machos deste tamanho.
E, dizendo, levantava o braço
três palmos acima da própria cabeça.
Continuou:
— Os machos traziam chocalhos
grandes como sinetas que se ouviam badalar a meia légua. Quando João do Couto
entrava por aqui dentro com a sua récua, vinha toda a gente às portas
cumprimentá-lo. O seu negócio era lá para o sul. Ia a Lisboa todos os meses
levar presuntos de Lamego e salpicões de Chaves. Ganhava muito dinheiro, chegou
a ter seis mil cruzados em peças; mas, afinal, gastou tudo, arruinou a casinha
dos pais, vendeu os machos, fugiu da terra, e tais proezas fez no Alentejo que
foi degredado para África por toda a vida — há de haver quinze ou vinte anos.
Por aqui há homens da sua criação que podem contar-lhe as extravagâncias do
João do Couto. Era um rapaz mal encarado, e valente com as armas. Jogava o pau
por tal feitio que, em romaria onde ele fosse, as baionetas dos soldados voavam
das espingardas; e, sendo preciso, saltava por cima de um homem, e ficava em
guarda com o pau atravessado. A justiça perseguiu-o por pancadas que deu;
gastou com isso dinheiro grosso; mas quem no arruinou foram as mulheres.
Neste ponto da narrativa, o padre
fez um parêntesis, e revelou conhecimentos não vulgares, citando filósofos e
santos padres muito apropositadamente. Disse que Platão duvidara se juntaria as
mulheres com os homens, se com os brutos. Quantas conhece o leitor unidas aos
últimos para realizarem a hipótese do divino Platão! Acrescentou que lera em
certo autor antigo que a cabeça do homem tem três miolos e a mulher um.
Padre Francisco não me pareceu
que tivesse os três perfeitos, teimando em dar crédito ao seu autor, depois que
eu lhe mostrei anatomicamente o cérebro de uma galinha igual na estrutura e na
forma ao de um capão que se comeu por amor da ciência. A instrução deste homem
saiu-lhe toda da capoeira.
Não obstante, desfazendo sempre
nas mulheres, contou-me o caso trágico donde se motivou a ruína do frascário
almocreve.
***
Havia nos arrabaldes de Vila
Real, num a aldeia chamada Borbelinha, um cirurgião, casado com uma rapariga
bonita.
João do Couto, se varria uma
feira, nem sempre saía com a cabeça ilesa. Quando lha quebravam, ia curar-se a
Borbelinha, e presenteava bizarramente o facultativo. Desde que lhe viu a
consorte, deixou-se avassalar da tentação. Quando estava em casa descansando ou
arranjando frete para Lisboa, ia aos domingos no seu mais nédio macho, com
gualdrapa e cobrejão escarlate de borlas, e testeira de chapas amarelas,
visitar o cirurgião e brindá-lo com algum mimo da corte. A esposa deste
sujeito, era algum tanto ligeira, e daquelas que autorizaram o sábio antigo a
assinar-lhes um só miolo. O marido, não estranho à frenologia, descobriu-lhe a
bossa, e começou a espreitá-la pé ante pé como quem traz pedra no sapato; e,
além da pedra, trazia um par de pistolas reúnas nos coldres da égua. O valentão
da Samardã não lhe metia medo com a sua chibantice. Aprendera o cirurgião de
Borbelinha a arte nas ambulâncias do exército anglo-luso. As amputações
sanguinosas, o estertor dos agonizantes e o tráfego com a morte levaram-no a
dar à vida humana importância insignificante. Ganhara fama de bravo no
exército, porque nunca o viram nas bagagens. O seu posto voluntário era onde as
fileiras metralhadas rareavam. Às vezes, tirava a espingarda da mão ainda
quente de um cadáver, mordia o cartucho e punha o fito com tal olho e firmeza
que não perdia uma bala. «Vou logo procurá-la, entre a quarta e quinta costela
daquele francês», dizia ele.
Quando recolheu da guerra, casou
com a filha de um lavrador, sua parenta. Granjeou merecida fama, e em poucos
anos adquiriu bastantes bens. A mulher, criada na liberdade do campo, nas
romarias, nas funçanatas das esfolhadas, estranhou o resguardo que lhe impunha
a sua qualidade de esposa de cirurgião. Verdade é que ela o tinha conversado de
amores noutro tempo; mas então era ele simplesmente sangrador e dentista de
boticão; foliava nas estúrdias, nas mascaradas, e tocava requinta. Agora,
porém, achava-o mudado. A casaca de briche, o chapéu de felpo, os berloques, o
tom sentencioso dos dizeres, a secura de marido que dá à esposa a honra de lhe
tratar das peúgas, desconvinham ao génio trêfego da jovem.
Ora João do Couto era a
encarnação do ideal de Rosa de Borbelinha. Quando ela o viu, teve uns assomos
de doidice franca e lorpa como só nas aldeias ainda se encontra. Vira a forma
palpável do seu sonho. Depois, o juízo reagiu à explosão da sua inconsciente e
selvagem alegria. Tornou-se por isso sombria e velhaca, olhando de esguelha
para o almocreve. Foi então que Manuel Baptista, o cirurgião, suspeitou e disse
de si consigo, olhando para João do Couto: «Estás bem aviado...»
O da Samardã temia-o; havia uma
força grande que o acovardava: era o amor, ou talvez que fosse o involuntário
acatamento que lhe impunha o direito irrefragável dos maridos. O certo é que o
almocreve não deu aos seus desonestos propósitos o desenvolvimento que
habitualmente coroava as suas empresas da mesma laia. Como o cirurgião o
recebesse de má catadura, absteve-se de ir a Borbelinha; mas, intermetendo uma
alcofa bem remunerada nos seus planos, Rosa estava a pique de perder-se,
passando-se do esposo para o amante.
Entretanto, Manuel Baptista soube
que D. João VI dava no Rio de Janeiro liberalmente hábitos de Cristo a quem lá
ia felicitá-lo pelo triunfo alcançado sobre Napoleão. Justamente indignado, viu
condecorados uns sujeitos sem serviço algum; e resolveu por isso atravessar os
mares e ir à corte apresentar os documentos da sua bravura nas batalhas, e
perícia nos hospitais de sangue. Queria o hábito de Cristo para inaugurar em
Borbelinha a entrada daquela ordem na sua pessoa, e também para humilhar em
Vila Real uns bacharéis em medicina que o não tratavam de colega nem admitiam a
votar nas consultas.
