VOLTA AO
PASSADO
Seria difícil
imaginar paisagem mais seca, mais árida, mais inóspita. De um extremo a outro
do horizonte, estendia-se uma planície de ervas rasteiras. De espaço em espaço,
havia mesmo largas placas sem vegetação alguma, onde as rochas do subsolo
afloravam, nuas. Arvores, algumas, raras. Essas mesmas eram todas magras e
finas, com um feixinho de ramos nos cimos e nesses ramos, apenas algumas folhas
quase sem pé. Eram arvores habituadas a ser batidas pela ventania e cujas
folhas pareciam agarrar-se aos troncos, com medo de ser arrebatadas. No fundo
do horizonte havia uma altíssima cadeia de montanhas. Eram também de uma aridez
absoluta. Nelas, de espaço a espaço, com grandes intervalos, minúsculos
arbustos, ervinhas raras. A's vezes, cabras as iam roer De longe, vendo-as,
ficava-se admirado sem saber como aqueles animais, tinham podido chegar até
ali. Um prodígio de equilíbrio.
Em certo ponto,
exatamente o mais alto, a montanha era fendida de alto a baixo verticalmente. Faltava
justamente uma fatia.
À saída dessa
abertura do monte, estava a casa única existente no lugar: posto de cobrança de
impostos. Ali, era, de fato, a fronteira com o país visinho e ali, portanto, o
ponto preferido pelos contrabandistas para tentarem entrar com as suas mercadorias.
Mas, depois que
o Mateus tomara conta daquele lugar, a situação mudara. Porque a vigilância do
Mateus era infatigável. Ele dizia sentir "cheiro de contrabando" á
distancia.
E parecia, de
fato, senti-lo, porque raro não era o apanhado. O interessante era ver o Mateus:
nunca se zangava. De bom humor, gracejando, ia fazendo o seu serviço. As multas
deviam ser divididas entre ele e o Governo, mas raramente Mateus as cobrava.
— A multa,
dizia ele, ás vezes, ao contraventor, tu já pagaste com a vergonha de teres querido
me enganar e teres sido apanhado.
Certa vez,
quando um grupo de criadores, com os seus rebanhos, tinha chegado, um deles, levemente
alcoolizado, lembrou-se de provocar o Mateus para uma luta. Os outros faziam roda,
já contentes com esse espetáculo sempre o mais apreciado por gente rude.
Ninguém, aliás, apostaria no Mateus, porque o seu contendor tinha fama de
valentão.
Mas não a
justificou. Viu-se o Mateus batê-lo em meia dúzia de golpes ágeis e vigorosos. Dois
minutos depois, estava caído por terra com o rosto em sangue.
O Mateus chamou
para dentro:
— Ó Sofia!
prepara aí a bacia e a toalha para um amigo ir aí lavar o rosto.
E ajudava-o a
caminhar, amparando-o.
— Que foi? Que
foi ? — acudiu Sofia perguntando.
— Este amigo
caiu e machucou-se.
Quando, porém,
o malferido valente entrou na casa, felicitaram o Mateus. Este acalmou os
louvores:
— Na minha
terra eu era o campeão de box e o campeão de jiu-jitsu. Pensei, no entanto, que
o velho braço tinha esquecido essas brincadeiras.
E não deixou a
conversa continuar sobre esse assunto. Começou a fazer o serviço, gracejando
com uns e com outros. Mas daí por diante o respeito por ele ainda aumentou. Era
deveras, ao mesmo tempo, querido e temido.
Ele tinha ido
para ali aos 25 anos. Sobre esses, outros 25 tinham passado. Quando chegou, vinha
com a mulher e o filho pequeno. Mais tarde, a mulher morrera, o filho fora
fazer o serviço militar e acabara empregado na cidade. Pesara
sobre a casa uma imensa solidão. Uma companheira viera dissipá-la.
Foi o melhor
tempo de sua vida. Essa companheira, Sofia, tinha 30 anos. Era a personificação
da alegria. A casa parecia um viveiro de pássaros, tanto ela se multiplicava
por toda parte e sempre cantando.
Ao fim de algum
tempo, Mateus viu, no entanto, como a situação não podia durar O pássaro ia
cantando cada vez menos. Caía sobre aquela habitação a ambiência da solidão agreste
e áspera. Si o olhar se estendia para um lado era, a perder de vista, a
planície nua. Si se voltava para o outro, encontrava a encosta da montanha a
pique, também nua, também deserta. Uma desolação, a estender-se sem fim, a
elevar-se sem fim.
