MENELIK, O
LEÃO
Quando o pintor
Machado quis mudar-se para o atelier, vago com a morte do seu amigo Antunes,
teve grandes dificuldades. Onde achar fiador idôneo? A sua reputação de
caloteiro estava tão solidamente firmada como a de grande artista. Achava-se
mesmo, quando o amigo morreu, com uma ordem de despejo do proprietário da casa
onde habitava.
Sucedera com
essa ordem um episódio engraçado. O proprietário, cuja caligrafia habitual já
era deplorável, a escrevera num rompante de exasperação. Não havia por isso nem
uma só palavra inteligível.
O Machado deu o
escrito a interpretar a varias pessoas, mas ninguém logrou entender cousa
alguma.
Na realidade,
embora sem ter lido nada, ele previa bem o seu conteúdo. Fez-se, porém, de
inocente e teve o topete de ir procurar o proprietário.
A recepção
deste — e aliás não surpreendeu o Machado — esteve longe de ser das mais amáveis.
Ia o pintor tirando da sua ensebada carteira a ininteligível missiva e começara
exatamente dizendo tê-la recebido e não a ter podido entender, quando o
proprietário, rubro de cólera, o interrompeu, recusando ver o papel:
— O escrito aí
quer apenas dizer: "Ponha-se na rua!" Mais palavras ou menos palavras
pouco importam. O sentido é este.
O fim da
palestra não foi mais gentil. Machado viu a situação: tinha mesmo de mudar-se.
Mas para onde? Para onde?
Nesse momento
vagou o atelier do Antunes. Nele havia uma esplendida sala com sete metros
de comprimento e no fundo um grande espelho. Um ideal! Os pintores aproveitam esses
casos, porque, pondo um quadro na parede fronteira ao espelho e colocando-se
junto do quadro, podem ver-lhe a imagem ao dobro da distancia. Praticamente, no
caso do atelier do Antunes, cobiçado pelo Machado, era como si a sala
tivesse 14 metros .
Magnífico!
Machado foi ao
proprietário — Sr Guilherme — e formulou a sua candidatura. O homem lhe pediu
fiador. O pintor teve uma idéia. Fez-lhe um pequeno discurso:
— Eu vou deixar
uma casa do comendador Gloria. O senhor não ignora como o comendador é um
proprietário feroz, um proprietário implacável. No entanto, veja sua carta.
Sacou do bolso
uma carta — era precisamente a da sua expulsão — na qual havia o cabeçalho da
casa de comercio do comendador, e leu em voz alta, como si fosse este o seu
textual conteúdo:
"Meu caro
senhor Machado,
Lamento muito a
sua resolução de deixar a minha propriedade, da qual foi o melhor inquilino, o
mais constante pagador.
Verifiquei com
prazer não me ter enganado quando confiei na sua palavra e lhe entreguei as
chaves da minha propriedade sem fiador algum, contra o meu costume."
E num gesto
cinicamente confiante o pintor passou o documento ao proprietário. Este o tomou
e procurou lê-lo; mas não entendeu nada. Teve, porém, vergonha de confessar esse
fato.
O proprietário
era aliás um sujeito muito míope. Usava uns óculos redondos com grossos aros de
ouro. Apesar disso aproximava do rosto os jornais e papeis a ponto de quase os
esfregar nele. Era licito perguntar si ele lia com os olhos ou com o nariz.
Via-se,
entretanto, muito bem na famosa carta a assinatura: "M. Gloria" e ela
corroborava o cabeçalho. O proprietário devolveu o papel e murmurou:
— Bem. bem.
Isso vale mais que uma carta de fiança.
E depois de um
minuto de reflexão acrescentou:
— O apartamento
é seu. Aqui lhe dou a autorização para lhe entregarem as chaves.
E passou-lha. A
custo o Machado reprimiu um sorriso. No dia imediato estava instalado na sua
nova residência: a abundância de móveis não lhe poderia dificultar a mudança.
Esta, porém,
foi comemorada com uma comezaina festiva, em companhia de cinco camaradas. A
regra nessas comezainas era que cada um trazia alguma cousa "para melhorar
a bóia". Às vezes, no entanto, essa melhoria era toda a bóia. Havia,
porém, de bom a alegria daquelas seis almas moças, despreocupadas, cheias das
mais prodigiosas esperanças.
O estratagema do
Machado para apanhar as chaves obteve um enorme sucesso de hilaridade.