Rosa viu com satisfação
preparar-se o marido para a longa viagem; mas, chegado o tempo da partida,
esmoreceu, quando Manuel Baptista disse-lhe que ela ficaria no convento de
Santa Clara em Vila Real enquanto ele andasse ausente. E, sem intermissão de
dias, conduziu-a ao seu destino, dizendo-lhe que dava aquele passo para
amordaçar as más-línguas, visto que, na ausência dos maridos, as mais castas
esposas se expunham a juízos temerários.
Volvidos dias, na feira de
Gravelos, João do Couto, que esbravejava em abafados rancores a sua paixão,
passando rente pelo marido de Rosa, não o cortejou; e pouco depois encontrando
um seu íntimo de Adoufe, façanhudo marchante que fora dos dragões de Chaves, convidou-o
a beber jeropiga, e tão copiosamente o fizeram, que ali se trocaram recíprocas
e íntimas confidências.
— Por uma pouca de má vergonha —
disse o almocreve — é que eu não atiro ao inferno a alma do Manuel Baptista.
— Eu cá — disse o Joaquim Roxo de
Adoufe — se a história fosse comigo, já o tinha posto a escutar a cavalaria.
— Homem — observou modestamente
João do Couto — olha que ele é teso.
— A quem tu o dizes! Vi-o eu no
meio do fogo bater-se como um soldado raso, e cortava pelos franceses como um
porco-espinho no mato; mas um homem desfaz-se de outro, quando é preciso, sem
lhe dizer que se ponha em guarda.
— Eu cá não — redarguiu o da
Samardã; — à traição não sou capaz de bater num homem. Já bati em seis de cara
a cara; tenho espalhado com a ponta do pau romarias em peso; vou aí para a boca
de um bacamarte como quem bebe este copo; mas palavra de honra, cato respeito
ao Manuel Baptista. Ai! — e arrancou dos seios da alma um convulso arranco. —
Eu tenho uma paixão de matar pela Rosa! Antes da ver, era eu um rapaz alegre,
afoito, que me não trocava por ninguém. Agora não durmo, não como, não trato de
nada, os machos lá estão na estrebaria sem sair, morreram-me dois que me
custaram trinta moedas de oiro, e eu fiquei como se não fosse nada comigo. E então,
depois que a Rosa está no convento, e eu não sei dela nada, dão-me guinas de
meter uma navalha no coração! Foi o diabo que me apareceu, aquela mulher! O que
eu devia ter feito era vir a Borbelinha, atirá-la para cima de um macho, e
fugir com ela por esse mundo além... Sabes tu que mais? — bradou ele,
esmurraçando o balcão da taverna — eu sou homem para atacar o convento com mais
uma dúzia de homens de pêlo na venta, e raios me partam se a não tirar de lá!
— Estás pronto, João do Couto! —
atalhou o Roxo — mete-te nisso que ficas estirado à porta do convento. Cada
freira de Santa Clara tem um oficial de milícias a rondar-lhe o convento por
fora, quando lá não está dentro. Se tu deres o ataque, tens de te bater com o
regimento inteiro. Olha, João — prosseguiu falando-lhe ao ouvido — só te vejo
um remédio: quando ela ficar viúva, casa com ela. Sabes como se faz viúva uma
mulher casada? Não te digo mais nada. Lá vai o último copo à saúde da tua Rosa.
Vá a virar!
— Abaixo! — exclamou João do
Couto.
E despejaram o último quartilho.
Depois, montaram nas suas
possantes mulas, e saíram da feira pela entrada de Vila Real.
A poucos passos, viram Manuel
Baptista que levava a passo o seu cavalo adiante deles.
— Ele lá vai — disse o Roxo.
— Já o vi; deixá-lo ir.
— Tens-lhe medo a valer, ó João!
— Tenho medo mas é de uma pinga a
maior que me vai cá por dentro a queimar o coração. Eu não quero matá-lo, já to
disse.
— Mas deixa andar o macho, não
lhe puxes a rédea. O homem se dá fé que vamos ficando, pensa que tens medo. Eu
cá à minha beira não quero cobardes. Caía-me a cara, se um dragão de Chaves
ficava à retaguarda do cirurgião de Borbelinha.
E, dizendo, meteu as rosetas das
esporas nos ilhais da mula, que rompeu a galope. João do Couto trotava rente
dele, resmoneando:
— Qual medo nem qual diabo!
O cirurgião ouvindo a tropeada
das carruagens, olhou para trás; e, como reconhecesse os cavaleiros,
desacolchetou os coldres, sofreou com firmeza e resguardo a rédea do potro
alfario, e deu-lhe de esporas quando ele se descompunha curveteando e rinchando
ao aproximarem-se as mulas.
Joaquim Roxo, com o chapéu caído
sobre a nuca, pau de choupa debaixo da perna esquerda, e braço pendido segundo
a estardiota dos da sua laia, ia do lado do cirurgião. A estrada era larga; mas
quer fosse propósito, quer a embriaguez desgovernasse o freio da mula, o pau
ferrado do marchante roçou rijamente na perna do facultativo.
— A estrada é larga, seu bêbado!
— disse Manuel Baptista.
O Roxo sofreou a mula; e, quase
deitado na anca, deu um piparote na aba do chapéu, e perguntou:
— A quem é que chama bêbado?
— A você — respondeu lealmente
Manuel Baptista.
— Anda daí! — bradou João do
Couto puxando-o pelo braço.
— Larga-me, João — disse o Roxo
atravessando-se na estrada, e endireitando-se sobre o albardão com as
dificuldades contingentes ao desequilíbrio da cabeça com a cintura. — Larga-me,
já te disse! — E, voltando-se para o cirurgião: — Conhece-me, ó patrãozinho?
— Conheço; mas não quero relações
com tal conhecido. Desempache-me o caminho, quanto antes, é o que tenho a
dizer-lhe.
O marchante, arrancando o pau,
desenroscou um canudo de cobre que escondia uma choupa de aço de mais de palmo.
Manuel Baptista sacou de um dos coldres uma pistola, e esperou sem lhe erguer o
cão; o destemido ébrio floreando o longo pau de lódão fez-lhe uma pontoada ao
peito, da qual o salvou o cavalo empinando-se. O cirurgião engatilhou e
disparou à cabeça de Joaquim Roxo, que instantaneamente caiu de borco sobre o
pescoço da mula.
