quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Medeiros e Albuquerque: "Freudismo"

FREUDISMO

A pequena Ruth Espinosa nunca percebeu bem porque o Sr. Smith, diretor d'A Trombeta da Fama, primeiro se revelou apaixonado por ela, pareceu disposto a pedi-la em casamento, e depois, subitamente, não lhe falou mais nisso, passando até a manifestar-lhe verdadeira antipatia. De veras, ela menos compreendia a segunda parte, porque uma moça  de 20 anos, incontestavelmente bonita, sempre acha natural o fato de todos se apaixonarem pelos seus encantos. Mas, si o Sr Smith cumprira a sua obrigação de homem de bom gosto, não via razão para o seu abandono de tão nobres intenções. Teriam sido intrigas, calúnias, afirmações miseráveis, veiculadas por cartas anônimas? Tudo era possível. O mais estranho, porém, seria si alguém interpelasse o Sr Smith.. Ele também não saberia responder.

Só um homem poderia explicar o caso, mas esse precisamente nunca o faria: o atual marido de Ruth, o desenhista Márcio Rafael...

A agencia A Trombeta da Fama incumbia- se de publicidade em geral, sob todas as suas formas: na imprensa, nas ruas, em cartazes, pelo radio, de todos os modos. Quem queria tornar célebre um produto dirigia-se a ela e estava seguro de que A Trombeta da Fama saberia trombetear o artigo de cuja propaganda a tinham incumbido. Todos o ficariam conhecendo. A agencia tornara-se célebre pelos seus cartazes. Mario Rafael tinha uma grande originalidade e espírito. Seus cartazes faziam verdadeiro sucesso. Não era raro ver amadores de bom gosto irem comprá-los á empresa para os colecionar.

No entanto, um belo dia, certo diretor pouco inteligente tivera uma desavença séria com Márcio Rafael. Este lhe dissera meia dúzia de desaforos e saíra da empresa.

De fato, ele não podia admitir as críticas de um idiota, metendo-se a corrigir-lhe os desenhos, a pedir que fossem feitos deste ou daquele modo... O diretor comercial tinha apenas a dizer-lhe o fim visado e indicar o tamanho do cartaz.

Com a saída de Márcio Rafael, A Trombeta da Fama desafinou. A agencia esteve quase a fechar O desenhista seu substituto fazia uns cartazes sem graça, calamitosos. Felizmente as coisas se concertaram, com a substituição do tal diretor e a volta de Márcio Rafael . Foi nessa ocasião que o Sr Smith tomou conta da empresa e Márcio, voltando ao seu antigo posto, fez mencionar em contrato a sua liberdade inteira na parte artística. Desenhava á sua vontade, como queria; ninguém tinha o direito de criticá-lo. A agencia funcionava em vasto primeiro andar de um prédio bem central. Smith não quisera divisões, tapamentos, gabinetes separados: era tudo uma sala só, de 10 metros de frente sobre 20 de fundo. Cada um tinha sobre sua mesa um telefone interno, com o qual podia comunicar-se para qualquer das dos outros empregados. O sinal do telefone não era sonoro: só uma lâmpada que se acendia. Era proibido levantar-se de uma mesa para ir conversar em outra. Ademais, todas as máquinas de escrever eram do tipo silencioso. Assim naquela enorme sala, com tanta; gente trabalhando, não havia barulho. Smith bem ao centro, fiscalizava tudo.

Mas o característico mais curioso dessa  enorme peça clara eram as paredes coberta de cartazes. O cliente, indo contratar qualquer gênero de publicidade, podia ver os anuncio ilustrados afixados pela empresa por toda pai te, no país inteiro. Todas as semanas Marcio. Rafael ou os substituía ou pelo menos os mudava de lugar, mas tinha sempre o cuidado de por o melhor bem defronte da mesa do diretor.

Este, porém, parecia nem o examinar Prestava atenção ao seu tamanho, para faze o preço aos fregueses da casa, mas não apreciava finuras artísticas. Era inteiramente destituído do sentido da beleza.