Para lutar
contra esse estado de cousas, Mateus resolveu dar todos os meses, na noite do
primeiro sábado, uma f estinha: cantos, danças, cerveja á farta. Sofia acolheu
bem a idéia, que foi executada. Ao som de uma pequena vitrola se dançava.
Vinham de longe para isso, em parte pela alegria da reunião em parte pelo desejo
de agradar "seu agente"
Mas uma festa
de mês em mês pouco valia. Quando, em uma noite escura, alguém atira qualquer
brasa de um lado para outro, um risco de fogo corta a escuridão, mas a
escuridão torna a formar-se e ainda parece mais negra, mais densa, mais hostil.
Sucedia isso com aquelas festinhas mensais. Serviam para espessar a tristeza
dos outros dias.
Sofia não podia
mais: a exuberância do seu temperamento sufocava naquela agressiva solidão.
Um dia chamou o
Mateus:
— Tenho uma
coisa triste para dizer-te. Ele se apoiou de costas á mesa de pinho branco da
cozinha e disse, resignado:
— Eu sou. Mas
dize, dize.
Sofia lhe expôs
o seu caso. Não tinha dele nenhuma queixa, mas sentia não poder viver ali. Ia
deixá-lo. Podia ter feito isso sem preveni-lo, desaparecendo de um dia para
outro; mas isso não estava no seu caráter. Não queria sair como escrava fugida,
nem se afastar sem agradecer-lhe quanto havia feito por ela.
Mateus ouvia,
de cabeça baixa. De tão baixa não se lhe
via o rosto.
Sofia calou-se
por algum tempo. Depois interpelou o companheiro:
— Tu não dizes
nada?
Ele levantou o
rosto, pelo qual escorriam duas lagrimas e apontando para elas murmurou:
— Digo isto.
E ela replicou,
fazendo o mesmo gesto e mostrando estar igualmente chorando:
— Isso também
eu estou dizendo.
Houve um
silencio. Depois Sofia acrescentou:
— Eu fiz um
embrulho de quanto julgo ser meu. Amanhã ou depois, mandarei alguém buscá-lo.
Você verifique si eu me enganei e pus alguma cousa que não me pertença. Mateus
aprumou-se bruscamente. Os olhos levar é a mim.
— E tu me
julgas capaz disso: de revistar teus objetos? Aqui tudo é teu.
Sofia viu que o
tinha magoado profundamente.
Dirigiu-se a
ele, contrita e humilde:
— Perdoa, Mateus.
Eu não estou regulando minhas palavras.
— Pois precisas
regular, porque si dás apenas ordem a teu portador para levar as coisas tuas, a
primeira coisa que ele quererá faiscando de indignação:
Ela sentiu
quanto esse gracejo triste, era, como tantos outros, uma realidade profunda...
Sofia partiu.
Da janela, Mateus a seguiu, seguiu, seguiu. Enquanto houve o mais leve vestígio
dela, não descolou os olhos da sua imagem. Ia diminuindo, diminuindo,
diminuindo
.
Caía a noite.
Uma ventania furiosa sacudia as raras arvores isoladas da planície.
Caía a noite.
Ele tinha
perdido a noção de tudo: havia dentro do seu cérebro um vácuo de morte. Nem uma
imagem, nem um pensamento nítido.
Caía a noite
fora e dentro dele. Horas passaram. A treva se adensou. Só se ouvia o uivo
furioso do vento.
Afinal, com
grande esforço, ele procurou arrancar-se àquele marasmo doloroso.
Três dias
depois devia passar por ali, na sua visita de trimestre, o inspetor regional. Vinha,
arrecadava o dinheiro das cobranças e levava a papelada administrativa.
O dinheiro
naquele posto fiscal não era muito, mas a papelada burocrática — mapas, guias,
recibos. — era enorme.
Para se ocupar,
para fazer qualquer coisa, para ver si distraía um pouco o espírito magoado, o
Mateus começou a organizar aquele trabalho. Na repartição central os seus mapas
tinham fama de ser modelos de nitidez e ordem. Nos últimos anos, já nem quase
eram examinados. Ao passo que os outros sofriam uma inspeção meticulosa, os
dele passavam sem mais estudo. Em vinte e cinco anos, únicos, não tinham
merecido jamais, em ocasião alguma, sequer a mais pequena observação.
Mateus
embrenhou-se naquele cipoal de algarismos. E foi assim, noite adiante, até de madrugada.