Neste conflito, João do Couto
apeou de um salto, abriu uma navalha espanhola, e cresceu sobre o cirurgião,
exclamando:
— Você mata-me o meu amigo, ó sua
alma do diabo?
O agredido respondeu com segundo
tiro; mas as upas do potro não lhe consentiram aproveitar a bala com o seu
costumado escrúpulo. O almocreve caiu sobre o joelho direito, por onde a bala
superficialmente resvalara.
Havia já ao pé dos lutadores
muito povo que vinha da feira, e entre a turba estavam alguns que conheciam o
marchante, e por isso gritaram à del-rei contra o cirurgião, agarrando-lhe as
rédeas do cavalo, e dando-lhe voz de preso.
***
Todas as testemunhas
uniformemente depuseram que viram Manuel Baptista disparar dois tiros, matando
Joaquim Roxo e ferindo João do Couto. O cirurgião alegava que em justa defesa
matara e ferira; mas a lei, aguilhoada pela implacável vingança do almocreve, e
obrigada a ser severa, respondeu que só se dava morte em justa defesa quando o
atacado não podia fugir. Ora as testemunhas depuseram que ele, se quisesse,
podia fugir para trás. Foi Manuel
Baptista sentenciado a degredo
perpétuo para a África Oriental. Dizia João do Couto, gabando a justiça, que
lhe custara dois mil cruzados aquela sentença.
Quando o condenado saiu da cadeia
de Vila Real para a Relação do Porto, sua mulher acompanhou-o voluntariamente,
e contra a expectativa do perseguidor do marido. Não foi o amor que a moveu a
seguir o condenado; mas, na desgraça de Manuel Baptista, havia a coragem que é
simpática, se a não enegrece a maldade. Rosa respeitava o marido, e acusava-se
de ter sido causa do seu infortúnio, posto que ele a não arguisse, nem ela se
supusesse suspeita de haver pensado em desonrá-lo. Em 1820 saiu Manuel Baptista
com a sua mulher para Moçambique.
***
João do Couto nunca mais pensou
de restaurar com o trabalho os haveres desbaratados. O seu pai, António Alves,
que possuíra uma pequena lavoira granjeada no fabrico do carvão de urze, morreu
quando o filho vendeu os últimos machos; e a sua mãe, a tia Maria Florência,
perdeu o juízo, e andava a encomendar as almas, por noite morta, trepando-se
aos cabeços da serra. Entretanto, João do Couto, reduzido à pobreza do jogo, e
perseguido pelos credores, fugiu da sua província e passou ao Alentejo, onde,
para amparar a vida, se fez jornaleiro em carvoarias de S. Tiago de Cacém, e
com o vigor de alma de um penitente se entregou a esse áspero trabalho,
fazendo-se estimar dos seus patrões. Para se distrair de lembranças dolorosas
da sua alegre e abastada mocidade, jogava a esquineta com os seus companheiros,
logrando-os, ou lhes ensinava o jogo do pau por um pequeno estipêndio,
moendo-os. Corridos dois anos de vida bem comportada, foi admitido num a
sociedade de carvoaria de sobro, por onde lhe seria possível readquirir os bens
esbanjados; mas, apenas a fortuna lhe sorriu, a sua índole brava, sopeada pela
pobreza, partiu as algemas, e voltou às antigas proezas e ribaldarias com o
femeaço.
A biografia de certos personagens
que floresceram antes da liberdade da imprensa está sumida nos cartórios dos
antigos escrivães dos juízes-de-fora e corregedores. De 1833 em diante as
pessoas extraordinárias têm os seus anais nas partes de polícia, no noticiário
do jornalismo e na Gazeta dos Tribunais. A idade média portuguesa, pelo que
respeita à obscuridade da vida social, terminou há quarenta anos, com a primeira
local de gazeta em que se contou a história de duas facadas na Madragoa. Antes
disso, encontrava a gente na rua dos Capelistas um homem no meio da escolta que
o levava ali à forca do Cais do Sodré; perguntava-se que mal tinha feito o
homem: ninguém sabia responder. Lá o esganavam depressa ou devagar segundo a
agilidade do carrasco, e assim acabava com o padecente o segredo de um romance,
em que decerto se confundiria a perversidade ingênita do homem e a estúpida
rasoira da lei com admiráveis lances de paixões nobres.
Nesta espessa treva se escondem
os pormenores da vida de João do Couto no Alentejo. Sabe-se positivamente que
ele matara dois homens a pau e faca; disse-me alguém que os mortos foram três;
quatro parece-me exageração. À justiça bastaram dois para o agarrar, não sem
grandes perigos, e o meter no Limoeiro, onde esteve desde 1824 até 1827,
suspenso entre o patíbulo e o degredo perpétuo com trabalhos forçados.
Nestes três anos foi socorrido
pelos seus patrícios. Conheci em Vilarinho, aldeia da mesma freguesia de João
do Couto, um velho de nome João Claro, almocreve, que todos os meses saía a
mendigar para o seu camarada preso, e lhe levava ao Limoeiro as esmolas. Tenho
saudades deste jovial ancião que nunca me chamou pelo meu nome; tratava-me sempre
pelo Sr. Rei Teles: não sei como ele descobriu em mim aquela dinastia dos
Teles. Havia nisto fundo mistério que João Claro levou consigo aos abismos
insondáveis da morte.
***
Coube a João do Couto degredo
perpétuo para Moçambique. Tinha predestinação auspiciosa. Todos lhe agouravam
pena última. Ninguém se empenhara a favor do homicida; salvara-o talvez dizerem
as testemunhas que ele prestara bom serviço à sociedade matando os dois
facinorosos.
Esta notícia alegrou-o
duplicadamente. Ia para Moçambique onde estava Rosa, a perturbadora da sua
vida, a única mulher que ele amara deveras, a causa adorada das suas desgraças.
Alguns degredados, cumprida
sentença, voltavam da África, e iam ao Limoeiro procurar os seus amigos: não os
achavam noutra parte; e procediam discretamente não exorbitando da sua roda,
porque diz um provérbio inglês que não tem esfera nenhuma quem sai da sua.
