A QUE SOUBE
VINGAR-SE
Otávia
sentou-se diante das folhas de papel de carta e dispôs-se a escrever Estava calma
e decidida. No dia seguinte ia resolvesse a sua sorte. Praticamente, porém, era
como si já estivesse resolvida, porque as duas soluções do caso do marido iam
ter matemática mente á mesma conclusão. Si o marido fosse condenado, seria a
miséria, porque ele nada tinha. Si o marido fosse absolvido, haveria logo após
o divorcio e também por aí chegaria á miséria. Assim, o melhor era não esperar essa
solução e, ao morrer, morrer bonito, parecendo obedecer a um alto ideal.
E sobretudo
isto: vingar-se! Porque a sua cabeça estava cheia da idéia de vingança.
Ela se casara
com o engenheiro Julião Arquimedes. Ele não tinha nada. Ganhava, porém,
vencimentos enormes. Poderia dizer-se: enormes e justíssimos, porque ninguém o excedia
em inteligência e atividade. Empresa que dirigia prosperava forçosamente. Era
freqüente virem chamá-lo para salvar algumas quase a soçobrar. Em pouco tempo
as quase falidas entravam em franca maré de prosperidade . Por isso lhe davam
os vencimentos que pedia, e ele não tinha cerimônia: fazia-se pagar regiamente.
Mas tanto
ganhava como gastava. Vivia em verdadeiro fausto. Trazia a mulher num luxo
deslumbrante. Era esta que freqüentemente o precisava moderar Muitas vezes ele lhe
trazia um novo vestido caríssimo, quando ela ainda não tinha estreado dois ou
três outros. Mas Julião adorava-a.
No entanto, ela
o enganou.
Como foi isso,
um estranho não poderia entender.
Um jovem
médico, de 22 anos de idade, o Dr. Lívio Tavares começara a fazer-lhe a corte. A
bem dizer, essa não era a expressão exata. Ele era quase um adolescente.
Acabava de formar-se, após um curso brilhantíssimo. Louro, bonito, era
entretanto de uma timidez extrema. Sentia-se que se apaixonara por ela. Quando a
via, sua fisionomia assumia quase uma expressão de êxtases, de adoração. Si
tentava dizer-lhe um galanteio, ficava mais corado que ela. Não tinha nem
procurava ter nada de um conquistador.
E foi, no
entanto, essa adoração muda de um ser feito de beleza, mocidade e inteligência que
a seduziu.
Quando ela
cedeu e passou a viver entre dois homens que a adoravam, pôde comparar como
essa adoração era diferente. O marido tinha por ela o que se poderia chamar uma
adoração puramente física. Era a beleza, a perfeição do seu corpo que o
seduziam. Nunca conversava, em casa, com ela sobre qualquer assunto elevado. Si
para algum ela tentava levar a conversa, ele lhe respondia, sorrindo, entremeando
a resposta com beijos, que só pensava em cousas sérias na rua. Em casa, queria descansar
— Em casa, sou
analfabeto. Só sei conjugar um verbo: "Eu te amo. eu te quero bem. eu te
adoro. "
Mas aquilo a
humilhava um pouco. Era uma prova de que ele fazia muito pouco da «sua
inteligência; considerava-a uma criança, uma boneca de luxo — e nada mais.
Certa vez,
chegou, radiante:
— Trouxe-te um
presente. Mas para dá-lo, hás de ceder a um meu capricho.
— E faço eu
outra cousa?
Ele a levou
para o quarto, despiu-a toda, todinha, da cabeça aos pés, deitou-a sobre a colcha
riquíssima de cetim vermelho, pôs-lhe na mão um espelho e ordenou:
— Agora, tu
fechas os olhos até eu dar licença para que os abras.
Que seria? Ela
estava intrigadíssima. Sentia que o marido lhe punha qualquer cousa no umbigo,
mas não atinava com o que fosse. Aliás, sempre que ele a via despida, cantava um
hino de louvor ao seu umbigo e beijava-o apaixonadamente, Mas desta vez que
podia ser? Quando Julião lhe permitiu que abrisse os olhos, viu ela um
formidável brilhante, que custara — nem mais, nem menos! — quarenta contos.
— Ó criança!
criança! arruinava ela.
— Tu não
imaginas como eu tenho pena de não haver um meio de engastar aí de um modo
permanente, esse brilhante!
