O DIÁRIO
A morte de
Eduardo constituiu verdadeira surpresa para os amigos. Surpresa e tristeza,
porque ninguém mais estimado.
Formado em
medicina, adquiriu rapidamente grande clinica. Isso se devia, em parte, â sua
real ciência, ao seu faro divinatório dos diagnósticos mais complicados; mas,
por outra parte, ao seu trato sedutor.
O Luiz Soares,
grande advogado, e seu mais intimo amigo, achava-o mais perito em tapeações: as
medicações eram secundarias. E Eduardo não o negava de todo. Parte de todas as
curas — dizia — se faz com a hábil sugestão da saúde. E antes mesmo de ter dado
qualquer remédio, persuadia o doente de sua inevitável melhora. Isso lhe dava
mais de metade da cura.
Ao cabo de
cinco anos de clinica, figurava entre os nomes feitos. E de repente, por uma infecção,
apanhada ao fazer certa operação insignificante, morreu. A doença não durou
mais de dois dias.
Tanto Luiz
Soares como Eduardo viviam em casas de apartamentos. O de Eduardo era luxuosíssimo.
Nele recebia freqüentemente a amante e não raro saía com e ela e o amigo.
Quando Luiz
Soares teve a notícia horrível, viu-se com duas incumbências desagradáveis: prevenir
a amante e a família do amigo. Ambas estavam longe. Da família chegou o pedido
para ocupar-se com tudo quanto pertencia a Eduardo, porque o parente mais
disposto a vir só o faria, sem grave transtorno, quinze dias após. A amante
viria mais depressa. Também ela telegrafou: "Favor guardar tudo quanto
possa interessar-me. Estarei aí dentro de oito dias."
Na casa de
apartamento as chaves se entregavam indiferentemente a Eduardo ou a Luiz.
Alguém, conhecendo-os bem, gracejou um tanto com a situação de testamenteiro
fatalmente incumbente a Luiz.
Dois dias
depois do enterro, ele pensou em dar um balanço em tudo quanto pertencera ao amigo.
Abriu a grande
gaveta da secretária; o morto chamava-a seu "amatório" Lá achou vários
retratos da amante, muitas cartas e mesmo um diário: diário de folhas soltas,
pequenas notas avulsas, escritas á máquina.
Lendo-o, idéia
diabólica lhe acudiu. Substituiu várias
páginas. Em uma, por exemplo, o amigo escrevera: "Saí ontem com
Henriqueta. Vejo com tristeza a invencível antipatia dela contra o Luiz"
Fato
verdadeiro. Luiz já se tinha dele apercebido, embora Eduardo o negasse.
Não se tratava
de aversão profunda, mas em três lugares Luiz achou alusões á malquerença inspirada
por ele á amiga do amigo.
Resolveu
alterar as cousas, trocando as páginas onde achou referências ao fato.
Aquela, por
exemplo, ele a substituiu inteiramente: "Saí ontem com Henriqueta e o Luiz.
Curioso o caso dessas criaturas. O Luiz parece cada vez mais encantado com a
Henriqueta; esta entretanto lhe tem quase aversão. Si eu pudesse repetir a
proeza atribuída a Catão, dava-lhe de presente a Henriqueta. Aturo-a por honra
da firma. Ele, entretanto, parece adorá-la. Quem nos ouvisse conversar, acreditá-lo-ia
o amante dela e quem nos conhecesse superficialmente achar-me-ia no dever de ter
ciúmes. Felizmente conheço bem a correção e a lealdade do Luiz."
Em três outros lugares
fez idênticas substituições. Nada mais fácil, pois bastava arrancar uma página
e pôr outra no lugar Folhas volantes, as que colocou, escreveu-as como as
demais, com a mesma máquina. As que arrancou, picou em pedaços miúdos e
deu-lhes sumiço. Feito isso, colocou o livro de notas no mesmo lugar onde
anteriormente estava.
Traição ao
amigo? "Traição" importaria talvez em palavra muito solene, porque
deveras a ligação de Eduardo não chegava a extremos de paixão. Pelo contrário.
Mais de uma vez dissera realmente a Luiz que a sua afeição por Henriqueta nada
tinha de profundo. Nunca se casaria com ela. Parecia-lhe ótima parceira para
leves amores extra-legais, como os seus eram; mas estava certo de acabar
deixando-a para regularizar a sua situação social. Nessas condições, nada de
muito estranho ela entrasse no espólio do finado como legado ao amigo.
Henriqueta, ao
chegar, oito dias após, apressou-se em telefonar Falou com Luiz: entre os
papeis d1 Eduardo, devia haver cartas e bilhetes
dela. Não interessavam a ninguém. Alguns desses escritos, percorridos por estranhos,
pareceriam até cômicos. Queria reavê-los. Luiz concordou.
Do par
dissolvido pela morte nenhum tinha contas a dar á sociedade. Eduardo se proclamava,
como freqüentemente se exprimia, "solteiríssimo" Henriqueta podia
dizer-se "vivíssima"; fora casada apenas três anos. Estava agora com 27,
num verdadeiro esplendor de força e
beleza e, de a mais, só e rica, sem filhos, nem parentes de qualquer espécie.
Revendo-se pela
primeira vez após a morte de Eduardo, Luiz e Henriqueta combinaram que
almoçariam em qualquer gabinete particular de hotel e depois ele a traria para
o apartamento do amigo. Eduardo usava trazer todas as suas chaves,
em aro de ouro, na corrente do relógio. Luiz entregou-as a Henriqueta e
disse-lhe que permaneceria no escritório até ser por ela chamado pelo telefone
particular do quarto de Eduardo. Garantiu-lhe não ter estado vez alguma nesse
quarto, depois da morte do amigo.
