MARIA! NÃO ME MATES, QUE SOU TUA
MÃE!
Meditação sobre o espantoso crime
acontecido em Lisboa
Pais de Família!
Atendei e vereis o maior de
quantos crimes se tem visto no mundo! Vereis uma filha matar a sua mãe, porque
esta lhe não deixava fazer o quanto desejava.
Vereis como essa filha corta a
cabeça da sua mãe, e os braços, e as pernas, e vai pôr cada pedaço de corpo da
sua mãe em diferentes lugares, para que ninguém conhecesse o cadáver da morta,
nem a mão que a matara e despedaçara. Vereis como a matadora da sua mãe, da sua
mãe ó pais de famílias, da sua mãe, que a trouxera nas entranhas, que lhe dera
o alimento dos seus peitos, que a criara ao seu lado com beijos e afagos, que
tirara o pão da sua boca para o dar à sua filha, que fora talvez pedir uma
esmola para que a sua filha não tivesse fome, e não desse seu corpo em troca de
um bocado de pão! Vereis como esta filha sem alma, sem medo de Deus, sem temor
das penas do inferno, é descoberta como matadora da sua mãe, por um milagre,
pela providência de Deus! Vereis aquela mulher com alma de tigre comer com toda
a vontade e contentamento, ao pé da cabeça ensanguentada da sua mãe, e
responder quando lhe perguntam se é aquela a cabeça da sua mãe.
— Sim! — disse ela — essa é a
cabeça da minha mãe!
E continuou a comer.
Pais de famílias! Eu vou
contar-vos o mais triste e espantoso acontecimento que viu o mundo, e que
talvez não torne a ver. Chamai vossos filhos para junto de vós. Lede-lhe esta
história, e fazei que eles a decorem, que a tragam consigo, e que a repitam uns
aos outros.
Pais de famílias! O que escreveu
estas linhas com o seu pouco saber talvez vos terá ido à porta mendigar as
migalhas da vossa mesa.
Deus Nosso Senhor Jesus Cristo
permita que eu possa levar a compaixão ao coração dos que me lerem, que eu
desgraçado pecador fico pedindo a Deus pela alma daquelas infelizes mãe e
filha.
Em Lisboa, na travessa das
Freiras n.º 17 havia um homem chamado Agostinho José casado com Matilde de
Rosário da Luz.
Tinham duas filhas, uma das quais
se chamava Maria José. Farto de trabalhar para sustentar com o suor do seu
rosto a honra da sua família, Agostinho José morreu, e deixou entregue à sua
virtuosa mulher as suas duas filhas, dizendo-lhe:
— Matilde, quando não puderes
trabalhar com as tuas filhas, vai pedir uma esmola para lhes dares um bocado de
pão, mas não as deixes cair na desgraça de mundanas, porque eu não me poderei
salvar se as minhas filhas desonrarem minhas cinzas.
O pobre velho morreu abraçado à
sua querida mulher, e amados filhos, e pode-se dizer que os levou atravessados
na garganta para a sepultura.
A desgraçada viúva pôs uma das
suas filhas a servir em casa de honrados amos, e ficou com a outra em casa para
a ajudar a viver.
Metia compaixão ver aquela mãe,
tão contente com a sua filha, depois de terem ambas repartido entre si os
poucos lucros do seu trabalho, aplicados para um bocado de pão e uma sardinha,
ver como ela ensinava à filha as orações que já a sua mãe lhe havia ensinado, o
modo de pedir a Deus um meio de passar a vida com honra e sem vergonhas do
mundo! Maria José (este era o nome da filha) parecia que amava a sua mãe com
toda a sua alma e coração.
Andava de dia vendendo algumas
coisas numa tendinha que tinha comprado com as economias da sua mãe, e de noite
rezava o terço à Virgem Maria, e ao mesmo tempo compunha meias para fora, com
cujo produto se vestia. Toda a vizinhança olhava para esta rapariga com
admiração porque já tinha 29 anos, e ainda não havia nota ruim que se lhe
pusesse, e ninguém se atrevia a pôr nela a boca.
Uma vez andando Maria José
vendendo com a sua tenda, chegou-se ao pé dela um rapaz de boas maneiras, e
começou a conversar com ela sem lhe dizer coisa que tivesse maldade. A rapariga
escutou-lhe as palavras, e ficou entendendo que o José Maria (era o nome dele)
não era mau rapaz e que a não buscava para maus fins.
Continuou a conversar com ele,
até que ele lhe chegou a dizer que se fosse da vontade dela, que se lhe não
dava de casar com ela.