Ela perguntou,
gracejando:
— Cola-tudo não
serviria?
Mas foi uma
grande dificuldade em obter que ele trocasse o brilhante monstro por jóias mais
discretas.
Nesse gracejo
ia, porém, uma manifestação um pouco mais profunda do que parecia. Poder-se-ia
dizer que era simbólico. De fato, si Julião pudesse converteria o corpo dela em
um ídolo bizantino, constelado de pedrarias. Varias vezes lamentara não poder
engastar um rubi em cada um dos bicos dos seus seios. Era o seu corpo que ele
prezava como uma jóia sem par.
Quando ela
começou os seus amores com Lívio experimentou uma sensação nova. Este amava
também, adorava o seu corpinho lindo. E quem, vendo-o, não o adoraria!? Mas não
a considerava apenas um objeto de luxo.
Certa vez,
começou a dizer-lhe os trabalhos, as pesquisas cientificas em que estava
empenhado. Ela o seguia com atenção e inteligência. Era bem claro que não podia
entender pormenores técnicos... Fazia, porém, pequenas perguntas adequadas,
claramente reveladoras da sua sagacidade;. E ele descia ao nível intelectual dela,
explicava-lhe tudo, maravilhado da sua lucidez de compreensão.
Certa vez,
deitados lado a lado, após horas de amor ardente, a conversa subiu, elevou-se.,
Ele lhe disse o seu grande sonho. Expôs-lhe — sem pormenores técnicos, mas bem
claramente, os vários pontos de vista de que tinham os sábios procurado
resolver o problema da tuberculose... Ele julgava ter achado um modo novo,
inteiramente novo, de encarar o problema. Nunca ninguém pensara nesse caminho. Ela
o seguia, inteligente e maravilhada. Quando Lívio se calou, Otávia não pôde conter-se:
juntando gestos infantis a cousas graves, sentou-se no leito, batendo palmas,
com os olhos acesos de entusiasmo. Que mulherzinha encantadora feita de beleza,
de paixão e de inteligência! Como ele lhe era grato pelo seu amor e a sua
animação! Como Otávia lhe era grata por ter percebido que ela não era apenas
uma tetéia cara!
Mas Julião
soube dos amores dos dois. Não precisou indagar muito. Teve noticia de que num
dia da semana, em que o médico não dava consultas, Otávia o procurava. Ela
chegava antes, abria o gabinete dele e aí ficava. Pouco depois ele chegava.
Quem observara minuciosamente esse fato fora uma vizinha fronteira . Mas a
seqüência nesses dias não falhava: quando ele chegava, ela já lá estava.
No dia em que
teve a certeza destes fatos, Julião ficou cego, desvairado de furor Era precisamente
o dia das entrevistas. Partiu para perto do consultório do jovem médico. Chegou
justamente a tempo de vê-lo entrar.
Deixou passar
alguns minutos, sôfrego, impaciente, apalpando nervosamente no fundo do bolso
do casaco, o revólver, e decidiu-se. Tudo se passou com uma rapidez
inacreditável. Bateu na porta do consultório, o medico abriu imediatamente e
Julião, com dois tiros á queima-roupa, o prostrou morto. Passou-lhe por cima do
cadáver á procura da cúmplice. Não havia mais ninguém. Pela primeira vez, nesse
dia Otávia não tinha podido ir Ainda ele estava com a arma fumegante, na mão,
estupidificado pela surpresa, quando atraídos pelo barulho dos disparos,
entraram e prenderam-no.
Fez-se o
processo. Otávia, interrogada, negou toda culpabilidade. Negou firmemente. Negou
sem um desfalecimento.
Ela estava
cheia de uma cólera furiosa contra o marido. Si ele a tivesse assassinado e
entre o tiro, que lhe desse, e o momento final da morte houvesse apenas decorrido
um minuto, ela o teria gastado a dizer "bem feito" e a perdoar-lhe.
Mas que tivesse matado Lívio, que tivesse apagado aquele farol deslumbrante de
inteligência, que tivesse cortado aquela flor de mocidade e beleza — era isso o
que a enchia de uma indignação profunda, de um ódio imenso. Si pudesse
vingar-se!
E de súbito uma
vingança possível apareceu-lhe no espírito.
