A SOMBRINHA
DE TIA EULÁLIA
Tia Eulália
pouco mais tinha de 40 anos. Talvez 42. Não era feia, nem destituída de elegância.
Instruída, com a instrução que habitualmente recebem as moças, tocava piano,
sabia muito bem
francês.
Vivia agora
apenas com uma sobrinha. Pai, mãe, irmã — tudo quanto era seu havia morrido. A
mãe lhe deixara duas casas, uma na
cidade, de cujo rendimento vivia, e outra no campo, onde vinha passar todos os
anos alguns meses. Esse veraneio era anunciado a todas as amigas, como um
grande acontecimento. Parecia ir para uma grande fazenda, uma propriedade
considerável. No entanto, tratava-se de uma casinha minúscula, toda em diminutivos:
uma salinha, um quartinho, uma salinha de banho, uma pequeníssima cozinha.
Um ovo — dizia
ás vezes D. Eulália. Dulce corrigia "um o vinho de juriti nanica"
— E ha juritis
nanicas? — perguntou alguém.
— Deve haver,
pois lá temos o ovinho.
O terreno em
torno não era pequeno.
D. Eulália
tinha feito com um casal de portugueses, moradores ao pé da sua casa de campo —
como ela chamava a sua biboca — um bom arranjo. Durante nove meses eles
dispunham do terreno. Não ficava nele uma flor. Plantavam, segundo diziam,
cousas úteis, por eles vendidas em proveito próprio. Em compensação, cuidavam
da casa, o que não chegava a ser
trabalho apreciável. Quando, com uma semana de antecedência, D. Eulália os
prevenia da sua chegada, era como em uma cena de teatro; os canteiros de couves
e nabiças desapareciam e outros surgiam, com flores diversas: os solícitos portugueses as recrutavam em
diversas vivendas de cujos jardins tratavam.
A casa ficava apresentável.
Ficava mesmo bonitinha.
D. Eulália era
exigente. Poder-se-ia admirar o não ter-se casado. Ela achava para isso motivos
diversos: a culpa tinha sido da mãe, tinha sido dos irmãos.
A idéia da
dificuldade ter vindo dos difíceis tempos atuais, nos quais os noivos
escasseiam, não lhe parecia bastante para explicar o fato., Muito menos o da
falta de seus encantos. Sua vaidade fazia cousa bem freqüente: passava adiante
a responsabilidade. A culpa era sempre dos outros; dela não. E citava Fulana e
Sicrana: pobres e incontestavelmente mais feias, haviam casado.
Aliás ela era
fácil em dotar-se de virtudes e despir-se de defeitos. Si falavam em qualquer boa
qualidade de alguém, intervinha quase sempre:
— Então é como
eu. Precisamente o meu caso.
Mas si se
tratava de algum senão, intervinha não menos depressa:
— De tal
felizmente ninguém me acusará.
E graças a
isso, si alguém lhe somasse as virtudes, por ela assim recrutadas, e lhe
tirasse os defeitos, dos quais se desfazia, acharia uma criaturinha perfeita.
Certa vez, duas
amigas — amigas bem íntimas — conversavam a respeito dela:
— Si tirassem a
Eulália a vaidade e a inveja, ficaria uma rapariga encantadora.
A outra desatou
a rir:
— Tu a
assassinas e depois a elogias.
— Assassino,
como?
— Si lhe tiras
a vaidade e a inveja, não fica mais nada, nada, nada. E' um assassinato, seguido
da cremação do cadáver e dispersão das cinzas.
Mas havia nisso
um exagero. Como, porém, as amigas hão de ocupar o tempo, si não falarem mal
das amigas? Eulália tinha uma virtude incontestável: era uma tia perfeita.
Criara uma
sobrinha órfã e professava por ela imensa afeição. Havia mesmo nesta uma singularidade.
Eulália, quando moça, queixava-se das restrições da mãe e dos irmãos. Achava
sempre que "hoje não se pensa mai& assim. "Agora não se faz mais
caso disso..."