João do Couto perguntava pelo
cirurgião Manuel Baptista aos repatriados que vinham da África Oriental. Todos
lhe diziam que o cirurgião estava a enriquecer, que tinha a principal freguesia
da cidade, que era o médico do capitão general e do bispo, e que já havia
comprado uma quinta em Mossuril; acrescentavam os informadores que a mulher do
cirurgião abrira uma grande padaria na rua de Bancanes, de que tirava muito
dinheiro, com o qual mandara fazer muitos casebres na Missanga, que alugava aos
negros.
João do Couto de si para si
reflexionava que Manuel Baptista, se lá o visse, o mandaria matar por um cafre
ou por algum português degredado — pior casta de inimigo.
Não obstante, como adquirira o
hábito de matar, dispunha-se a não perder esse costume em Moçambique, visto que
é bom adotar os usos de cada terra. Ia portanto resolvido a vender cara a vida,
se o não deixassem vivê-la com sossegada honra — outra excelente disposição que
ele levava — viver
honradamente em Moçambique, e
implantar ali os costumes inocentes da Samardã.
Revirara-se a má cara da fortuna
seis anos adversa ao degredado. Quando chegou a Moçambique, e perguntou
notícias de Rosa, disseram-lhe que o cirurgião era falecido recentemente na
Baía de Lourenço Marques, onde havia ido por ordem do governador geral visitar
o governador enfermo.
Alargou-se-lhe o vasto peito para
abranger os borbotões de esperança que lhe golfavam do coração. Foi à rua de
Bancanes, e parou em frente de uma grande padaria servida por mestiços. Não viu
Rosa. Perguntou por ela com a voz trêmula de amor, de receio e de esperança.
Apenas proferira as primeiras palavras, assomou, por entre duas cortinas de
chita vermelha, a viúva com o rosto espavorido de quem se ouvisse chamar do
fundo de um sepulcro. Reconhece-o, hesita, avança, recua, e faz aqueles
trejeitos próprios e já tão nossos conhecidos do proscénio que hoje em dia
todos estamos habilitados a receber artisticamente a aparição de um pai que não
conhecíamos; e de muito vermos essas mímicas, já quando topamos um sujeito que
não vimos desde a semana passada, abrimos a boca e os braços como se se
encontrassem Castor e Pólux nascidos no mesmo ovo, depois de uma ausência de
quatro lustros!
Lá estava, pois, a imagem do
galhardo almocreve, indelével e aberta a fogo de saudade, no seio de Rosa de
Borbelinha. Levou-o consigo a mostrar-lhe os seus aposentos, o seu dinheiro,
tudo que valia menos que o seu amor.
Ofereceu-lhe com honesta
franqueza a sua casa, a sua mesa e as suas roupas. Não lhe oferecia a sua mão,
porque ainda não sabia e tremia de lhe perguntar se era solteiro.
O cadáver de Manuel Baptista
ainda não estava delido na lama paludosa da Baía de Lourenço Marques, e já a
sua viúva conjugalmente reaquecia o tálamo, como quem quer dizer que casara com
João do Couto.
Ninguém nos soube dizer porque
motivo o segundo marido de Rosa começou então a assinar-se João Evangelista
Vila Real. O sobrenome adotado do apóstolo querido, Evangelista, seria para que
a mulher, primeiro ligada a um Baptista, estivesse sempre em relações indiretas
com S. João? Mais um enigma indecifrável nesta biografia. Quanto ao apelido
Vila Real, provavelmente adotou-o da comarca onde nascera.
Prosperou a olhos vistos o
comércio de João Evangelista em todos os efeitos negociáveis na colônia. A
felicidade íntima correspondia à boa sorte das empresas.
Amavam-se doidamente. João
abençoava os desastres que o arrojaram ao degredo, abençoava a memória e rezava
talvez pela alma dos dois alentejanos que ele matara à paulada; quatro que
houvesse descadeirado, abençoá-los-ia também o ditoso João Evangelista. A
felicidade tem generosidades quase absurdas!
A importância política do marido
de Rosa — que já não traficava em padarias — começou em 1835 quando os cafres
landins fizeram provocada carnagem nos colonos de Inhambane. A sublevação dos
cafres convizinhos daquela vila já a tinha previsto o governador Sebastião
Xavier Botelho, quando assim descrevia Inhambane: « ...Povoada de degredados
facinorosos e asiáticos aventureiros que juntam à desmesurada cobiça, aqueles a
maldade em que têm jubilado, e estes uma refinada preguiça que os desvia do
mais leve trabalho…».
A guarnição da feitoria foi
espostejada pela vingança dos negros; a tropa enviada em socorro dos fugitivos
pelo capitão-general fugiu diante da nuvem negra dos cafres, que excedia em
disciplina e ferocidade a horda de degredados enviados de Moçambique. Aqueles
aguerridos selvagens, «se os acometem, não voltam rosto, jogando adargas e
azagaias com alaridos, coragem e ligeireza. Enquanto as armas são de arremesso,
não há dobrá-los, nem vencê-los: pelejam como leões; mas como ouçam tiros de
arcabuzes, cosem-se com o chão, embrenham-se, e desaparecem na espessura dos
bosques, que rompem e trilham melhor descalços que os seus inimigos calçados e
armados» .
Sabida na capital a derrota da
tropa às mãos dos negros, João Evangelista Vila Real, que era português
semelhante aos do século XV e XVI, que por ali andaram a erguer padrões de
civilizadores, sentiu-se arder em patriotismo, como há poucos anos, na África
Ocidental, ardeu outro mais celebrado aventureiro, José Teixeira do Telhado. Em
patriotismo não há como portugueses! Um grande patife lá fora, nunca deixa de
ser um grande patriota.
Dirigiu-se ao capitão-general,
pediu-lhe cinquenta homens escolhidos entre os degredados, e estipulou que os
vestiria e alimentaria à sua custa, contanto que se lhe desse patente de
alferes. Não se consultaram Regimentos militares nem pundonores de dragonas.
João Evangelista cingiu a banda, disciplinou e vestiu cinquenta homens, e,
arrancando-se aos braços da esposa chorosa, foi para a feitoria de Inhambane,
com um frenesi de acutilar cafres como se fosse vingar os manes insepultos de
Manuel de Sousa de Sepúlveda.