Vendo que ia
ficar na miséria, disposta a suicidar-se, quis ao menos que a sua morte agravasse
ainda a situação do marido. Ao menos isso! Varias vezes, diante dela, o marido criticara
suicidas inábeis. Resolveu aproveitar-lhe as lições. Antes, porém, de o fazer, quis
deixar expressas declarações da inocência de Lívio. Isso não podia deixar de
agravar a situação de Julião. E escreveu ao Promotor que ia fazer a acusação,
no dia seguinte:
"Quando V.
Exa. receber esta, eu me terei suicidado. Faço-o sem obedecer a conselhos ou sugestões
de quem quer que seja.
Absolutamente
certa que depois da morte não ha mais nada, é-me indiferente a opinião que de
mim possam fazer os que eu vou deixar. Ha, porém, uma cousa que se me tornou
insuportável: não posso me resignar á idéia de que, por uma falsa acusação, um
homem de todo inocente, perdeu a vida por minha causa. Esse homem nunca me
disse um galanteio, nunca articulou diante de mim frase que não pudesse ser
ouvida por todos. Só nos encontramos poucas vezes, em salões mundanos, cercados
dos amigos.
No entanto foi
pela mais infundada das suspeitas, á qual se viu associado meu nome, que ele
morreu. Tenho absoluta certeza de não haver concorrido para isso de modo algum.
Mas a idéia de que mesmo involuntária e inconscientemente meu nome se viu
associado a essa tragédia me é tão penosa, tão dolorosa, que prefiro morrer
"
Mais nada.
Feito isso —
eram cinco horas da tarde — Otávia foi proceder aos últimos preparativos. Ela
tinha abandonado a antiga casa, vendera alguns vestidos e jóias, vivia agora em
uma casinha pobre com uma das suas antigas costureiras. A comida lhes vinha de fora. Não tinham
criada alguma.
Levou para a
cozinha uma cama. Vestiu-se o melhor que pôde:
— A Morte,
disse sorrindo amargamente, é uma grande senhora: merece ser bem recebida.
O marido tivera
algum tempo antes algumas eólicas hepáticas e, ás vezes, por isso ela lhe dava
injeções de morfina. Restavam três ampolas. Ela pôs na mesma seringa, não uma como
fazia para ele, mas todas três.
Feito isso,
calmamente, abriu todas as torneiras de gás do fogão sem as acender e tomou a
tripla injeção.
O sono não
podia tardar. Não tardou. Um minuto depois, dormia. Alguns outros mais tarde,
naquela atmosfera supersaturada de gás, estava morta.
Não sentira
nada. Não tivera um gesto, uma contração. O marido tinha razão. Que bom suicídio!
Quando a amiga
chegou da rua mais de três horas depois, não havia mais nada a fazer...
Deu-se
naturalmente a invasão de fotógrafos dos jornais. E em nenhum destes, no dia seguinte,
faltava o retrato da morta.
O promotor teve
nesse mesma noite conhecimento da carta, que lhe era dirigida. Ficou radiante.
Preparara cuidadosamente a acusação. Esperava brilhar no dia seguinte. Mas o reforço
que aquele suicídio lhe trazia ainda lhe aumentava as probabilidades de êxito.
Ficou até tarde no seu gabinete cuidando meticulosamente do discurso que ia
pronunciar.
O advogado do
réu não teve noticia alguma do que sucedera. Tinha ido ao teatro com a mulher e
ao voltar soube que três repórteres o haviam procurado; mas acreditou que fosse
por causa do desenvolvimento normal o
processo no dia imediato. Só teve noticia do que ocorrera á porta do tribunal.
Neste, porém,
não havia quem ignorasse o que sucedera: estava em todos os jornais. Não havia
quem não tivesse diante dos olhos o formoso retrato da morta. Esse retrato,
pela sua formosura, era um terrível argumento contra o réu. Vagamente,
surdamente, mas irresistivelmente crescia em todos o ódio contra o homem que
era também responsável por aquela morte.
A sessão foi
calamitosa para Julião. As testemunhas de defesa, que ele apresentara, eram
quatro. A bem dizer "deviam ser quatro" Na pratica não foi nenhuma. A
principal, a que morava fronteira á casa e fora a principal culpada de toda a
tragédia, fez o que chamou uma "declaração de consciência", dizendo que
de fato vira entrar no consultório do medico uma figura muito parecida com a de
Otávia, mas que depois da morte de Lívio tivera ocasião de observar o mesmo
fato e já não podia ser a moça. Admitia que pudesse ter-se enganado.