Mas depois de
assumir as sacrossantíssimas funções avunculares de tia tiíssima, era de um rigor
implacável com a pequena Dulce. E, si esta alegava o fato de tal ou
qual amiga proceder de outro
modo, a tia Eulália saltava:
— Isso será lá
fora. Eu hei de ter com você a mesma firmeza de minha mãe para comigo . Aqui em
casa não ha pouca vergonha!
E exercia sobre
a sobrinha uma vigilância severíssima. Não a deixava pôr pé em ramo verde.
Naquela
gloriosa manhã de janeiro, a tia Eulália saíra a passeio. Nunca faltava a tal dever
Isso fazia parte da rotina de todas as suas manhãs. Passeava durante duas
horas. Depois, entrando, espichava-se na cama por cima dos cobertores — a cama
já feita — e passava meia hora de imobilidade, de papo para o ar, absolutamente
imóvel. Tinham-lhe ensinado também essa
regrinha como de boa higiene e ela executava, como tudo o que fazia, metodicamente,
religiosamente. Exercício de relaxamento muscular — lhe havia dito a pessoa que
a iniciara nessa pratica. E ela comentara, não sem razão: "Exercício de
não fazer exercício algum" Mas esse descanso dava, segundo lhe
asseguraram, uma pele magnífica e precisamente a beleza da pele era um dos seus
motivos de vaidade, aliás perfeitamente justo.
No passeio por
ela feito quotidianamente, passava sempre por diante de uma bela casa cujo
proprietário era um solteirão bem apessoado Teria talvez 45 anos ou pouco mais.
Era, porém, esbelto, elegantíssimo de roupas e de modos. Sabendo ser a
passeante sua vizinha, tomara o habito de cumprimentá-la. Dona Eulália
correspondia, sorrindo, com uma leve, uma vaga esperança de que aquilo fosse
mais longe. Quem sabe ? De onde nada se espera, ás vezes, vêm as melhores
cousas. Mas um ano passara. O cumprimento não falhara nem um só dia e apesar
disso as cousas não haviam progredido. Era mais uma esperança gorada!
Tinha nesse dia
saído de branco, um vestido enfeitado de vermelho: punhos, gola, cinto, grandes
botões. Vermelha era também a sombrinha.
Talvez o
vestido fosse próprio para pessoa mais moça. Mas nela não estava fora de
propósito, por ser como era, fina e graciosa.
Saiu, fez o seu
giro habitual e quando chegou ao seu ponto costumeiro, voltou. Colheu no
caminho algumas flores silvestres e meteu-as no colo. Eram também vermelhas:
entravam, portanto, bem na harmonia geral da sua toilette. Ao passar
diante da casa do solteirão simpático saudaram-se amavelmente.
Já tinha ela
andado um pouco mais, quando viu — ó horror! — que Dulce estava na cancela, conversando
com o namorado, o Eduardo Bastos. Tia Eulália conhecia-o e perseguia
implacavelmente. Não acreditava tivesse o topete de vir até o campo e a ousadia
de conversar com a pequena.
Estugou o
passo.
Em dado
momento, Dulce lhe percebeu a aproximação. Disse, fugindo, apavorada, ao rapaz:
— Foge; titia
vem aí.
Mas isso foi
pronunciado muito rapidamente. O moço nem a ouviu bem. Perdeu alguns minutos.
Quando compreendeu o motivo da fuga da pequena, já não podia correr muito. Atirou-se
para uma touceira de mato ali
perto e
acocorou-se atrás dela.
A manobra fora,
porém, tardia. Tia Eulália viu bem onde ele estava escondido.
Brandindo a
sombrinha, irritadíssima, gritava:
— Saia, saia
daí, "seu" insolente.
E procurava,
com a sombrinha mesmo aberta, atacá-lo, agitando-a, como si quisesse espetá-lo
com o cabo.
Sucedeu então
uma cousa absolutamente inesperada. Perto, estava pastando um tranqüilo novilho,
roendo á beira da estrada umas ervinhas sem importância.
Vendo que
alguém, como um capinha de tourada, o provocava com um pano vermelho, o novilho
deu uma arrancada e investiu correndo para cima de D. Eulália.
O Eduardo
apercebeu-se do caso e levantou- se gritando:
— Fuja, D. Eulália!