Maria José não desgostou de ouvir
o que disse-lhe o seu conversado, e respondeu-lhe que quem governava nela que
era a sua mãe, e se ele não estava a gozar que fosse falar com ela, e talvez
lhe desse o sim, porque a sua mãe não a queria para freira.
O José Maria foi falar com a
viúva
Matilde, e esta boa mulher
disse-lhe que se ele fazia pela vida e era amigo do trabalho, que ela não se
lhe dava que a sua filha casasse, e quanto mais que isso eram coisas que
estavam à vontade da sua filha, e não à sua, porque não era ela que casava.
Ao que o rapaz respondeu que já
tinha o consentimento da sua filha, e que então ia mandar ler os banhos.
José Maria continuou a ir a casa
da esposada, enganando-a que se estavam a ler os banhos.
A rapariga afez-se a ter paixão
por ele, porque o via a todas as horas, e esperava que o traidor lhe não
mordesse a palavra. A mãe, que tinha mais anos e mais experiência do mundo,
agourava mal daqueles amores, porque os banhos nunca mais se acabavam de ler, e
o José Maria tinha já uma confiança na sua casa como se fosse marido da sua
filha. Quando aquela boa mãe repreendia com boas maneiras a muita fraqueza da
filha, esta toda se arrufava, e virava as costas à mãe, resmungando palavras
desobedientes. Filhas ingratas! Mal sabeis vós que torcer os olhos de mau modo
para uma mãe é o mesmo que cuspir nas tábuas da lei de Deus!
O enganador José Maria, com o demônio
no coração, a impostura na boca, foi pouco a pouco amolecendo a fraca
resistência que Maria José fazia ao seu brutal apetite. A pobre rapariga se
tivesse ouvido os conselhos da sua mãe não cairia na desgraça de se deixar
enganar como de fato deixou pelo seu pérfido homem que para outra coisa não ia
àquela casa, senão para fazer jogo da confiança que lhe fora dada.
A infeliz mãe pressentiu a
desonra da sua filha e já não lhe podia valer. Assim mesmo um dia com as
lágrimas nos olhos disse-lhe estas palavras:
— Minha filha! eu muitas vezes te
disse o que eram os homens, não que eu tivesse queixa do meu, porque o teu pai
era honrado e virtuoso como aqueles que o são; mas porque os rapazes de hoje
não são o que eram os de algum dia.
Disse-to muitas vezes, e tu ou me
respondias com arremesso e enfado ou me viravas as costas em ar de desprezo.
Não te pude valer. Deus Nosso Senhor me perdoe — se eu não tive forças para te
castigar, porque eu tinha-te muito amor, e nunca me capacitei deveras que
houvesse um tredo tão grande como o José Maria.
Mas já agora que não tem remédio,
minha filha, filha do meu coração, em bom pano cai uma nódoa. A minha filha,
por alma do teu pai que está na presença de Deus a pedir teu perdão, pelas
cinco chagas te peço que deixes esse homem, que há de acabar de te lançar na
perdição, onde não acharás meios de te salvar da justiça de Deus, e das
vergonhas do mundo.
— Minha mãe — respondeu-lhe a
filha — ora deixe-me que não estou para aturá-la. Ainda vinha a tempo com os
seus sermões. O valer-me era a tempo, agora que eu sou dele como se fosse sua
mulher hei de ser com ele desgraçada até à morte. Sabe que mais? Se casar,
casou; se não casar é o mesmo; eu gosto e ele gosta...
— Ai minha filha — respondeu a
mãe — que linguagem é hoje a tua tão diferente daquela que era antes deste
maldito aqui entrar. Ai minha filha que estás de todo! Ó meu marido! perdoa-me,
perdoa-me, bem vês que eu não fui culpada.
E a desgraçada viúva pôs a cara
sobre as mãos e começou a chorar, quando a sua filha se pôs a cantarolar e a
rir da posição magoada e aflitiva da sua mãe. E disse-lhe estas palavras
insultantes:
— Ó a minha mãe... sabe que
mais... eu não estou para aturá-la. Se quer estar comigo há de ver, ouvir e
calar, que é regra de bem viver, se não quiser a rua é larga, o mundo é grande.
— Queres dizer com isso que me
pões fora de casa, não é o que queres dizer-me?! — perguntou a mãe.
— Ou isso, que vale a mesma
coisa. Respondeu a filha.
A atribulada viúva, cheia de
razão e justa raiva exclamou em voz alta:
— Pois então sabe que se eu até
aqui te tratei como mãe carinhosa, de hoje em diante hei de ser mãe como deve
ser.
