O GATUNO
À nobre, alta e
brilhante figura de Cláudio de Souza.
Quando Estevão saiu de
casa, quem primeiro encontrou foi Samuel. Estevão tinha 9 anos, Samuel 8. Era
um parzinho digno de ser visto, embora
entre eles houvesse uma grande distancia social.
Estevão era filho de pais
não de todo ricos, mas com uma apreciável mediania. Por isso mesmo, trajava com
esmero. Sentia-se na sua
roupinha bem feita, com o calção apertado um pouco abaixo dos joelhos, com as
meias ciumentas que vinham até quase o calção, em tudo, enfim, o menino cujos
pais tinham meios bastantes para o tratar muito bem. Mas nada disso o fazia
orgulhoso. Era bom, simples, afável. Acolhia os colegas mais pobres com tanta
amizade como os mais ricos.
O exemplo das suas ótimas
relações com o pequeno Samuel provava bem isso. Porque Samuel era paupérrimo.
Vivia com a mãe, lavadeira, e o padrasto cuja mais séria profissão consistia em
estar embriagado.
Estevão e Samuel tinham-se
conhecido em uma escola publica. O pai do primeiro levara o menino a freqüentar
uma casa de ensino popular, achando nisso um bom principio democrático, para
seu filho se misturar com os outros colegas.
Os dois, encontrando-se,
foram seguindo juntos. Iam pelo mesmo caminho, ladeando o rio. De um lado,
havia, de espaço a espaço, algumas casas: chalés, construções ligeiras e grande
numero de casas um pouco fantasistas. A pequena distancia ficava a cidadezinha;
o rio a atravessava. Cada casa era cercada de terrenos, mais ou menos
cultivados e alguns com grandes jardins na frente. Era assim a casa de Estevão.
Saindo, em direção á
cidade, encontrou o Samuel, fez-lhe muita festa e seguiram juntos conversando. Samuel estava com umas calças de
fazenda ordinária, muito curtas e, em baixo esfarrapadas. As bainhas podiam
dizer-se em franjas. Além das calças, apenas um casaquinho, provavelmente dado por alguém. De tão apertado,
mal podia abotoar.
Tudo isso estava, é
verdade, muito limpinho; mas o conjunto do vestuário valia por um atestado de
miséria. Miséria asseada, porque a mãe lavadeira não se esquecia da profissão.
— Como V está bonito! —
disse o Samuel ao Estevão.
Não havia nesse reparo
nenhuma zombaria. Era a satisfação afetuosa de ver o colega com tão agradável
aparência. Estevão era aliás dos colegas o mais estimado por ele. Samuel tinha
grande alegria e até mesmo um certo orgulho em ser visto ao seu lado.
— V andou brigando com o
gato ? — perguntou-lhe o Estevão.
A pergunta se justificava,
porque Samuel tinha o rosto profundamente arranhado. Havia mesmo na testa uma
mancha roxa. Teria caído ou batido com a cabeça em algum ponto.
Samuel explicou-lhe o caso.
O padrasto perdera uma nota de 10$000 e acusara-o de a haver furtado.
— Eu nem vi esse dinheiro,
afirmava o pobrezinho. Provavelmente ele mesmo o deixou cair em qualquer ponto
ou lho roubaram na venda.
E por causa disso o bêbado
tinha surrado barbaramente a criança.
— E sua mãe não o defendeu?
— Defendeu, sim, mas o
resultado foi ter ela apanhado ainda mais. Nós ontem estávamos moídos da
pancadaria; nem ela nem eu podíamos quase ficar de pé. Hoje quem está doente é
o pai. Eu vou d'aqui á botica buscar remédio para ele.
Dizia isso com tristeza,
mas uma tristeza resignada, sem azedume, como quem achava que as cousas não
podiam ser de outro modo e seria inútil tentar mudá-las.
Seguiam sempre pela
estrada, ao longo do rio. Este era aí bem profundo. Chovera muito nos dias
anteriores e as águas corriam turvas, mugidoras. Nas duas margens uma vegetação
soberba.
Pouco passaria das duas
horas da tarde. Dia de sol encoberto, mas muito claro. Claro e fresco. As
bordas do rio, principalmente a oposta àquela pela qual os dois amiguinhos
seguiam, estavam cobertas de flores.