D. Eulália viu
também o perigo e resolveu- se a fugir. Não havia outro remédio.
A rapidez,
desenvolvida por ela com suas perninhas finas e bem torneadas, não a colocaria mal
em um torneio de corridas a pé. O medo faz milagres. Abalou por ali afora furiosamente.
O Eduardo
lançou-se atrás do novilho pegou-lhe na cauda e pendurou-se nela. Ia aos trancos,
arrastado pelo animal, mas não o deixava . Sentia estar-se ferindo de um modo
horrível; mas sustentava a sua posição heroicamente.
Em dado
momento, escorregando, a cauda lhe escapou, mas ele pôde segurar-se a uma das
pernas do novilho. Isso o fazia ser barbaramente maltratado pelo animal; mas
foi a salvação de D. Eulália. Entravava muito a carreira do garrote.
O suplício de D.
Eulália aumentou, quando, na sua desabalada carreira, sentiu que uma das meias
lhe escorregava pela perna abaixo. Ela teve — cousa horrível! — a lembrança de que
nesse dia, por um relaxamento pouco habitual, tivera a detestável idéia de sair
sem a cinta á qual prendia as meias. Enrolara estas abaixo dos joelhos. Mesmo
correndo e desenvolvendo uma velocidade de campeã de corridas a pé, evocou a
sua própria figura: como devia estar cômica! Si ao menos as meias se achassem
esticadinhas, vestindo bem as pernas bem feitas! Via, porém, as calcinhas lá em
cima, como roupa de meninota, uma meia caída e da outra perna o joelho de fora.
Felizmente o
seu suplício não durou muito. O vizinho amável vira o caso, e acudia. D. Eulália
estava a pequena distancia. O melhor a fazer era atraí-la para o seu jardim. E
isso ele fez. Abriu a cancela, — bonita, mas grande e pesada — e adiantou-se um
pouco — a moça estava pertinho — gritou-lhe:
— Entre, minha
senhora!
Deu-lhe a mão,
puxou-a, fechou a cancela. O novilho já vinha perto. Perto vinham também em
socorro chacareiros das circunvizinhanças. Eduardo estava a salvo e pôs fim ao
seu suplício deixando-se cair Não precisava continuar o sacrifício. Estava
lamentável: sujo de terra, ferido, sangrento.
O dono da casa
atraiu-o também.
Chegavam seus
criados. Mandou que carregassem o moço para o quarto dos fundos no primeiro
andar. Um latagão incumbiu-se disso.
Uma criada
ocupou-se de D. Eulália, encaminhando-a para o interior da casa. O proprietário
explicou-lhe:
— A senhora
está em casa, não de um médico, porque para bem da humanidade nunca clinicou,
mas de um doutor em medicina. Creio
poder prestar-lhe os primeiros socorros, acrescentou gracejando, sem sua vida
correr muito perigo.
— Muito
agradecida, doutor. Mas eu vou já para casa. Apenas o tempo de fazer um pouco
de toilette.
— Isso é que
não. A senhora fica hoje aqui. No primeiro andar da nossa casa há três grandes
quartos, cada um com sala de banho separada. Eu vou.
E ia anunciar o
seu desejo de mandar vir a moça com quem ela morava, Dulce, quando esta
apareceu, esbaforida.
— As senhoras
são minhas hóspedes pelo menos até amanhã. E perdoem-me agora: eu preciso ir
prestar socorro ao seu salvador — Meu salvador?!
— Sim! Aquele
moço, que se sacrificou para dificultar a arremetida do animal. Todos em torno,
ouvindo a conversa abanaram vigorosamente as cabeças. Alguns comentaram:
— A senhora lhe
deve a vida!
— Moço de
coragem.
— Sem ele, a
senhora estaria em maus lençóis.
O médico — o Dr.
Fernando Lemos — subiu, fez lavar as feridas do rapaz, deu-lhe uma injeção
preventiva antitetânica e tratou-o com o máximo carinho.
No primeiro
momento, o caso irritou Dona Eulália: o coro dos louvores ao seu salvador, ao
rapaz a quem devia a vida, ao moço de coragem, não cessava. Buzinavam-lhe a
paciência.