Se de ora em diante aqui tornar a
ver José Maria hei de queixar-me à administração do concelho que esse homem vem
a minha casa contra a minha vontade, e tu e mais ele haveis de ser atrancados
no Limoeiro, tu como filha desobediente e ele como um sedutor de uma rapariga
que se deixou ir das suas palavras.
— Bem me importa a mim dessas
coisas — replicou a filha — pela constituição não se prende ninguém por seduzir
raparigas, e de mais foi muito do meu gosto, acabou-se, está dito.
— Veremos, Maria, veremos qual de
nós é que vence! Oh meu Deus, dizia a velha no profundo do seu coração, oh meu
Deus, mudai as tenções da minha filha, mostrai-lhe a verdade das minhas
palavras, e fazei que ela conheça o caminho da perdição, onde a sua má estrela
a lançou.
A filha ria-se de escárnio, e ao
mesmo tempo estava com ódio a sua mãe.
Deus não quis tocar-lhe o
coração, porque Ele quis ver até que ponto poderiam chegar os crimes no século
de desmoralização e pecado em que vivemos.
Passou-se aquele dia de lágrimas
para a mãe, e Maria José não apareceu em casa o resto do dia porque tinha ido
onde estava o seu amante e disse-lhe que a mãe não queria torná-lo a ver lá em
casa, e que se ele lá tornasse ela dissera que havia de ir acusá-lo à
administração do concelho.
Com estas notícias o malvado
atemorizou-se porque já tinha sido acusado como vadio e ratoneiro, e era bem
conhecido pelos guardas da administração. E assim, ou para se desfazer da
rapariga, ou porque realmente desejasse o que há de mais cruel no mundo,
aconselhou a rapariga para que matasse a sua mãe!
Oh céus, onde estão os vossos
raios que não caem sobre a cabeça deste infame, que pede a uma amante que mate
a sua mãe, para mais a salvamento gozar os seus escandalosos e torpes desejos!
Oh céus! como quereis que um homem vos insulte tão claramente, atrevendo-se a
proferir estas palavras: ó filha mata tua mãe!... O meu Deus, eu sou um fraco
bichinho na terra, e atrevo-me a interrogar a vossa alta sabedoria! Perdoai-me,
meu Deus!
Maria José, quando volvou para
casa, no dia seguinte, ainda a sua mãe não tinha comido nem bebido e estava
deitada sobre a cama, vestida, com os olhos inchados de chorar. Parece que
tinha envelhecido vinte anos. As rugas da pele tinham-se profundado, e os
cabelos embranqueceram-lhe em o espaço de uma só noite.
— Então que faz aí sua tola? —
disse a filha já atentada pelo demônio à desgraçada velha.
A mãe não respondeu, e continuou
a chorar, e depois de dar magoadíssimos suspiros atirou-se da cama abaixo, e
lançou-se aos pés da filha.
— Minha desgraçada filha! (exclamou
ela). Atende às lágrimas da tua mãe; bem vês que é aquela que te deu ao mundo,
que sofreu as dores de mãe, que se lança de joelhos aos teus pés, pedindo que
não lhe cubras a cara com o negro véu da vergonha nos últimos dias da sua vida.
A mãe ia a continuar, quando a
perversa filha, interrompendo-a, com desesperação e raiva:
— E olhe que se assim continuar
não há de viver muito. Das duas uma, ou o José Maria há de ter aqui entrada a
toda a hora do dia e da noite, ou então... então...
Nisto entrou o José Maria. Era um
rapaz de mediana estatura, ao que parecia de vinte e quatro anos. Tinha os
olhos negros, e quase negras as faces. Os cabelos compridos, com a barba
cerrada pouco lhe deixavam ver as feições. Tinha a testa franzida continuamente
como o matador que sente um cancro de remorso a tragar-lhe as entranhas.
Quando ele entrou a velha tremeu,
e a dissoluta Maria José pendurou-se- — lhe nos ombros a beijá-lo.
Matilde, assim escarnecida por
essa filha prostituta, arrancou do peito um grito de dor como se lhe tivessem
dado uma facada no coração.
Quis fugir pela porta fora, mas o
José Maria e a Maria José não a deixaram Sair por temerem que a velha se fosse
à administração do concelho queixar das afrontas que lhe faziam. Por fim a
infeliz e atribulada viúva e mãe de todas as mais desgraçadas não teve remédio
senão calar-se porque não queria que os vizinhos escutassem as desonrosas e
vergonhosas questões que tinham em casa.
O José Maria saiu, e quando já
estava de fora da porta chamou pela sua concubina e disse-lhe: — Maria; ou tu
hás de dar cabo dessa maldita velha o mais breve, ou então eu deixo-te por uma
vez, e não quero saber de desgraças.