Acabado o
jantar, saíram juntos os seis a passear A noite estava tépida, deliciosa. Perto
viera instalar-se um circo: O Grande Circo Transatlântico. Seria igualmente difícil
dizer porque ele era Transatlântico e porque Grande. Bem pelo contrario,
constava de uma pequena armação de lona e uma pequena arquibancada. Quanto á
pista central era do tamanho regulamentar, fixado pela convenção internacional
para todas as pistas de circo.
Os seis
artistas instalaram-se nas arquibancadas e foram os espectadores mais alegres e
ruidosos da noite. Com o palhaço, de uma estupidez fenomenal, travaram longos
diálogos . Isso divertiu imensamente o publico. Um numero, entretanto, causou
impressão tremenda no Machado: era uma mulher montada num cavalo em pêlo. Fazia
coisas realmente maravilhosas.
A mulher era
soberba. Tinha um corpo fino, elástico, admirável. O cavalo no qual trabalhava —
e trabalhava quase nua, apenas com um ligeiro calção e duas pequenas couraças, sustentando
os pequeninos seis, firmes e lindos — merecia também os maiores elogios.
— Um admirável
quadro a fazer: A Amazona, pensou o Machado.
Aos seus olhos
de pintor essa tela apareceu imediatamente: nua, muito branquinha, no cavalo todo
negro. Seria lindo!
Além desse
numero, o mais notável era o leão Menelik.
O dono do circo
aparecia e fazia um discursinho. Explicava como o leão fora apanhado na Núbia.
Era feroz e traiçoeiro. Nunca pudera ser bem domesticado. Tinha matado dois
domadores.
O proprietário
pedia aos espectadores que durante a exibição de Menelik se abstivessem de
fumar. Os pontos acesos de fogo tinham o dom de irritá-lo e, já mais de uma
vez, a fera avançara para as arquibancadas onde havia fumantes.
Dito isso,
baixavam-se muito as luzes. O leão trabalhava em meia escuridão. Ouviam-se muitos
urros e o domador parecia extremamente medroso, porque a cada passo
multiplicava os tiros de pólvora seca, para assustar a fera. Esta, porém, pouco
fazia.
Nos dias
seguintes o Machado começou a freqüentar o circo durante o dia, para convencer a
mulherzinha do cavalo, afim de vir pousar para o seu quadro.
O Machado era
um belo rapaz. Muito inteligente e alegre, não lhe faltava lábia. Facilmente conseguiu
o seu desejo e a mulher decidiu-se a pousar para o quadro por ele projetado. Por
sua vez, ele entrou na intimidade do diretor e de todos os artistas do Grande Circo
Transatlântico. Praticamente, parecia fazer parte da companhia.
Estava
radiante. O quadro foi ficando soberbo. Mas no meio de tudo, ele se esquecia apenas
de uma cousa: de pagar a casa.
Não foi de
admirar quando um dia amanheceu com uma ordem formal de despejo do proprietário.
Em uma carta insolentissima este lhe dizia: rua! imediatamente na rua!
Mas o Machado
mostrou-se á altura da situação:
Foi ao
telefone:
— Faça o favor
de vir cá amanhã ás 3 horas da tarde, trazendo o recibo não só do vencido como
dos três meses do próximo trimestre. Pagarei adiantado. Traga o recibo já selado
e prontinho!
O proprietário
não cabia em si de espanto: mas rejubilou. Lá estaria, no dia imediato, com o
recibo. Iria em pessoa fazer o recebimento, como aliás era o seu costume.
E no dia
seguinte lá estava, de fato, sendo recebido pelo Machado, com uma cara muito séria.
O Sr.
Guilherme, com os seus grandes óculos de aro de ouro, cumprimentou o pintor, entrou
e preparou-se para receber o dinheiro. Foi mesmo logo retirando o recibo da
carteira. O Machado lhe moderou um pouco a pressa:
— O Sr
Guilherme terá a bondade de demorar-se alguns minutos, porque eu estou
esperando o dinheiro. Não perderá muito tempo.
Posto de bom
humor pela perspectiva da soma a embolsar, o proprietário corria os olhos pela
casa. Viu no fundo o quadro com a Amazona . Era realmente uma formosa tela. O
contraste entre o corpo muito branco da mulher e o pêlo sedoso e negro do
cavalo fazia cada um deles realçar o outro. Mesmo a despeito da sua miopia e da
sua absoluta falta de educação artística, o capitalista não podia deixar de admirar.
O Machado
interveio:
— Tenho
trabalhado, meu caro senhor Mas quando o proprietário ia talvez fazer um
cumprimento ouviu rosnar surdo e viu alguma cousa a mover-se.
— Como se chama
aquilo? Parece um leão.
— Parece, não —
corrigiu o Machado. É o mais autentico dos leões.