A única pessoa com quem ele conversava. Um pouco era precisamente Márcio Rafael Com o resto do pessoal lidava de um modo indiferente. E no entanto nesse pessoal havia  várias moças, entre as quais não faltavam rostinhos deliciosos. Um deles impressionara Marcio Rafael: o da pequena Ruth Espinosa, de Cendente de espanhóis,

Márcio procurou aproximar-se dela, varias vezes lhe falou, mas hesitava em chegar ás declarações íntimas. Não tinha ainda uma situação bem sólida. No entanto, fazia uma cousa bem equivalente a declarações de amor, si a moça prestasse atenção ao caso. Passou a multiplicar as representações de seu rosto por toda parte.

Tinha de anunciar uma pasta para dentes? A figura sorridente de uma moça, a mostrar os seus, brancos e magníficos, era a de Ruth. Ele não lhe dizia nada, mas lá a punha, nos cartazes, com um sorriso delicioso. Havia a apregoar as excelências de um remédio para fazer dormir ? Lá estava a figura da moça adormecida. E era ela, indiscutivelmente ela.

Queria algum fabricante atrair a atenção para uma nova marca de cigarros? Ruth figurava nos mais delicados cartazes, fumando com graça.

Havia uma qualidade de café moído, o Café Bem-te-vi. Os anúncios o declaravam excelente. A figura de formosa moça — e era Ruth — lá estava, ainda no leito, tomando uma chávena. Um despertar risonho, prometedor do dia cheio de felicidades. A obra prima do desenhista fora, porém, o anuncio da Lotérica da Felicidade. Era uma figura de corpo inteiro, bem de frente, com as mãos cheias de dinheiro, oferecendo-o. E a fisionomia tinha esses olhos, cujo olhar acompanha quem os fita em todas as direções. Era admirável de vida irradiante de beleza e graça.

Por isso mesmo, Márcio pôs esse cartaz diante da mesa de Smith. Três dias depois esse lhe fez uma confidencia. Ele era, nos negocio agressivo, um pouco brutal; mas, tratando-se de sentimentos íntimos, um verdadeiro tímido. Confiou a Rafael — mas confiou por meio palavras, hesitante, como quem temia ver moço zombar dele — estar apaixonado pela pequena Espinosa. A ela mesma já o dera entender Queria casar-se.

Márcio ficou assombrado. Perguntou-lhe de onde lhe viera aquela idéia. Mas Smith não era homem para análises psicológicas, para introspecções demoradas. Não se estudava intimamente. Um dia, vendo a pequena, cuja mesa ficava muito longe da do diretor, e que rarissimamente vinha falar-lhe, teve uma imprecisão súbita e profunda. Foi um caso fulminante de amor. Resolvera pedir para a Inglaterra uma informação exata sobre todos os seus negócios, para então falar á pequena decisivamente no casamento. Mas este no seu espírito era caso resolvido. O desenhista ficou sucumbido. Smith o venceria na concorrência, era bem claro. Mal apresentasse claramente a sua candidatura á mão da rapariga, Márcio estaria imediatamente (podia até dizer-se: automaticamente) posto á margem. Como, porém, aquele homem grave, destituído de romantismos, lento a decidir-se, se apaixonara tão bruscamente pela moça?

Ao entrar no escritório da firma, no dia imediato, Márcio entendeu tudo. Entendeu, porque, dias antes, por desfastio, ouvira uma conferência literária. O orador dava a explicação dos amores fulminantes, á primeira vista, amores dos quais nasceu aquela formula célebre de cartas de namoro: "Vê-la e amá-la foi obra de um momento."

Ocorre nesses casos ser a inspiradora de tão grandes paixões, em geral, muito parecida com a mãe do apaixonável amoroso. Não com a mãe, como ela está no momento do acesso de paixão; mas com a mãe, como era no tempo do nascimento do menino. Ela era então para o pequeno uma fada, uma deusa, a encarnação da Providencia. Si o filho tinha fome, tinha sede, sentia uma dor, queria um brinquedo, quem lhe dava tudo isso? A mãe. Satisfazia-lhe todos os desejos, era a fonte de todas as suas alegrias.


Mais tarde, ela mudou, foi envelhecendo e, por sua parte, o menino se fez homem e procurou outros prazeres. Mas no fundo do seu inconsciente ficou a imagem da mulher-anjo, da mulher - providência, da acalmadora de todos os seus males, da suscitadora de todas as suas alegrias. Anos decorrem. Súbito, porém, lhe aparece alguém com esses traços — os antigos traços da mãe, quando ela era tudo isso. Conscientemente, ele já não se recorda dessa semelhança. Mas o inconsciente não se esquece. E, de súbito, ele tem a impressão de achar em uma mulher a evocação de todos os benefícios que a mãe lhe fazia. E' um anjo, uma deusa.