Rebentavam dentro do ricaço
mercador umas excrescências dos fígados do carvoeiro alentejano. Foi um raio
que se espargiu em coriscos por sobre aquela cafraria. Arcabuzou nas brenhas os
que não retalhou no campo, e recolheu a Moçambique com duas alcofas cheias de
cabeças de sovas. O capitão-general abraçou- — o, e disse-lhe que ainda havia
portugueses de lei. Os seus soldados, erguendo-o nos braços, conclamavam que
iriam conquistar a Inglaterra, se ele os comandasse. É que João Evangelista,
esbraseado e ébrio pelo cheiro do sangue, parecia o Lúcifer de Milton
despenhado no meio de uns pretos que não soubessem fazer o sinal da cruz, como
de facto não sabiam aqueles.
Aumentava cada dia a consideração
do alferes de milícias. A gente mais qualificada honrava-se com a sua estima, e
deplorava que cidadão por tanta maneira egrégio não pudesse voltar à pátria,
nem com serviços tão relevantes conseguisse suavizar a desesperada sentença de
degredo perpétuo.
Sete anos decorridos, em 1842,
revoltou-se o presídio da Baía de Lourenço Marques. O governador e os
principais proprietários tinham sido assassinados. A plebe oprimida e conjurada
com os degredados que vestiam a farda de soldados portugueses, vingara os
vexames que sofrera até perder a esperança dos recursos levados ao governador
geral. «Não há coisa que sirva de barreira — escrevia o enérgico par do reino
Sebastião Xavier Botelho — a certos governadores e feitores para se contentarem
com grosso cabedal granjeado boamente, deixando ao mesmo tempo viver os pobres,
senão que alguns querem abarcar tudo para si com absoluta exclusão dos outros,
atraiçoando, roubando e matando: que de tudo isto aqui há exemplos; o ponto é
enriquecerem-se no prazo mais curto, e para este efeito empregam a perfídia e a
força… Tem ali havido uma série de governadores a qual deles mais avaro,
ambicioso... Cifro-me em dizer que todas as torpezas e devassidões têm ali
andado não só desenfreadas, mas autorizadas...».
Quem autorizava as devassidões
autorizou João Evangelista Vila Real a organizar o seu terço de aventureiros,
e, já com a patente de capitão de milícias, ir castigar os revoltosos à Baía de
Lourenço Marques.
A luta foi carniceira e longa. O
gentio dos reinos de Inhaca e de Manhiça, os vermes e os anzotes desceram das
serranias, pensando que era chegada a hora de lavar com o sangue português as
afrontas de três séculos. O bravo da Samardã entrara nesta segunda campanha com
a vida entalada no dilema de morrer ou conquistar a liberdade pelo indulto.
Neste propósito, os seus atrevimentos eram o espanto dos próprios soldados e o
terror do inimigo. Eu, que conheci na paz a cara sinistra deste capitão de
milícias, imagino o que ela seria na guerra.
Ao cabo de dezoito meses de
carnificina, João Evangelista Vila Real recolheu a Moçambique, onde foi
recebido em triunfo. Repicaram todos os sinos desde o bairro de S. Domingos até
ao da Marangonha. A guarnição apresentou-lhe as armas, e o capitão-general
brindou-o à sua mesa, fazendo votos porque o governo de S.M.F. recompensasse os
serviços de tão bravo português, restituindo-o à pátria, pela mesma razão que
um monarca lusitano restituíra à liberdade Geraldo Sem-Pavor — o conquistador
de Évora, ladrão do seu ofício.
Estava presente neste jantar um
cirurgião-mor de apelido Miranda, o qual, brindando à saúde do ministro do
ultramar, disse que a estrela do digno e ditoso ministro lhe propiciara a vinda
de João Evangelista Vila Real para Moçambique durante o seu governo.
Historiando a defesa do território português na África Oriental, comparou João
Evangelista a D. Estêvão de Ataíde que desarvorara as caravelas dos holandeses.
Depois, em vibrações de entusiasmo aquecido pelos clamores dos convivas, disse
que iria ele a Lisboa solicitar o indulto de João Evangelista; e, quando os
bravos e os hurras o deixaram concluir, exclamou:
— E, se eu não obtiver o indulto
em Portugal, Acabe-se esta luz ali comigo. É inexprimível o efeito desta feliz
reminiscência dos Lusíadas!
Eu também conheci este Miranda,
cirurgião-mor de caçadores 3, em Vila Real, quando ele veio negociar o indulto
do capitão de milícias. Em casa estava sempre meio vestido de turco, com
turbante, casacão de seda amarela, chinelas carmesins e refestelado sobre um
coxim azul-ferrete, a fumar por cachimbo de porcelana. Era um pouco raquítico,
pouquíssimo muçulmano da sua figura; mas em verdade parecia um sátrapa em uso
dos caldos peitorais ferruginosos da farmácia Franco. Recitava-me as suas
«Africanas», umas poesias que tinham da África somente serem versejadas em Moçambique,
e pelo seu contexto e língua não desdiziam de moiras.
Foi este pois o encarregado de
promover o indulto, munindo-se dos atestados do capitão-general, de uma baixela
de ouro enviada por João Evangelista à casa real portuguesa, dizem uns, ao
ministro competente, modificam outros, respeitando, como eu, os altos
personagens. Miranda é que sabia ao certo, e também o sabe o possuidor da
baixela.
Como quer que fosse, o indulto
foi obtido; abriram-se as portas da pátria ao capitão de milícias do presídio
de Moçambique, assim denominado no decreto e nos subsequentes alvarás
nobiliários que o esperavam na pátria.
Devia ser imenso o júbilo do
cirurgião-mor Miranda portador do indulto; mas, no mar alto, morreu abrasado no
incêndio do navio em que partira. Deu-se o desastre em 1851, se bem me recordo.
Quem tiver curiosidade ou memória pode esclarecer a data e as miudezas do
sinistro em que pereceu, na flor dos anos, o vate Miranda e, por boa sorte das
letras pátrias, o manuscrito inédito das suas Africanas. Recordo-me que,
estando eu hospedado em Lisboa num hotel — onde também se hospedara um velho
cirurgião militar vindo de África, e inimigo de Miranda — aquele, ao dar-me a
notícia do naufrágio com ares dolentes, acrescentou: «O mar e o fogo disputaram
entre si a ver qual dos dois havia de matar aquele desmedido bruto.» Em África
aprende-se esta caridade.