Ao terminar,
disse a si mesmo em voz alta:
— Quantas
tolices terei eu cometido! Preciso mais tarde rever tudo isto.
Reviu á noite e
verificou que tudo estava certo: não teve o que emendar. Já automaticamente fazia
o trabalho perfeito.
Quando o
Inspetor Regional chegou, Mateus o recebeu como de costume: deu-lhe a chicara
de café ritual, entregou-lhe os papéis e o dinheiro. O Inspetor, um velho seco,
risonho e amável, passava em um velho automovelzinho,
por ele mesmo dirigido. Chegando, verificou apenas a soma recebida e deu o
necessário recibo. Já era tarde, não se demorou. Aliás esse era sempre o
costume do Inspetor apressado, ativo, alegre. E seguiu.
Mateus
acompanhou-o com o olhar. A noite descia rapidamente... Dentro em pouco, o que seus
olhos umedecidos pelas lagrimas viam, olhando sempre na mesma direção, já não
era a figura do que acabava de sair, mas a da que se fora dois dias antes na
mesma direção. Evocava-a. Alucinava-o.
Ficou assim
muito, muito tempo.
Tinham passado
mais de três horas, depois que o Inspetor partira, quando alguém, vindo do
ponto em que o automóvel dele se sumira, mas vindo em um bom automóvel, embora pouco
elegante, gritou-lhe á porta:
— Então,
Mateus, estiveste quase a perder o teu dinheiro?
— Que
dinheiro?!
O recém-vindo
contou-lhe o que ocorrera. O automóvel do Inspetor fora assaltado por alguém
que colocara algumas pedras no caminho para forçar o carro a parar O assaltante
dera vigorosas pauladas na cabeça do velho, rachando-a. Quase o matara.
Rapidamente lhe tirara todo o dinheiro. Não pudera, entretanto, gozar nada. Por
uma deplorável coincidência para ele, três carros com turistas alegres, que
vinham em poderosos automóveis, chegaram justamente nesse momento, foram também
obrigados a parar e, graças a isso, apanharam o salteador no mais flagrante dos
flagrantes, levando-o preso.
— E quem era?
— Era o Albano,
com quem agora está a Sofia.
Foi por aí que
Mateus soube este ultimo pormenor Ele o ignorava.
A narração do
informante era absolutamente justa. O Albano? Um belo rapaz, de origem
espanhola, operário em uma fabrica da cidade. Freqüentava as festas do Mateus.
Gozava de boa fama. No entanto, o Mateus podia gabar-se de bom fisionomista,
porque mais de uma vez dissera a Sofia, na intimidade, quando aliás de nada
desconfiava entre os dois: "Aquele sujeito não tem bons olhos" E, de fato,
eles assumiam freqüentemente uma expressão má. Isso não escapara a um
observador inteligente como era o Mateus.
Si o Albano
tivesse tido tempo de fugir, ninguém, entretanto, desconfiaria dele. Mas na planície
imensa, a pedra junto da qual o fato ocorrera era única. Ademais os automóveis dos
excursionistas vinham a uma velocidade enorme. Quando ele os viu, não teve mais
tempo de fugir e esconder-se. Apesar disso, tentou correr, mas deu apenas
alguns passos: foi inútil. Buscou resistir, puxando um revólver, mas os
excursionistas estavam todos armados e ele se achou sob a pontaria de seis armas
excelentes. Viu bem, que si resistisse, seria fuzilado impiedosamente.
Os
excursionistas amarraram-no como um leitão e puseram em um dos carros. No
outro, com infinitas cautelas, levaram o Inspetor, gravemente ferido.
Desde que soube
que o caso do Inspetor se ligava em parte a Sofia, Mateus tomou a norma de não
falar nisso a ninguém, a ninguém perguntar cousa alguma sobre o fato. Mas o
posto constituía o centro de encontro de gente loquaz, e, como essa era a
grande ocorrência do lugar, querendo ou não, por trechos de conversas, foi
sabendo tudo quanto havia.
O Inspetor
esteve entre a vida e a morte perto de três meses. Durante esse tempo, o processo
prosseguiu. Os excursionistas, convidados a depor resolveram que viriam em
pessoa: seria um passeio. Eram moças e rapazes ricos. Isso lhes quebrava a
monotonia da vida ociosa.
Afinal, quase
ao completar o quarto mês, marcou-se o dia do julgamento.
