VÊ-LA E
AMÁ-LA
Ás 8 horas da
manhã as empregadas estavam chegando ao escritório de Carvalho, Bentes &
Cia. Limitada. Era todo o quarto andar de um arranha-céu bem vasto. Chegavam e
iam para a sala de toilette.
Bentes, o
diretor de todo o serviço, era um velho rabugento. Bom e generoso, mas de forte
misóginismo. O pessoal feminino da casa estava sujeito a regulamento muito
apertado e cheio de extravagâncias.
Apertado,
porque o velho não transigia no capitulo
da pontualidade.
Devia ser
estrita, matemática:
— Quem quizer
pôde chegar um mez antes, um mez ou um século, mas não pôde chegar um minuto
depois — explicava o velho Bentes.
No escritório
não trabalhavam homens. Cada empregada, ao entrar, devia enfiar um overall de
brim pardo e pôr um bonezinho, igual para todas. E quem viesse pintada devia lavar
o rosto. O velho rabujava:
— O Carnaval
tem tempo certo. Não quero aqui gente pintada. Quando tiverem de sair, pintem-se
á vontade, já que a policia admite gente mascarada fora da época. Aqui dentro, não
ha disso.
As moças
desesperavam-se. Era monacal. Diziam mesmo: "Vamos para o convento!" Mas,
bem vistas as cousas, valia a pena fazer parte do pessoal do escritório de
Carvalho, Bentes & Cia. Limitada. O ordenado era bom, pago pontualmente, e,
si alguma caía doente, o medico da firma ia vê-la. Não se lhe descontava nada e
o velho mandava dar os medicamentos.
Além do chefe,
o único homem que trabalhava no estabelecimento era o filho dele, o Alfredo,
belo rapagão de 30 anos, atleticamente forte. Juntava a isso ser muito bonito.
As moças chamavam-lhe assim de longe — porque nem ele dava, nem tomava
confiança com nenhuma.
De veras, mesmo
a única com quem falava era Margarida, a secretária do pai. Ela trabalhava na
sala deste, contígua á do filho.
Margarida era
bonita. Mas não se dava por isso, sob a indumentária forçada da casa. Com
aquele uniforme, a Venus de Milo, a Gioconda, qualquer outra beleza célebre —
todas ficariam mediocrisadas, enfeadas, grotescas.
Quando
Margarida entrou para o escritório de Carvalho, Bentes & Cia., o pessoal
feminino a recebeu com verdadeira hostilidade. Começava pelo posto mais alto,
por todas cobiçado. Fora, porém, recomendada pelo outro sócio da casa, o maior
capitalista da sociedade. Apelidavam-no por gracejo "o Companhia", porque
a ele se referia aquela designação da firma. Dissera "o Companhia" ao
Bentes:
— Você
experimente a rapariga como secretária, por dois ou três meses. Si não prestar,
dê-lhe outro serviço.
Mas prestou.
Prestou admiravelmente. Apreendia tudo, á primeira vista. Acabou mesmo conquistando
a simpatia de todas as colegas, para cada uma das quais tinha uma frase de
agrado, uma amabilidade. Redigia muito bem. Era uma datilografa perfeita.
Às vezes,
quando o velho Bentes chegava, já Margarida tinha aberto a correspondência, segundo
a autorização dada por ele e preparado respostas a todas as cartas. Algumas
destas só podiam ter uma solução: ela a tinha dado. Outras, porém, eram casos
duvidosos. Margarida fazia varias respostas, uma afirmando, outra negando e uma
terceira propondo condições especiais.
Ao velho Bentes
bastava apenas escolher a solução preferida e assinar Por isso dizia:
— Antes desta
moça vir para aqui, eu levava três ou quatro horas para fazer meu serviço. Agora,
faço-o em meia hora.
E o elogio não
era excessivo.
O velho punha
grande empenho em fazer ler tudo ao filho, para ele estar a par de todos os
negócios da casa.