Maria respondeu: — Ora eu tenho
medo da matar, ela grita e cá por cima mora a mestra de meninas, que a ouve, e
depois se se sabe que há de ser de mim?
— Tu és uma estúpida, respondeu o
malvado, o matá-la é de dia porque as meninas fazem barulho a ler, e não se
devem ouvir os gritos da tua mãe.
— Mas eu tenho tanto medo de
matá-la!!... Tenho alguma pena dela, se tu casasses comigo já ela te não
proibia que cá viesses, e se me tens amor, a ponto de quereres que eu mate a
minha mãe, então porque não casas comigo?
— Está bom, está bom, temos
lamúrias? — replicou o José Maria. — Se queres, queres, se não queres mentes
que se escama o gajo.
Isto são ditos que os vadios e
brejeiros têm sempre prontos.
José Maria foi-se, e a rapariga,
desesperada e aflita com os feios modos e destemperos do seu amante, foi-se ter
com a mãe, e descompô-la com estas e outras palavras:
— Você é um estupor velho, é a
causadora da minha perdição. O meu regalo era pegar nesta faca e cortar-lhe a
cabeça com ela. Sai estafermo, sai daqui...
E dizendo isto deu um pontapé na
mãe, que não teve remédio senão sair do lugar aonde estava para o patamar da
escada.
A filha saiu, foi-se ter com o
José Maria a uma taverna da rua da Rosa das Partilhas, enquanto foi, a mãe
depois de chorar lágrimas de sangue, e de ter pedido a Deus que pela sua
infinita misericórdia desse um jeitinho à vida errada da sua filha, foi ver
debaixo do enxergão se acharia um pé de uma meia que lá tinha com 3 moedas,
restos de todas as economias da sua vida, e que ela reservava para mandar dizer
60 missas pela sua alma e 60 por alma do seu marido de esmola 120 reis cada
uma. Mas qual seria o seu espanto e aflição quando não achou o seu dinheirinho?
Primeiramente deu um grito do fundo do coração, e depois perdeu os sentidos e
caiu. Este dinheiro já a filha lho tinha roubado para o dar ao seu amante.
Quando Maria José entrou e viu assim desfalecida a sua mãe, e a cama mexida,
conheceu logo que a sua mãe já sabia do roubo, e que havia de berrar; e assim
esteve logo ali para a matar. A velha voltou a si, e quando viu diante sua
malvada filha começou com grandes gritos a pedir-lhe o seu dinheirinho, que era
a sua salvação e da alma do seu marido!
A filha primeiro quis fazê-la
calar à força pondo-lhe a mão na boca; mas vendo que nada conseguia, foi-se ter
com António Ferreira do Sul, regedor da freguesia de Santa Engrácia, e
disse-lhe que mandasse meter a sua mãe, no hospital, que estava doida, e
berrava que a queriam matar.
O regedor disse-lhe que havia de
informar-se do estado da sua mãe, e que ele daria as providências.
Maria José veio para casa, e
disse a sua mãe que no dia seguinte lhe traria o seu dinheiro.
A infeliz desgraçada velha, com
isto sossegou alguma coisa, mas ó desgraça! ó dor! ó crime sem igual! a maldita
e condenada filha já a estas horas fazia de conta que às mesmas horas do dia
seguinte teria matado a sua mãe!
Oh! meu Deus! dai-me forças para
poder continuar e enxugai-me estas lágrimas dos olhos!
Filhas que amais vossas mães,
tremei, tremei de horror! Mães que amais vossas filhas, chorai, chorai de
compaixão! Pais de famílias que me ledes, fazei por dar uma educação aos vossos
filhos, que não deixe remorso na hora tremenda em que as vossas almas estiverem
para voar à presença de Jesus Cristo!
Em toda a noite daquele dia,
Maria não apareceu em casa, foi onde estava o José Maria e pediu-lhe ferros
para matar a sua mãe. O malvado deu-lhe duas facas de sapateiro, e lá disse-lhe
que fizesse aquilo que vou contar, se Deus Nosso Senhor mo permitir.
Eram dez horas do dia 11 de
Setembro, quando Maria entrou em casa. A mãe logo que a viu perguntou-lhe com
muito bom modo se trazia o dinheiro que lhe tirara, e a filha respondeu que não
tardava. E depois esta sentou-se ao pé da mãe, e disse- — lhe que queria que a
catasse, a mãe respondeu que sim. Maria José puxou-lhe a cabeça para o regaço e
catou-a um poucachinho. E indo a mexer-se para tirar do bolso da algibeira, oh
meu Deus!- uma das facas, a mãe sentiu o barulho das duas folhas das facas, e
perguntou:
— Que trazes no bolso, Maria?
