O RETRATO DE
D. TUBÂNCIA
Para entrar no atelier
do pintor Leonardo Gomes, bastava apenas torcer o trinco e penetrar suavissimamente.
Era o que ele, era o que todos os demais faziam. Mas o seu amigo e colega
Lourenço não entendia as coisas assim. Quando tinha de penetrar no atelier do
colega, assumia proporções explosivas e rebentativas: Puf! Puf! — e caía lá
dentro. Foi o que sucedeu nesse dia. Mas, precisamente nesse dia ele se sentiu
um pouco envergonhado porque havia duas senhoras que ficaram assombradas com
aquele bólide.
Leonardo expôs-lhes
o caso:
— Meu amigo
Lourenço não é um homem: é um aerolito.
E a ele,
Leonardo apresentou as duas visitantes: as senhoras Tubância e Carmen Seabra,
das quais a ultima ali estava para fazer retratar-se.
Passados alguns
minutos, resolveram que não se perderia a manhã. A sessão de pose era de
três quartos de hora. Leonardo pós á vontade as suas duas visitantes.
— E agora, meu
caro amigo, disse falando a Lourenço, você tem duas hipóteses entre as quais
escolher: fica aí rabiscando qualquer coisa ou faz como a palmeira celebre de
José de Alencar e desaparece no horizonte.
Lourenço
protestou: "Eu sou um tipo no gênero de Pedro I : "Fico" Ou,
para servir a cousa á francesa, como Mac Mahon: "J’y suis, j’y reste"
Leonardo
perguntou-lhe se queria um pedaço de tela e uma palheta. Ele concordou. Cada um
dispôs-se á vontade, silenciosamente.
Era manifesto
que Leonardo estava desenhando o retrato de Carmen. De longe, perguntou ao
amigo: "Que é o que você vai fazer?"
Lourenço lhe
replicou rindo: "— Não é da sua conta" Leonardo voltou á carga:
— Seria uma boa
idéia si você fizesse o seu auto-retrato. Ha ali um excelente espelho. Mas
Lourenço objetou:
— Isso, não;
não quero. Figure a atrapalhação de estar recebendo diariamente telegramas de
todos os museus do mundo, pedindo esse retrato.
— O caso não
seria esse, replicou Leonardo. Os telegramas que você receberia de toda a parte
viriam de proprietários de circos de cavalinhos, exibidores de bichos raros.
Passariam o tempo a solicitar-lhe desse com o seu retrato preferência para os
seus cartazes.
Durante esse
tempo, as duas visitantes divertiam-se. Era positivo que o trabalho dos dois
pintores, fosse qual fosse, progredia. O de Carmen estava mesmo bastante
adiantado. O outro, que podia ele ser? Leonardo estava morto de curiosidade.
Mas, Lourenço, que percebia isso, muito de propósito, sempre que levantava os
olhos da tela percorria-os circularmente pelo aposento, exatamente para que o amigo
não visse para onde ele estava olhando. Afinal, Leonardo não pôde mais
conter-se Levantou-se de repente, disse: Pronto! e olhou para a tela que o
amigo estava pintando: era
o retrato de D.
Tubância!
Lourenço
fingindo um grande desapontamento gritou:
— Homem
indiscreto, tu não sabes calar-te?
Mas os mais
altos brados irrompiam de Carmen e de D. Tubância. Esta, em gritos estáticos de
admiração, com a fisionomia transformada de prazer, dizia continuamente:
"Ai o meu retrato! o meu retrato!"
Carmen também
não fazia uma despesa intelectual mais forte, porque se limitava a exclamar: "O
retrato de titia!"
A cena, porém,
ia mudando rapidamente, porque si as exclamações de D Tubância eram sempre
radiantes, vibrantes de contentamento, sentia-se, todavia, no volver dos olhos
de uma para outra tela que Carmen comparava as duas e parecia ir ficando cada
vez mais furiosa.
— Isto foi —
disse Lourenço — um gracejo, um passatempo estético de momento, que ninguém me
encomendou e eu vou já destruir.
Mas D. Tubância
gritou:
— Ninguém o
tinha encomendado, más encomendo eu agora. Peço-lhe que complete o trabalho:
pousarei o tempo necessário.
Lourenço
voltou-se para o amigo e agora, j á encorajado pela encomenda que recebera, pois
D. Tubância formalmente lhe dissera não admitir a destruição do quadro e
expressamente lhe fazia encomenda dele:
— Eu fiquei,
disse Lourenço, na contingência de passar uma hora estupidamente sem fazer
absolutamente nada, tendo, entretanto, junto de mim um modelo admiravelmente fotogênico.
Quando e]e
disse isto, Leonardo arregalou os olhos de um modo tão cômico, que si D.
Tubância houvesse visto aquele gesto deveria considerar-se insultada. A própria
Carmen, a despeito de toda a possível estima pela tia, não pôde conter um ar de
assombro.