Ele correu sem
incidentes. Albano se resignara á sua sorte e tudo confessara. Quanto á
cumplicidade de Sofia, ele a negara firmemente: sustentara a sua absoluta
ignorância do processo. Isso, entretanto, não convenceu o promotor e a moça
continuou presa.
No dia do
julgamento, o Tribunal da cidadezinha, onde o caso se julgava, estava repleto,
transbordante, apesar de não apresentar o fato novidade alguma ante a confissão
do réu. Mateus, a ultima pessoa que falara ao velho inspetor antes de ser este vitima do crime, figurava
como testemunha.
O promotor,
embora sem necessidade alguma, diante de um caso liquido, foi prolixo. Depois
de atacar o Albano, lembrando outros crimes, dos quais só agora começavam a
suspeitá-lo, tratou de Sofia. Outra, a seu ver, não podia ter sido a inspiradora
do bandido, a sua incitadora.
Nesse momento,
da cadeira de testemunha onde estava, Mateus fez um gesto ao juiz, pedindo-lhe
para falar.
O promotor
calou-se e avidamente acudiu, reforçando também por gestos ao magistrado a
solicitação.
Previu logo
como aquele homem, ferido tão recentemente pelo abandono de Sofia e
conhecendo-a profundamente, não podia deixar de trazer algum depoimento
oportuno e talvez decisivo contra ela.
Mateus em voz
alta e pausada, interveio:
— O senhor
promotor acha que o criminoso terá agido por instigação da sua nova companheira.
Eu tenho certeza de que isso não aconteceu.
Juiz e
promotor, ao mesmo tempo, exprimiram pela mesma palavra o seu espanto:
— Certeza?!
Mateus retomou
a sua exposição:
— Eu vivi com
essa mulher três anos e tanto. Nossa casa, o posto de fiscalização das rendas,
é um ponto pelo qual passam todos os contrabandistas destes arredores. Aí
sabíamos de todos os crimes destas redondezas. Uns os contavam apenas, outros
os louvavam, outros os censuravam. Sofia, sem uma exceção, sem uma atenuação
para estes ou aqueles, sempre condenou tudo quanto era crime, quanto era violência,
quanto era brutalidade. Fazia isto diante dos outros e na intimidade comigo.
Uma pausa e
concluiu.
— Aí está, Sr.
Juiz, porque eu tenho certeza de não ter ela inspirado crime nenhum. Eu devo
conhecê-la: três anos não são três dias.
O Juiz era um
velhinho amável, muito atento, mas nem sempre se continha rigorosamente dentro
de suas funções. Freqüentemente intervinha nos debates.
Fez isso ainda
uma vez:
—Tem razão. Seu
depoimento é decisivo...
O promotor não
quis ficar atrás. Ele não tinha aliás prova alguma de suas conjecturas. Sentiu,
sobretudo depois da manifestação do Juiz, que perderia a partida quanto á
Sofia, e declarou imediatamente abandonar a acusação a seu respeito. Teve
apenas, para terminar, algumas frases ferozes contra o Albano.
Em tais
condições, o julgamento era fácil de prever: a condenação do criminoso, com todas
as agravantes do Código, e a absolvição completa de Sofia.
A sessão do
Tribunal terminou quase ao fim da tarde. Quem ia saindo seguia logo para suas
casas.. Alguns, porém, ficaram em pequenos grupos nas vizinhanças do Tribunal,
para ver a partida do criminoso, de Sofia, do Juiz, das testemunhas. Mateus,
transposta a porta, meteu-se entre esses grupos, de modo a não ficar muito em
evidencia, querendo ver passar Sofia, sem por ela ser visto.
Mas foi em vão.
Assomando á porta do Tribunal, a moça parou um pouco e seus olhos inquiridores,
perscrutando, verrumando as trevas para ver si descobriam Mateus, prontamente o
acharam. Sofia dirigiu-se a ele, de mão estendida:
— Eu não quis
ir-me embora sem te agradecer: a ti devo a minha liberdade... Adeus.
E apertou-lhe a
mão fortemente. Depois, destacando-se, murmurou ao partir, falando mais consigo
mesma:
— Si
arrependimento salvasse...
Mateus, ainda a
ouviu. Pôs-lhe a mão no ombro para forçá-la a parar:
— Salva, sim;
vem!
Ela teve um
deslumbramento. Documente, sem uma palavra, quase diria, encolhidinha de alegria,
de uma alegria intima a penetrá-la toda, acompanhou-o.
Na mesma
direção não ia mais ninguém. O casal seguiu só, unidinho de novo.
A noite era boa,
tépida, agasalhadora.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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