Margarida tinha
uma amiga muito rica: Maria Teresa. Amizade de colégio, intima e profunda,
prolongada pela vida a fora, com toda a sinceridade. Alguns meses antes de
entrar para o escritório onde estava, ela fora visitar essa ex-colega e tivera
a surpresa de achá-la doente. Encontrou precisamente á porta, despedindo-se, o
médico — o velho médico da casa — dizendo a D. Rita, por todos chamada "a viúva
Santos Brandão", mãe da sua amiga:
— Não se pôde
esconder: o caso é gravíssimo, mas não de todo desesperador: depende, sobretudo,
de muito cuidado. Eu vou mandar-lhe uma excelente enfermeira.
Margarida não
sabia de nada. Apesar disse, colhida assim de surpresa, ao ouvir as ultimas
palavras do facultativo, não teve um momento de hesitação. Segurou-o pelo braço
embora não o conhecesse e ali mesmo declarou:
— O Dr. não vai mandar ninguém: a enfermeira sou
eu. Não saio d'aqui, enquanto Teresinha não estiver boa.
D. Rita e o
médico insistiram, para Margarida desistir desse propósito; mas ela não cedeu:
— D. Rita, ou a
senhora me manda pôr fora, á força, por seus criados ou eu não consinto mais
ninguém se ocupe com Teresinha.
E durante
quinze dias foi enfermeira, foi criada, foi tudo da amiga. Foi principalmente uma
dedicação incomparável e ilimitada.
A doente se
levantou e certa vez, estava agradecendo ao médico tê-la posto boa. Este lhe
respondeu, apontando para Margarida:
— Você deve
tudo é a esta moça. Sem ela todas as drogas da minha medicina não valeriam
nada. E falta acrescentar: sua amiga pôde gabar-se de ter curado a mais
insuportável das doentes.
Quando o médico
saiu, Teresinha disse á amiga:
— Eu não sei si
este homenzinho imaginou estar fazendo modéstia; mas ele não disse senão a
verdade: tu foste a minha salvação.
E, ainda uma
vez agradecida, beijou Margarida, impedindo os seus protestos.
Depois disso
mais de um ano passara.
Um belo dia,
Margarida recebeu um pedido telefônico de Maria Teresa para ir vê-la, quando
saísse do emprego.
Esperava-a a
maior das surpresas. A amiga tinha uma assinatura de teatro para uma temporada
de opera. Assinatura de camarote. Mas a mãe não se sentia bem. Não podia acompanhá-la.
— Você vai
comigo.
— Mas é
impossível. Eu não tenho vestidos para isso.
Maria Teresa
lhe explicou o caso. Não indo a mãe, ela podia convidar alguma das numerosas primas:
era, disse, gênero abundantíssimo provido na família. Nenhuma, porém, lhe
agradava. E si convidasse qualquer, criaria logo grave conflito doméstico: as
outras se queixariam. Decidiu, portanto, ir com Margarida
.
Havia o
problema dos vestidos. Mas esse era o mais fácil de resolver porque Maria Teresa
podia emprestar ou dar todos quantos Margarida quisesse. Tinham exatamente o
mesmo corpo. O caso serviria a Teresinha de pretexto para fazer á amiga muitos
presentes desse gênero. Em nada teria maior prazer. Sabia ser agradecida.
Aceito o
convite, começou para Margarida um período delicioso. Ao sair do escritório, ia
para a casa da amiga fazer-se pentear, vestir-se a capricho, transformar-se, ou
como ela dizia: "ser promovida a gente" Quem a visse á noite, bem
vestida, bem penteada, com um soberbo colo á mostra, não reconheceria de certo a
empregadinha de overall de brim pardo, com uma coifinha ridícula, os
lábios e as faces pálidas. Era uma transformação completa.
Ademais
qualquer dos vestidos arvorados por Margarida valia, de certo, mais de um mês de
vencimentos de secretária do velho Bentes. Isso aumentava ainda a dificuldade
para qualquer pessoa identificá-la com a espectadora do teatro.