Márcio  Rafael, olhando a vasta sala cheia  de cartazes, todos eles reproduzindo o rosto de Ruth, mais ou menos modificado, mas com inegável semelhança, preparara para Smith uma situação psicológica idêntica. Cada um desses cartazes parecia atribuir á moça uma perfeição . No anuncio de uma pasta para dentes, ela ensinava o meio de torná-los alvíssimos. No reclame de um pó de arroz, ela dizia como se podia ficar com uma pele ideal. Dores de dentes e dores de cabeça não são cousas agradáveis. Mas o desenhista fizera o rosto da moça quando já as dores haviam passado: estava radiante de saúde, de alegria. Que cousa horrível uma insônia! Fazia gosto, no entanto, ver o rostinho delicado da moça, dormindo e prometendo aos outros fazê-los dormir um bom sono reparador Tinha tomado o Sonil. E mesmo no sono como era bela!

Somando-se inconscientemente no espírito de quem assim os estivesse vendo em conjunto, o dia vinha desde o despertar com o Café Bem-te-vi até o adormecer com o Sonil. Era uma bem-aventurança constante, um encanto permanente. Por fim, havia o anuncio da Loteria da Felicidade, precisamente defronte da mesa de Smith. Era Ruth no máximo esplendor dos seus encantos: prometia a Felicidade; nada menos: a Felicidade. Bem certamente, Smith jamais analisara esta situação; mas a sugestão crescera dentro dele de um modo insidioso, pertinaz e inconsciente — Ruth, Ruth, Ruth, em todas as perfeições. Um belo dia, quando reparou na mulher em quem se encarnavam todos aqueles dons sublimes — vê-la e amá-la foi obra de um momento. Mas o desenhista, compreendendo de onde havia partido o mal, resolveu dar-lhe o remédio. Tinha precisamente que proclamar os méritos de umas pílulas purgativas.

Desenhou o cartaz. Foi ainda uma vez o rosto de Ruth. Mas o rosto se contraía em uma  careta feiíssima. Para não fazer caretas tão feias convinha tomar as Pílulas Anti-cólicas  — proclamava o reclame. Quem conhecesse Ruth e visse aquele desenho ficava com a idéia  de como ela devia transformar-se, quando sofresse uma eólica. Era abominável. Tinha-se a impressão, olhando para a moça depois de ter visto o cartaz, de ver-lhe sobre a cara a mascara da anunciadora das Pílulas Anti-cólicas. O desenhista substituiu o reclame da Loteria da Felicidade pelo das pílulas purgativas. E começou a fazer todos os seus cartazes tomando esse ponto de vista: caricaturando a pobre Ruth. Havia o acordar de uma pessoa biliosa. Como estava horrível! Devia-se tomar o Xarope Anti-bilioso. Mas enquanto não o tomava, com que expressão feiíssima se achava.

Contra a insônia havia outro remédio: o Dormol. Mas para anunciá-lo Márcio pôs uma Ruth insone, cansada, que não se podia ver sem desagrado.

E aí estava um dia de outra espécie, desde o Xarope Anti-bilioso até o Dormol, com as Pílulas Anti-cólicas no meio. Como seria pavoroso viver um dia n inteiro com uma pessoa assim! O efeito foi decisivo. Smith, saindo uma tarde com Márcio Rafael, deu-lhe duas boas noticias: ia partir em viagem de férias para a Inglaterra e tencionava deixar a ele, Márcio, como seu substituto interino.

— E o casório, Mister Smith?

O inglês fez um gesto de enfado:

— Não ha casório nenhum. Não fale nisso . Foi um ameaço de eólica romanesca, mas passou...

A comparação absurda e anti-poética traía o motivo inconsciente de onde proviera a resolução. Conversaram sobre outras questões. Márcio Rafael, afastado o concorrente, não teve dificuldade em ganhar a partida. A rapariga estava despeitadíssima com o inglês. Felizmente, ela também não compreendera a perfídia. E voltou a ser nos cartazes a figura predominante, mas cada vez mais bela.


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Nota:Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.

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