SURPRESAS...
O trem da 1 hora da tarde
parou na pequena estação do lugarejo e dele desceu o único passageiro. Era
Raul.
Como não tivesse prevenido
ninguém, ninguém o esperava. Sabia, porém, haver perto da estação um sujeito
alugador de cavalos e foi em sua procura.
O sujeito o conhecia.
Admirou-se de vê-lo. Mostrou-se, entretanto, com isso muito alegre.
— Ao senhor eu não alugo
nada. Escolha qualquer cavalo e leve-o. Depois mandarei á fazenda buscá-lo ou o
senhor manda trazê-lo.
E falara um pouco da morte
do pai de Raul, o Dr Edmundo, que sucumbira menos de um mês antes e era o
proprietário da maior fazenda dos arredores.
O homem admirava-se de
ninguém ter vindo esperar o Dr Raul. Mas este lhe explicou desejar fazer uma
surpresa a sua mãe e não a ter por isso prevenido de sua chegada. Todos a
ignoravam.
Aceitou o cavalo emprestado
e seguiu.
O pai de Raul tinha sido um
grande engenheiro. Quando, muito moço, quis casar-se, a família da noiva opôs-se.
Claramente o pai dela lhe deu a entender considerá-lo um caçador de herdeiras
ricas. Porque Irene, a moça por ele desejada para esposa, teria quando o pai
morresse, trezentos ou quatrocentos contos.
Edmundo, ao perceber o
motivo da oposição, especificou bem claramente só casaria com separação de bens
e administração distinta. Disse mesmo ao futuro sogro que aconselhasse a filha,
indicando quem ela devia consultar sobre essa administração, porque em hipótese
alguma ele interviria nisso, mesmo com a mais simples opinião.
E foi assim que afinal se
fez o casamento.
Nesse tempo, Edmundo era um
engenheirinho de valor muito secundário. Ganhava pouco. Mas atirou-se ao
trabalho com um ardor febril e rapidamente foi subindo de cotação, empreitando
obras cada vez maiores até fazer uma fortuna colossal.
O sogro morreu. A mulher
herdou perto de quatrocentos contos. Varias vezes tentou consultá-lo sobre o
emprego desse dinheiro. Mas ele se recusava sempre formalmente.
Beijava-a, abraçava-a, mas
respondia-lhe haver tomado o compromisso de não intervir jamais na administração
dos bens dela. O pai não lhe havia indicado a quem recorrer para isso ? Ela
confirmava o fato. E Edmundo concluía:
— Eu ignoro e quero ignorar
quanto você possui. O essencial é você em hipótese alguma precisar recorrer aos
seus bens para satisfazer suas necessidades e até os seus caprichos.
E, de fato, ele lhe
satisfazia mesmo os desejos de mais despropositado luxo.
Alguns anos depois do sogro
morrer, ele veio a saber ter a mulher dissipado tudo. Ao dado por ele, ela
juntava o excesso de jóias caras. O que não gastou nisso, perdera em transações
infelizes, indicadas pelo conselheiro a quem o pai lhe dissera recorresse, na
administração de seus bens.
Tinham tido um filho, o
Raul. O pai encaminhou-o para o estudo de engenharia, e o moço fez um curso brilhante.
Infelizmente, quando o
terminou, o pai estava paraplégico.
Viviam então na Capital.
Habitavam grande casa no centro de um admirável jardim. O edifício tinha á
altura do primeiro andar uma larga varanda. De manhã, os criados ajudavam o
velho engenheiro a sentar-se na espreguiçadeira em que passava os dias, lendo e
cismando.
A vida da mulher se
transformara muito. Pouco parava em casa. Quando parava, grande parte do tempo
consumia-a ao telefone.
Edmundo, quando o filho
terminou o curso, quis que ele fosse fazer um estagio de doía anos nos
Estados-Unidos. Parecia-lhe que esse era um remate necessário para qualquer
curso de engenharia.
Raul partiu, triste. Ele
sentira nos últimos tempos uma mudança evidente no caráter do pai. Lembrava-se
mesmo que certa ocasião, quando o criado anunciou a visita do comandante Gabriel
á mulher e que este partira, sem entrar, porque ela não estava, o velho agitara
frenético, num gesto de furor e de ameaça impotente, o braço direito.
Não vira o filho que
entrara pela parte da varanda a que voltava as costas. Raul ainda o encontrara
com o punho cerrado e o rosto verdadeiramente demudado de furor.
— Que é isso, papai?
O velho não respondeu. Raul
perguntou em vão a si mesmo o que poderia querer dizer aquele acesso de cólera
paterna. Que lhe fizera o visitante?
Depois, forçado pelo pai,
partira para os Estados Unidos. Em Chicago, quatro meses após haver chegado,
encontrara o lacônico telegrama da mãe anunciando a morte do marido e
pedindo-lhe que ou viesse ou mandasse procuração para que ela o representasse.
Ele respondeu que voltaria o mais depressa possível.
E voltou imediatamente. Não
quis, porém, prevenir ninguém. Para que 1 Causaria á mãe uma surpresa
agradável.
Chegado num dia e sabendo
que a mãe
fora para a fazenda, para
lá partira no seguinte..