— São duas facas, minha mãe.
— Para que andas de faca?
— São do José Maria que mas deu
para eu mandar amolar ao barbeiro.
A mãe calou-se, e nesta ocasião
já a filha tinha uma das facas na mão.
Virgem Maria, suspendei o braço
dessa filha que vai matar a sua mãe!
Maria José ergue o braço e dá uma
facada no lado direito do peito daquela que lhe dera o ser.
A infeliz vê-se ferida — dá um
grito, ninguém a ouve, a matadora fica- — se como espantada e com o braço
erguido diante da sua mãe que já lutava com os arrancos da morte.
Matilde umas vezes de joelhos,
outras encostada, já com o suor da morte gota a gota pelo rosto abaixo disse
estas tristes palavras a sua filha:
— Maria, porque me matas? Maria
minha filha, tiveste coração de enterrar uma faca no peito da tua mãe! Tiveste
coração de rasgar aquelas entranhas que te geraram! Maria, porque me matas? Que
mal te fiz eu, minha filha, para me dares esta facada por onde me foge a vida?
E se tinhas tenções de me matar, porque me não mandaste confessar, ou ao menos
fazer o ato de contrição? Ah Maria, Maria, que tens de dar contas a Deus pela
minha e pela tua alma!
Ia para ajoelhar-se diante de uma
velha cruz que estava à cabeceira da cama quando Maria José lhe deu outra
facada no pescoço. A desgraçada ainda disse: — Meu Pai do Céu... perdoai-me. E
morreu.
Cobre-te de luto ó natureza!
Chora no Céu Virgem Maria que também fostes mãe carinhosa! Chorai aves do ar
que criais os vossos filhos debaixo das vossas asas! Chorai que aí caiu uma boa
mãe morta com duas facadas aos pés de uma filha já condenada!
Depois de morta a sua mãe, Maria
José com a maior presença de espírito e ânimo de carrasco com a mesma faca
começou a cortar-lhe a cabeça, e vendo que não podia arredondar o osso, foi
cortar com segunda faca, e como ainda não pudesse, começou a dar-lhe golpes de
machada, até que de todo lhe despegou a cabeça do pescoço. Depois cortou-lhe as
orelhas e o nariz e os beiços e deu-lhe mais de vinte golpes na cara, e
queimou- — lhe o cabelo. Depois levantou um tijolo do lar e enterrou os pedaços
da cara e da cabeça.
Depois cortou-lhe as pernas e as
mãos. E à noite embuçou-se num capote e pegou no tronco da mãe e foi pô-lo na
obras de Santa Engrácia. Voltou a casa, pegou nas pernas e nas mãos e foi
pô-las na travessa das Môlecas. E depois voltando para casa pôs-se a lavar a
roupa ensanguentada da mãe e deitou-se nos mesmos lençóis onde a sua mãe dormia
com ela dois dias antes e com a cabeça dessa mesma mãe enterrada aos pés da
cama. No dia seguinte saiu de casa e foi-se pôr a ver o corpo e as pernas da
sua mãe entre aquela multidão de pessoas que lastimavam aquele acontecimento.
Aconteceu estar aí o mesmo regedor a quem ela pedira que mandasse meter a sua
mãe no hospital dos doidos. O que o regedor por uma inspiração do céu mandou
prender aquela mulher, e levando-a a casa passaram a perguntar-lhe pela sua
mãe, e ela respondia que não sabia. Mas no quintal da mesma casa estavam a
enxugar algumas roupas tintas de sangue. O regedor escavando no lar achou a
cabeça e os pedaços de cara — perguntou a Maria José se conhecia aquela cabeça,
e ela respondeu comendo melancia com pão:
— Conheço, é da minha mãe!!
Passou-se a um processo, e a ré
foi condenada no dia 5 de Novembro a sofrer morte natural para sempre na forca,
que se há de levantar no campo de Santa Clara, passando por aqueles lugares
onde foi pôr os pedaços do corpo da sua mãe. Aqui tendes — ó povos! o maior
crime que viu o mundo, praticado em Lisboa no ano de 1848!
Estes atentados contra Deus, esta
guerra de irmãos com irmãos, estes acontecimentos de filhos matarem pais, e
esses sinais que nos aparecem no céu, tudo indica que o fim do mundo está
chegado.
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Nota:
Camilo Castelo Branco - "Maria! Não me mates, que sou tua mãe!" (1848)
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