Quando
entraram, havia sobre a mesa do morto duas esplendidas fotografias: uma de Eduardo
e outra de Henriqueta. Henriqueta pegou na do morto e ficou algum tempo
mirando-a, com os olhos rasos de lágrimas. Luiz tomou a fotografia dela e
disse:
— Como eu fiz
mal em não ter vindo cá.
— Por que?
— Porque me
teria apossado desse retrato. Ela fingiu não entender o claro pedido e objetou:
— Isso o
interessaria tão pouco.
— É um engano,
um grande engano seu.
Ia nesse
pequeno dialogo verdadeira declaração de amor feita por ele, e, mais uma vez, a
afirmação da repulsa de Henriqueta. Ali mesmo arranjaram pequena maleta de mão,
afim dela levar o que desejasse. A primeira cousa a ser nela posta foram os
dois retratos. E Luiz seguiu para o seu escritório.
Mal ele
partira, Henriqueta abriu a gaveta onde estava sua correspondência. Sabia onde se
achava. Também conhecia a existência do livro onde Eduardo tomava notas; nunca,
porém, o havia percorrido. Eduardo mesmo lhe declarara considerá-lo um
repositório de segredos.
Henriqueta enfiou-se em lindo quimono
empreendeu arrumar a sua velha correspondência. Só então sentiu curiosidade de ler
algumas notas do Diário. Falariam dela? Falavam — e até abundantemente como
natural. Havia numerosas referencias.
Quando chegou àquela onde Eduardo dizia aturá-la por honra da firma e leu com
assombro a afirmação dos sentimentos de Luiz, o seu espanto se tornou enorme.
Correu então febrilmente todas as outras notas. Nem de leve sentiu dúvida sobre
a autenticidade dos pérfidos enxertos. Mas por outro lado, a sua admiração
subiu a extremos insuperáveis.
O Luiz a
adorava e o Eduardo apenas a suportava ?!
Nunca o
imaginara.
Mas então — e
só então — compreendeu ou julgou compreender porque Eduardo nunca lhe mostrara
o Diário. Quando ele o chamava um repositório de segredos e sorria, Henriqueta julgava
adivinhar esse sorriso; havia seguramente nessas notas muitas expansões do seu amor
a ela. Entretanto, só havia — oh! o abominável
pérfido! — agora o estava lendo, a declaração de limitar-se a
suportá-la.
E ela o amara
tanto!
Em certo
momento estampou-se-lhe no rosto uma cólera violenta. Quase se teria por
seguro, si ela o pudesse, desenterraria o morto no sepulcro para esbofeteá-lo.
Não pôde ir tão
longe, mas revolveu rapidamente a maleta e tirou os dois retratos. Pôs o de
Eduardo sobre a mesa, onde estivera, e o seu, o que pouco antes ela negara a
Luiz, deixou-o de fora, cuidadosamente embrulhado. Ajeitou tudo mais e tocou
para o escritório do advogado, chamando-o.
Este não se fez
esperar.
Henriqueta o
acolheu com aperto de mão muito caloroso. Os habituais não eram assim. Luiz viu
logo o retrato do amigo restituído ao seu antigo lugar.
— Vai deixá-lo?
Ela respondeu,
como si isso fosse natural:
— Eu tenho
outros. Talvez este a família deseje conservar.
Luiz sentiu uma
ponta de remorso, diante daquelas frases. Elas traduziam bem a alteração rapidamente
produzida nos sentimentos de quem as dizia. Alteração mais profunda representou
ainda o fato de Henriqueta dar-lhe o próprio retrato poucas horas antes negado.
— Falou-me, ha
pouco, no seu interesse por ele.
E sorria
deliciosamente.
O moço
agradeceu com ardor.
A casa onde
estavam constituía uma coleção de apartamentos de luxo. Sete andares.
— Ainda mora
onde morava?
Luiz lhe
respondeu a verdade: para um solteirão, como ele, o apartamento onde vivia, aliás
longe dali, bastava amplamente. Henriqueta teve então uma proposta estranha: a
de tomar ele um apartamento na casa onde ambos naquele momento se achavam. E
acrescentou:
— Não este.
Qualquer outro.
Luiz
admirou-se. Ela volveu:
— Se aceitar
minha idéia, a juntou, eu também tomarei outro apartamento aqui para mim.
Nessa fúria,
pela qual Henriqueta, mal saída dos braços de Eduardo se atirava aos de Luiz,
nem tudo era tão indigno como podia afigurar-se. Ao contrario! Parecia á moça
ter andado muitas vezes mal, buscando separar Eduardo e Luiz, e votando a este
uma aversão injusta.
Agora, Eduardo
lhe parecia ter roubado o amor pertencente de direito a Luiz. E ela devia a
este, como indenização sentimental, anos de caricias.
Ele,
entretanto, estava atordoado. O resultado das alterações do Diário estava indo muito
além dos seus cálculos. Henriqueta lhe estendeu ambas as mãos. O moço as tomou
e ela se deixou atrair Um segundo após, quando ele concordou, Henriqueta estava
nos seus braços, com os lábios nos lábios dele. Luiz destacou-se apenas para
ouvir-lhe a última proposta:
— Mas nas
nossas relações haverá uma condição formal: nunca, em hipótese alguma, a
propósito de nada, me falará em "seu" falecido amigo Eduardo.
E frisou bem o
adjetivo possessivo. Era como si pusesse fora o morto. Ficaria para quem o quisesse.
Não tinha mais nada com ele. Varria-o mesmo do passado.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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