***
João Evangelista, o bravo, que
nunca mudara de cor quando as azagaias ervadas lhe ziniam nas orelhas, chorou e
desmaiou ao receber a nova de que estava perdoado. A alegria poderia
enlouquecê-lo, se não se desse nos mesmos centros nervosos a repercussão de uma
penetrante angústia. Rosa, quando tratava de enfardelar as suas riquezas,
imaginando-se coberta de seda e recamada de ouro em Borbelinha, foi atacada de
uma perniciosa, e morreu ao cabo de algumas horas de agonia.
O viúvo caiu de cama e desejou
acabar. Rodearam-no, porém, as gerais simpatias da gente da terra,
insinuando-lhe apego à vida para poder na sua pátria fazer brilhante figura.
Quando ele ia cedendo aos rogos e à natureza, agravou-se-lhe a enfermidade,
bojando-lhe na espinha cervical um antraz da pior casta. Mandaram-no confessar,
e ele teve medo a Deus naquela hora, primeira vez na sua vida em que sentiu a
vaidade de se julgar tão duradoiro, espiritualmente eterno como o próprio
Criador. Antes, porém, de se confessar, quis ver se negociava a vida,
comprometendo-se com a Divindade pelo mais extravagante voto de que tenho
notícia: Casar com a primeira mulher perdida que encontrasse, assim que pusesse
o pé no chão da pátria. Ao cabo de quarenta e oito horas, a gangrena parou, a
escara do carbúnculo despegou-se, e João Evangelista Vila Real estava salvo.
Em 1852, liquidados os bens e os
escravos que perfizeram centena e meia de contos, veio para Portugal. Desembarcou
no cais das Colunas às dez horas da manhã, e foi direito à Ribeira Velha, em
busca de uma estalagem onde costumava pousar com a recova dos seus machos,
quando era o famoso almocreve transmontano. Lá estava ainda a estalagem. Os
antigos donos eram já mortos. À porta da taberna estava frigindo pescadinhas
marmotas uma raparigaça arremangada, de braços vermelhos, roliços e brunidos
das unções do azeite que espirrava da frigideira. Era a primeira mulher com
quem falava o João Evangelista do voto.
— Há quarto onde se durma? —
perguntou ele.
A taverneira mediu-o da cabeça
aos pés, e pausou a sua observação no grosso grilhão e no alfinete de
esmeraldas rutilantes que destacava da gravata escura de cetim.
— O senhor quer cá ficar?! —
perguntou ela maravilhada de hóspede tão limpo.
— Quero, sim, menina.
— Olhe que isto aqui é estalagem
de almocreves e de lavradores do Ribatejo... Eu logo lho digo.
— Bem sei. Dê-me o quarto das
duas janelas.
— Ah! o senhor já conhece a
casa...
— Há mais de trinta anos.
— Então suba, que lá está o
patrão no primeiro andar.
— A menina não é a patroa?
— Nada, eu sou criada. Patroa!
tó-carocha! quem dera disso...
E dizia estas coisas com
trejeitos muito desnalgados e frandunos.
A mocetona ainda não tinha visto
a bagagem do hóspede: eram oito baús, afora malas e maletas, um casal de pretos
carregados de viuvinhas, de papagaios, periquitos, um sagui, um terra-nova,
tudo recordações vivas da sua defunta.
Recolhido ao seu quarto,
conversou com o estalajadeiro assombrado da bagagem.
— V. S. a — disse o homem — não
sei como não quis ir para as hospedarias dos brasileiros, para o Alexandrino
ou...
— Estou aqui à minha vontade. Já
dormi neste quarto muitas noites... Deus me dê os regalados sonos que eu dormi
nesta cama... Ainda a conheço... estou mais acabado que ela...
— Então V. S. a é cá do Ribatejo?
No meu tempo não me lembro do cá ver; e mais já aqui estou há vinte e dois
anos.
— Eu tenho cinquenta e seis, e a
última vez que aqui dormi tinha vinte e quatro...
O estalajadeiro fez a conta e
disse:
— Isso então foi no tempo do
Damião Cambado. Esse homem é que ganhou dinheirama! No tempo dele havia
almocreves de rópia, que se acabava o mundo quando eles entravam com arreatas
de vinte machos por essa Lisboa dentro. Eu ainda fui curador do Damião. Vinham
aqui pousar o Machado de Carção e o João do Couto, lá de Trás-os-Montes, e
outros que jogavam aí a ronda a moeda e mais. V. S. a há de querer almoçar, ou
já almoçou? A cozinheira não é de todo peste.
— É a rapariga que estava a
frigir?
— É, sim, senhor. Boa cozinheira
é ela; mas doida de pedras. Está sempre com a tacha arreganhada a quem lhe diz
graçolas, e deixa esturrar os tachos. Agora deu-lhe a telha de querer casar com
um anspeçada de artilharia. Leva boa peça, não tem dúvida...
— Mande-me o almoço — disse João
Evangelista a pensar no voto.
Quem pôs a toalha na mesa foi a
Clemência. Chamava-se Clemência. Vinha muito rosada do lume, e sorria com um
esmalte de dentes irrepreensíveis.
Fazia uns gestos de quadris e
movimentos largos enfunando a saia cor-de-rosa, e apertando o balão de junco na
estreiteza da porta por onde servia o almoço. Tinha que ver então.
Findo o almoço, disse João
Evangelista:
— Há muito que não comi com tanto
apetite, palavra de honra!
— Que lhe preste, meu senhor.
Tirou ele do dedo um argolão de
ouro, deu-lho e disse:
— Desde hoje em diante pense em
mim, se quiser ser rica.
Clemência, moderadamente
espantada, pegou do anel, remirou-o, e balbuciou:
— V. S. a dá-mo?... Está a gozar,
acho eu!
— Dou. Ouvi dizer que a menina ia
casar. Não case, sem que eu lhe faça uma pergunta.
— Está o amo a chamar-me — disse
ela pressurosa para esquivar-se a suspeitas malévolas.
— Vá; que poucos dias há de ser
criada de servir.
***
A mudança de clima adoentou-o e
produziu-lhe sezões diárias. Clemência abandonou a cozinha, tanto que João
Evangelista avisou o estalajadeiro que desde aquela hora em diante considerasse
a rapariga uma hóspede, porque precisava dela para sua enfermeira. É
inexcedível o carinho e zelo com que ela velava as noites, adivinhando-lhe as
vontades, à cabeceira do leito. As carícias saíam-lhe tão espontâneas que não
pareciam interesseiras.