Recusou
formalmente a oferta do Dr Lemos para ficar na casa dele: nada mais absurdo, morando
ela tão perto. Viria mais tarde saber noticias do "seu salvador"
Prontamente,
ela vira o partido a tirar da situação e aceitava-a.
Voltou, de
fato, a casa, tomou um longo banho morno, ou, como ela disse, esteve de infusão
dentro de água na qual despejara um grande vidro de água da Colônia, cerca de
uma hora, dormiu um bom sono, e absolutamente
fresquinha,
refeita, a garantir nada estar sentindo, reapareceu em casa do Dr. Lemos. Queria
dar essa prova de energia e mocidade, mostrando como os terríveis
acontecimentos daquela manhã não lhe haviam causado o menor abalo.
Quem não cabia
em si do espanto era Dulce. Tia Eulália não lhe disse uma palavra sobre o caso,
de onde proviera tudo aquilo! E começaram as visitas ao "salvador" Pretexto,
delicioso pretexto para os encontros e as longas palestras com o Dr. Lemos. D. Eulália
era uma boa conversa. Mas onde ela requintou de habilidade foi em certo estratagema.
Logo no
primeiro dia, ao passar para o quarto de Eduardo, viu no patamar do primeiro andar
uma prateleirinha elegante em que estavam seis volumes ricamente encadernados: literatura
quase a sair da moda: Anatole France, Loti e outros. Seis apenas. Deviam ser
livros queridos do dono da casa. D. Eulália tomou nota deles.
Chegada a casa,
escreveu para a cidade afim de lhos mandarem. Pedido urgentíssimo, em i
correspondência expressa.
Quando os
livros vieram, ela se atirou, não a lê-los apenas, mas a devorá-los, a
estudá-los. Uma ocasião (o Dr. Lemos saíra) teve na casa do médico ocasião de
folhear os volumes. Viu neles diversos trechos marcados. Alguns estavam fortemente
assinalados. Ela tomou nota. Chegada a casa, fez como uma boa aluna: decorou-os.
Decorou-os bem.
Nisso se haviam
passado quatro dias. As feridas do "seu salvador" estavam a bom
caminho da cicatrização. Era preciso aproveitar, enquanto não chegavam a isso.
Habilmente, em
uma das suas palestras, D. Eulália levou a conversa para os livros prediletos
do médico. Mostrou conhecê-los a fundo.
Ele estava
assombrado e encantado. Subiu para buscar os volumes. D. Eulália simulou grande
surpresa: coincidência admirável de preferências literárias!
Quando achava
certos trechos muito assinalados por ele, dizia-lhe gracejando:
— Quer tomar-me
a lição?
E dava-lhe o
livro aberto, para que fosse seguindo os textos que ela recitava.
Que moça de bom
gosto! Que ilustração!
Nunca o Dr.
Lemos achara nenhuma em tais condições.
É bem sabido,
aliás, que de "bom gosto" são as pessoas que têm o nosso!. Ora, Dona Eulália
tinha exatamente o dele. Que encanto! É impossível imaginar o efeito que teve a
hábil manobra da moça. Não se podia querer
demonstração
mais clara da coincidência de predileções.
Habilidades.
Estratagemas.
"O
essencial em tudo é ter em vista o fim", diz o fabulista:
"'En toute chose il faut
considérer la fin"
O fim foi este:
D. Eulália é hoje D. Eulália de Lemos, e Dulce, D Dulce Bastos.
Decidido o
noivado de Eduardo e Dulce, um dia, quando os dois saíram a passeio,
encontraram na mesma estrada onde o haviam visto, pastando as mesmas ervinhas
ralas, o mesmo plácido novilho. Só uma vez ele havia saído do sério, porque o
tinham provocado. Eduardo confiou a Dulce:
— Quando eu
vejo aquele novilho, tenho vontade de beijá-lo!
Dulce replicou,
dando uma boa risada:
— Não vejo no
caso nenhum inconveniente. Mas, quando fizer isso, passe o resto do dia a lavar
a boca e só no dia seguinte pode me beijar.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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