De como a
transformação merecia bem o qualificativo de completa houve entre outras provas
a fornecida por um amigo do Bentinho. Rapaz rico. O pai fingia ocupá-lo em
qualquer cousa, mas de fato, ele só se ocupava em divertir-se. Esse rapaz, o
Guilherme Loureiro, costumava ir buscar o Bentinho á hora do almoço. Tomavam-no
sempre juntos, em um hotel.
Quando
Margarida surgiu á primeira vez no camarote, ao lado da amiga, o Loureiro, da platéia,
onde estava, assestou o binóculo para ela e pareceu cair em êxtases. Tê-la-ia
reconhecido? De modo algum. Mirava-a e remirava-a infatigavelmente.
No dia
seguinte, ele entrou no gabinete do Bentinho quando Margarida aí estava. A moça
tremeu: dir-lhe-ia ele qualquer cousa? Não disse. Era positivo não suspeitar
nada.
E foi assim em
outros dias.
Em um deles,
porém, quando entrou, viu-se interpelado pelo Bentinho, gracejando:
— E então como
vai a paixonite aguda?
— Ou eu descubro
quem é aquela pequena ou dou um tiro nos miolos.
— Isso é
impossível.
— Por que?
perguntou o rapaz, formalizado.
Você não me
acha com coragem para fazer saltar os miolos?
— Coragem
talvez você tenha; faltam-lhe, porém, os miolos. Não salta nada.
— Em ultima
análise, abro a porta do camarote da viúva Santos Brandão e pergunto á pequena
si quer casar comigo. À queima-roupa. Ou vai ou racha!
— E si ela
aceitar a proposta?
— Eu caso.
— Pobre moça!
comentou rindo o Bentinho. Não a conheço, mas lastimo-a! Triste sorte a espera!
Margarida
estava quase a rebentar de riso, traindo-se. Saiu um pouco da sala, combinou qualquer
cousa com o criado do gabinete e voltou para o seu lugar Obedecendo á ordem recebida,
o criado entrou e anunciou em voz alta, falando á
moça:
— Da casa da viúva
Santos Brandão mandam dizer que a senhora, podendo, telefone para lá.
O Loureiro deu
um pulo:
— A senhora
conhece a viúva Santos Brandão?! Como não dizia?
— Eu não tenho
o costume de intrometer-me nas conversas alheias.
— Mas este é um
caso de assistência publica, um caso a demandar socorro imediato.
E a gracejar, aproximando-se dela:
— Moça
perversa, moça malvada, sabe quem é a pessoa de quem eu estava falando?
— Julgo já a
ter visto algumas vezes, mas não tive a curiosidade de indagar quem era, mesmo
porque não a achei assim tão bonita.
O senhor devia
mudar de binóculo: talvez o seu tenha algum defeito.
Intimamente, o
Loureiro viu naquela afirmação um simples exemplo de inveja e despeito femininos.
Perguntou, porém, a Margarida si podia fazer alguma cousa para bem informá-lo.
A moça meditou um pouco e fez-lhe estranha proposta:
— Hoje é dia de
espetáculo. Vá. Entre o primeiro e segundo ato, arranje-se de modo a ficar
parado no corredor. Pôde ser mesmo encostado á parede, mas diante do camarote
de minha amiga. Bem defronte da porta.
— E depois?
— Depois ? Não
lhe digo mais nada. Ver e amar a desconhecida, de longe, a binóculo, foi obra
de um instante, mas vê-la, falar-lhe de perto, bem de pertinho e desamá-la —
vai ser obra de outro instante.
O Bentinho
tendo ouvido a combinação, perguntou si podia ir também. Margarida não só
consentiu, como animou: não faltasse.
Os dois sairam,
juntos, como de costume, conversando. Nenhum previa qual seria o plano de
Margarida. Mas falando dela, o Bentinho disse ao amigo quanto era hábil e
inteligente:
— Meu pai lhe
faz os maiores elogios.