Toda a precisão
dos depoimentos anteriores desapareceu. Desapareceu igualmente a das três
outras testemunhas.
O que havia é
que, entrando na sala, elas sentiam uma imensa hostilidade no publico. Viam-se
miradas agressivamente. Sentiam que havia uma antipatia geral e não ousavam
sustentar o que tinham dito.
Deveras não
ficou de pé nenhuma testemunha de defesa. Mas o episódio verdadeiramente significativo
ocorreu quando entraram na sala as duas únicas testemunhas de acusação, que o
promotor citara: a mãe e a irmã do moço assassinado.
Ambas eram
muito bonitas. Bonitas de uma beleza feita de distinção aristocrática e fina. A
mãe, ainda moça, tinha poucos cabelos brancos. Vestiam de preto, vestidos
sóbrios, discretos, de uma elegância impecável. Nada de espetaculoso. Nem uma
jóia. Nada que chamasse a atenção — a não ser a beleza das duas e a tristeza
profunda que as revestia.
Quando, feito
um grande silencio enquanto eram esperadas, elas assomaram á porta por onde
entravam as testemunhas — e entraram singelamente, quase timidamente, cada uma apertando
um lenço branco na mão — a assistência inteira, insensivelmente se pôs de pé. Foi
irresistível. Isso, porém, dizia bem qual o estado de espírito da assistência.
O promotor
desistiu de interrogá-las.
Chegou-lhe
então a vez de falar e fez uma acusação vibrante, veemente, formidável. Dizia que
tinha ido para ali acusar o autor de um assassinato e, de súbito, se achava
diante do autor de dois assassinatos cada qual mais bárbaro — porque o suicídio
de Otávia valia como um assassinato que Julião houvesse também praticado.
E, frente a
frente, levantava as duas figuras: Julião, um impulsivo, uma fera sanguinária e
perigosa que, a uma vaga suspeita, se atirava covardemente contra um homem, a quem
não dava sequer o tempo de defender-se, e Otávia, um tipo tal de delicadeza de
sentimentos, que, embora não tendo culpa alguma, não pudera suportar a idéia de
ter concorrido para a morte de Lívio. E deste fez um perfil comovedor Evocou as
glorias que dele esperavam quantos o conheciam.
Baixinho,
discretamente, procurando não chamar a atenção, a mãe e a irmã do moço choravam.
Chorava aliás quase
toda a sala.
Foi neste
ambiente que o advogado da defesa teve de falar. Habitualmente era um orador fogoso
e eloqüente, que arrebatava as multidões. Mas ali, naquele momento, isso seria impossível.
Seu discurso foi lamentável.
Em dado momento,
quando ele se arriscou a atacar Otávia como uma esposa infiel e ingrata, o
promotor lhe pediu com falsa delicadeza:
— Dá licença
para um aparte?
— Pois não.
— Para atacar
uma mulher inocente, cujo corpo não está talvez ainda de todo frio, pede-se uma
grande coragem. O ilustre advogado a possui. Não lhe dou parabéns por isso.
Rompeu na sala
uma salva formidável de palmas. O Presidente precisou intervir, ameaçando fazer
sair o publico.
Mas o advogado
ficou sobretudo aniquilado, porque fora ele que fornecera a entrada e a
colocação de todo o pessoal feminino. E no entanto, esquecido de tudo, fora
este que mais aplaudira o aparte do promotor.
O resto do
discurso foi uma lástima.
Quando os
jurados tiveram de decidir, tudo se fez em dois minutos: vieram com a condenação
por unanimidade, com a rejeição, também por unanimidade, de todas as atenuantes
.
E a despeito da
advertência do presidente houve um formidável clamor de aplausos.
— Mas eu apelo,
disse o advogado a Julião, para junto do qual tinha ido.
— Não, meu
amigo, você não apela: está certo.
Otávia estava
mais vingada do que jamais poderia pensar, porque era o próprio Julião que
agora diante do ato da mulher e da sua negativa
peremptória, perguntava a si mesmo si não tinha cometido um assassinato bárbaro
e injusto.
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Nota:Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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Nota:Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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