As duas se
estimavam muito. Eram duas ricaças, que estavam envelhecendo pacificamente, lado
a lado. Mas afinal ha verdades tão verdadeiras que ninguém as pôde negar D.
Tubância e Carmen saíam sempre juntas.. Faziam nisso muito mal porque o
contraste «ntre as duas lhes dava um aspecto cômico.
D. Tubância era
grande, gorda, enorme. Carmen, ao contrario, era fininha, sequinha, magrinha.
Entre os vários apelidos que lhes tinham dado, figurava o de as chamarem a
Baleia e a Sardinha, e não havia nisso fora de propósito. Mas sardinha e baleia
até aí se haviam entendido maravilhosamente bem. É mesmo de notar que tomavam
muitas vezes a iniciativa de pilheriar com os cognomes burlescos que lhes
davam.
Nesse dia,
porém, alguma cousa se quebrou, quando Carmen viu o seu retrato, minguadinho,
chochinho, perfeitamente verídico» mas por isso mesmo absolutamente ridículo e,
ao lado dele, o de D. Tubância grande, gorda, exuberante mas incontestavelmente
bonito. É positivo que uma onda de inveja assoberbou
Carmen.
Lourenço muitas
vezes dissera falando de D. Tubância:
— É uma mulher
em fôrma de catarata.
Uma vez quando
o amigo lhe pedira a explicação de tal expressão começou:
— Você dispa-a.
Leonardo gritou
veementemente:
— Jamais! não
caio nessa!
— Não se
assuste: é uma despidela puramente teórica. E insistiu:
— Ponha-a em
imaginação nuazinha da cabeça aos pés.
— Que é o que
você vê?
— Não vejo nada
porque virei a cara.
— O que você vê
é uma catarata de banhas: três folhos de papada, rolando uns por cima dos
outros. Os seios despencando em cima da barriga, a barriga despencando em cima
das pernas. É positivamente o Niágara, o Paulo Affonso de toicinho.
Ora, de
repente, o mesmo homem que dissera isto descobria que D Tubância era fotogênica
e fazia-lhe um retrato admirável. Papada, havia uma é certo, mas discreta, decente,
estética. Seios? lá estava o par, mas era um parzinho arrulhador e gracioso.
Não se podia querer transformação mais completa.
Carmen,
sardinha era, — e sardinha ficava.
Mas D. Tubância
passava de elefante a borboleta. Nem mais nem menos.
Acabada a
sessão, no automóvel particular que as esperava, a discussão foi de outra natureza.
— Você acha que
eu pareço uma sardinha, disse Carmen, entretanto quer me fazer engolir um boi.
Pois então, ha alguém que possa admitir ter aquele pintor improvisado em
algumas pinceladas tão esplendido retrato como estava o seu?
A grande
diferença entre Lourenço e o amigo era o ser aquele escrupulosamente honesto. Não
escondia uma espinha, um arranhão, um defeito qualquer. Si estava no original, ele
o punha no quadro. Era implacável como uma fotografia.
— Pois eu,
dizia Leonardo, sirvo cada uma como ela quer: faço de louras morenas, de altas
baixas, de gordas magras. Não há instituto de beleza que me vença.
— Mas, Carmen.
— ia começando, no automóvel, a dizer D Tubância.
Carmen cortou a
discussão:
— O mais
simples é pararmos aqui esta conversa.
E pararam, de
fato. No dia seguinte cada uma veio em automóvel distinto. Carmen ficara absolutamente
convencida que a tia pousara em outras horas. Chegaram, cumprimentaram-se
friamente como duas desconhecidas e .continuaram pelo resto da semana as
sessões que faltavam.
Entre os
rapazes a situação fora diversa. Um objetara ao outro:
— Mas que idéia
diabólica teve você de pintar aquela mulher!
— A idéia nada
teve de diabólica. Vendo-a, acudiu-me a inspiração de fundar uma nova escola de
retratos: os retratos negativos. Tomar um modelo qualquer, deixar de desenhar o
que nele ha e desenhar tudo que nele não ha. Foi com essa alta inspiração que
eu me atirei a desenhar D Tubância, dando-lhe todas as qualidades que lhe
faltavam e suprimindo-lhe todos os defeitos de que é abundante.
Leonardo
meditou um pouco e concluiu:
— O resultado
foi brilhante: fez você que eu perdesse uma esplendida cliente.
— É um perfeito
engano. Você vai ver o resultado.
E o resultado
foi realmente magnífico. É verdade que tia e sobrinha ficaram definitivamente desavindas;
mas, em compensação, o retrato de D. Tubância, posto em lugar preeminente no
seu salão muito visitado, passou a ser o mais admirável reclame para todas as mulheres
gordas que o freqüentavam e desejariam retratar-se, nem sempre, porém, ousando fazê-lo.
Quando, porém, descobriram um artista capaz de fazer transformações zoológicas que
nenhum Darwin ousaria, passando pesados paquidermes a levíssimos insetos, o atelier
dos dois artistas, que trabalhavam agora em comum, não se esvaziava.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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