Havia lima revoada de
borboletas e o ar parecia cheio de pássaros, indo e vindo, voando em todas as
direções.
Estevão comentou:
— Seu pai é mau.
— Mau ele não é, defendeu o
coitadinho. Tudo está no costume de beber. Quando faz isso, fica fora de si e
faz tolices.
Mas ele atenuava muito as
cousas. O padrasto, a quem chamava pai por ordem da mãe, quando se embriagava,
tornava-se uma fera. E si o coraçãozinho generoso do Samuel ali o estava
defendendo, nas crises de cólera do velho ficava a tremer de terror, porque o ébrio
perdia inteiramente a razão e queria até matá-lo!
Estevão atreveu-se a um
conselho:
— Por que V não foge?
— Fugir para onde, Estevão?
E depois não posso deixar mamãe.
— E si eu pedir a papai
para V ir servir lá em casa?
Samuel teve nos olhos um
relâmpago de alegria:
— E V pede mesmo?
— Peço, não custa nada.
— E ele deixa?
— Não sei; mas ele gosta
muito de mim.
Si eu pedir, é muito
provável me faça a vontade. Samuel ficou calado. Via-se, porém, no seu rostinho
vivo, inteligente, com uns grandes olhos negros muito pestanudos, quanto aquela
vaga proposta o alvoroçara e seguia um sonho interior, deslumbrante.
Em certo ponto do rio, onde
este era bem largo, havia uma barragem de grandes pedras feita precisamente
para quebrar a força da corrente. Pedras grandes, limosas, por entre as quais a
água passava com um barulhão formidável. Mas depois dessa barragem o leito do rio
se estreitava de novo muito, entre as duas paredes de pedra, a pique, o que
fazia a corrente recuperar e até aumentar a sua violência, mugindo furiosa.
Mais de uma pessoa, querendo suicidar-se, viera atirar-se d'ali ao rio. E
ninguém fora dele retirado, senão muito abaixo — e morto, bem morto.
Quando chegaram perto da
barragem de pedras, Estevão anunciou ao amigo sua intenção : ia atravessar Lá
havia do outro lado umas grandes flores azuis e ele pensava em ir buscá-las,
afim de levá-las á avó, para cuja
casa seguia.
— Não faça isso! —
gritou-lhe o Samuel. Você escorrega. Si V quer, eu vou.
Mas o Estevão teimou:
— Eu escorrego e V não
escorrega?
— Você está calçado e eu
estou de pés no chão.
O Estevão não se deu por
convencido. Decidiu-se a ir mesmo. Felizmente, porém, teve a prudência de
seguir um conselho de Samuel:
— Então V vá bem pela
direita, porque si cair não tem tanto perigo.
Um conselho de bom senso. À
direita estava a nascente do rio. Daí vinham as águas. Si alguém caísse desse
lado seria empurrado por estas de encontro ás pedras. Si caísse do lado oposto,
seria o da correnteza: as águas o arrastariam para a foz. Era, podia-se bem
dizer, o lado da morte certa.
Estevão seguiu com grande
cuidado, mas logo aos primeiros passos sentiu quanto Samuel tinha razão. A sola
dos sapatos revelava uma evidente tendência a escorregar. E por duas vezes
esteve quase a cair. Da
terceira vez, não foi "quase", foi de veras. Catrapuz! Mergulhou em
cheio.
Samuel não teve sombra de
duvida. Tirou o seu pobre casaquinho, jogou-o ao chão, e atirou-se á água para
acudir ao amigo. Ia apenas com as calcinhas de bainhas esfiapadas, nu da cintura
para cima. Ele nadava admiravelmente e como Estevão também o fazia um pouco,
tudo se passou bem: pude ajudar o amigo a voltar para terra.
— Está aí, teimoso! — disse
Samuel a Estevão, ralhando com este afetuosamente. E ajudou-o a tirar o casaco
e a estendê-lo ao sol na margem do rio, junto ao seu próprio casaquinho, também
aí estendido.
— Agora, enquanto isso seca
um pouco, eu vou buscar as flores. Já estou molhado, vou mesmo nadando.