Ao cabo de três meses, João
Evangelista Vila Real erguia-se restabelecido, e cumpria o voto repetido nesta
segunda enfermidade: casava com D. Clemência, que é hoje uma senhora a quem a
minha pena não ousa adjudicar as condições estipuladas no voto. As reticências
são pontos sem forma literal porque só com elas se consegue não dizer nada, ao
passo que todas as indelicadezas se acham contidas no A-b-c-; por mais que a
gente se canse em inverter a verdade com o artifício das sílabas, quando se
evita a ofensa ressalta sempre a ironia. Portanto...
***
João Evangelista apresentou-se a
dois ministros com as cartas de recomendação do capitão-general. O dos negócios
do ultramar gostou de conhecer pessoalmente o herói de Lourenço Marques. O sol
da África bronzeara-lhe um simpático rosto de beduíno. Usava bigode espesso e
grisalho. Os cabelos eram ainda bastos, negros e lustrosos. Espáduas largas,
bem conformado, mas extremamente descarnado no rosto, em que mais por isso
realçava o coriscar sinistro dos olhos. Na testa serpeavam-lhe veias pretas, e
tinha um nariz movediço e adunco. Contou modestamente ao ministro as suas
façanhas atribuindo-as à valentia dos seus soldados. Deu conselhos, propôs
alvitres e pintou com acerto o estado das colônias e o modo de as conservar com
utilidade. Quanto às suas liberalidades na sustentação de um troço de homens,
nada disse; mas o ministro sabia que João Evangelista desembolsara vinte contos
na guerra de 1842. Ao despedir-se, o secretário de estado perguntou-lhe se
pretendia alguma coisa, alguma mercê. João Evangelista respondeu que se
considerava que farte remunerado com o indulto. Não obstante, dias depois era
agraciado com o hábito de Cristo.
Deliberou residir na capital da
sua província, em Vila Real. Transferiu-se para lá; e, sem dizer quem era, foi
à Samardã. No caminho, perto de Gravelos, viu uma cruz de pau sob um dossel
pintado de vermelho, um vermelho que parecia sangue. Na peanha tosca da cruz
lia-se o nome de Joaquim Roxo, o assassinado pelo cirurgião de Borbelinha.
Descobriu-se e rezou-lhe um Padre-Nosso por alma. Dali em diante, pelo caminho
fora, apossou-se do cavaleiro professo da Ordem de Cristo grande melancolia.
Via em si o alegre almocreve de trinta e cinco anos antes, e tinha saudades da
sua vida de então. Parecia-lhe ver ao seu lado a sombra de Manuel Baptista e
olhava sobre a esquerda onde, por entre os castanhais, alvejava a torre da
igreja de Borbelinha. O pensamento ia dali a Moçambique, via o rosto cadavérico
de Rosa, e demorava-se a imaginar-lhe os ossos ainda vestidos de carne sob a
terra gretada pela chuva.
Chegou à Samardã ao lusco-fusco.
Bateu à porta dos Vieirãs, e pediu gasalhado por uma noite. Já não vivia o
padre que me mostrara o pardieiro de João do Couto. Disse que ia para Trás da
Serra, e receava meter-se ao caminho. Com grande pasmo da família hospedeira,
saiu noite alta, e andou percorrendo a aldeia. Sentou-se à porta da casa onde nascera,
curvado, com a cabeça entre as mãos, e chorou! Chorou, senhores, aquele homem
que só devia chorar quando não teve mais pretos que matar, assim à maneira de
Alexandre quando viu que se lhe acabava mundo que avassalar! Ah! naquela hora,
se os cafres tivessem alma, e as crianças dos cafres tivessem o direito humano
de se queixarem orfanados de pais e mães, que legiões de fantasmas não
volteariam em redor daquele cavaleiro de Cristo!
Ao outro dia, ao despedir-se da
família que lhe dera hospedagem, revelou quem era, e pediu que se avisassem os
seus parentes pobres e os seus credores, ou os herdeiros deles.
Confluíram a Vila Real tantos
primos que o homem antes se quisera ver a contas com os pretos da terra dos
Fumos. Como ele era Alves e Gonçalves por pais e avós, todos os Alves e
Gonçalves d’aquém e d’além Córrego entraram às chusmas em Vila Real. Às
cavaleiras dos pais iam as crianças, e escarranchados nas albardas dos jumentos
cabeceavam os macróbios. A estalagem do Ferro-Velho onde pousara João Evangelista
parecia a Kaaba. As caravanas disputavam-se graus de parentesco no pátio da
estalagem.
Distribuiu João Evangelista
liberalmente os seus donativos pelos parentes; mas fugiu de Vila Real quando
alguns vadios, que não eram seus primos, lhe enviaram cartas anônimas
designando as quantias que necessitavam e indicando os lugares em que ele, se
queria viver, devia depositá-las. O capitão de milícias de África fez então o
elogio da civilização dos negros, e evadiu-se para o Porto, visto que não lhe
era permitido chamar do presídio de Moçambique a sua ala, e implantar em Vila
Real alguns exórdios de justiça.
Estabeleceu-se no Porto em 1853,
e começou a edificar uma corrente de elegantes casas na rua Bela da Princesa.
João Evangelista Vila Real montava sempre um cavalo preto de boa estampa;
seguia-o um preto a pé, e precedia-o um cão da Terra Nova. Nos dias
santificados, passeava a sua esposa, uma senhora dotada de gorduras carminadas,
e arquejante debaixo do peso dos grilhões de ouro que lhe bamboavam sobre o
promontório dos seios.
Adivinhava-se ali um passado de
fressuras e mãozinhas de carneiro ricas de açafrão.
***
Tinha este homem no seu foro
íntimo as seguintes coisas:
Primeira. Pancadaria à mão tente
na primeira mocidade; navalha espanhola na boca, e pau de choupa em riste, nas
feiras e romarias.
Segunda. As raparigas da Samardã,
e as circunjacentes perdidas de modo que nem o céu lhes podia valer; porque diz
Santo Agostinho que nem Deus pode restituir a virgindade perdida.
Terceira. O pomo da discórdia
atirado ao seio da família de Manuel Baptista; o amigo assassinado por amor
dele; o cirurgião sentenciado a perpétuo desterro, e morto das febres pútridas
do presídio de Lourenço Marques.