— Mas o senhor
tem um leão dentro de casa?!
— Nada mais
natural. Precisando pintar uma cena do deserto, obtive para modelo o leão do
circo vizinho, o Menelik.
— O Menelik
saltou o proprietário horrorizado, pondo-se de pé. Mas isso é um perigo enorme!
Ele ouvira os
netinhos falarem-lhe da terrível fera.
Durante esse
tempo, o Menelik se aproximava.Machado aconselhou ao Sr. Guilherme:
— É melhor o
senhor tirar os óculos. Com os seus grandes aros de ouro, eles espantam e podem
irritar um pouco o animal.
Este era deveras
o autentico Menelik do Grande Circo Transatlântico.. Como si tivesse entendido
o que se dizia, o leão adiantou-se e rosnou ameaçadoramente.
O Sr...
Guilherme deu-se pressa em obedecer á sugestão do pintor.. Era para ele um inconveniente,
porque ficava quase cego.. Continuava a murmurar:
— É um
perigo... É um perigo...
Machado, com um
grande desprendimento filosófico, lhe respondeu:
— Ora, Sr
Guilherme, de perigos vivemos nós cercados. E não são os visíveis os piores.
O proprietário
não parecia conformar-se com esta resignação evangélica. Todo ele tremia.
— Mas o senhor
não tem medo?
— O animal não
é tão feroz como o fazem crer os reclames do circo. Salvo um ou outro caso,
quando se irrita com certos visitantes, tudo vai bem. Outro dia, por exemplo,
aqui veio um moleque. Menelik embirrou com ele, avançou e, com uma dentada,
arrancou-lhe a barriga da perna esquerda. Também não foi além. Hoje pela manhã
aqui esteve o idiota de um advogado, que me quer fazer pagar 3:000$000 pela
barriga da perna do moleque.
— Mas o
advogado tem razão! Ponderou o proprietário.
E prudentemente
anunciou a intenção de retirar-se.
—Eu voltarei
amanhã ou mandarei alguém, Sr Machado.
Menelik, que
rodava lentamente pela sala, rosnou surdamente e foi deitar-se bem junto da
porta da saída.
— E esta!
Machado atalhou
com energia:
— Tenha
paciência, Sr Guilherme. O senhor me escreveu uma carta muito áspera, muito desagradável
e eu não durmo outra noite com aqueles desaforos pesando sobre mim. O senhor
hoje quando sair d'aqui, não será mais meu credor. Sairá quite. Seremos amigos,
mas não lhe deverei mais nem um vintém.
A agitação do
capitalista crescia de momento a momento. Todo ele tremia lançando olhares furtivos
para o lugar onde estava o leão. Aliás, sem óculos como estava, distinguia
apenas uma massa confusa e rosnante. Porque Menelik parecia estar ficando
irritado. E por sua vez, firmemente, o pintor repetia: O Sr. Guilherme, ao sair
naquele dia dali, não seria mais seu credor Ele, Machado, tinha
"atravessada na garganta" a carta insultuosa do proprietário.
Este, porém, ao
passo que os roncos de Menelik cresciam, tremia de pavor Todo o seu corpo, e
era um corpanzil obeso, tremia como uma mola de campainha elétrica em vibração.
Afinal, sacando da carteira o recibo do pintor, recibo por todo o passado e
mais os três meses por vir, disse-lhe gaguejando:
— Olhe, Sr
Machado, eu não posso mais esperar. Tome! Tome! O senhor não me deve mais nada.
Estamos quites! Estamos quites! Eu não posso continuar a correr aqui este perigo.
A vida é mais importante que alguns mil réis. Afaste esse leão para eu sair.
Machado,
tomando o papel e metendo-o no bolso, ia, entretanto, dizendo:
— Quanta
impaciência, Sr Guilherme! O senhor não
corre perigo.
E mandou o leão
afastar-se:
— Sai, Menelik!
O leão saiu.
Machado ainda viu no corredor o Sr. Guilherme repondo os óculos e partindo.
Ao fechar então
a porta, levantou o leão, abraçou-se com ele e dançaram um maxixe furioso. Porque
o famoso Menelik não passava de um embuste do Grande Circo Transatlântico. Era
um figurante hábil quem envergava a pele do animal. Por isso o diretor do circo
tinha o cuidado de preparar aquela encenação, baixar as luzes, pondo tudo quase
ás escuras. Intimo do diretor, como acabara por ser, Machado passara também a
intimo de Menelik.
E agora os
dois, abraçados, maxixavam furiosamente e o Machado agitava na mão o recibo.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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