Ignorava absolutamente o
estado dos negócios do pai e da mãe. Pois que o pai morrera, a esta contava
dedicar-se e, embora na amargura de não mais ver o seu maior amigo, tinha um
certo prazer na consolação de achar-se de novo perto da mãe. E' bem verdade que
ultimamente não era tão carinhosa como outrora; mas não tinha dela queixa
alguma. Estava ainda forte e formosa, e ele quereria ter o orgulho de trabalhar
a seu lado, levando-a por toda parte, mostrando-a perto dele.
Seguiu para a fazenda.
Fazia um sol abrasador Sebes de espinheiros ladeavam o caminho. Os arbustos
estavam desfolhados, secos. Secos, mirrados, queimados pelo sol estavam os
capinzais. Longe via-se um morro, despido de vegetação. Parecia que alguém o
raspara cuidadosamente: era um bloco de granito. No calor formidável daquela
hora canicular, a tremulina das partículas de pó fazia parecer que se via o ar
vibrando. A cada passo que o cavalo dava, levantava nuvens de poeira.
No caminho ele encontrou um
preto, bem encostado a uma sebe de espinheiro, dormindo, de papo para o ar,
meio descomposto. Devia estar embriagado. Corria-lhe um fio de baba da boca
entreaberta. Moscas pousavam nele. Era nojento...
Quando Raul se aproximou da
cancela da fazenda, cães avançaram, mas reconhecendo-o começaram a saltar,
festejando-o.
Amarrou o cavalo a um
tronco de arvore e entrou
em casa. Esta era um sobrado de um andar. Em baixo, havia a sala de visitas e a
de jantar, enormes, a cozinha e acomodações para criados. No primeiro andar,
estava o quarto dos pais, o dele e o destinado aos hóspedes.
Uma criada, precisamente a
criada que costumava servir a mãe, reconheceu-o e teve uma expressão de terror.
Raul gracejou:
— Ó rapariga, eu não sou
uma alma do outro mundo! Onde está mamãe?
A criada indicou que estava
no primeiro andar e ia precipitar-se para preveni-la, quando Raul a segurou
vigorosamente e obrigou-a a retroceder.
— Fica quieta! Eu sei o
caminho. E subiu. Subiu, de vagarinho.
A casa parecia morta e desabitada.
Ele viu que a porta do quarto da mãe estava apenas encostada, a do quarto dos
hóspedes aberta. Espiou primeiro para este e viu que se achava vazio. Alguém,
entretanto, ocupara o leito, porque ainda estava desarrumado.
Quem podia ter sido?
Abriu então, de vagarinho,
a porta do quarto da mãe. Gozava de antemão a deliciosa surpresa, que ia
fazer-lhe. Àquela hora, segundo o costume, devia ela estar dormindo a sesta. Acordá-la-ia
com um beijo. Quantas vezes o tinha feito!
No momento, porém, em que a
porta semi-aberta lhe permitiu ver o largo leito dos pais, gelou-o um assombro.
A mãe dormia. Mas ao lado dela, dormindo também, havia um homem, cujo braço
estava passado por baixo do pescoço dela. Era o comandante Gabriel.
O seu primeiro Ímpeto foi
sacar do revólver, que tinha no bolso, e liquidar os dois. Uma nuvem de sangue
passou-lhe diante dos olhos Mas a reação veio logo. Que direito tinha ele, agora,
de impedir os amores da mãe? Lembrou-se, é certo, do gesto de furor do pai,
gesto por ele surpreendido. O caso vinha, portanto, de traz. Mas si, estando o
pai vivo, teria talvez o direito de ir até o assassinato de quem lhe manchava o
lar, agora, não. A mãe era livre.
E foi recuando, descendo de
vagarinho a escada.
Na véspera, nas poucas
horas que estivera na cidade, soubera que o testamento paterno o constituía
herdeiro universal.
O sogro do velho engenheiro
morto tinha querido o casamento da filha com separação de bens, para
protegê-la. A medida se voltava agora contra ela. O marido, com pleno direito
de fazê-lo, a deserdara completamente.
Raul, ao saber disso, se
admirara. Pareceu-lhe que o pai deixara o caso a seu cuidado e não teve duvida
alguma em que repartiria com a mãe, meio a meio, toda a grande fortuna que ia
receber.
Mas, agora, diante do que
vira, recordando o gesto de furor impotente do pai, não tinha duvida que, antes
de morrer, este já sabia o que se passava. E bem provavelmente isso devia ter
apressado a sua morte.
Resolveu que aceitaria a
herança tal qual — e faria doação da metade a algum estabelecimento pio.
Responderia assim aos que atribuíssem o seu procedimento á avidez.
Quando chegou ao sopé da
escada, segurou pelo punho colericamente a criada da mãe, ordenando-lhe que o
seguisse. Tomou então um cartão de visita, escreveu num canto "a despedir-se"
e recomendou á rapariga que o entregasse á mãe; mas só quando ela acordasse. Não
fosse acordá-la para isso. Era uma cousa sem importância.
Minutos depois o seu cavalo
voltava a galope. Pôde apanhar o trem que passava naquele instante e dois dias
após voltava para Nova-York. Quando a mãe lhe escrevia, ele lhe devolvia as
cartas, com a declaração: "O destinatário recusou-se a abrir" Mais
nada.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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