— E si teu pai
os faz, ela deve merecer o dobro ou o triplo: ele não é precisamente amável com
o pessoal feminino.
À noite os dois
não faltaram.
Margarida tudo
contou á amiga. Esta ficou satisfeitissima. Precisamente, acabava de receber um
vestido esplendido. Era um mimo de luxo e beleza. Maria Teresa fez questão que Margarida
o estreasse. Em vão, esta protestou; teve de ceder Penteada a esmero, calçada a
primor, com uma pintura discreta, mas por isso mesmo mais realçadora ainda da
sua beleza, Margarida radiava, deslumbrava.
Teresinha pôs
todo o cuidado em não haver nenhum defeito no trajo da amiga. Quando esta
assomou ao camarote, foi como quando se põe uma barra de imã perto de um maço
de agulhas.
As agulhas eram
os binóculos: todos se voltaram automática e irresistivelmente para a moça.
Entre eles não faltaram os do Loureiro e do Bentinho.
Quando o ato
acabou, Margarida deixou passar alguns minutos, deu tempo á platéia esvaziar-se e abriu a porta do camarote.
Defronte dela, conversando, mas disfarçadamente atentos, estavam o Bentinho e o
Loureiro.
Margarida
adiantou-se sorrindo para os dois e lhes disse, estendendo a mão ao Loureiro:
— Está vendo
como se dissipa uma ilusão! Mas o Loureiro parecia assombrado, abobalhado, perdida
a fala. Um medico daria como diagnóstico ao seu caso: estado de choque. Ele
ainda não reconhecera de todo a moça. Com os olhos arregalados, em uma
expressão de espanto, lutava entre a evocação da empregada de overall de
brim pardo e a formosa criatura que ali tinha radiante de beleza e graça,
perante seus olhos.
Margarida o
acordou:
— Está custando
a reconhecer-me? Sou eu mesma, a Margarida com quem esteve a conversar esta
manhã no escritório do Sr. Bentes . Nunca houve outra pessoa no camarote de minha
amiga.
Loureiro
continuava sem saber como procedesse. Margarida o levou a aproximar-se da amiga,
apresentou-os e fê-lo entrar no camarote. O rapaz foi recuperando pouco a pouco
o sangue frio. Lembrava-se agora, além do
mais, de quanto
o Bentinho lhe dissera sobro as altas qualidades da moça. Via que á
inteligência, juntava a beleza e o espírito.
Em dado
momento, Margarida voltou-se gracejando:
— Não tenha
receio: não tenciono cobrar-lhe a declaração explosiva desta manhã. Ia fazê-la,
não propriamente a mim, mas a mo fantasma, criado por sua imaginação. Já deve estar
curado. E não se esqueça de jogar fora o seu binóculo: com toda certeza o
defeito a dele.
Loureiro, fascinado
cada vez mais com o adorável sorriso da moça, interrompeu-a:
— Mas a senhora
está dizendo coisas inexatas. Não estou nem quero ficar curado. Já ouviu esta
manhã a minha declaração. Sabe como ela é — e isso me dispensa de repeti-la. Responda,
porém, como si a estivesse acabando de ouvir. Diga "sim".
Margarida ficou
vermelha como uma papoula Exclamou assombrada:
— Oh! Não
brinque.
— Não estou
brincando. E' tudo quanto há de mais sério.
Mas a moça
recusou-se a dar a resposta ali mesmo, como queria o Loureiro. Ela tinha mais juízo.
No dia
seguinte, o velho Bentes, ao sair á hora do almoço, encontrou o rapaz no
gabinete do filho. Era um encontro freqüente. Margarida também estava. O velho
precipitou as cousas sem querer, porque julgava tudo resolvido. Como o filho
lhe houvesse contado a cena da noite anterior, ele disse a Margarida, ao
passar, sorrindo:
— Ainda não me
convidou, mas eu mesmo me convido: o seu padrinho de casamento serei eu.
E foi.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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