Quarta. O assassínio dos dois
alentejanos que eram maus, mas tinham direito à vida que representava o pão de
muitas crianças.
Quinta. A torpe ficção de
patriotismo com que se investiu para indultar-se de matador de dois brancos,
espedaçando centenas de negros que tinham estrebuchado sob o pé de ferro que os
esmagava no chão onde o missionário implantara a cruz.
Por sobre estas coisas do foro de
dentro, queria ter por fora o foro de fidalgo da casa real.
Isto seria absurdo, se uma
fatalidade geográfica não pusesse João do Couto entre o rio Minho e o Cabo da
Roca. Se ele não visse duas comendas da Conceição apresilhadas nas lapelas de
dois seus vizinhos apanhados em flagrante assalto de quadrilha em Ponte
Ferreira; se não visse a farda escarlate num réu convicto de testamenteiro
falso — ousaria pedir brasão de armas a el-rei seu amo? Se então não coroassem
de barão português um corretor de meretrizes no Rio de Janeiro, João do Couto,
o homicida lavado na sangueira dos cafres, pediria a el-rei a faculdade de ir
saborear um refresco nas salas da Ajuda? Ele não pensava nisso. João Evangelista
Vila Real, se aceitou o hábito de Cristo, foi porque soube que Vasco da Gama o
tinha aceitado; e, quando pediu o foro de fidalgo, atendeu a que Afonso de
Albuquerque e Pedro Álvares Cabral o não tinham rejeitado.
Requereu, pois, brasão de armas
para encimar o portal do palacete que tencionava construir. O real pulso
rubricava o título de nobreza deste homicida reabilitado pela carniceira de
África, ao mesmo passo que a indigência ralava na obscuridade os voluntários de
D. Maria II nas pocilgas da cidade heroica, onde João Evangelista fabricava
palácios.
O brasão é passado a 2 de Junho
de 1861, e registrado no Cartório da Nobreza destes reinos, no Livro IX , folha
42 v. O Sr. visconde de Sanches de Baena, traslada-o assim no seu Arquivo
heráldico-genealógico, pág. 286.
João Evangelista Vila Real,
cavaleiro professo na ordem de Cristo, capitão de milícias da província de
Moçambique; filho de António Alves, negociante, e da sua mulher D. Maria
Florência Alves; neto paterno de Manuel Alves, proprietário, e materno de José
Caetano Gonçalves, proprietário, e da sua mulher D. Maria Gonçalves. Um escudo
com as armas dos Gonçalves.
O escudo dos Gonçalves é em campo
verde uma banda de prata carregada de dois leões vermelhos rompentes. Timbre:
um dos leões. Este é o escudo de armas passado a Antão Gonçalves que devia de
ser tronco daquelas vergônteas que florejaram na Samardã.
Darei sucinta notícia de algumas
famílias Gonçalves, extintas e redivivas na pessoa de João do Couto. No
Nobiliário do conde D. Pedro, tit. 22, pág. 134, D. Egas Gomes de Sousa, senhor
da Honra de Novelas, casou com D. Gontinha Gonçalves, filha de Gonçalo Mendes
da Maia, o Lidador; querem outros que D. Gontinha Gonçalves fosse terceira neta
de D. Ramiro II, rei de Leão. Lá como quiserem: João do Couto não discutia
isso, nem lhe importava que o genealógico Manuel de Sousa Moreira pusesse
aquele D. Egas na linhagem da casa de Lafões.
Temos outra vez nesta família dos
Gonçalves da Samardã, D. Mor Gonçalves, casada com Afonso Lopes de Baião. Por
este ponto os leões de João do Couto encontram-se com as águias da Honra de
Azevedo, pela aliança de um neto de D. Álvaro de Baião com a supradita
Gonçalves. Giravam outrossim nas artérias de João do Couto alguns glóbulos do
sangue do rico-homem de Castela D. Gomes Gonçalves Girão, irmão do senhor da
casa de Girões.
Desastres, transformações,
mudanças de tempos, quedas e renovações de nobreza, em tempos de Afonso III, de
D. João I, de D. João II, dos Filipes, de D. João IV fizeram que os Gonçalves
avós de João Evangelista vivessem de fazer carvão nas serras da Samardã;
todavia, o lavrante do alvará, repondo os prenomes de Dona na tia Maria
Florência e na tia Maria Gonçalves, mãe e avó de João do Couto, endireitou esta
linhagem que andava torta, e limpou-a do pó das carvoarias.
***
João Evangelista Vila Real,
cavaleiro professo na Ordem de Cristo e fidalgo com exercício, viveu a longa
vida dos anciãos que encaneceram com a serena consciência dos patriarcas, e em
provectos anos se mantiveram para exemplo da mocidade. Devia de orçar pelos
setenta e sete, quando há quatro anos adormeceu no infinito sono dos cavaleiros
professos, envolto no manto da ordem com o seu largo peito ornado da cruz
vermelha. Ali, no jazigo do último descendente bem aproveitado dos Gonçalves, apodrece
o primeiro fidalgo e porventura o derradeiro da Samardã.
Não deixou descendência, porque
tinha de menos na arte de fazer homens o que lhe sobrava no engenho de os
desfazer. A sua viúva passou a segundas núpcias com um sobrinho remoto do
defunto. Não sei se há raça de Gonçalves nesta enxertia: mas D. Clemência
entrou segunda vez na corrente de D. Gontinha.
***
Nesta novela-biografia ou
biografia-enovelada, não a quis fazer chorar, minha senhora. Vossa Excelência
já sabe que eu — o derradeiro cultor do romance plangente neste país onde a
literatura se está refazendo com fermentações de cores várias e jogralidades
vasconças — premindo com o dedo umas certas molas do mecanismo da
sentimentalidade, faço tremeluzir no cetim das suas pestanas umas camarinhas de
preciosas lágrimas. Também não quis que a vossa excelência se risse. Este
livrinho tem intuitos graves, e encerra uma ideia encoberta, porque ideias
descobertas já raramente aparece uma. Tenho o desvanecimento de conjeturar que
a filosofia deste opúsculo há de dar de si.
Pretendo aniquilar a fidalguia
destes reinos movendo vossas excelências a não consentirem que os seus esposos,
afidalgando-se como João do Couto, concorram juridicamente aos bailes do Paço
com facinorosos de torna-viagem.
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Nota:
Camilo Castelo Branco - "O Degredado" (1877)
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