E atirou-se de novo ao rio,
seguindo bem por junto das pedras da barragem. Estevão acompanhava-o com os
olhos.
De repente, porém,
lembrou-se; ao vestir-se em casa pusera no bolso do casaco uma nota de 5$000. Com ela esperava comprar na cidade varias
guloseimas. Devia estar molhadinha.
Apalpou o bolso e teve uma surpresa
formidável. Não sentiu nada. O bolso estava vazio. Ainda se achava nesta
pesquisa, quando ao olhar para o casaquinho de Samuel, viu a pontinha um pouco
caída de uma nota: precipitou-se para examiná-la e verificou ser precisamente a
sua nota de 5$000.
Estevão sentiu uma decepção
enorme:
— Ah! o gatuninho! Tanto
obséquio, tanto agrado e era para furtar meu dinheiro.
Botou o casaco ainda
molhado debaixo do braço, olhou para o Samuel que começara a atravessar de
volta, andando agora por cima da barragem de pedras, com um ramo enorme de
flores azuis, e não lhe disse nada, embora tivesse tido vontade de chamá-lo
gatuno. Disparou para casa, correndo, desistindo do resto do passeio.
Samuel não compreendeu.
Pois o amigo tanto se empenhara por obter aquelas flores e justamente quando
ele as apanhara e lhas trazia, ele fugia? Fosse como fosse, veio andando com
cautela. Estando como estava descalço e tendo o costume de pisar assim,
escolhia melhor as pedras onde pôr os pés e atravessou a barragem sem acidente.
Estevão, na corrida em que
ia, não tardou a chegar a casa. Penetrou
nela estabanadamente. A mãe foi quem o recebeu. Indagou, solicita e admirada:
— Que é isto? Todo molhado?
Onde esteve você?
Em frases rápidas,
entrecortadas pelo cansaço da corrida, Estevão lhe narrou o sucedido: —
Felizmente, o gatuninho do Samuel não furtou o meu dinheiro dado por você.
A mãe atalhou:
— Nem podia furtar O
dinheiro ficou aqui em casa.
— Aqui?! Eu o meti no meu
bolso.
— Eu vi, disse a mãe; mas
quando você vestiu o casaco, eu o tirei e escondi naquela gaveta. E, juntando a
ação á palavra, abriu a gaveta e exibiu a nota, por ela mesma aí guardada.
Estevão teve um gesto de
terror:
— Ah, mamãe, então o gatuno
fui eu! E tomando o dinheiro, sem outra explicação, sem dizer mais nada, tornou
a sair e precipitou-se correndo, estrada a fora. Ia levar o dinheiro ao Samuel e trazê-lo para casa, custasse
o que custasse.
Quando se aproximava da
barragem, de pedras viu que já havia lá muita gente. Que seria? Perguntou,
ansioso:
— Um pequeno, um pequeno
que estava aqui?
Todos lhe informaram, pois
sobre isso estavam conversando:
— Atirou-se ao rio do lado
de lá.
— O "lado de lá"
era o da morte certa.
Seu cadáver seria achado
perto da praia, d'aí a um dia ou dois.
Quando Samuel percebeu,
verificou ter sido roubado do dinheirinho do remédio para o pai, sentiu um
desespero imenso. Lembrou-se do
espancamento sofrido dois dias antes. E agora? Muito pior, de certo. Ao
desespero, agravando-o, juntava-se um assombro: "Como o Estevão, não
precisando de nada, fizera aquilo?! O Estevão cuja vida salvara! O Estevão, o colega mais estimado por
ele!" Teve uma sensação de aniquilamento. Todos o perseguiam, todos lhe
queriam mal. Na amargura imensa do seu espiritozinho, decidiu-se a morrer, a morrer
logo. Estava no bom lugar. Voltou por cima das pedras da barragem, resmungando sem
compreender porque o colega fizera aquilo: "Ah! Estevão! Estevão!" E
atirou-se á água. Um redemoinho turbilhonante o jogou de encontro ás rochas de
uma das margens, manchando de sangue a água, por um instante.
E o corpinho do pequeno lá
se foi, rio abaixo.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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